capitalismo e sociedade
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CAPITALISMO E SOCIEDADE Fernando Pedrão 2009
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SUMÁRIO
Introdução
1. O processo desigual da produção capitalista
2. Os movimentos de formação de sociedades nacionais
3. O contraponto teórico: a teoria do alto capitalismo e do capitalismo tardio
4. O movimento interno do processo: concentração do capital e mobilidade do
trabalho
5. O movimento externo: o controle político da formação de capital
6. Contradições do processo de hegemonia mundial
7. Alienação, ideologia e captação de valor
8. Perda e recomposição da totalidade social
9. O humanismo negativo da sociedade do capital
10. Acumulação geral e restrita
Referências analíticas
Referências bibliográficas
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INTRODUÇÃO O capitalismo é o sistema econômico e político da sociedade regida pelo capital e o
esclarecimento do que seja o capitalismo voltou a ter interesse quando se considera que
o capitalismo é um sistema plenamente mundializado, que significaria que abrange o
mundo, ou que o sistema do capitalismo é um modo de dominação mundial que envolve
diferentes modos de organização, compreendendo o domínio de sociedades não
capitalistas.
vive da totalidade atual do mundo social, que é uma negação radical da historicidade do
todo social. A totalidade do mundo do capital é o resultado de movimentos de inclusão
e exclusão que resultam em uma totalização seletiva. A totalização do capitalismo se
realiza mediante uma progressão de contradições entre formas de capital que cristalizam
formas de produção articuladas com formas de consumo e perfis de qualificação do
trabalho que são continuamente desafiadas a se superarem. O sistema de exploração que
começou com a escravização jamais abriu mão do uso maciço de trabalho dominado,
encontrando sempre novas formas de arregimentação de trabalhadores, desde as
encomiendas aos bóias frias. A exclusão de trabalhadores encaminha um processo de
substituição de formas de trabalho que retira a funcionalidade dos trabalhadores que se
tornam arcaicos desde o momento em que são contratados. A exploração se realiza de
fato em dois planos, naquele interno em cada fábrica , que sustentou a teoria de Marx, e
naquele outro, externo, que trata da exploração no sistema produtivo em seu conjunto.
A exploração cria diferentes situações de inclusão de grupos, desde os padrões coloniais
de distinção entre cidadãos metropolitanos e coloniais e entre os diferentes grupos de
excluídos. O sistema da exploração vive a contradição de que precisa incluir todos para
explorar a todos, mas precisa discriminar para poder mandar.
O reconhecimento do histórico como totalidade representa o ato de recuperar a
pluralidade essencial desse todo. A questão que se coloca hoje sobre o capital e o
capitalismo é o modo de colocar todo o relativo aos destinos da sociedade moderna em
termos de objetivos de lucro deshumanizados. Esta é a grande força legitimadora do
trabalho de Marx, que se destacou por se colocar de frente para a realidade social. Marx
é o herdeiro de uma linhagem de pensadores da realidade, especialmente de Aristóteles
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e de humanistas éticos como Maimônides. Diante dessa vocação para tratar diretamente
com o mundo social, choca ver como a maioria dos que se ocupam do pensamento do
real substitui a nódoa do real pela dobra da teoria e transformam a dura análise do
capital de Marx em vaporosa teia de entrecruzamentos idealistas de conceitos. São três
grandes reflexos do pensamento teórico. A sociologia que evade as questões centrais da
alienação e da exploração para dar prioridade a uma variedade de questões colaterais. A
economia que dá as costas ao eixo acumulação de capital e concentração de renda para
se ocupar de temas do interesse do capital. A política que trata de questões da forma dos
sistemas e abandona os temas da concentração e redução de poder e subjugação das
nações mais fracas. Estes movimentos de desqualificação das ciências sociais para
lidarem com a condição histórica do mundo social levou a uma fratura do trabalho
teórico, entre o que procura responder aos desafios da realidade e o que se realiza na
própria polêmica conceitual, ou quando muito, nos percalços das sociedades européias e
norte-americanas. O desafio da ciência social é histórico, no que a história contém a
vida social e não pode ser substituída pelas representações conceituais de processos
sociais que se tornam indeterminados. A teoria social que se voltou para discutir
conceitos, que se separou de seu próprio fundamento nas experiências em que se
fundamenta, torna-se incapaz de avaliar sua aplicabilidade em outras situações.
A opção de olhar diretamente para a realidade se identifica com a perspectiva histórica
da análise social que precisa tratar com o mundo do prático vivo, ou com as práticas
vigentes na sociedade. O prático vivo aparentemente se contrapõe ao prático inerte, que
é o mundo das práticas do passado, mas na realidade tem ele incorporado, com seus
significados originais modificados. A praxis na verdade é algo sempre composto, em
que se entrelaçam movimentos de reafirmação e de superação de práticas socialmente
necessárias.
A tradição dos estudos da periferia da acumulação mundial aponta a necessidade de
substituir o conceito genérico de periferia pelo de uma pluralidade de situações
periféricas que respondem à diversidade de condições da colonização. Observe-se que a
noção geral de periferia da acumulação representou uma vantagem conceitual, no que
qualificou as condições concretas do subdesenvolvimento, mas tornou-se um entrave no
que passou a representar uma simplificação indevida das condições históricas dos
países.
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O estudo do capitalismo em perspectiva histórica impõe a necessidade de reconhecer as
condições concretas da exploração, o que, na prática, significa trabalhar com categorias
representativas da dominação e com uma base factual da exploração. Trabalha-se com a
vocação do capitalismo para subordinar as demais formas de produção, mas não para
excluí-las. O sistema social do capitalismo apóia-se em três processos entrelaçados, que
são o de alienação, exploração e controle da força de trabalho. A ação combinada desses
princípios determina as condições da acumulação de capital e de mobilidade social dos
trabalhadores, assim como estabelece os rumos da renovação tecnológica e as políticas
de distribuição de recursos entre setores da produção e entre regiões. A grande
contribuição de Marx consistiu em apresentar o sistema do capitalismo como uma
totalidade que se transforma continuamente, expandindo-se em seus aspectos
quantitativos e qualitativos, com um componente de criação que subentende destruição
e regeneração.
O sistema se alimenta de um mecanismo geral de captação de valor que depende de uma
sustentação ideológica – os impérios acham normal sua condição de impérios – e de
duas formas de instrumentação que são as de organização técnica e institucional da
produção e de comando de oportunidades de aplicação de recursos. Tomando como
referência a abordagem de Marshall, diremos que o capital se realiza e reproduz em um
determinado ambiente de negócios que é, também, odos modos de engajamento de
pessoas como trabalhadores. O sistema prático do capital 1, que inclui empresas e
capitalistas independentes 2, deriva entre os pólos de sua auto-reprodução e de sua
capacidade de obter lucros. A solução desse dilema se coloca na relação custos/riscos,
pelo que a capacidade de controlar as oportunidades de aplicar capital vem a ser
decisiva ao sistema. E como as oportunidades de aplicação surgem quando há
expectativas de demanda, isto é, quando prevalece um ambiente de expectativas
positivas, infere-se que há um jogo de efeitos cumulativos que vincula a progressão dos
investimentos com as expectativas de retorno e de risco. Se não fazer nada é uma
1 Por sistema prático do capital se entende o modo como se fazem as tarefas próprias do funcionamento do capital incorporado ao sistema produtivo. Compreende os processos sociais de uso de técnicas conhecidas e de crítica de desempenho, isto é, uma apropriação reflexiva da tecnologia. 2 A digilitalização do sistema de capital financeiro facilitou a participação de investidores individuais e em grupos que representam um segmento de elevada volatilidade do mercado financeiro.
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situação de risco total para o capital, as escolhas entre situações de risco são datadas e
correspondem a situações em que se escolhem os riscos.
As tendências objetivamente registradas das transformações do sistema produtivo
compõem uma combinação de efeitos inerciais e de margens de autonomia de decisão
que são aproveitadas segundo as condições em que operam os diversos capitais. O
passado é um lastro do presente, que também funciona como baliza na identificação de
possibilidades futuras. Os capitalistas se movem entre opções de lucros e riscos e de
escalas de investimentos que lhes permitam esgotar pendências de aplicação de seus
capitais. Os responsáveis do capital preferirão aplicar onde têm lucros garantidos e
baixo risco; e a busca de opções mais arriscadas geralmente está ligada ao esgotamento
de opções garantidas ou à necessidade de aplicar novos lucros. Será simplismo
injustificado supor que o sistema evolui de modo determinístico ou aceitar que as novas
decisões de investir ignoram completamente as anteriores. Teremos que distinguir as
oportunidades de investimento que estão garantidas por um mercado estabilizado e as
que dependem de mercados novos. A experiência mostra que a participação no mercado
depende muito mais de controle político que de diferenciais de eficiência em cada
projeto. Neste contexto, aceitar que existem efeitos em progressão no sistema não se
parece com a tese dos efeitos em cadeia trabalhados por Hirschman, porque se refere às
condições de incerteza do sistema e de erraticidade das grandes variáveis que regulam
sua determinabilidade. O objetivo incoercível da acumulação é inerente ao sistema do
capitalismo, que, entretanto, tropeça com aquela instabilidade crescente que foi
mapeada por Marx no Livro III de O Capital. Mas a irracionalidade que se encontra na
mecânica econômica do sistema converte-se em autofagia no plano social da política. O
sistema político “ desenvolve mecanismos de auto-proteção onde se alinham alianças de
interesse e de defesa de status com o conhecido controle de cargos públicos, de
estabilidade de renda e de mobilidade social.
O contexto histórico significa a pluralidade de causas que interagem em determinados
momentos e lugares, convergindo na determinação de tendências e contrapondo-se em
conflitos de interesse. Ao colocar o problema da reprodução no contexto histórico das
transformações do sistema produtivo, torna-se necessário considerar as condições
históricas concretas em que se realiza a reprodução do capital. Trabalhar com o tempo
histórico é uma opção que gera compromissos de reconhecer a correspondência entre os
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momentos quando os eventos acontecem e sua posição no encadeamento de eventos do
processo social. Ninguém escolhe quando e onde nasce e a possibilidade de escolher
onde viver são muito limitadas. Também é um compromisso de recuperar a história
como e enquanto fluxo de acontecimentos intencionais representativos de condições
econômicas e de situações ideológicas. Se “a poesia é uma arma carregada de futuro”3 a
história dá o significado do futuro pela memória do passado.
Historicamente, o capitalismo depende da capacidade de regeneração do capital e esta,
das condições de mercado em que ele atua. Para sobreviver, o capital precisa se
reproduzir e isso se faz em condições de crescente incerteza. A reprodução do capital e
a do sistema produtivo em seu conjunto são inseparáveis, porque as duas dependem
igualmente de como a sociedade gera força de trabalho e como o sistema produtivo
absorve trabalhadores e como o capital capta valor. O capital precisa controlar a força
de trabalho e esta precisa encontrar seus meios de independência e de gestão de sua
criatividade. Sem ela o capital é inerme e incapaz de visualizar suas próprias
alternativas. Em tempo histórico não há como separar a reprodução e a acumulação do
capital, entendendo-se que esta última envolve sempre uma mudança da composição do
sistema produtivo em seu conjunto. O problema com que nos deparamos é o de
identificar e tratar com o que há de específico no processo de produção. Onde há
história há especificidade e todos os processos são determinados, como professou
Hegel. O reconhecimento da especificidade é característico da análise que Marx
desenvolveu sobre este tema desde suas teses sobre Feuerbach. Quem faz a reprodução
do capital são os trabalhadores, porque ela se realiza em condições específicas que
demarcam a capacidade dos trabalhadores de manejarem o capital existente.
3 Verso do poeta espanhol Gerardo Diego
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1. O PROCESSO DESIGUAL DA PRODUÇÃO CAPITALISTA
Desenvolvimento como atributo civilizacional.
Em seu significado radical, desenvolvimento é um movimento que se dá no interior de
sistemas existentes e na criação de novos sistemas, modificando as dimensões de
abrangência dos relacionamentos e de sua intensidade (MARCHAL, 1955) 4. Em seu
sentido mais amplo, a noção de desenvolvimento pressupõe a de expansão de sistemas,
que por sua vez envolve conotações de densidade e de extensão. Será preciso considerar
se os sistemas se expandem mantendo sua densidade, mudando de consistência ou
perdendo densidade. Sobre qual espaço o sistema se expande e como evolui sua coesão
interna. O desenvolvimento que nos interessa pertence ao mundo social. Nele, essa
ampliação compreende aumentos numéricos e qualificação da população, aumento dos
meios de produção a sua disposição e aumento dos usos de recursos, correspondendo
tudo a desgaste dos sistemas de recursos físicos.
O desenvolvimento compreende mudança nas condições de participação dos
trabalhadores no sistema produtivo em geral e em suas diversas formas, em que mudam
os requisitos de qualificação do sistema produtivo, ao tempo em que mudam as
iniciativas de qualificação, tanto daquelas conduzidas pelo sistema educativo como
daquelas outras empreendidas pelos próprios trabalhadores. Há uma questão
fundamental a ser esclarecida acerca dos papéis dos capitalistas e dos trabalhadores na
condução e na realização da qualificação e na intencionalidade das qualificações,
apontando aos processos de poder envolvidos no direcionamento dos processos de
qualificação.
Na trajetória da formação da teoria há uma bifurcação entre uma tendência à
simplificação formal da economia pura e a captação da realidade por parte da economia
aplicada. Há uma questão sem resposta por parte da economia pura, relativa à validade
4 Abrangência entendida como extensão do campo dos relacionamentos, tal como eles são percebidos ou como são impostos por uns povos sobre outros e como intensidade, compreendendo regularidade e freqüência. Aquela diferença entre relatos de viajantes e rotas de comércio e entre trocas de mercadorias que são fabricadas e indução da fabricação de novas mercadorias.
