capítulo 01 - o resgate da ciclabilidade de balneário camboriú

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Através da nossa página no Facebook vamos disponibilizar todos os ar-tigos do livro BRASIL NÃO MOTORIZADO. A cada semana um texto será editado. Desse modo, ao final de 16 semanas o livro estará completo e terá sido aberto mais um canal de leitura e discussão dos temas abordados.

A publicação dos artigos no formato eletrônico também se deve ao su-cesso da edição. Além das cotas dos patrocinadores, vendas em lançamentos e livrarias e doações a instituições de ensino, foram colocados mais de 1.000 exemplares. Isso demonstra o interesse pelo assunto “mobilidade urbana” e nos dá a certeza de continuarmos com a coleção. Está prevista ainda para 2015 a edição do nosso 2º volume – com alguns novos autores e novas abordagens.

Boa leitura

Vale lembrar que os interessados ainda podem adquirir o livro nas Li-vrarias Cultura; sob encomenda ou pela internet. www.livrariacultura.com.br

IMPORTANTE

Empresas e entidades que patrocinaram essa 1ª edição:

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APRESENTAÇÃO

Este é um livro incomum. No começo era um Antonio, era um João. Os dois com perguntas incrédulas: “Por que não existe literatura técnica sobre os meios não motorizados? Por que o Brasil técnico não concede a atenção exigida às pessoas com deficiência – PcDs, aos pedestres, aos idosos, aos ciclistas? Serão minoria desprezível em nossas cidades? Será isto, será aquilo? Até quando?” O Brasil envelhece rapidamente, não tanto como as nações europeias, mas enve-lhece. E esses números não são pequenos, com tendência a crescerem bastante até 2050.

Nas cidades brasileiras há muitos idosos, muitos ciclistas, muitas PcDs, e grande parte desses contingentes sente-se prisioneira de suas casas, em cidades despreparadas para suas mobilidades. A cada saída de casa, um risco. A cada saída uma queda, um atropelamento, um acidente. Cada saída uma incompre-ensão, como no dizer de um dos autores deste livro: idosos e ciclistas “eles atra-palham o trânsito”.

Felizmente, temos técnicos interessados em apontar problemas e indicar soluções. Este livro reuniu um conjunto deles. Esperamos que logo sejam cen-tenas em prefeituras, nos governos estaduais, no governo federal, nas câmaras municipais, nas assembléias legislativas estaduais, no Congresso Nacional. A luta pela melhoria da acessibilidade e mobilidade dos não motorizados precisa ganhar corpo. São necessários recursos massivos anuais, alocados nas Leis de Diretrizes Orçamentárias, em todos os níveis da administração pública.

Nossas cidades precisam se humanizar. Elas precisam diminuir a velo-cidade da mobilidade de alguns, para que todos possam se deslocar com qua-lidade. Não há saída para a mobilidade distante dos modos de transporte de massa. Os meios não motorizados são parceiros e não concorrentes dos modos coletivos. As cidades brasileiras precisam do conceito de vizinhança do Regi-naldo; precisam dos estudos comparativos do Francisco; da experiência holan-desa que Jeröen nos traz; de depoimentos fortes como o descrito por Mesquita; da indignação do Cascaes com nossas calçadas; de tantas outras experiências aqui relatadas.

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Acreditamos que este livro é um marco na mobilidade brasileira. Oxalá outros livros possam surgir e, em breve, possamos ter um Brasil Não Motoriza-do II, III, avançando na numeração romana até que nada mais precise ser acres-centado a não ser como história. Isto porque já teremos atingido o patamar de qualidade civilizatória, onde nossas cidades trarão não somente orgulho àque-les que nelas vivem, mas efetivamente alegria, conforto, bem-estar e mobilidade fácil para todos.

Os dezoito autores desta obra agradecem ao editor, às revisoras, à diagra-madora, aos tradutores, aos patrocinadores, ao convidado especial que empres-tou seu depoimento pessoal, e a todos que, direta e indiretamente contribuíram para a realização deste projeto.