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material de suas observações e outra questão igualmente nebulosa para a economia
aplicada positivista, relativa a sua fundamentação teórica. Os modos como se realiza o
desenvolvimento do sistema contêm elementos de certeza e previsibilidade e outros
elemento s de incerteza e imprevisibilidade. A instabilidade e a incerteza que
prevalecem hoje no mundo do capital e seu condicionamento à ascensão de novos
grandes participantes tornaram obrigatório rever o significado das mudanças em curso
no processo econômico da produção. Se não se pode pensar em um único modo de se
desenvolver do sistema, é preciso reconhecer que as nações que constituem o grupo dos
mais ricos ou mais internacionalizados passam a ser mais sensíveis a mudar seu perfil
de alianças.5
A produção capitalista se realiza mediante a reinserção sistemática de valor no sistema
produtivo, o que envolve dois problemas técnicos simultâneos, o de encontrar soluções
técnicas para aplicações que tendem a ser progressivamente maiores e de garantir
demanda para a produção crescente. Adicionalmente, esses dois problemas devem ser
resolvidos em um ambiente em que a concentração social do capital resulta em
concentração de renda, portanto, em uma demanda socialmente concentrada. A questão
do desenvolvimento liga os problemas orgânicos da expansão do sistema aos problemas
sociais resultantes da concentração da demanda. Será necessária uma revisão da
conceituação de desenvolvimento para situá-la frente ãs condições das econômicas
periféricas.
Nos meios acadêmicos e da política econômica formou-se uma conceituação de
desenvolvimento que se dividiu entre o mecanicismo neoclássico, a dinâmica linear
keynesiana e a crítica histórica marxista. Em nome de uma unificação teórica
identificada com a globalização conservadora, descartam-se como antiquados os
padrões teóricos básicos sobre os quais se sustenta a teoria da economia especulativa
praticada pela ortodoxia formal. Basicamente, colocou-se desenvolvimento como um
problema da sociedade do capital ou do capitalismo industrial. Significaria desconhecer
processos de desenvolvimento que se esgotaram ou interromperam em civilizações
temporalmente anteriores ou historicamente defasadas frente ao desenvolvimento da
5 A recente reviravolta política no Japão – que interrompeu 50 anos de governos liberais conservadores -‐ sinaliza um deslocamento da sua aliança coagida com os EUA para uma aproximação com as demais nações asiáticas.
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civilização da tecnologia mecânica. Por extensão, significa desconhecer a complexidade
histórica da produção mundial, onde interagem segmentos de alto capitalismo com
outros aparentemente não capitalistas e outros ainda, excluídos dos circuitos do capital.
Hoje, torna-se necessário ver desenvolvimento como algo que se atribui como
possibilidade de transformação socialmente positiva em um dado contexto civilizacional
e não somente como um processo inscrito no contexto da sociedade do capital. As
diferentes civilizações se desenvolveram com uma combinação de sua organização
social e seu controle de técnicas e visualizaram seus objetivos de desenvolvimento
como de poder concentrado ou de condições de equivalência entre pessoas e grupos. A
inter-relação entre a esfera coletiva e a da individualidade aparece através da outra de
aliteração entre o sagrado e o profano e entre os ritos e os mistérios das religiões.
A ideologia da colonização deu lugar ao pressuposto de uma superioridade da
civilização industrial capitalista sobre todas as demais, anteriores e atuais sustenta-se em
uma comparação entre seus meios técnicos e seu próprio juízo sobre as oportunidades
que oferece para mobilidade social para as maiorias. Prevaleceu sempre a presunção de
que ela poderia perpetuar-se ou manter-se em muito longo prazo, isto é, que seus
fundamentos em organização social e técnica permaneceriam. No entanto ela criou
novas ondas de empobrecimento que se identificaram na escassez de meios de
subsistência para as maiorias.
Desde logo, está claro que é um julgamento apoiado em bases ideológicas, que
envolvem uma combinação de juízos éticos com critérios de poder. Estas foram
seguidamente reclassificadas, quando foram atingidas pelo chamado desemprego
tecnológico. Quando Marx diz que a sociedade capitalista liberou energias da sociedade
logicamente se referia ao feudalismo europeu com sua rigidez social e seus preconceitos
religiosos. Essa mesma observação deve levar em conta que o feudalismo foi uma
involução em relação com diversas outras formas sociais tanto de suas contemporâneas
como de civilizações anteriores. A avaliação do desenvolvimento como essencialmente
social envolve uma crítica dos usos sociais das tecnologias disponíveis e das condições
de modernização da sociedade do capital, como parte dos processos que podem levar a
sua superação.
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Para dar conta do que acontece hoje precisa-se de uma visão histórica mais ampla em
tempos e espaços. Os horizontes culturais e os bloqueios de cada civilização demarcam
possibilidades de movimentos de emancipação material e ideológica, com soluções de
sobrevivência e de acumulação de riqueza que se estendem a segmentos mais ou menos
numerosos da sociedade. Pode-se aceitar de modo não crítico a visão capitalística de
desenvolvimento que se identifica com a melhora das condições materiais de vida das
maiorias, ou considerar o significado desse processo em termos de ampliação das
possibilidades de escolher estilos de vida ou de apropriar-se de uma capacidade de
pensar por conta própria. Nesse contexto, desenvolvimento se identifica como um
movimento de emancipação material e ideológica que se torna uma consciência social
critica do processo do capital. A visão civilizacional do desenvolvimento dará
referências para comparar os resultados alcançados pela sociedade em diferentes
momentos da história, portanto, de relativizar criticamente os resultados alcançados em
diferentes momentos e lugares. Nas condições de colonialismo e exploração da primeira
revolução industrial haveria mais desenvolvimento que nos séculos anteriores? A
alternativa será de distinguir o desenvolvimento das forças produtivas e o
desenvolvimento de condições de vida autônomas. De qualquer modo, trata-se de uma
relação entre as condições materiais de vida e as de emancipação de grupos e de
indivíduos. É o fundamento da noção de desenvolvimento na de progresso.
Para tratar com ela é preciso ir além da separação entre igreja e Estado e reafirmar a
secularização da ideologia. A noção de progresso é terrenal e de superação da dicotomia
religiosa entre o inferno e o céu e o bem e o mal, que é substituída por progressões
positivas e negativas da vida material neste mundo. O recrudescimento de religiões sem
teologia é um sinal inconfundível de novas modalidades de alienação, que servem à
dominação tecnificada. A incorporação da noção de progresso corresponde a uma
ruptura ideológica com a prevalência de uma ordem secular avalizada por uma
autoridade divina. A noção de progresso está separada da raiz teológica do poder e a
possibilidade de progresso é associada à de uma mudança socialmente significativa,
onde os protagonistas do processo têm suas posições definidas por situações
materialmente estabelecidas. Por isso, ela está sujeita aos retrocessos do
recrudescimento de fanatismos, desde os religiosos aos políticos. A alegação de Marx
relativa à precedência da esfera material sobre a ideológica e a institucional descreve o
movimento interno do processo do capitalismo, seguindo a reprodução do sistema
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sócio-produtivo e sócio-político através da reprodução do capital. Não exclui o
movimento concomitante e reverso de ação da esfera sócio-política sobre a esfera sócio-
econômica.
Uma visão histórica crítica do mundo atual impõe-se como necessária como e enquanto
totalidade, com suas dimensões, sócio-econômica e política e espaço-temporal, é
necessária para situar as possibilidades de desenvolvimento. O tratamento da categoria
desigualdade no plano da sociedade moderna, com seus fundamentos na formação das
classes e suas expressões na renovação das estruturas de poder, exige uma percepção do
processo social como totalidade, com sua conjugação de movimentos desde dentro e
desde fora da esfera econômica à esfera política e vice versa. A perspectiva
civilizacional permite-nos ultrapassar o horizonte da produção capitalista, por vê-la
como uma imanência da civilização ocidental. O engajamento de outras civilizações,
notadamente das asiáticas, na mesma corrida materialística empreendida pelo mundo
ocidental, é um resultado indireto do próprio impulso colonizador das nações européias
e de seus seguidores norte-americanos, que instigaram projetos nacionais de poder com
voracidade semelhante à ocidental e maiores escalas de mercado e de exploração do
trabalho. Mas a combinação dos diversos movimentos de emergência de nações que
foram colônias ou que foram ocupadas pelos ocidentais, na Ásia, na América e na
África tornou inevitável rever o sentido de finalidade da formação de riqueza. Esta nova
pluralidade certamente levanta uma questão essencial relativa ao significado do
desenvolvimento como parte do que acontece no âmbito da modernização do capital ou
como parte dos processos que podem levar a sua superação.
Colonialismo e barbárie
A verdadeira barbárie com que a civilização se defronta é o colonialismo, cuja história
desmonta a aura de liderança dos países capitalistas. Há uma diferença essencial entre as
análises do desenvolvimento e do subdesenvolvimento que se restringem ao âmbito da
produção capitalista moderna e as que reportam ao fundamento do capitalismo no
colonialismo. O sistema capitalista se formou sobre um amplo e complexo mecanismo
de apropriação violenta de riqueza que se realizou sobre as duas grandes linhas do
colonialismo e do controle financeiro e cultural de povos dominados, onde se
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desenvolveram mecanismos de renovação do colonialismo, identificados com uma
modernização controlada e seletiva. Ao longo dos dois grandes movimentos de
colonização, começados respectivamente no século XV e no século XIX, as nações
colonizadoras exerceram um poder irrestrito sobre as pessoas e os recursos naturais,
inclusive substituindo os valores e a cultura dos povos colonizados e transformando-os
em agentes de seu próprio poder. A colonização foi o pano de fundo dos maiores
massacres da história, com conseqüências que se estendem até hoje. A colonização
constitui uma responsabilidade social que não pode ser desculpada sob pretexto algum e
que certamente tem que ser cobrada das nações responsáveis.
A colonização encaminhou os dois grandes movimentos de escravização e de alienação,
que cumpriram os dois papéis de apropriação e de controle da força de trabalho,
dirigindo ou pondo limites a sua qualificação. No entanto, a colonização requer um
esforço constante de dominação que gera forças favoráveis dos grupos que são
alienados e movimentos contrários de revolta daqueles outros cuja situação de classe é
esclarecida pela própria colonização. Historicamente a manutenção de sistemas
coloniais demandou políticas repressivas crescentes que deram lugar a processos de
enfrentamento que levaram a rupturas irreversíveis, mas com interações mais complexas
através de movimentos migratórios.
O aperfeiçoamento das relações de poder que acompanha o desenvolvimento do sistema
capitalista de produção deu lugar a modificações decisivas na dominação de uns países
por outros. A difusão de novas práticas de domínio internacional praticadas igualmente
pelas nações mais poderosas e pelas que funcionam como suas seguidoras configura um
novo momento das relações econômicas e políticas internacionais em que as nações
periféricas ascendentes como o Brasil têm que definir novos modos de participação.
O colonialismo é um antecedente essencial da identidade coletiva das nações ibero-
americanas, cujo significado deverá ser, necessariamente, exposto m qualquer esforço
de explicação das transformações da produção capitalista 6. A produção capitalista é
6 O papel do fundamento ideológico medieval na formação das Américas ainda precisa ser melhor avaliado. Esse lastro medieval pesou mais na América ibérica e o atraso na invasão de holandeses e ingleses no norte teve a vantagem de ter sido conduzida por sociedades mercantis depredatórias que já tinham se desfeito do lastro medieval. Surgiram daí diferenças no relativo ao modo
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diferentemente desigual, segundo é olhada por nações e grupos que exerceram e
exercem papéis de colonizadores ou pelos que são ou foram colonizados. Tratando-se
da América, que já foi um dos continentes mais isolados do globo, é preciso rever o
conceito de desigualdade. O caminho para o debate sobre o desenvolvimento das nações
que se encontram em situações desfavoráveis no quadro mundial da acumulação de
capital encontra processos contraditórios e incertos, com aspectos positivos e negativos
na relação entre formação de riqueza material e bem estar das pessoas. Por isso, tem
que contemplar os aspectos positivos e os negativos da concentração de riqueza e de
poder político com mobilidade seletiva de alguns grupos e a falta de mobilidade das
maiorias.
A América entrou no sistema do capital através da colonização realizada por algumas
nações européias em duas grandes etapas, respectivamente, da colonização empreendida
pelo capital mercantil e pela identificada com a expansão da industrialização. O sistema
da colonização, ou a colonização sistêmica no século XVI representou um sistema de
uso de força de trabalho composto de capítulos interativos que foram o emprego livre de
comerciantes e auxiliares diretos e indiretos, o emprego do aparelho burocrático legal e
militar, o emprego da força de trabalho escravizada e o de trabalhadores não
incorporados pela produção mercantil internacionalizada, que tiveram que sobreviver
mediante práticas de trabalho que se resolvem em circuitos variados de sobrevivência,
desde alguns que se mantiveram em formas rudimentares até outros, que preservaram
técnicas artesanais pré-coloniais, ou que encontraram formas de troca que se
sustentaram em escala regional. Por todas razões a questão da colonização com as
nações que foram colonialistas fundadoras, como Espanha e Portugal, não pode ser
considerada como página virada do passado, se não deve ser revista à luz das recentes
investidas de capitais ibéricos na economia brasileira. Não se trata somente de constatar
que a esfera da sobrevivência foi assaz complexa e capaz de se reproduzir, senão de
questionar o papel da esfera de sobrevivência depois do holocausto do primeiro século
de colonização e através das interações que foram acionadas pelo próprio sistema
colonial. A expansão do capital usou força de trabalho transferida, tanto da escravização
como da força de trabalho localmente reproduzida nos sistemas de produção
camponesa. No Brasil a industrialização usou força de trabalho legada pela escravidão e
comercial de conduzir a escravização e à formação de grupos de pequenos propietários nas “novas”colônias.
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força de trabalho de migrantes que não tinham sido escravos, mas cuja transferência
deixou uma população localmente organizada que continuou operando uma pequena
produção de pobres que abasteceu o mercado regional de alimentos.7 No México, onde
essa população rural foi mais densa que no Brasil, a estratégia de sobrevivência
sustentou os fundamentos insurrecionais que levaram à derrota do império de
Maximiliano de Habsburg e à Revolução Mexicana. No Brasil essa estratégia alternativa
de força de trabalho engajada por trabalhadores revelou-se em sua maior dramaticidade
no movimento de Canudos, que criou uma cidade camponesa de 30.000 habs.. Trata-se,
portanto, de uma questão muito mais profunda , relativa ao espaço social de condições
de uso de força mobilizada por trabalhadores. Ao questionar a exclusividade do capital
como empregador, coloca-se a questão da possibilidade de uma subjetividade não
dominada que pode representar a consciência crítica do processo de poder no
capitalismo.
Se a análise do capital em geral começa pela alienação do trabalho e pela propriedade
da terra, a análise do capitalismo na periferia da acumulação começa com a introdução
da categoria colonização, que estabelece um ponto de partida para nações novas e um
ponto de ruptura para nações antigas, mas que em todo caso significa a ruptura com um
isolamento continental para todas as nações americanas. Colonização não se refere
apenas aos processos iniciados no começo do século XVI. Compreende a complexidade
de todos os movimentos que surgiram nos séculos seguintes e que reúnem as
empreitadas de colonialistas europeus e norte-americanos até hoje. A colonização
reveste-se de diversas formas, desde os movimentos abertamente conduzidos por
Estados nacionais desde o século XV até movimentos não oficiais nos séculos seguintes
e até as empreitadas de Theodore Roosevelt e de Walker no século XX, representando
essas duas tendências. O colonialismo carrega uma versão extrema de desigualdade,
que, entretanto, incide sobre ambientes sobre ambientes sociais que, em muitos casos,
também foram radicalmente desiguais, ou em todo caso, que carregaram suas próprias
escalas de desigualdade.
7 Em 2005 um esforço combinado de professores pesquisadores da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, a partir de uma iniciativa de Tamás Szmrecsányi, tentou levantar a produção de alimentos na Primeira República, encontrando diferenças insuperáveis entre os registros de estados do sul e de estados do nordeste.
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A colonização deu lugar ao maior holocausto da humanidade8 e encaminhou os dois
grandes movimentos de escravização maciça e de alienação dos novos espaços sociais
de trabalho, estabelecendo os modos de apropriação e de controle da força de trabalho,
manipulando a qualificação como instrumento de poder. Portugal e Espanha através de
suas respectivas composições de feudalismo e mercantilismo, instituíram sistemas
diferenciados de poder, em que a gestão da esfera internacional dos sistemas coloniais
contrastava com modos autoritários de comando de cada colônia. O estatuto colonial
deu lugar a uma ambivalência entre um poder local quase ilimitado dos grandes
proprietários e o poder da administração das colônias, cujos conflitos de interesses
alimentariam as lutas de independência.
A grande preocupação com a colonização hoje refere-se ao recrudescimento de relações
de poder apoiadas em vestígios de ideologia colonialista. Quanto mais se reúnem
elementos de informação sobre os diversos movimentos de colonização mais ressalta a
necessidade de substituir as versões tradicionais da colonização do modo de agir das
grandes potências e passam por alto as empreitadas de países de menor porte. Não só
Portugal no século XV como até países como a Belgica e a Dinamarca sentiram-se na
condição de colonizar outras nações em diversas partes do mundo, onde a Bélgica e
Portugal protagonizaram algumas das histórias mais sinistras do colonialismo moderno.
No essencial, os métodos do colonialismo variaram pouco desde o século XVI, tanto em
violência direta como em manipulação ideologia, tal como descrevem os relatos de Vo
Nguyen Giap sobre a segunda ocupação dos franceses no Vietnam 9.
Para captar o significado histórico do colonialismo, com seu papel na formação do
capitalismo capaz de se reproduzir, é preciso distinguir as versões de colonialismo pré-
industrial, daquele. outro instigado pela demanda de matérias primas para a indústria e
do que se expandiu entre o fim das guerras napoleônicas e a primeira guerra mundial. O
colonialismo respondeu aos projetos de poder das nações que se industrializavam e
demandavam maiores quantidades de matérias primas e de trabalho qualificado. Esse
colonialismo foi parte de um movimento mais amplo de disputa por espaços de mercado
que, entretanto, se desenvolveram desigualmente e principalmente nos próprios países 8 As estimativas de extermínio de indígenas desde a América do Norte até a Patagonia somadas à mortandade de africanos escravizados superam quaisquer cifras de massacres até a Primeira Guerra Mundial. 9 Refere-se a relato concedido a jornalista e publicado com o nome de Vitoria a qualquer preço.
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industriais. O carro chefe do sistema, formado por siderúrgica e metalurgia expandiu-se
através da diversificação da produção e do consumo nos países mais ricos que se
industrializaram primeiro. O sistema colonialista criou uma economia
internacionalizada bifásica, com segmentos complementares que se desenvolviam
segundo diferentes dinamismos e que somente em parte se comunicavam. Se a lã do
Afganistão e do Uruguai era necessária para uma indústria de tecidos vendendo para o
mercado europeu, o elenco de maquinaria que os países europeus vendiam para os
produtores de matérias primas era muito limitado. A busca de minerais em grandes
minas em países da América Latina começou desde a década de 1860, alcançou um
auge entre 1890 e 1914, coincidindo com a expansão de interesses internacionais no
controle da expansão da produção de mercadorias da agropecuária. A substituição do
velho sistema colonial iniciado no século XVI por um sistema de controle capitalista da
produção criou as condições para um notável aumento da produção de matérias primas,
tanto agrícolas como mineiras, ampliando a massa de trabalhadores contratados, ao
tempo em que criando novas elites associadas, que se tornaram guardiãs do novo pacto
de poder. A formação de mercados internos nos países periféricos surgiu, portanto,
mediante um mecanismo dividido de expansão da demanda, com uma grande distância
entre os circuitos de produção para exportação e de produção para consumo interno e
entre o consumo dos grupos de altas rendas e o consumo das maiorias.
Esse sistema representou uma determinada modernização frente às economias coloniais,
identificando-se com os valores da industrialização e da urbanização industrializada. Os
privilégios aos exportadores tornaram-se o pivô central das políticas econômicas, com
situações extremas no Brasil, no Chile, na Argentina e no Uruguai que funcionaram em
detrimento da produção de alimentos e que deram lugar a novos conflitos de interesse
no próprio mundo da produção rural. A novidade técnica na combinação da esfera
econômica com a esfera política foram composições de poder civil com controle militar,
que asseguraram a continuidade do sistema. De fato, a sustentação militar do sistema
formou-se internamente em cada país e só passou a sofrer pressões externas
significativas depois da Segunda Guerra Mundial. A base econômica do sistema esteve
formada por um pequeno número de mercadorias exportáveis, ficando a diversificação
por conta dos pequenos espaços de mercado interno.
18
O controle ideológico do sistema econômico ficou por conta da alienação das elites
associadas que passaram a tomar iniciativas de liderança subordinada e a defender o
bloco de poder dominante com o denodo de quem sabe não ter para onde recuar. Os
valores culturais se projetaram na construção dos sistemas educativos nacionais que
afirmaram como estrangeirizantes, que na prática significou copiar modelos culturais e
educativos franceses e ingleses e finalmente modelos norte-americanos. É revelador que
alguns dos movimentos mais festejados de modernização do sistema educativo foram,
na realidade, cópias de propostas de política educativa de países mais ricos, como os
EUA e a França e que jamais puderam ser eficientemente implantados no Brasil. Os
movimentos de afirmação nacional sempre foram vistos com suspeição, geralmente
reduzidos a nacionalismo e a estreiteza de visão, tal como aconteceu com as tentativas
representadas pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros.
Essas formas de colonialismo sutil persistiram, mas tornaram-se incapazes de proteger
adequadamente os interesses do capital, assim como não foi capaz de resistir às pressões
dos movimentos nacionalistas que ele mesmo despertou. Mas resistira até quando as
bases do poder na Europa burguesa foram sacudidas pelo nazismo e pelo socialismo.
Entretanto, o realinhamento mundial do poder abriu espaço para novas formas de
controle internacional, mais indiretas, entretanto, baseadas na supremacia norte-
americana, com papéis de coadjuvantes para os países europeus, onde alguns deles
desenvolvem investimentos e protagonizam a expansão de algumas empresas líderes,
assim como o Japão. Na nova ordem de poder internacional, simbolizada pela
globalização financeira e pela concentração do grande capital nas multinacionais
encontram-se combinações complexas de organização de capitais de base nacional com
empresas multinacionais, onde a relação entre o mercado de capital e o de trabalho
continua sujeito a grandes restrições internas e onde as estratégias de sobrevivência dos
trabalhadores passaram a se valer mais da mobilidade sinalizada pelas migrações.
A produção social de escassez
No mundo do capital de hoje pode-se ver a escassez como uma situação inicial de falta
de elementos para a produção necessária para sobreviver e como uma situação de falta
determinada pelo rumo seguido pela produção capitalista, com suas implicações de uso
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de tecnologia. Como mostrou Marx, a produção capitalista tende à superprodução por
uma contradição entre os interesses individuais dos capitalistas e os movimentos dos
capitais em seu conjunto. A superprodução do capitalismo consiste em abundancia de
mercadorias para as quais se supõe que há procura e para cuja produção canaliza os
recursos disponíveis, produzindo escassez dos bens e serviços necessários para as
maiorias que não têm capacidade de demandar em mercado. A superprodução de
mercadorias demandadas em momentos anteriores do mercado indica escassez em
momentos futuros. O movimento geral de expansão da produção capitalista se realiza
em resposta a estímulos de demanda surgidos de compras induzidas pelos capitalistas
que assumem o papel de produtores e decorrem da defesa da taxa de lucros dos
capitalistas individuais e que entra em contradição com a lógica da reprodução do
sistema. Como a renda se concentra em segmentos restritos da sociedade mundial, a
demanda que pode ser esperada de consumo essencial será proporcionalmente menor
que a requerida pelo capital para se reproduzir. Este mecanismo, que foi percebido por
Ricardo, põe a reprodução do capital na dependência da demanda do clube formado
pelos grupos de maior renda e consigna aos mais pobres o papel de garantir uma
demanda básica de produtos de baixo valor por peso. Esta observação apresentada por
Ricardo e desenvolvida por Marx indica o rumo da produção social de escassez. O
capital se concentra entre alguns a expensas de descapitalização de outros. A
abundância em processos desiguais torna-se a fonte de uma escassez que atinge algumas
partes da sociedade enquanto outras enriquecem.
O sistema todo se move mediante um mecanismo que converte desejos em decisões de
compra, portanto, que depende de que haja pessoas e instituições dispostas a
comprometer renda com a compra das mercadorias a serem vendidas. A necessidade de
manter em operações um sistema cada vez maior e mais complexo faz com que haja
uma diferença essencial entre os circuitos de transações que respondem pelo consumo
essencial à sobrevivência e o que se desenvolve com as necessidades que são criadas
pelos meios de publicidade e pelos estímulos dos ambientes de consumo. Dadas as
interações entre interesses genuínos em itens e formas de consumo ligados com
sobrevivência e o consumo induzido só se pode separar consumo necessário de
desnecessário com um critério de classes sociais que distinga sobrevivência física de
defesa de posições de consumo já alcançadas.
20
Ao ver o consumo como um processo que é conduzido pelas expectativas criadas pelo
capital para gerar a demanda que viabiliza sua reposição, introduz-se um ajuste nos
pressupostos da teoria econômica, onde os dados de consumo geral têm que ser
corrigidos por indicadores da composição do consumo por grupos de renda e condições
de acesso a bens e serviços. Na sociedade capitalista não há, praticamente, como isolar
comportamentos do consumo que não estejam articulados pela produção industrializada
e não estejam sujeitos à influência da mídia. O controle do consumo se realiza sobre os
atos atuais e sobre as perspectivas de consumo futuro, tal como elas são parte do
planejamento da produção. As preferências dos consumidores são direcionadas
mediante mecanismos sutis de controle ideológico que transcendem o escopo do
marketing e se confundem com uma manipulação de marcas que se tornou parte
essencial da operacionalidade do capital financeiro e de transmissão de experiências e
de expectativas entre consumidores. O consumo induzido torna-se a mola mestra do
formato da demanda efetiva. Mesmo os modos mais simples de consumir estão
impregnados da complexidade da produção capitalista. Uma teoria econômica
atualizada do consumo terá que contemplar as condições sociais de realização do
consumo entre sociedades desigualmente industrializadas e comunicadas.
Para manter a pressão da demanda o sistema precisa passar aos detentores de renda a
consciência de uma necessidade de consumir que se torna o grande diferencial entre as
sociedades que acumulam e as que continuam presas às restrições da sobrevivência. A
escassez é o retrato em negativo dessa pressão social de demanda, que se amplia junto
com a acumulação e se torna um fator de diferenciação social em cada região e entre
países. A escassez se torna progressivamente maior com o crescimento da demanda
induzida e representa uma rigidez do sistema produtivo para reagir às crises
econômicas.
Ao reconhecer que a atual crise da economia mundial altera, de modo irreversível, os
padrões de consumo da sociedade norte-americana, coloca-se na verdade que a
contração de emprego e renda no topo mundial da renda pessoal tem efeitos negativos
diferenciados ao longo das escalas de renda e de condições de consumo das diversas
populações nacionais. A desigualdade essencial do sistema tem feito com que a
progressão da escassez induzida avance junto com o aumento das situações de pobreza
extrema e de recrudescimento de situações de pobreza crítica em regiões
21
predominantemente pobres e nas metrópoles dos países periféricos ascendentes como a
Índia, o México e o Brasil e em situações de pobreza aguda crônica em metrópoles dos
países mais ricos como nos EUA, no Reino Unido e na França, sempre em
correspondência com situações de discriminação étnica. Trata-se, portanto, de que há
uma pluralidade de relações causais e de situações históricas em torno da produção
social de escassez que precisam ser esclarecidas. A escassez de bens e serviços a serem
distribuídos corresponde à desigualdade na distribuição da renda, com seus
desdobramentos na escala de cada país e através da distribuição do trabalho. Há uma
escassez que surge da concentração das rendas do trabalho em menor número de
empresas e de postos de trabalho e outra escassez que surge da insuficiência do sistema
produtivo para absorver a força de trabalho disponível na sociedade.