Antonio Carlos M. Miranda

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O resgate da ciclabilidade de Balneário Camboriú.

O resgate da ciclabilidade de Balneário Camboriú

André Geraldo SOARES 1

Roberta RAQUEL 2

1. O que é ciclabilidade?

Pode-se avaliar se uma cidade é ciclável – ou seja, se ela possui condi-ções adequadas para o uso da bicicleta – por meio, principalmente, de duas categorias de análise: a físico-geográfica e a política. A primeira diz respeito às condições de relevo e de clima; a segunda, às ações governamentais e ao com-portamento dos indivíduos e instituições em relação à comunidade.

A respeito das condições físico-geográficas, elas serão tanto mais limi-tantes quanto menos expressivas forem as ações políticas pró-ciclismo. Por exemplo, cidades com muitos morros podem tornar-se mais acessíveis às bici-cletas se contarem com bicicletários adequados, bem distribuídos, estruturas de integração com o transporte coletivo (incluindo o transporte das bicicletas nos ônibus) e bicicletas de aluguel. Não necessitamos discorrer sobre condições climáticas extremadas, pois esse não é o caso de nenhuma cidade brasileira.

Assim sendo, a ciclabilidade de uma cidade – a condição de ela ser ciclá-vel com segurança e conforto – depende muito de ações do Estado e que elas sejam concretizadas em legislação, em políticas públicas educativas, em infra-estruturas, em fiscalização e aplicação dos direitos.

A história recente tem demonstrado que tais ações não são tomadas pelos gestores, legisladores e fiscalizadores públicos sem a intervenção, mais ou me-nos vigorosa, da sociedade civil organizada. Intervenções pró-ciclabilidade são tanto mais necessárias quanto maior for a cidade. Elas incluem, ainda, medidas não exclusivamente ciclísticas, tais como o fortalecimento do transporte públi-co e o disciplinamento do uso e da ocupação do solo.

1 Bacharel e Licenciado em Filosofia; Mestre em Sociologia Política; Secretário Executivo da União de Ciclistas do Brasil (UCB); e Coordenador de Mobilidade da Associação de Ciclismo de Balneário Camboriú e Camboriú (ACBC). E-mail: [email protected]

2 Bacharel e Licenciada em Geografia; Mestre em Geografia; Professora e Pesquisadora do Insti-tuto Federal Catarinense - Campus Camboriú. E-mail: [email protected]

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Não existe uma fórmula para determinar o quanto uma cidade é amiga da bicicleta, menos ainda há uma entidade certificadora da ciclabilidade. Por isso, ao abordar o caso de Balneário Camboriú, selecionamos algumas experi-ências nacionais e internacionais, que serão descritas no capítulo que analisa a mobilidade ciclística local.

1. Características de Balneário Camboriú

Balneário Camboriú está situada na planície fluvial do Rio Camboriú, no litoral de Santa Catarina. Sua zona urbana é predominantemente plana, com altitude média de 2 m, e algumas áreas habitadas em encostas leves geralmente não alcançam 25 m de altitude (*) [1]. Fundada em 1964, desmembrou-se do município de Camboriú, com o qual está conurbada. O município é importante destino turístico praiano, sendo o turismo sua principal economia. Crescendo 3,7% ao ano, a sua população foi estimada em julho de 2012 em 111.319 habi-tantes [2].

Com 46,49 km² e 2.394 hab./km², é a segunda cidade mais verticalizada do País (57% dos seus imóveis são apartamentos) (*). Durante a passagem do ano de 2012 para 2013, foi estimada a presença de um milhão de pessoas na cidade (*).

2. A mobilidade urbana de Balneário Camboriú

Por ser cidade verticalizada em território pequeno, Balneário Camboriú tem um trânsito saturado. Apesar de o seu perímetro urbano ter desenho alon-gado, e excetuando-se a rota de praias mais “agrestes” (onde vive apenas 1,5% da população), a distância de um extremo a outro, por rodovia, é de apenas 11 km. Do extremo mais longínquo até o centro da cidade, o trajeto perfaz 6,5 km.