Historicamente, o problema social da escassez surge do próprio sistema colonial de
produção, que jamais absorveu a força de trabalho com salários suficientes para sua
reprodução e canalizou a força de trabalho controlada para produzir mercadorias para
exportação, em detrimento de satisfazer as necessidades existenciais da população de
trabalhadores. O esgotamento dos sistemas coloniais tradicionais deu lugar a novas
formas de extração internacional de valor que se atualizaram junto com a renovação
tecnológica. O processo da escassez ganha novos mecanismos de propagação ao
aumentar a variedade de técnicas que se combinam. Desfaz-se o argumento defensivo
de que o transbordamento de efeitos da riqueza acumulada aumenta o poder de compra
dos mais pobres mitigando a escassez social.
Esse estilo de economia foi objeto de sucessivos movimentos de modernização que
representaram substituições de trabalho mediante mudanças de organização que
limitaram ou reduziram o papel do trabalho frente ao desempenho da maquinaria. Trata-
se de uma modificação estrutural no papel do trabalho na produção, pela qual se
desatrelam os ganhos de salários dos trabalhadores dos ganhos de eficiência do trabalho.
A escassez resulta da redução do papel ativo do trabalhador na gestão do trabalho.
Através desse descolamento entre o trabalhador e o trabalho incorporado na produção
surge uma esterilização do trabalho diretamente ligado ao trabalhador, que é substituído
por trabalho administrado através da gestão da maquinaria.
22
A conceituação positivista de economia é de uma ciência cujo objetivo é a melhor
distribuição possível de recursos escassos 10, onde se presume que a escassez é um dado
inicial do problema econômico, mas onde não se discute como esse problema evolui
com a acumulação e com a concentração do capital. A perspectiva histórica da
economia faz o percurso contrário, seguindo a pista dos processos criadores de escassez,
procurando as linhas de desenvolvimento desse problema no contexto da acumulação.
Certamente, há uma escassez básica das situações primitivas de vida identificadas com
os problemas de sobrevivência. Mas a escassez no sistema capitalista é uma
conseqüência do controle progressivo dos recursos para atender a uma produção
direcionada para maximizar lucros. Na perspectiva do pequeno capital, o avanço do
capital monopolista aprofunda diferenciais de lucro entre empresas que limitam os
lucros e os salários e as possibilidades de aumento de renda, pelo contrário acumulando
riscos de falência e desemprego.
A autofagia do poder prevalecente
O poder do capital é um novo Conde Ugolino que devora seus próprios filhos. A
concorrência irrestrita é um movimento defensivo que abrange os planos da economia e
da política e que em seu sentido pleno descreve uma autofagia do sistema produtivo tal
como advertido por Ricardo no começo da caminhada do capitalismo. As estratégias
auto-destrutivas de mercado empreendidas pelo grande capital compreendem aspectos
explícitos do jogo de poder econômico e aspectos velados do poder político e das inter-
relações entre os dois, criando limites dessa autodestruição, estabelecendo princípios de
auto-preservação. Os capitalistas se ocupam de que a sociedade do capital não os
exclua. Na caminhada da formação do poder econômico no capitalismo avançado
aumentam os aspectos comuns a todos e diminuem as peculiaridades do funcionamento
dos sistemas nacionais cada vez mais sensíveis a tensões de identidades regionais e a
pressões de interesses e de cultura internacionalizadas. Na América espanhola, que se
diferenciou das demais partes da América, por implantar-se sobre civilizações
10 Uma definição de Lionel Robbins que foi adotada pela economia burguesa como a conceituação básica desta ciência social e que foi secundada por Joan Robinson ao definir a teoria econômica como uma caixa de ferramentas.
23
autóctones, as tensões regionais se identificaram com as identidades pré-hispânicas e
passaram a criar novas sínteses culturais 11.
Segundo a lógica de sua reprodução, o movimento geral do capital resulta de uma
pluralidade de iniciativas de produção baseadas em previsões de demanda que são
elaboradas sobre uma perspectiva geral de consumo que jamais pode ser abastecida por
um único produtor em condições de concorrência 12. A suposição de combinação é
necessária, mas, logicamente, qualquer produtor concorrerá toda vez que tiver a
oportunidade de fazê-lo. Será preciso superar essa barreira de generalidade e passar das
condições específicas da reprodução do capital, que logicamente variam em tempo e
espaço, e levam a cogitar de condições e movimentos restritos de acumulação.
Falta esclarecer alguns pontos sobre os efeitos da concentração do poder econômico nas
condições históricas do mercado. O poder econômico significa a capacidade de decidir
sobre tecnologia, financiamento e emprego, isto é, conduzir a produção sobre opções de
linhas de produção. A concentração da capacidade de controlar a renovação tecnológica
deu novas qualificações à concorrência, onde se distinguem espaços de concorrência e
capacidade de concorrer em cada um deles. Não há como simplificar a capacidade de
concorrer em uma competitividade indiscriminada, que aparece como uma propriedade
geral das empresas, senão é preciso ver a competitividade como uma capacidade de
concorrer em determinados ambientes econômicos. A competitividade é relativa tanto
como são relativos os controles sobre tecnologia e como são sólidos os fundamentos
financeiros do comando da tecnologia.
Alguns estudos de inspiração weberiana, como os de Chandler sobre a operacionalidade
da indústria, sinalizam essa distinção entre o ambiente da concorrência e a capacidade
das empresas para concorrerem, que tem muito a ver com vantagens de curta e de longa
duração e com vantagens circunstanciais e vantagens conquistadas. A análise 11 É um processo progressivo, regressivo, convergente e dispersivo que compreende substituições, adições, inclusões e exclusões, configurando novos sujeitos históricos. 12 Este pressuposto tem diferentes condições de aplicabilidade na indústria de transformação, onde os lucros de monopólio são obtidos em concorrência entre empresas em condições de concorrerem umas com as outras, e no mercado urbano, onde há uma distinção entre produção industrializada, produção artesanal capitalista e produção comunitária, apesar de que as três operam sobre um mesmo mercado de terras e de alguns materiais. A questão de efeitos de graus de monopólio trabalhada por Kalecki considera sistemas unificados onde, em todo caso, as empresas e os trabalhadores participam de mercados de capital e de trabalho comuns a todos.
24
econômica ortodoxa ficou presa na armadilha de trabalhar com empresas genéricas e
trabalhadores individuais genéricos, desconsiderando os coletivos historicamente
formados, portanto, sem penetrar na capacidade de desempenho das empresas em suas
condições específicas de mercado. Reconhecendo que a duração das empresas
individuais é apenas um dado circunstancial do sistema capitalista, onde algumas delas
podem ter vida muito longa enquanto a maioria pode desaparecer na concorrência ou
por fusões é preciso admitir que a captação de vantagens de monopólio é do sistema do
alto capitalismo, mas não necessariamente fica restrita a um mesmo elenco de empresas.
Pelo contrário, é uma propriedade estrutural do sistema que as ações individuais dos
capitalistas operam como uma contradição da reprodução do sistema do capital,
acionando modos desiguais de concorrer. Significa levar a tese da destruição criadora a
suas verdadeiras conseqüências, de destruição de empresas e de perdas de capitalistas
em períodos de mudança de composição do sistema produtivo. Ganhos e perdas de
posições de países podem ser tomados como uma extensão desse mesmo quadro.
Esse endurecimento da concorrência se projeta desde o plano da produção
mundializada, mas convive com salvaguardas que as empresas antepõem, através de
suas relações com a esfera política, pelo que se realiza com diversos graus de
intensidade, abrindo espaço para iniciativas do bloco político de poder para se apropriar
de parte dos ganhos de monopólio, mediante participação em empresas ou através de
corrupção. Esta, portanto, é fruto de uma relação espúria mas previsível, de relações de
poder não controladas entre a esfera política e a econômica e que se tornou orgânica ao
sistema político. Neste outro plano a autofagia do sistema ultrapassa o âmbito da
contradição entre o individual e o coletivo para esta outra escala de relação entre o
político e o econômico. A movimentação da esfera política resume o processo do poder,
injetando uma racionalidade formal aparente montada sobre uma irracionalidade
substantiva essencial. A reprodução do sistema político, ou do bloco histórico de poder,
é um fator de imobilização da vida social, portanto, um veículo de atraso,
principalmente por criarem novos vínculos de dependência dentro da classe dominante e
em relação com os trabalhadores, portanto, de bloquear a mobilidade social. O controle
de cargos públicos por parte de partidos políticos, de grupos dentro dos partidos e de
líderes de diversos níveis que derivam sua importância de sua capacidade de articular
recursos. A experiência do Brasil mostra uma notável capacidade de auto-preservação
desse modo de poder que se transferiu do ambiente social do capital mercantil para o do
25
capital industrial e fez o caminho de volta desde a esfera política usando os meios
tradicionais de favorecimento de contratos, de empregos a familiares e agora, de
controle da administração de fundos públicos.
2. Formação e contradições das sociedades nacionais Movimentos positivos e negativos
O avanço do capitalismo nos séculos XIX e XX deu lugar a movimentos de
fortalecimento dos Estados nacionais poderosos, ao tempo em que desencadeou
movimentos internos e externos dos países, que levaram a tensões no contexto de
muitos países, à fragmentação de vários deles e ao cerceamento dos movimentos das
pessoas, migrantes e mesmo de não migrantes. Mais pessoas pretendem passar a países
ricos, cujo acesso se tornou penoso e humilhante. O aprofundamento do capitalismo
deu-se sob as formas de controle do capital financeiro, de internacionalização de
capitais sob o escudo de expansão milita e subordinando as condições locais de vida aos
interesses internacionalizados das empresas e determinando usos crescentes e
irreversíveis de energia. A reação à concentração do poder do capital surgiu com
argumentos nacionalistas e regionalistas, sob formas racionais de lutas por emprego e
renda e formas irracionais de religiões, mas em todo caso, mobilizando reações que se
opõem à lógica do grande capital. No essencial, o movimento geral de acumulação e
concentração induzido pelo grande capital mobilizou forças que o apóiam de modo
organizado ou por assimilação e forças que lhe resistem. Revelam-se os traços
contraditórios dos diversos processos que levaram à formação dos Estados nacionais e
às contradições que eles enfrentam. A dificuldade vem de que a mundialização do
capital no último quarto do século XX pôs fim aos projetos de capitalismo nacional
entrevistos pelas revoluções burguesas em países que alcançaram condições econômicas
e políticas para que elas acontecessem e estabeleceu novos parâmetros de
internacionalidade em que todos os países envolvidos na industrialização tiveram que
operar, inclusive a potência norte-americana hegemônica. As transformações do
mercado estão ligadas ao aumento do número das empresas que operam com a lógica do
capital financeiro, portanto, em que a maior agilidade do capital que opera em bolsa tem
os dois aspectos de volatilidade da formação de capital e de vulnerabilidade dos
sistemas produtivos nacionais, com vantagens para os que comandam mercados
26
próprios maiores, mas com maior dependência do suprimento de energéticos. Isso
significa que os projetos de economia nacional baseados em internalização de
economias externas perdiam vigência frente ao cálculo de captação de vantagens
nacionais por parte dos capitais internacionais. É um desafio para rever o significado de
desenvolvimento nacional com que se trabalhou desde o fim da segunda guerra
mundial, assim como denunciar as intenções de poder subsumidas na internacionalidade
burguesa.
No ambiente político posterior à Segunda Guerra Mundial apresentou-se como opção
social viável a da revolução burguesa que se afirmava como de um capitalismo
nacional. No entanto, a crise de mudança do padrão de acumulação mundial do capital
da década de 1960, mostrou que esses projetos de capitalismo “nacional” tornaram-se
menos verossímeis e que o objetivo de combinar a extração de mais valia com o de
controle do trabalho enfrentava dificuldades crescentes, em parte pelo peso das
multinacionais e em parte pela fragilidade dos integrantes tradicionais do bloco de
poder. Por isso, a formação de sociedades nacionais pôde parecer uma tendência
inexorável do capitalismo moderno, mas revelou-se como um movimento sujeito a
importantes qualificações no relativo ao continente americano, em relação com as
condições internacionais prevalecentes ao longo do tempo e com as tensões que têm se
formado nos campos sociais dos quais surgiram estes Estados.
Houve frustração, total ou parcial, de projetos nacionais como da República Guaraní e
surgiram novos projetos como os do Panamá e das ex-colonias inglesas. As sociedades
nacionais surgem realmente de projetos qualitativamente diferentes dos das regiões, tal
como ficou evidente na formação polêmica da Argentina. No movimento geral de
formação de sociedades nacionais na América distinguem-se movimentos gerados pelas
contradições do sistema colonial, outros movimentos conduzidos pelos interesses de
burguesias locais, com variadas alianças externas, e, finalmente, movimentos que
decorrem de novo equacionamento da estruturação interna com as demais nações. No
que corresponde aos projetos burgueses de formação nacional, a nacionalidade
corresponde a uma territorialidade do poder econômico representada pela noção de
mercado interno e de protecionismo, ligado a subsídios diretos e indiretos ao capital.
Configuravam-se projetos de poder baseados na formação do poder da burguesia
(FERNANDES, 2007) combinando controle social interno com relações internacionais
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pactuadas, compreendendo subalternidade externa. Os projetos de poder da burguesia
apoiaram-se sempre em pressupostos de prosperidade que significam que haja um
número crescente de compradores com mais dinheiro. Essa prosperidade seria
conduzida pelo capital em ascensão, que aproveitaria sua capacidade de transformar em
negócios a expansão do consumo. Haverá uma relação incidental provável entre esse
movimento de ascensão do capital e o aumento da massa total de riqueza em mãos dos
trabalhadores, mas não há relação orgânica entre o aumento da riqueza total e a
participação remuneração do trabalho na renda total.
No continente americano destacam-se a diferença entre o processo dos EUA e os dos
países latino-americanos e a distância entre os países de grande e de pequeno porte, em
que o fim das colônias se traduziu no aparecimento de um grande número de nações
minúsculas, ainda presas ao manto europeu, que passam ao domínio norte-americano
através de mecanismos de substituição do Império Britânico. Na região em seu
conjunto, a Revolução Cubana é o movimento que se afirmou frente a um conjunto de
fracassos, desde a ascensão de governos socialistas na Guatemala, na Jamaica e na ex-
Guiana Inglesa até as tentativas de Granada e do Panamá. Mas a grande região insular
sempre foi o lugar de inquietação política que se manifestou em diversos momentos,
nos movimentos de independência de Trinidad e de Barbados. Na América Central há
uma longa tradição de luta que culminou com o Sandinismo na Nicaragua, que
compreende uma complexa luta política no Panamá desde Torrijos.
Divisão e unidade
O sentimento de divisão da América, entre a latina e a saxônica, junto com a
identificação da segunda como uma unidade no centro da economia mundial, e a
segunda como uma pluralidade periférica, contribuiu para que faltassem visões de
conjunto da formação dos Estados nacionais americanos. Já fosse porque a própria
noção de Estado nacional vem de origens diversas e representa situações diferentes de
coesão social, ou porque o ambiente externo da formação nacional fosse diferente, as
questões internamente levantadas sobre o Estado em cada país procedem de doutrinas e
posturas incomparáveis no relativo a territorialidade, que passariam à esfera
internacional. Os Estados Unidos da América do Norte surgiram em 1776 como uma
28
proposta expansionista13 enquanto os Estados latino-americanos assumiram a base
territorial das anteriores colônias. Assim, é preciso reconhecer os fundamentos coloniais
dos Estados nacionais como parte ativa da constituição dos novos Estados
independentes.
O declínio do sistema colonialista deu lugar a movimentos de conversão de interesses
econômicos locais em núcleos de expressão política que passaram a representar os
grupos sociais organizados das colônias. A passagem do local ao nacional não foi linear
e em vários casos jamais se completou. O aparecimento de projetos de unidade nacional
na América variou, desde os mais prematuros no Chile e no Uruguai até os mais
retardatários, como a Colombia, o México e o Brasil. É um problema que o Canadá
jamais resolveu e evoluiu para um estado multinacional e uma nação pluri-regional. Os
Estados Unidos, pelo contrário seguiram um modelo político bipartite que se
desembocou em contradições de interesses profundas, entre o projeto expansionista da
Revolução Americana perfilhado pelos estados do norte e a economia do sul, periférica
da inglesa. A expansão realizada desde 1870 resultou em um Estado centralista que
combinou a unificação interna com um projeto imperialista iniciado por volta de 1850 14
e confirmado pela guerra com a Espanha em 1895 que desembocou na tomada das
Filipinas. No fim do século XIX definia-se uma política norte-americana de controlar
diretamente o Caribe, onde se completou a construção do canal de Panamá com a
secessão dessa então província da Colômbia. O imperialismo norte-americano ganhou
alento definitivo com a Primeira Guerra Mundial que os tornou protagonistas do cenário
europeu, na qualidade de herdeiros presumidos do Império Britânico, com o qual de fato
concorriam. A concorrência entre os dois já se fazia sentir desde a Guerra de Secessão
norte-americana e esteve acirrada até o início da Segunda Guerra Mundial, em torno da
liderança financeira. Por questionável que seja a legitimidade dessa herança cultural e
política, não há como esquecer que os norte-americanos foram beneficiados pela
identificação do idioma e pela imagem de uma sociedade socialmente aberta com uma
revolução democrática, que atraíram um grande número de trabalhadores qualificados.
A formação do Estado nacional norte-americano ganhou um reforço decisivo com a
13 A Constituição norte-americana não fala em fronteiras senão em expansão segundo necessidades. 14 Em 1847 tropas norte-americanas invadiram o México, que voltaram a invadir em 1856 e em 1854 uma esquadra norte-americana forçou a entrada da Baía de Tóquio. A intenção de controlar o Pacífico é anterior à chegada da estrada de ferro à Califórnia.
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integração do modelo econômico da Segunda Revolução Industrial, em que foram
fundamentais sua composição de recursos naturais e a expansão do seu mercado interno.
Torna-se evidente que falta uma visão sintética do processo econômico norte-
americano, capaz de retratar os saltos qualitativos e quantitativos desse sistema, que se
desdobraram desde o fim da Guerra Civil. Numa grande simplificação, pode-se
considerar que a economia norte-americana de um grande salto após a Guerra Civil,
quando articulou a consolidação do modelo industrial sobre os três portos de Nova
York, Boston e Chicago com a expansão territorial. A seguir que deu outro salto de
mudança de escala, quando combinou esse novo modelo com o acesso ao Pacífico.
Finalmente, quando passou a se beneficiar da constituição do capital financeiro. O
início da Primeira Guerra Mundial já encontrou os EUA prontos para desempenhar seu
papel de potência internacional de primeira linha. Primeiro, será preciso distinguir entre
a expansão do sistema econômico em seu conjunto e a do sistema produtivo, portanto,
registrando o papel alternativo do comércio.
A consolidação do Estado nacional imperialista norte-americano se anuncia como uma
ideologia de confronto com o mundo hispânico, mas tem fundamentos muito anteriores
na ligação do conservadorismo protestante com uma noção de superioridade racial
desenvolvida pelo escravismo inglês. A expansão está justificada por um salvacionismo
que, para surpresa dos latinos, tem respaldo em princípios morais que valorizam
virtudes individuais como norma essencial de vida. A ambivalência entre
individualismo e responsabilidade social seria um traço essencial de uma cultura que
cobra obediência ao poder oficial e toma a hierarquia como um dado, mas que se aferra
a direitos individuais socialmente contraditórios, como o uso de armas. Ao longo de sua
vida como nação independente tem absorvido custos sociais de guerras que seguramente
seriam resistidos em muito outros países.
A política exterior ficou impregnada dessa mistura de boas intenções e efeitos
negativos, quando foi mobilizada para justificar ditaduras tais como as de Trujillo e
Somoza dentre as mais truculentas e simples até os mais sofisticados como Lanusse e
Castelo Branco. Curiosamente, quando comparado com a desfaçatez explicita do
Império Britânico, o imperialismo norte-americano teve que se explicar perante uma
classe média ascendente, que ficou frustrada quando da morte de Kennedy mas que
30
elegeu Obama. O sistema de poder norte-americano trabalhou com a presunção de que
poderia manter separados o olhar soteriológico das igrejas que decidem o certo e o
errado através da Bíblia, que justifica sua ingerência no Estado e o olhar pragmático que
se estende desde a filosofia simplificadora de Dewey e James até a ideologia das
business schools. Em seu desenvolvimento o projeto norte-americano revelou um
surpreendente simplismo frente à intelectualidade européia, mas teve a capacidade de
atingir o sistema educativo da burguesia européia, fazendo-a copiar os mesmos padrões
de eficiência mecânica e reducionismo ideológico.
O final do século XX trouxe algumas surpresas no relativo ao desempenho do sistema
mundializado, no relativo a perda de controle sobre as principais economias periféricas.
O mundo ficou irremediavelmente fragmentado e o que pareceu a novidade pós-
moderna é um retorno às condições de divisão entre cristãos e não cristãos e entre os
diversos tipos de cristãos. A exacerbação das divisões recorre a argumentos religiosos,
tal como na Baixa Idade Média, quando o alinhamento dos grupos urbanizados exigia
uma identificação ideológica além do escopo político indireto (Le GOFF, 1986).
O novo pós-modernismo significa uma ruptura com o sentido de totalidade da teoria,
cujas raízes deixam de ser relevantes e cedem espaço para a pluralidade incontrolada do
rizoma e para o labirinto. A superação da modernidade “clássica” mundo industrial não
é a afirmação de um sistema novo, limita-se a mostrar a incongruência do anterior. Mas
só mostra até certo ponto, porque só atinge as manifestações conseqüenciais da
modernidade, isto é, da produção até o consumo e não se envolve com os processos que
vão desde a necessidade do capital de se reproduzir até o controle do consumo. Isso fez
do pós modernismo uma crítica superficial da sociedade do capital, por;em jamais uma
crítica orgânica do sistema do capitalismo. A estética do conflito tomou o lugar da
ontologia da realidade com suas derivações na crise de finalidade e nas identidades
flutuantes dos participantes temporários e dos engajamentos parciais. Alguém decide
morar na Itália ou em Portugal e sente-se solidário com políticas ambientais, mas não
frente aos problemas de desemprego ou com a queda de qualidade da educação formal
como tampouco italianos e portugueses se solidarizam com a crise social transferida
para o sistema educativo. O pós-modernismo se apresenta como um programa de
visões parciais em que a noção histórica foucaultiana de ruptura é substituída por uma
pulverização incidental.
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Sobre essa trilha de aplicação do esforço de quebrar o enigma de sistemas atingidos por
interrupções de processos criadores, torna-se necessário rever a formação do sistema
mundial de hoje com suas novas desigualdades entre nações capazes de crescer mais e
nações que enfrentam dificuldades crescentes para continuarem a crescer. Não há como
ignorar que a crise mundial do capitalismo toma certas direções nacionais e tende a se
concentrar em países cujo mercado não cresce ou cresce menos que o necessário para
reproduzir o capital atual 15. Por isso, é preciso rever a formação do sistema desigual
ultra-moderno, distinguindo os processos que são introjetados nos sistemas nacionais e
os que se fortalecem como partes do mundo da internacionalidade. Não que os sistemas
nacionais sejam diluídos pelos internacionais, mas porque se desenvolvem sobre os dois
planos e deixam como marca principal a ligação entre os dois.
Construções interrompidas ou processos constrangidos?
A hipótese que as sociedades periféricas no movimento mundial de acumulação são
construções inacabadas, sugerida por Raimundo Faoro, tacitamente subentende que há
padrões fixos de progresso – estabelecidos pelas nações-do-mar-do-norte – que
permitem classificar todos os demais. As nações periféricas seriam projetos inacabados
de países ocidentais. A responsabilidade de insuficiências e inadequações seria deles. É
uma visão tipicamente weberiana, que contrasta tipos ideais com situações reais. Uma
perspectiva histórica crítica tende a separar processos e responsabilidades e a tomar
como decisivo o papel do movimento do poder central, com seus aspectos de
concentração de poder econômico e de modulação política do poder em seu conjunto.
No final do século XX a nova teoria ortodoxa, que já se converteu em teoria monetária
do capital, foi posta diante de uma nova realidade da economia mundial que é uma nova
segunda revolução industrial, de maior escala que a anterior, agora conduzida pela
ascensão de países periféricos à condição de potencias mundiais. Está claro que a
ascensão da China, da Russia e da Índia a essas posições não é somente uma questão de
escalas de mercado nem de vantagens de baixos salários, senão de outros valores no
relativo a qualificação, controle de tecnologia e controle do capital financeiro. O Brasil
15 O atual rebatimento da crise mundial na Europa do sul, que faz sua grande vitima na Grécia sinaliza uma divergência dos rumos dos países que aponta ao fim do euro, a moeda alemã transnacionalizada.
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entra nesse contexto ainda sem resolver essa equação básica, precisando superar
tendências dispersivas e de alargamento de desigualdades sociais.
33
3. O contraponto interno: a teoria do alto capitalismo e do capitalismo tardio
O lastro da teoria grandiosa Na perspectiva de uma leitura crítica da teoria social é preciso partir aqui da premissa de
que a teoria econômica, como toda a teoria social, surge em resposta de problemas da
realidade, já seja para resolvê-los ou para evadi-los, segundo os interesses que
representa de modo explícito ou velado. A teoria sempre carrega uma intencionalidade
que, por sua vez, reflete interesses concretos. Como mostrou Godelier (1966), o
tratamento dos problemas de método em economia exige uma decodificação histórica
da teoria que envolve, necessariamente, um exame da relação entre a racionalidade e a
subjetividade.
Responder ao desafio da teoria resulta em um programa de trabalho sem final feliz
garantido, que termina por encarar o problema central, hoje mascarado, do
desenvolvimento. A teoria econômica se formou gerando sucessivas respostas às
transformações do sistema produtivo, ao qual olha através de seu aspecto econômico. O
centro do debate teórico é a teoria do valor que é a pedra angular da teoria do capital,
isto é, de como se acumula valor socialmente produzido. Há uma escolha entre discutir
valor como tal ou através de seu reflexo em preços; e há uma escolha subseqüente entre
tratar como o trabalho cria valor socialmente aceito ou tratar das condições em que as
pessoas, na condição de representantes do capital ou na de trabalhadores, promovem a
produção ou são engajadas nela. A primeira destas opções traduziu-se na teoria do valor
trabalho e a segunda formalizou-se como teoria dos preços. A segunda disjuntiva deu
lugar a uma teoria do capital que trata com a heterogeneidade do capital e a uma teoria
do capital homogêneo, que é o mesmo que dizer que é uma teoria monetária do capital.
Admitir a homogeneidade significa aceitar uma perfeita equivalência entre os diversos
ativos integrantes do capital, ou ainda, que o valor social não depende do modo como o
capital é usado na produção. Não há dúvida que os rumos da teoria do capital dependem
dos da teoria do valor e que esta recebe diferentes leituras das principais correntes de
pensamento. Com outra denominação que não a de oposição formal entre a teoria do
valor trabalho e a da utilidade marginal, focaliza na totalidade do capital, com a
heterogeneidade do real e a expressão financeira do dinheiro capital.
34
Em alguns momentos a teoria tratou com o processo social em sua totalidade, mas em
muitos outros momentos focalizou em aspectos ou em partes dessa realidade. A
totalidade apareceu como uma situação como em Walras ou como a cara atual de um
processo histórico, tal como em Marx. A adoção de estratégias simplificadoras tem sido
uma prática generalizada, que por vezes tem o objetivo de buscar especificidades, mas
que, em muitas outras, constitui uma manobra lógica cuja sustentação não fica clara ou
simplesmente não é satisfatória. Se no contexto da teoria se pode distinguir o arcabouço
conceitual e o aparelho analítico, deve-se, por extensão, distinguir a consistência formal
e a consistência material da análise, ou sua pertinência frente aos processos e as
condições da realidade. É sempre uma teoria que é um corpo teórico e não é um
conjunto de teoremas, em que se pode agregar ou retirar um teorema sem modificar o
poder interpretativo do corpo teórico. Os eixos que ligam a totalidade e os aspectos e o
tempo e o espaço são as categorias da reflexão teórica que dão a ordem e o significado
do discurso teórico do mundo social. Os diferentes níveis de abstração em que se
desenvolve o discurso teórico são situações interdependentes do movimento dialético
do pensar teórico, tal como maneja Marx e não são quadros redutíveis a uma situação de
generalizações 16.