Caso consideremos apenas a região central e bairros contíguos (onde vi-vem 83% da população), de um extremo a outro percorrem-se não mais do que 7 km; e do limite mais distante ao centro, não são mais do que 4 km. Ou seja, adiantando-se o tema que será abordado mais adiante, para a maior parte da sua população, trata-se de uma cidade plenamente ao alcance dos pés e dos pedais.

O Município de Balneário Camboriú não dispõe de levantamentos ou pesquisas do tipo Origem/Destino para quantificar os meios de transporte uti-lizados por seus moradores, segundo nos informou, em entrevista, o seu Secre-tário de Planejamento, Sr. Auri Pavoni [3].

No entanto, é nítido que nele se repete a situação de cidades congêneres: não menos do que um terço dos deslocamentos é realizado por meio de veículos motorizados particulares: automóveis e motocicletas. Enquanto a população da cidade cresceu 51,55% nos últimos dez anos, a frota de automóveis cresceu

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132,40%; e a frota de motocicletas, 267,27%, alcançando o índice de um veículo motorizado para cada 1,63 pessoa (Quadro 1).

Acrescentem-se a esse montante os veículos dos trabalhadores residentes em Camboriú, que possuem 19.353 automóveis e 17.184 motocicletas. Essa frota é 250,75% maior do que há dez anos, e no período de verão e nos feriados pro-longados 74,90% dos turistas chegam até o município vizinho por automóvel, o que aumenta mais ainda a pressão sobre o Balneário.

O transporte público em Balneário Camboriú é reduzido. A em-presa Expressul faz o serviço municipal com 23 ônibus, transportan-do 160 mil passageiros/mês, o que representa apenas 5% da popula-ção. Em entrevista, o Sr. Anderson Ferreira, Encarregado de Tráfego da empresa, disse que a quantidade de passageiros vem decaindo ano após ano [4].

Figura 1: Balneário Camboriú - Centro, bairros contíguos e bairros periféricos principais.

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O município ainda não possui corredores exclusivos para ônibus ou ou-tras políticas de incentivo ao uso do transporte coletivo.

A malha viária da cidade vem sofrendo, nos últimos anos, muitas in-tervenções para tentar facilitar o escoamento dos motorizados. As principais avenidas da cidade estão sendo reestruturadas para acomodar quatro faixas de rolamento em sentido único. Também extenso programa de desapropriações está sendo executado, visando à abertura de novas avenidas com as mesmas características. A atual gestão pública planeja ainda a construção de dois viadu-tos, marcando definitivamente a opção pelo modelo rodoviarista.

Além disso, destaque-se que a cidade é cortada pela Rodovia Federal BR-101, cujos 14 km de vias marginais, com tráfego rápido e pesado, condicionam o tráfego local. Apesar dos apelos constantes da sociedade, a Concessionária Au-topista Litoral Sul se mostra absolutamente indiferente aos ciclistas e pedestres, e não construiu até hoje nenhuma ciclovia nas vias marginais. Os 2.360 metros de vias cicláveis ali instaladas devem-se a antigas obras municipais.

1. A mobilidade ciclística em Balneário Camboriú

Apesar da ausência de dados e pesquisas a respeito da mobilidade ur-bana [5], é perceptível que o uso de bicicleta em Balneário Camboriú é maior que o verificado na média da Região Sul – estimada em 3% (IPEA, 2011, p. 4). Isso porque em Balneário a estimativa aponta para um percentual situado entre 4% e 5% das viagens realizadas. Também é muito difícil deter-minar a frota do município. No entanto, considerando-se a proporção brasilei-ra de bicicletas [6] por habitante e a dos automóveis por habitante, bem como o percentual de viagens fazendo uso de bicicleta, podemos conjeturar que a frota local situa-se entre 30 e 45 mil bicicletas [6], [7].