A percepção do aspecto econômico da realidade definiu-se frente à materialidade da
primeira economia mercantil17, justamente quando o reconhecimento da diferença entre
a esfera pública e a privada e o reconhecimento da internacionalidade essencial da vida
econômica revelaram o significado da economia como fonte de poder. Os grandes
16 As implicações mais profundas de dialética da análise social foram levantadas por Marx mas se tornaram uma excentricidade para a análise ortodoxa, que considerou ser opcional ignorá-la, desde Böhm-Bawerk a Keynes. Para estes autores o mundo do trabalho não tem uma personalidade independente, pelo que a análise do emprego é apenas reflexa da do capital. A análise da acumulação na perspectiva do trabalho tem que considerar não só a relação atual entre emprego e renda como as condições de acesso a renda, que incluem a expectativa de vida útil profissional e as tendências inerentes aos processos de qualificação dos trabalhadores. 17 Uso a expressão primeira economia mercantil para designer o sistema mercantil da antiguidade, que atingiu seu apogeu no Império Romano e que combinou uma comunidade política com um sistema de compensações de compras, tendo como eixo o núcleo central do império, que foi o grande centro comprador do sistema. Entendo que o sistema mercantil do Império Bizantino jamais alcançou a capilaridade do Império Romano do Ocidente, mesmo tendo sido um desdobramento dele. Veremos que a primeira economia mercantil foi superada por uma economia mercantil madura, que se formou desde a alta Idade Média e que se expandiu com um uso sistemático de dinheiro. Toda a produção mercantil apoiou-se numa exploração profunda da força de trabalho, já fosse na forma de apropriação da escravidão ou na de desvalorização dos trabalhadores, que caracterizou a servidão, tanto nas colônias antigas como nas da América. O grande diferencial entre a produção mercantil antiga e a dos Tempos Modernos foi o modo de uso de dinheiro, que passou a ser de dinheiro capital.
35
achados de Aristóteles sobre economia situam-se na relação entre a definição das
esferas pública e privada e a da medida de valor a partir de referências do cotidiano da
esfera privada que se projetam à configuração da esfera pública. A esfera pública da
vida econômica estaria constituída das ações de sujeitos privados legitimados.
Registram-se os atos dos homens livres e o trabalho dominado, das mulheres e dos
escravos fica subsumido.
Evidentemente, ficou um vazio no relativo à compreensão do mundo do capital
mercantil, que precisa ser esclarecido para poder-se avançar na explicação do mundo do
capital industrial. O mundo da produção mercantil se estruturava sobre o controle
irrestrito da força de trabalho, combinando escravidão com controle militar. As
possibilidades de expansão da produção mercantil dependeriam de sua capacidade de
reincorporar valor à produção, gerando maior capacidade de produzir, mas o controle da
força de trabalho é um processo social que se torna contraditório ao desenvolvimento do
sistema, porque inibe o desenvolvimento do componente de valor – isto é, de
qualificação dos trabalhadores – da composição do capital e limita o alcance social da
tecnologia. Desde então, a escravização será um divisor de águas na configuração do
sistema produtivo, onde a relação entre a expansão do mercado e a inclusão social cruza
com a relação entre o desenvolvimento de tecnologias e o de modos de uso das técnicas
incorporadas. Como disse Marx, a conversão de trabalhadores dependentes em
trabalhadores contratados significa a liberação de forças sociais que realizam o
incentivo para consumir mercadorias18 em vez de produtos da esfera doméstica. A teoria
econômica precisou resolver o primeiro problema de explicar a formação dessa oferta
previsível de mercadorias padronizadas e em seguida de resolver os problemas
operacionais de medir os custos sociais dessa oferta e os preços a que ela pode ser
demandada. A indagação da teoria abrange as condições sociais da produção, pelo que
se realiza sobre o eixo produção-distribuição, tal como trabalhado por Ricardo e Marx e
jamais pela separação da teoria da produção como foi empreendido pelos marginalistas.
A teoria da produção depende de como se resolvem os problemas de definição de custos
fixos e variáveis, o que significa, de como se introduzem as escalas de tempo no ajuste 18 Mercadoria será tudo que é produzido para ser vendido, mas para vender é preciso ter um sistema de comercialização, pelo que é o que é vendido por meio do sistema capitalista de produção. O conceito de mercadoria é inseparável do de valor de troca, mas é preciso introduzir uma distinção entre o valor de troca em produção localmente definida e em produção capitalista que se dirige a um mercado que transcende o local. A substituição de valor de troca local restrito por valor de troca irrestrito internacional é a mola central da formação da produção capitalista unificado.
36
de oferta e demanda. Parafraseando – e negando – Say, pode-se dizer que a atual oferta
cria sua própria demanda, porque a procura anterior justificou a oferta atual. Como, em
todo caso, a oferta está composta de mercadorias realizadas em diferentes períodos de
produção, a possibilidade de equilíbrio dessa oferta temporalmente desigual com uma
demanda formalizada em um único período é remota ou impraticável. Será preciso rever
o conceito de equilíbrio, entendendo que o equilíbrio em curto prazo na versão de
Marshall - Walras – Wicksell é sempre uma simplificação 19. Se por equilíbrio se
entende uma situação de equivalência entre oferta e demanda ela tem que considerar a
composição de uma e da outra, pelo que, tem que admitir que a oferta está constituída
de bens produzidos sobre diferentes períodos e com duração variada, ao tempo em que a
demanda se realiza sobre prazos de compra, não podendo ser reduzida a uma demanda
unificada instantânea. Noutras palavras, o curto prazo contém uma variedade de prazos
que só se revelam quando se explica o prazo do fechamento dos negócios. Assim, o
equilíbrio instantâneo é um pseudo-equilíbrio, que deve ser substituído por um
equilíbrio real que considera tempo.
O paradigma do equilíbrio ocupa um lugar especial na formação da teoria que exige um
esclarecimento preliminar. A noção de equilíbrio entra na teoria através da visão
macroeconômica, possivelmente a dos Fisiocratas, representando uma relação causal
dinâmica entre o que se produz e o modo como o produto se distribui. Observe-se que
no Tableau Économique a distribuição compreende a monetária e a dos produtos in
natura. Há um princípio de equilíbrio entre lucros e salários que define aquela
remuneração mínima do capital que justifica o investimento. Em Ricardo isto
fundamentou a hipótese do estado estacionário e com Marx trata-se do equilíbrio
instável que caracteriza um sistema progressivamente mais instável, tendencialmente
sujeito a crises de superprodução e de desajustes de composição entre a reprodução do
capital aplicado e a dos novos investimentos. Trata-se de equilíbrio ao nível do sistema
produtivo em seu conjunto e não só de equilíbrio monetário. O foco no equilíbrio
19 É preciso admitir que há uma questão pendente relativa à leitura de Marshall projetada pela economia ortodoxa, que se limita ao aspecto descritivo de análise marginalista e ignora os elementos contraditórios da análise de Marshall, no que ela se refere a situações transitórias e a deslocamentos graduais, especialmente a equilíbrio temporário, trata o mercado como um ambiente de negócios e vê o equilíbrio sempre como uma situação transitória. Uma revisão da obra de Marshall mostra que ele tem maior sensibilidade a mudança que Keynes e que sua opção pela economia apolicada representa uma teoria industrial da produção comparada com a teoria monetária da produção apresentadapor Keynes.
37
monetário – central para a corrente keynesiana – é uma indiscutível redução temática
frente à proposta dos Clássicos.
A noção de equilíbrio descobre a necessidade de um esclarecimento da dimensão tempo
como ordem histórica dos acontecimentos. O questionamento do tempo está
solidamente instalado no fundamento filosófico das ciências sociais através da pesquisa
categorial de Kant e da formação existencial do conhecer em Hegel. Em seus inícios a
Economia Política, com Adam Smith, enfrentou os problemas relativos à ligação entre
os fundamentos conceituais e o manejo operacional do tempo. O marginalismo
construiu uma teoria formalmente sofisticada, alicerçada em estática, em ausência de
tempo. Descartou o tempo quando a teoria ainda se pautava pelo paradigma da Física
Clássica, mas quando o desenvolvimento do capitalismo obrigava a reconhecer as
diferenças entre o tempo inserido nos diversos setores da produção e quando já estavam
claras as diferenças entre o previsível e o imprevisível, bem como se definiam novos
parâmetros de uniformização da medição de tempo. Será, portanto, inevitável inferir que
o progresso formal correspondeu a um retrocesso conceitual da teoria ortodoxa. Isto
significou simplesmente que a “grande” teoria econômica simplesmente ignorou o
tratamento do tempo dado pela filosofia de Hegel. Ora em Hegel o tempo é o da ordem
da criação, que comanda o processo da vida. Para Hegel a ordem do tempo é uma ordem
viva, que pertence ao mundo da praxis. O tempo conta pelo que há nele que pode ser
imposto pelo passado ao presente e que é o projeto de futuro contido no que está em
curso. Esse enquadramento do tempo pode ser a ordem que se projeta do passado ao
futuro, ou que pode ser uma nova ordem que surge e modifica as condições de
continuidade da anterior. A vida acontece em tempo e a ciência da vida social não
poderia se separar da filosofia do mundo vivo20. Por isso o tempo social está aderido á
práxis e difere do tempo do mundo natural em que não há trabalho.
Mas o tempo é essencial na análise de Marx, para quem o sistema capitalista de
produção consiste em uma multiplicidade de movimentos com diferentes velocidades e
durações. A percepção social do tempo muda em consonância com os modos práticos de
uso de tempo para satisfação própria ou para mercantilização. O significado social dos
usos do tempo representa o conflito de classes em torno da capacidade do capital de
20 Ver a leitura de Hegel feita por Jacques d´Hondt em seu Hegel filosofo do ser vivente
38
controlar o tempo ou de ter que se adaptar a ele. Os diferentes capitais aplicados
representam diferentes modos de uso de tempo do processo produtivo, do uso de
dinheiro capital e de controle da força de trabalho. O modo operacional da concorrência
se concretiza em controle do tempo de produção e as estratégias de resistência dos
trabalhadores se definem em termos de defesa de usos de seu tempo não controlado por
seus contratos de trabalho.
O apogeu do marginalismo se identifica com o imperialismo naquilo em que ele é
motivado pelo ideal de uma unificação do sistema de análise econômica para a
unificação política do mundo econômico. Simplificando um pouco, pode-se pensar que
o marginalismo foi a doutrina econômica do imperialismo europeu, que foi contestada
pela esquerda pelo socialismo e pela direita pelo keynesianismo, onde a doutrina
econômica do socialismo não ficou restrita ao socialismo real, mas o keynesianismo foi
a resposta burguesa da crise do capitalismo. A seguir a corrente neoclássica é a doutrina
da supremacia norte-americana, com sua subordinação da esfera do capitalismo e a
corrente do desenvolvimento econômico é uma contestação do poderio norte-americano.
Logicamente, todos esses sistemas tiveram seus desdobramentos e contra-correntes e o
marginalismo europeu teve influência decisiva na formação das correntes neoclássicas
norte-americanas, assim como uns e outros exerceram – e exercem – uma influência
profunda no pensamento econômico que aparece nas nações emergentes,
principalmente, através da cooptação de suas elites.
A transformação de uma pluralidade de sistemas de produção mistos em sistemas
unificados pelo critério de lucro individual do capital tornou necessária uma teoria que
explicasse a continuidade do valor socialmente criado, com o que impôs o objetivo de
contar com uma teoria do valor e do capital. Este seria o alicerce de toda uma
construção teórica que deveria acompanhar as transformações do sistema produtivo, em
sua extensão e em sua complexidade, desde as teorias do comércio às da produção
industrial avançada. Para cumprir seu papel, a teoria teria que registrar as
transformações do sistema produtivo, isto é, teria que manter sua representatividade
frente à realidade social da economia. Precisamente, aí se encontra um problema
fundamental da teoria, que é o de definir sua base histórica de referência. Nesse
39
contexto situa-se a proposta de Maurice Dobb21 de integrar, ou de não separar, a teoria
do valor e a da distribuição, no que converge com a revisão da distribuição feita por
John Maurice Clark22. De fato, toda vez que se transcendem os limites do curto prazo, a
distribuição é peça fundamental na explicação da dinâmica, tal como aparece na
passagem da reprodução simples para a reprodução ampliada em Marx. Se os modos de
crescimento e as formas de organização variam no tempo e no espaço a teoria terá que
registrar quaisquer variações na relação entre a formalização teórica e a capacidade
explicativa da teoria.
No relativo à teoria do capital propriamente dita, vê-se que sobre as duas grandes linhas
de uma abordagem histórica (Marx) e de outra positivista ou neo-kantiana? 23(Böhm-
Bawerk) há um desenvolvimento conceitual que segue linhas cada vez menos
intercomunicadas, que enfrentam problemas semelhantes colocados pelo
desenvolvimento do sistema de produção, mas que divergem, essencialmente, no
relativo a três pontos, que são: (a) a heterogeneidade do capital ou a homogeneidade de
sua representação financeira; (b) a endogeneidade da moeda ou sua função como
reserva de valor; e (c) o reconhecimento da existência de conflitos de interesse,
principalmente representados por conflitos de classe, mas ligados ao problema essencial
de controle da força de trabalho por parte dos capitalistas. A trajetória do debate sobre
capital é muito extensa mas compreende discussões superficiais junto com
questionamentos profundos e com variada capacidade de influir no rumo da teoria. No
campo böhm-bawerkiano destaca-se Lachmann com seu foco em aspectos estruturais.
No campo keynesiano a maior contribuição sem dúvida é de Joan Robinson, que
assume a tarefa improfícua de estudar a acumulação num ambiente de equilíbrio a curto
prazo 24, apesar de investir na análise da heterogeneidade. No campo marxista, as
principais contribuições são as de Rosa Luxemburgo e de Ernest Mandel, mas ficaram
aquém da proposta teórica de Marx, que envolve a relação entre a esfera econômica e a
política e que contempla uma transformaçã0o imanente do sistema produtivo.