Proporcionalmente à população, outrora já foi maior a quantidade de bi-cicletas e menor a quantidade de veículos motorizados no trânsito da cidade. Esse ponto de vista foi corroborado pelos membros da Associação de Ciclismo de Balneário Camboriú e Camboriú (ACBC), em debate coordenado pelos au-tores durante reunião da entidade [8].

Todavia, a situação começou a mudar no final da década de 1980, com o aumento gradativo da frota de veículos motorizados particulares – ritmo que se acelerou na década de 2000. A melhoria da economia nacional, o feti-chismo do automóvel e o poder de interferência da indústria automotiva leva-ram à ampliação da malha rodoviária, que, mesmo assim, está cada vez mais saturada.

Com as ruas cada vez mais tomadas por veículos motorizados, a falta de infraestrutura destinada à segurança dos ciclistas, o comportamento preva-lecido dos motoristas, a ausência de programas educativos e a falta de fiscaliza

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ção do trânsito, declinou sensivelmente o uso da bicicleta em todas as idades e em todas camadas sociais.

Paradoxalmente, essa exacerbação do automobilismo se converteu em uma das causas da retomada do uso da bicicleta. Isso porque o conforto do automóvel deixou de ser atraente, em face da demora para vencer curtas dis-tâncias; porque o transporte coletivo tornou-se caro, escasso e pouco atra-ente à população; porque a motocicleta é considerada perigosa, sobretudo pelos mais idosos; e em razão de se exigir idade superior a 18 anos para guiá--la. Assim, apesar das dificuldades, a bicicleta continua sendo a modalidade de transporte usual na cidade.

Além disso, a condição geográfica de Balneário Camboriú favorece o uso da bicicleta. Sabemos que esse veículo, em meio urbano, é o meio de transporte mais eficiente em trajetos de até 8 km (European Comission, apud BRASIL, 2007, p. 60) – extensão que abrange a maior parte da cidade (Figura 1).

Tais características fazem de Balneário Camboriú uma só “bacia ci-cloviária” (RAQUEL, 2010). Ou seja, uma unidade de planejamento e gestão que circunscreve a área de interesse do ciclismo – aquela onde o desloca-mento de ciclistas mantém a eficiência –, tendo como seu centro a região para onde ocorre o maior número de viagens. Dito isso, é bastante claro que deixar de investir na mobilidade ciclística em Balneário Camboriú consti-tui, mais do que a negação da vocação da cidade, uma afronta ao bom senso.

1. Avaliação da ciclabilidade de Balneário Camboriú

Com efeito, tem havido investimentos municipais para melhorar a ci-clabilidade de Balneário Camboriú. Esse fator também é responsável pelo modesto, mas perceptível, aumento na quantidade de ciclistas na cidade – assim pensam os membros da ACBC, entrevistados em 01/07/2013.

Entretanto, ainda estamos bastante distantes da condição ideal, e cum-pre avaliarmos se realmente alcançaremos uma ciclabilidade plena. O estudo das cidades mais cicloinclusivas permite-nos identificar tanto as característi-cas da ciclabilidade quanto os fatores responsáveis por essa condição. A seguir, mesclando experiências internacionais e interpretações nacionais, elencamos os principais critérios para avaliar a situação local.

Começamos pelo grupo de consultores dinamarqueses, provenientes de Copenhague, que publica o ranking das “Cidades amigas da bicicleta”, que se baseia em 13 critérios, entre os quais os principais são: sociedade civil organiza-da e atuante; cultura ciclística reconhecida e visível; bicicletários e outras facili-dades; bicicletas de aluguel ou compartilhadas; percentual de ciclistas mulheres; percentual de ciclistas em relação às demais modalidades; interesse político pela bicicleta; estruturas de tráfego acalmado.

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Em seguida, aproveitamos os Indicadores de qualidade de mobilidade ciclística em Florianópolis, elaborados pela pesquisa da UDESC (com fundos do MCT/CNPq) denominada “Transporte por bicicleta em cidades catarinenses: metodologia para levantamento da realidade e recomendações para incremento da sua participação na mobilidade urbana” (UDESC, 2011) [9]. Dentre os 17 indicadores, os principais são: rede cicloviária abrangendo toda a cidade; aten-dimento das recomendações do Ministério das Cidades; existência e aplicação de legislação; programas educativos; sinalização adequada; planejamento de médio e longo prazos; alocação de recursos no Orçamento do Municipal; pesquisas e monitoramento; incentivos ou recomendações às empresas privadas; departa-mento administrativo responsável pelo planejamento e gestão cicloviários; órgão colegiado democrático, com atribuições relativas à mobilidade ciclística.

Especificamente, sobre a qualidade da infraestrutura cicloviária, citamos as “cinco principais exigências para o planejamento cicloviário”, defendidas por técnicos da consultora holandesa Interface for Cycling Expertise – I-Ce (BUIS, 2007). Por trás da aparente simplicidade, está um conjunto de princípios que orientam a confecção dos projetos cicloviários: atratividade, conforto, lineari-dade, segurança e coerência da rede.

Também pode ser aproveitada a metodologia do Ciclobservatório - Ob-servatório da Mobilidade Ciclística de Florianópolis, uma iniciativa da ViaCi-clo - Associação dos Ciclousuários da Grande Florianópolis, sob supervisão do holandês Cycling Lab - Metropolitan Cycling Laboratory (SOARES, 2010). A avaliação fica a cargo de usuários, ciclistas experientes, técnicos profissionais e gestores públicos, abrangendo 28 questões. Entre elas estão: velocidade dos motorizados; largura da via; qualidade do pavimento das vias; segurança nas in-terseções; integração com o transporte coletivo; drenagem; sombreamento das in-fraestruturas viárias; respeito dos condutores de veículos motorizados; a acessibi-lidade infantil; o potencial de atratividade; e a sensação de segurança e conforto.

Não é possível, no espaço deste artigo, avaliar a cidade a partir de todos esses critérios. Portanto, selecionaremos alguns dos que consideramos os mais importantes e que expõem os aspectos positivos e negativos da experiência lo-cal.

Inicialmente, é preciso destacar que existe uma cultura ciclística na cida-de. Acresça-se a esse fato a adoção da bicicleta por camadas sociais que até então não faziam uso dela – notadamente, a classe média –, tanto na modalidade de lazer e esporte quanto de transporte.

É importante saber que a sociedade civil exerce influência local. Destaca--se nesse contexto a ACBC. Segundo a avaliação dos seus dirigentes, a ACBC, que se relaciona nacionalmente com organizações congêneres, é entidade que recebe reconhecimento local. Ela contribui efetivamente para o aumento do respeito à bicicleta na cidade, em ações como: campanhas educativas; pesqui

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sas; compartilhamento de boas práticas; requerimentos às instituições governamentais; e participação em espaços de uso público. Apesar disso, a so-ciedade civil é raramente requisitada a participar das decisões públicas. Entre-tanto, neste momento inicia-se entendimento entre a ACBC e a Prefeitura para construir, ainda em 2013, uma agenda de encontros regulares.

A legislação de Balneário Camboriú é favorável ao ciclismo, revelando que existe compreensão política da sua importância. A sua Lei Orgânica (Lei n.º 933/1990), o seu Plano Diretor (Lei n.º 2686/2006) e suas normas de uso e ocupação do solo (Lei n.º 2.794/2008), tratam da inclusão da bicicleta e da im-plantação de um sistema cicloviário integrado para proporcionar a melhoria da qualidade ambiental da cidade e da mobilidade urbana.