Tentativas de mapeamento deste debate, como a de Harcourt e Laing (1967) ficam auto-
21 Maurice Dobb, Theories of value and distribution 22 J.M.Clark, Distribuição, 2323 É preciso ressaltar a diferença de origem entre o empirismo inglês de Locke a Marshall e o positivismo austríaco, que tem conseqüências decisivas no tratamento do relativo a racionalidade. A pretensão de Milton Friedmann de representar a linha de trabalho de Böhm-Bawerk desconhece a raiz filosófica dessa opção de método, em sua raiz kantiana. 24 Joan Robinson, The production function and the theory of capital,(1953-1954)
40
limitadas ao diálogo entre ingleses e norte-americanos, que não sai do “círculo de giz
caucasiano” da perspectiva burguesa da economia.
Uma observação preliminar é que a teoria mais avançada do capital é mesmo a do
próprio Marx. Ao reincorporar a dimensão tempo situada em história, torna-se
inevitável considerar os desdobramentos da teoria do capital frente aos problemas
representados por alterações de composição do capital. Logicamente, esses problemas
são aprofundados pelos efeitos cumulativos do acelerador da despesa, que funciona
como transmissor de renovação tecnológica. A teoria do capital não pode, portanto, se
omitir de considerar as diferenças de condições estruturais de capacidade para se
apropriar de novas tecnologias. Entendo que o principal ponto fraco da macroeconomia
keynesiana consiste em presumir que o progresso técnico seja um movimento que se
generaliza de modo homogêneo, ou que se explica por razoes exclusivamente técnicas e
da rentabilidade de cada técnica e não do conjunto alterado pela entrada e saída de
técnicas. A invocação de Joan Robinson de uma função do progresso técnico na
determinação da acumulação de capital depende de uma linearidade na renovação de
técnicas que não é compatível com a pluralização inerente ao desenvolvimento da
ciência. Um ajuste na teoria econômica da tecnologia exige hoje que se substitua o
tratamento genérico do progresso técnico por outro historicamente qualificado.
A urgência da temática estabelece as prioridades de método. Este é um ponto que supera
os aspectos imediatos da disputa entre a rigidez de uma abordagem normativa e a
fluidez de uma análise histórica e que se apresenta como o problema de método. Esses
elementos apontam a uma problemática básica de método que é respondida de diversos
modos pelas várias correntes, mas onde sempre há opções acerca de como organizar a
análise econômica. A teoria teve que optar entre condições de análise instantânea e de
curto prazo, generalizando para o curto prazo condições que só se aplicam plenamente
no ambiente atemporal da análise instantânea, tais como a suposição de custos fixos
invariantes e a de falta de diferença entre salários nominais e salários reais. O desafio da
teoria seria tanto maior quanto fosse sua aspiração a refletir a totalidade do sistema
produtivo, com sua estruturação e seu modo de mudar. Ao revisar o movimento geral da
teoria percebem-se alguns focos de atenção e alguns fios condutores do raciocínio
teórico, que permitem pensar em termos de uma progressão da teoria, cuja cobertura
temática e cuja densidade conceitual variam, mas que, em momento algum, desconhece
41
o caminho já percorrido. Os espaços de individualidade, os interesses coletivos
aparecem na propriedade privada, na formação do valor da troca, no controle da força
de trabalho e no capital acumulado. Na verdade, significa que a formalização econômica
surge de uma percepção da totalidade social e que, ao ser acionada pela análise, dá lugar
a outra percepção da articulação do plano econômico com o institucional. Ao avaliar a
explicação econômica
Por isto, será preciso começar a introduzir neste raciocínio uma visão crítica da
macroeconomia de hoje, no que ela representa uma ruptura dessa visão de totalidade e
passou a depender de simplificações que não se sustentam na prática. Apresento de
modo preliminar duas críticas à suposta igualdade entre poupança e investimento, onde
a primeira surge das incertezas da realização do não consumo em dinheiro e deste em
capital; e a segunda crítica surge da pluralidade de períodos de poupança e dos tempos
de realização do investimento. Ambas, portanto, são inspiradas por uma condução
realista do tempo na visão do processo de produção, como particularização da situação
do tempo na vida social em geral. Os problemas de divisibilidade do tempo, que já
tinham sido colocados pela análise marginalista, reaparecem por conta do
escalonamento dos investimentos segundo seu momento inicial e seu tempo de
maturação. O tempo passa a ser uma referência que combina a variável monetária – a
taxa de juros – com a produção industrial. Este problema foi enfrentado pela análise
marginalista numa perspectiva consistentemente simplificadora, que caracterizou as
propostas de Hicks e Hansen bem como as de Hecksher e Olin para a análise
internacional. Em seu epicentro britânico a teoria moveu-se numa perspectiva
epistemológica empirista que fez caso omisso de quaisquer diferenças de classe,
portanto, sem considerar rupturas de comportamento de consumo, nem de opções de
investimento.
A mais notória exceção no campo da economia ortodoxa é Pigou, que entretanto dá uma
leitura conservadora ao tema da renda dos trabalhadores, propondo que as forças do
mercado levam a pleno emprego em longo prazo. É o contrário da teoria da exploração,
que vê uma persistente compressão da renda dos trabalhadores, atingida pelo poder do
capital de conduzir a extração de mais valia através do controle da mais valia relativa. A
identificação da questão social com a disputa salarial é uma grande simplificação que
desconhece as limitações relativas a ingresso no mercado de trabalho e a condições de
42
entrada e de permanência no mercado de trabalho 25. O salário nominal é apenas uma
sombra do salário real, que deve ser julgado pela coleção específica de bens e serviços
que ele pode comprar e não como um montante abstrato. Ora, tal elenco de bens e
serviços à disposição dos detentores de salários muda, segundo o estilo de
transformação da economia nacional a que eles pertencem e segundo os preços relativos
das mercadorias. Daí, a leitura do problema social dos salários configura dois campos
temáticos que se tornaram essenciais na superação da teoria marginalista,
respectivamente, o eixo salários – distribuição da renda e o eixo tecnologia-formação de
capital. O grande problema que se apresentou a seguir foi que o questionamento
keynesiano do marginalismo ortodoxo – denominado por Keynes de clássico – foi feito
em termos de uma explicação monetária da produção, isto é, sobre a suposição de que
os movimentos da esfera monetária são contínuos com os da produção industrial, pelo
que a determinabilidade da esfera financeira equivale a uma determinação da produção.
A suposição de que a moeda é apenas “um ativo financeiro usado como meio de
troca”26 descarta que o valor social da moeda esteja associado ao papel dela na produção 27, tanto como reserva de valor, como viabilizadora da diversidade de matérias primas e
de produtos como por sua capacidade de representar o capital. Ao excluir estas
qualificações a teoria monetária da produção – tanto a neoclássica como a keynesiana -
se coloca exclusivamente como uma teoria da representação dos interesses do capital
através de sua forma mais depurada que é a teoria da esfera financeira.
Dados estes argumentos, torna-se inevitável considerar os desdobramentos da teoria do
capital frente aos movimentos de alteração de composição do capital que surgem de sua
reprodução. Logicamente, esses problemas são diferentes segundo o estilo de
desenvolvimento da economia e segundo o acelerador das despesas inerentes a esse
desenvolvimento, que funciona como transmissor da renovação tecnológica. Não se
trata somente de passar da macroeconomia simples de valores agregados para os
problemas de coerência interna do sistema – que seria o território da análise de Leontief
25 A comparação da renda atual com a renda total das pessoas considerando sua expectativa de duração de sua vida profissional. A expectativa de duração da vida profissional tem uma conotação adicional como indicativo da qualidade de vida que se tem durante os anos de vida ativa. 26 Fernando Holanda Barbosa, O valor da moeda e a teoria dos preços dos ativos, 2005. 27 Karl Marx, Grundrisse, vol I, 1984. O tratamento da moeda em Marx é parte essencial da teoria do capital e encontra-se mergulhada na relação entre a reprodução simples e a reprodução ampliada do capital. Aparece em forma conceitual preliminar nos Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, reaparece como um discurso detalhado nos Grundrisse e tem seu pleno papel no movimento do sistema capitalista em O Capital.
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– senão de ligar as alterações ao rumo da composição do capital, numa combinação de
fatores em que a renovação tecnológica aparece como uma variável dependente das
expectativas de demanda. A teoria do capital não pode, portanto, se omitir de
considerar as diferenças de condições estruturais de capacidade para se apropriar de
novas tecnologias. Entendo que o principal ponto fraco da macroeconomia keynesiana
consiste em presumir que o progresso técnico seja um movimento que se generaliza de
modo homogêneo, que se explica apenas por motivos exclusivamente técnicos e da
rentabilidade de cada nova técnica e não do conjunto constantemente alterado pela
entrada e saída de técnicas. A invocação de Joan Robinson de uma função do progresso
técnico na determinação da acumulação de capital depende de uma linearidade da
substituição de técnicas que não se encontra na realidade do mundo da economia.
O conflito ideológico sob a neutralidade
Os economistas ortodoxos preocuparam-se muito com elaborações elegantes de
problemas secundários, problemas estes que desviam a atenção de seus
discípulos das duras realidades do mundo moderno e o desenvolvimento da
argumentação abstrata foi muito além de qualquer possibilidade de verificação
empírica. Joan Robinson
O debate entre as correntes keynesianas e as neoclássicas ocupou as atenções da
economia oficial, onde a expressão Economia Política passou a acolher trabalhos
marginalistas e a reunir subcorrentes de pensamento mecanicista que continua aderido
ao formalismo da chamada “síntese neoclássica pós keynesiana”. Esta, no essencial,
continua andando em círculos sobre as idéias de Walras – Pareto – Marshall,
modernizada pela linguagem de Samuelson, Solow e outros. O aparelho neoclássico
está constituído de artefatos de análise que se agregam mediante procedimentos de
lógica proposicional, com o pressuposto que essa agregação não cria
incompatibilidades. A neutralidade axiológica, importada da sociologia de Weber, tem
um lugar essencial nesse conjunto.
A referência de neutralidade divide positivistas e historicistas e é um fundamento
essencial da sociologia e da economia positivista. Em seu desenvolvimento, a teoria
44
marginalista em economia, que veio a constituir o núcleo central da ortodoxia
econômica, adotou uma postura epistemológica que antecedeu ou que aderiu ao modo
positivista de teoria. O problema de tratamento da neutralidade, isto é, do papel da
ideologia na teoria, apresenta-se em economia de modo diferente ao de outras ciências
sociais porque envolve uma escolha de método que condiciona o tipo de pesquisa e de
resposta que se pode obter. A produção de teoria é um trabalho que é realizado
principalmente nos meios acadêmicos, carregando as idiossincrasias dos círculos
universitários com suas ligações entre universidades e com ligações com instituições
patronais ou com partidos políticos e sindicatos. Carrega as identificações e os
compromissos de classe e culturais com que se dedicam ao estudo da teoria e que
raramente se expõe. A construção de um aparelho teórico reflete sempre referências de
interesses que se projetam em objetivos que não podem ser ignorados. Assim, não se
trata apenas de explicitar uma tendenciosidade como colocou Myrdal (1968), senão de
trabalhar sobre essa fundamentação de interesses, para extrair o significado da teoria.
Não há porque supor que todos os envolvidos na produção de pesquisas ou na de textos
teóricos obedecem a interesses econômicos e políticos imediatos, mas tampouco há
como supor que o trabalho teórico esteja imune a preceitos e preferências estabelecidos
no corte civilizacional em que se situa a teoria. A teoria dos verdadeiros Clássicos 28 foi
produzida por pensadores independentes, enquanto a teoria dos marginalistas foi quase
toda construída por professores que representaram um pensamento de elites
comprometidas com a sustentação do sistema de poder liderado pelo Império Britânico
e corroborado pela ascensão dos Estados Unidos. Com seu grande contraponto
austríaco, por sua vez representando a ideologia imperial da Europa central, o sistema
de pensamento marginalista caminhou na direção de uma integração progressiva,
conduzida pelas contribuições de Wicksell e Walras e com a síntese de Marshall. A
dissidência de Myrdal, marcada pelo Equilíbrio monetário(1932) precedeu criticamente
a ruptura analítica de Keynes e demarcou uma linha de pensamento que restaura a
relação entre o modo de produzir e a ordem do tempo, mas o sistema caminhou para
uma nova ortodoxia, que seria uma recomposição neo-marginalista, indevidamente
auto-denominada de neo-clássica, que veio à luz através da combinação progressiva dos
trabalhos de Hicks, Hansen, Samuelson e Solow. Os argumentos que levaram Hicks a 28 Refiro-me aos economistas de Adam Smith a Marx que procuraram uma lei geral explicativa do funcionamento do sistema de produção, descartando como imprópria a designação dada por Keynes e Hicks que usam essa expressão para se referirem aos autores da teoria marginalista especialmente a Marshall.
45
considerar que trabalhava numa perspectiva de retorno aos clássicos significava
simplesmente que ele aceitava a designação de Keynes, que considerava Marshall um
clássico e que em momento algum questionou a relação entre a estruturação da teoria e
a do sistema produtivo.