Existe um Conselho Municipal de Trânsito (Lei n.º 1.958/2000) com atri-buições para a “circulação e segurança de ciclistas”. Entretanto, ele não reserva cadeira para representantes de ciclistas. Segundo o Secretário de Planejamento, o Conselho não funciona e é dispensável, porque existe troca de informações entre os órgãos públicos.

O Departamento de Trânsito e Engenharia (Lei n.º 3.029/2009) deve incumbir-se da circulação e da segurança de ciclistas, mas, como afirma o Se-cretário, o corpo técnico é restrito e não há um funcionário ou setor destacado especialmente para a mobilidade ciclística. Também existe uma Lei que trata do “programa de educação especial de trânsito de ciclistas” (Lei n.º 2612/2006); entretanto, sobre tal programa, nada se conhece de ação efetiva praticada. Ape-sar de a aplicação dessa legislação ser bastante tímida, a lei constitui um instru-mento à disposição da sociedade. Ainda que faltem detalhamentos nos textos de leis como esta, elas expressam princípios que têm validade inclusive para questionamento judicial. Como não há definição de prazos, tampouco obriga-ções orçamentárias expressas, fica a cargo dos interessados fiscalizar o seu cum-primento e demandar o ritmo e o volume necessários para a inclusão ciclística.

O incremento da infraestrutura cicloviária é um fator que tem favorecido a ciclabilidade da cidade. A quantidade de vias ciclísticas exclusivas mais do que duplicou nos últimos seis anos. Hoje, segundo levantamento realizado pela ACBC, soma 17.195 metros (Quadro 2) (*).

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Tais vias têm sido construídas concomitantemente à reforma das vias ro-doviárias, o que demonstra estarem os gestores cientes de que o alargamento viário e a ampliação da capacidade de tráfego e da velocidade dos motorizados aumentarão a incidência de acidentes com ciclistas. Entretanto, devido a esse atrelamento, as vias ciclísticas não compõem uma malha ou rede interligada, mas um conjunto desconectado, forçando os ciclistas a disputar espaço com os veículos motorizados entre um e outro trecho. Segundo a Secretaria de Planeja-mento, essa estratégia continuará sendo adotada, já que a prioridade é continu-ar alargando os principais eixos rodoviários de ligação.

De qualquer forma, constata-se que a conexão está ocorrendo aos poucos. A extensão total da rede cicloviária tem crescido a cada ano, o que se converte em estímulo para o uso da bicicleta na cidade, sobretudo pelas pessoas mais inseguras. Ou seja, a ampliação da infraestrutura cicloviária deve ser conside-rada fator que contribui ao aumento da participação da bicicleta na mobilidade urbana em Balneário Camboriú.

Apesar de as vias ciclísticas serem implantadas durante as reformas vi-árias, nem sempre elas são entregues com a qualidade adequada. Para falar da qualidade das vias ciclísticas, citamos alguns exemplos baseados nas discussões internas e nos pronunciamentos públicos da ACBC, ao que acrescentamos dois levantamentos entregues à Secretaria de Planejamento do Município e à Câma-ra de Vereadores (*).

A via de tráfego geral da Terceira Avenida ganhou novo pavimento, mas a ciclovia ali construída continuou com o original danificado. Também os pavi-mentos das ciclovias na Avenida do Estado e na Avenida Martin Luther, apesar de novos, são demasiadamente ondulados. Citamos, ainda, que a sinalização

Figura 2: Ciclovia da Quarta AvenidaFOTO: André Geraldo Soares

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nas intersecções é inexistente ou deficiente em conceder prioridade aos ciclistas, o que tem causado constantes acidentes; que os semáforos não são dotados de indicação e de tempo para ciclistas e pedestres; que diversas vias ciclísticas alagam durante as chuvas; que a maior parte das vias ciclísticas é es-treita (Quadro 2); e que algumas vias rodoviárias requererem estrutura do tipo ciclovia, em vez de ciclofaixa. Embora a resolução seja bastante fácil e barata, some-se a esse quadro a falta de integração acima mencionada.

O fato é que o somatório das imperfeições, que poderiam ser facilmente corrigidas, configura um conjunto de baixa qualidade, um sistema desconfortá-vel, perigoso e pouco atrativo, gerando críticas e resistências sociais.

Além disso, as demais medidas acessórias, necessárias à segurança e ao conforto do ciclismo e à adaptação geral da sociedade, inexistem ou não são perceptíveis. O único bicicletário público é danoso às bicicletas; não há progra-ma educativo para nenhum dos usuários da via pública; e a fiscalização para a garantia dos direitos dos ciclistas é deficiente. Do mesmo modo, os ciclistas não são alertados nem educados quando cometem infrações ou imprudências.

Dessa forma, pode-se avaliar que a municipalidade perde uma boa opor-tunidade de potencializar ainda mais a ciclabilidade de Balneário e de, con-sequentemente, aumentar a quantidade de adesões à bicicleta. Caso o poder público deseje obter maior respaldo para prosseguir com suas ações, diminuin-do a resistência principalmente dos comerciantes que se aferram às vagas de estacionamento em vias públicas, deverá conferir qualidade à infraestrutura, para que mais ciclistas possam usá-las sem receio.

A Secretaria de Planejamento, contudo, argumenta que a adesão à bici-cleta dará um salto, chegando a “perto de 20%” das viagens diárias. Mas não soube precisar o prazo. Referindo-se ao mapa Sistema Cicloviário de Balneário Camboriú 2013 (*), afirma, ainda, que até o final do mandato a cidade terá, se-não os 75,47 km de ciclovias e ciclofaixas ali assinalados, algo “bem próximo a isso”. Entretanto, a soma das vias ciclísticas projetadas no citado mapa alcança 83.870 m. Adicionando-se os 17.195 m de vias ciclísticas já implantadas, che-garemos ao total de 101.065 m. Se isso ocorrer, a quantidade de vias ciclísticas por habitante será elevada dos atuais 15,45 cm/hab. (semelhante e até superior a outras cidades brasileiras mais destacadas) para 80,21 cm/hab., um índice so-mente alcançado pelas cidades europeias mais amigas da bicicleta.

Outra infraestrutura planejada é a instalação de 87 bicicletários em áreas públicas, seguindo o modelo “de encosto” recomendado pela União de Ciclistas do Brasil (UCB) e pela própria ACBC. Entretanto, como não há verba específica destinada para essas obras, estando elas condicionadas à reforma viária em an-damento, sua instalação efetiva é igualmente incerta.

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Resgatar a ciclabilidade de um município com as características de Balne-ário Camboriú não é uma tarefa nem simples, nem rápida. A cidade tornou-se um organismo complexo e disputado por diversos interesses. Sua dimensão, o adensamento automobilístico e os hábitos dos munícipes, formados em décadas de investimentos financeiros e ideológicos no automobilismo, requerem ações continuadas e com a cooperação de todos os setores sociais. Nesse sentido, res-gatar a ciclabilidade significa construí-la para um novo formato de cidade.

A saída pode estar em um pacto, a ser coordenado pela municipalidade, com a participação de toda a sociedade, propondo metas de curto, médio e longo prazos. A ferramenta principal para isso seria um Plano Municipal de Mobilidade Urbana, que agora tornou-se exigência federal com a recente Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei n.o 12.587/2012). A Secretaria de Planejamento afirmou publicamente em 06/03/2013, na Câmara de Vereadores, que tal plano existe; repetiu a afirmação durante a entrevista concedida para este artigo, mas não apresentou nem soube informar sua localização.

Não parece esse pacto que será iniciado dentro da estrutura adminis-trativa da prefeitura, já que a Secretaria de Planejamento, que deveria coorde-nar o processo (ainda de acordo com a entrevista), não pensa em agir de forma integrada com as demais pastas antes de que as condições de segurança para o ciclismo estejam garantidas. Enquanto isso, as críticas ao sistema vão sendo re-distribuídas de um órgão para outro, sem o esforço por uma solução conjunta.

Resta à sociedade civil prosseguir atuando e buscando meios de exercer mais influência sobre a política urbana, pois apenas a boa intenção de uma ad-ministração não oferece garantias de continuidade dos projetos nas sucessões eleitorais. Ao final do mandato, certamente teremos uma cidade remodelada para o automóvel (e, muito provavelmente, sem o sucesso esperado), mas não é tão certo que teremos uma cidade segura para quem usa a bicicleta.

Como resultado, persiste a incerteza não somente quanto ao resgate da ciclabilidade de Balneário Camboriú, mas também quanto à possibilidade de que o município possa, servindo de exemplo para as demais cidades, em um prazo compatível com as expectativas sociais, tornar-se autenticamente huma-nizado, democrático e sustentável, tal como se exige de uma sociedade inteli-gente e próspera que pretende ser.

1. Conclusões e recomendações

Aos cidadãos e instituições interessados em construir uma cidade amiga da bicicleta, cabe, inicialmente, reconhecer que essa tarefa não é incumbência de nenhum setor específico, mas sim de toda a sociedade.

A sociedade civil deve, portanto, exigir que o Estado, o poder público, efetivamente cumpra sua função de promover o bem comum – no caso, o de executar políticas e de intervir junto à iniciativa privada com a finalidade de

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conceder prioridade à mobilidade de pedestres, de ciclistas e do transpor-te público, tendo em vista os inúmeros benefícios gerados por esse modelo, tan-to para a comunidade quanto para a natureza e os para os próprios indivíduos.

Dessa forma, os prazos e as metas devem ser estabelecidos pela comuni-dade, e este artigo apenas contribui para o debate, ressaltando a importância, entre outras medidas, da democracia na gestão municipal, da pesquisa e do monitoramento, do investimento maciço em infraestrutura de qualidade, do planejamento de curto e longo prazos, dos programas educacionais e da fiscali-zação para garantir os direitos de uso do espaço público.

Notas

[1] (*) O asterisco entre parênteses indica que a respectiva referência bi-bliográfica foi omitida em função das limitações de espaço do artigo. Adotamos essa estratégia para as consultas realizadas na Internet, que podem ser efetua-das também pelos leitores.

[2] Todos os dados populacionais são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

[3] Entrevista com o Sr. Auri Pavoni, Secretário de Planejamento de Bal-neário Camboriú, e com Helvys Zermiani, Arquiteto do mesmo órgão, realiza-da em 26/06/2013.

[4] Entrevista realizada em 05/07/2013. O entrevistado não dispunha do relatório para informar o percentual de decréscimo anual de passageiros trans-portados.

[5] Não há consenso sobre a estimativa da frota de bicicletas nacional. A Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motone-tas, Bicicletas e Similares (ABRACICLO), em artigo de 2012, informa ser de 70 milhões. Entretanto, a Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Importa-ção e Exportação de Bicicletas, Peças e Acessórios (ABRADIBI) afirma que em 2011 ela era de 80 milhões.

[8] O debate ocorreu em 01/07/2013; estavam presentes os seguintes membros: Carlos Beppler, Daniela Serpa, Fernando Baumman, Gil Silva, Hen-rique Wendhausen, Luiz Matos, Mário Bazan e Ricardo Macedo.

[9] A pesquisa “Transporte por bicicleta em cidades catarinenses: metodo-logia para levantamento da realidade e recomendações para incremento da sua participação na mobilidade urbana”, da UDESC, com fundos do MCT/CNPq, levantou diversos outros importantes dados e, também, envolveu Balneário Camboriú. Com o intuito de fundamentar suas atividades sociais, a ACBC bus-cou – mas não conseguiu – obter os resultados até a data limite da publicação deste artigo.

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O resgate da ciclabilidade de Balneário Camboriú.

Referências Bibliográficas

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