A emergência de uma consciência social ativa 29 relativa aos problemas sociais
enfeixados sob a designação geral de desenvolvimento revela o contexto de conflitos
que permeia o mundo social. O conflito entre racionalidade e irracionalidade precisa ser
qualificado, distinguindo-se a racionalidade superficial ou aparente da essencial ou
substantiva, onde as condições efetivas de racionalidade são antecedentes necessários
que ligam os movimentos de infra-estrutura com os de superestrutura. Volta-se ao
questionamento de Myrdal sobre sentido de finalidade, contrastando a irracionalidade
da acumulação com a emancipação da condição humana. Conflitos e ajustes acontecem
no contexto de uma totalidade social que se transforma continuamente onde, portanto,
muda o modo de participar dos agentes envolvidos. Se a teoria econômica trabalha com
pressupostos de comportamento tem que situar um modo de agir na trajetória de
formação do mundo social, reconhecer seu estatuto histórico e incorporar as mudanças
como partes integrantes das referências que ligam os movimento s de infra-estrutura
com os de superestrutura. A opção do sentido de finalidade responde pela
fundamentação ideológica da teoria. A quais interesses ela serve, de modo deliberado ou
por adesão passiva? As contribuições à teoria integram correntes de pensamento ou são
manifestações isoladas que passam a refletir indagações já representativas de interesses
socialmente significativos. Em todo caso correspondem a pontos de vista historicamente
situados. Assim, numa revisão secular dos encaminhamentos da teoria econômica pode-
se argumentar que o objetivo de encontrar leis gerais explicativas do funcionamento do
mundo social corresponde a um determinado momento da constituição de uma ordem
mundial que combinou o modo de organização dos impérios coloniais modernos com a
produção industrial, quando os interesses dos grandes capitais se alinharam com os
projetos de poder político da burguesia européia ascendente. Naquelas condições, a
racionalidade da ordem no plano nacional passou a ter que coincidir com a ordem 29 Distingo consciência social ativa como aquela que se identifica com modos de agir, isto é, que não se fecha na esfera da subjetividade. Seu contrário é uma consciência social passiva, que representa a adaptação do agir social a condições reinantes de alienação, que podem ser determinadas por uma subalternização imposta pela colonização ou por uma subalternização consentida ou consensual, realizada pelas elites das nações dominadas. .
46
internacional, onde a supremacia militar das nações industriais não era questionada. O
colonialismo patrocinado pelo imperialismo (Hobsbawn, 1987) foi uma contradição
aparente da expansão do trabalho assalariado, que, entretanto, se explica pelo que ele
viabilizou de incorporação de trabalho subalternizado, tanto de trabalho não qualificado
como de trabalho qualificado, ao trabalho diretamente realizado no espaço social da
produção industrial. Assim, a racionalidade da ordem do sistema torna-se um paradigma
da síntese teórica. Entretanto, distinguiremos dois planos de racionalidade, que não
necessariamente são compatíveis um com o outro. O primeiro é o da racionalidade de
uma ordem mundial assentada sobre desigualdades e processos diferenciadores,
enquanto o segundo é o da racionalidade da ordem dos espaços econômicos
subordinados. As duas interdependem, mas a condição de dominação fez com que os
interesses organizados nos centros do poder mundial tivessem a iniciativa de gerar
referências de ordem, que passaram aos demais países como se fossem igualmente
válidas para eles.
As contradições sistêmicas da ordem burguesa tardaram em ser reconhecidas, mas
tornaram-se os fundamentos de uma teoria burguesa do desenvolvimento, que continuou
aceitando pressupostos inadequados para refletir os problemas dessas outras nações,
uma das quais, incidentalmente, é a nossa. Um exemplo clamoroso dessa situação é a
suposição de escassez de poupança, que foi aceita pela quase totalidade dos economistas
latino-americanos que se ocuparam dos temas do desenvolvimento econômico 30, mas
que desconhece os fatos de que as riquezas geradas pelos países periféricos têm sido
transferidas sistematicamente para os países dotados de sistemas industriais e
financeiros avançados.
As revoluções tecnológicas que se concentraram no último quarto do século XX
puseram em evidência a improcedência desses pressupostos, começando pelas
simplificações da inter-relação entre a esfera real e a financeira, prosseguindo com o
relativo à relação entre produção e distribuição e chegando ao papel do trabalho na
sustentação da reprodução do capital. A crítica dos pressupostos é um passo
fundamental da teoria, em que no século XX tiveram um papel especial figuras como 30 É um ponto no qual convergiram economistas com posições tão diferentes como Celso Furtado, Roberto Campos, Raul Prebisch e muitos outros. Será preciso distinguir entre um problema macroeconômico genérico de escassez de recursos para investimento no sistema produtivo nacional e a geração de riqueza do país em seu conjunto.
47
Joan Robinson, Roy Harrod e Gunnar Myrdal, cujas contribuições, no entanto, não
distinguem as mudanças nas condições de validez das afirmações téoricas 31. O
caminho da renovação da teoria econômica continua sendo o de uma volta constante aos
seus fundamentos, que é onde se coloca todo o relativo às premissas com que se
trabalha. A ortodoxia reconstruída depois da rebelião keynesiana voltou a pressupostos
de racionalidade não criticada, que representam as condições de um cálculo econômico
compatível com a sustentação da ordem econômica da segunda revolução industrial. Os
pressupostos que justificaram a hipótese de concorrência perfeita já tinham se esvaído
sob os efeitos da Primeira Guerra Mundial e da concentração do capital industrial, assim
como não se poderia usar uma teoria monetária restrita à remuneração do capital
aplicado. Os novos grandes investimentos em infra-estrutura, necessários para a
renovação da tecnologia e para adaptar a escala de produção, significavam
adiantamentos de capital que só poderiam ser realizados com o mercado de títulos. São
os novos modos de uso de capital que determinam a mudança da proposta de
desenvolvimento da teoria, assim como que impõem os argumentos da dissidência. Em
1920 não havia mais condições históricas objetivas para uma teoria que se obstinava em
raciocinar em termos de concorrência perfeita e continuava presa a uma análise estática.
O próprio projeto de uma teoria monetária da produção era contraditório com as
transformações da economia monetária e financeira. As rachaduras do edifício
apareciam antes que terminasse sua construção.
Os alicerces da teoria
O ritmo do processo repousa sobre relações funcionais das estruturas
econômicas formando uma totalidade unificada, mas na realidade
histórica concreta o tempo possui duas direções: uma ordem sucessiva e
uma ordem simultânea Maurice Godelier
O ponto de partida da opção teórica marginalista é a noção de escassez relativa, que
permite reduzir os valores de todas as mercadorias a uma escala unificada, como se
todas elas pudessem ser usadas em um mesmo sistema de tecnologias. A escassez
relativa ignora o fato de que o sistema sempre dependeu de mercadorias obtidas da
31 A principal contribuição à critica dos fundamentos da teoria continua sendo a de Marx
48
mineração, onde prevalece a escassez absoluta e o sistema como um todo dependeu de
água, cuja ausência representa a maior escassez de todas. A escassez de bens específicos
de fato varia ao longo do tempo segundo a reprodução do capital se realiza com
tecnologias e escalas de produção que são determinadas pelas necessidades de
reprodução do capital.
A originalidade da teoria é que seus fundamentos devem se renovar continuamente; e
que é justamente esta renovação de alicerces que alimenta o dinamismo na ponta da
teoria. A hipótese de escassez relativa sustenta a da utilidade margina, que por sua vez
permite pensar em ambientes de mercado efetivamente livres. A escassez, ou mais
precisamente a raridade, é socialmente produzida, constituindo uma falta social que não
pode ser reduzida à escassez de recursos físicos. Por isto mesmo há uma circularidade
em falar de escassez como de um fenômeno exógeno à formação do capital. Se vamos
aos fundamentos práticos da teoria teremos que isolar as hipóteses relativas ao processo
de produção das que reportam a racionalidade da teoria. Como a percepção do processo
se encontra no circuito de relações entre a produção social de escassez e a produção das
mercadorias que atendem a essa escassez, torna-se inevitável pensar que o processo do
capital na realidade consiste em criar e administrar escassez e não em atendê-la, pelo
que o consumo socialmente organizado é o que é planejado para acionar esta escassez.
A retomada da questão técnica da escassez como uma questão social desencadeia uma
série de compromissos da análise com o reconhecimento do real. À parte dos aspectos
éticos, há uma questão material relativa a como a sociedade do capital cria essa escassez
e a como ela é administrada. O controle da escassez é parte da racionalidade do capital
privado, cuja referência individual impede que se veja o problema coletivo. A escassez
se forma pela lógica individual do lucro, mas se converte em problema coletivo no que
constitui uma condição do consumo socialmente necessário 32.
A noção de utilidade depende da de escassez. A utilidade dos diversos bens e serviços
surge de como eles atendem a esse consumo socialmente necessário. O erro de
composição do marginalismo, introduzido por Jevons, consistiu em supor condições
individuais de utilidade que não dependem de restrições coletivas de consumo.
Obviamente, trata-se de uma simplificação que passa por alto as condições sociais de
32 Uso aqui o conceito de socialmente necessário para designar aquele consumo que habilita as pessoas como trabalhadores, portanto, onde se incluem despesas com saúde e educação.
49
controle da produção que produzem escassez. Ao reconhecer que o programa de
produção do capital envolve um compromisso com a composição dos investimentos,
que é contraditória com a hipótese de decisões de aplicação de recursos guiadas apenas
por dados relativos a novos investimentos, revela-se insustentável pensar que a função
de investimento no sistema de produção corresponda apenas a critérios bancários.
O progresso da teoria ficou por conta do potencial da teoria marginalista para chegar a
explicações satisfatórias e não só à confecção de modelos elegantes. A teoria
marginalista não conseguia realizar seus objetivos como e enquanto teoria monetária,
porque não tinha logicamente como separar seu objetivo de vir a ser uma teoria
monetária da produção de sua necessidade mais imediata de explicar o papel da moeda
na realização da produção. Se Keynes rompe com essa tradição mas trata a moeda
apenas como mercadoria bancária e não como ingrediente da produção industrial, deixa
sem resposta a questão levantada por Marx de uma comparação entre os custos da
imobilização do capital frente aos retornos, certos e incertos, dos investimentos. A
questão subjacente é que a economia monetária tem um fundamento real que regula as
condições de rentabilidade do dinheiro. O lucro que se verifica na operação do capital
fictício depende de uma combinação de fatores de valorização e desvalorização de
ativos em que intervêm fatores de velocidade de rotação e de regulamentação
institucional que são parte da totalidade do sistema.
A substância teórica do problema é a visão histórica do mercado. A economia ortodoxa,
desde Marshall a Labini, fala de formas de mercado e não de processos formadores de
mercado. Por isso, a substituição da concorrência perfeita pelo oligopólio é uma
manobra necessária mas incompleta, porque se refere aos fatos do oligopólio e não ao
processo que modifica a estruturação do mercado e cria diferentes tipos de oligopólio,
assim como não resolve a indefinição entre a formação de oligopólios e de monopólios.
A substância do problema são as tendências de ampliação ou de redução do número de
produtores e de diferenciação de produtos. Nos grandes setores da economia mundial,
tais como siderúrgica, metalúrgica avançada automotores, aviões, há uma clara
concentração do número de produtores e uma diversificação superficial que dissimula o
fato de que na maioria dos casos são simples maquiagem de produtos ditada por
marketing e não por necessidades de consumo. Será, portanto, preciso partir de uma
50
teoria da formação do mercado como ponto de partida de uma revisão das condições de
concorrência no alto capitalismo e no capitalismo em suas versões tardias.
A formação do mercado acontece mediante uma composição das compras
intermediárias e de compras finais, onde as primeiras se identificam principalmente com
as de empresas e as segundas com as de consumidores. À medida que a produção de
bens finais se torna mais indireta, portanto, que encobre um aumento progressivamente
maior das compras de empresas que de consumidores finais, as vendas das empresas
dependem proporcionalmente mais das transações entre empresas, que se realizam sobre
expectativas de lucros e de custos de investimentos. Isto importa em considerar que se
está diante de uma pluralidade de transações, que não pode ser descartada em função da
elegância de uma simplificação macroeconômica. São, portanto, dois aspectos
mutuamente complementares a serem levados em conta. Os sistemas de interesses
incorporados na relação geral de classes e as relações localizadas de interesses que se
incorporam nesse conjunto, confirmando ou alterando os perfis de racionalidade que
conduzem o desempenho objetivo do consumo e não seus fundamentos subjetivos tais
como propensão a consumir.
Estas peculiaridades do consumo teriam que ser revisadas como modo de aproximação
da diferença entre a esfera de funcionamento dos circuitos do velho capitalismo
avançado, do novo capitalismo avançado e das variedades do que se tem denominado de
capitalismo tardio. Na teoria do capitalismo central da acumulação mundial, que é,
também, o avançado, prevaleceu a suposição de que o consumo pode se expandir
indefinidamente, com a única restrição de renda. A teoria do subdesenvolvimento pôs
por terra esse pressuposto, ao mostrar o significado do controle dos recursos e do
controle da comercialização na formação da acumulação do capital.
51
3. O MOVIMENTO INTERNO: CONCENTRAÇÃO DO CAPITAL E MOBILIDADE DO TRABALHO NO SUBDESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA O processo em seus começos
A teoria econômica sempre oscilou entre o objetivo de explicar o melhor possível o que
aconteceu e o de explorar alternativas do que pode ser feito pelos participantes da vida
social. A teoria desenvolvida na tradição clássica examinou as condições para a
realização dos capitais.
Retoma-se aqui um esforço empreendido na década de 1970, quando tivemos o
benefício de comentários de Raul Prebisch e de Aníbal Pinto Santa Cruz. Aquela
reflexão foi interrompida, tal como diversas outras, direta ou indiretamente, ligadas ao
grande projeto empreendido por Prebisch em 1970, de realizar um trabalho coletivo de
grande porte, que substituísse a teoria da relação centro-periferia apresentado no
Estudo da América Latina de 1949. O debate sobre as condições históricas do
intercâmbio desigual produzira trabalhos defensores de posições que não podiam ser
ignoradas, como as de Amin 33, Emmanuel 34 e Palloix35 . Esse esforço, revelador das
insatisfações acumuladas com o aumento do conhecimento da realidade social do
continente, foi atropelado pelas circunstâncias políticas explicitas e por outras veladas
da vaga de golpes de Estado da época.36 Estava clara a necessidade de romper com os
limites internos de uma teoria burguesa do desenvolvimento e de remontar os alicerces
de uma explicação histórica do processo do subdesenvolvimento. Começava então um
período de grande turbulência política, que foi seguido, quinze anos depois, por um
período de hegemonização da interpretação neoliberal da economia e da afirmação de
33 Samir Amin, La acumulación mundial del capital, México, Siglo XXI, 1972 34 Arghiri Emmanuel, El intercambio desigual, México, Siglo XXI, 35 Christian Palloix, A economía mundial capitalista, 2 vols.,Lisboa, Estampa, 1972. 36 Esse trabalho, comandado por Raul Prebisch e desenvolvido no ambiente do Instituto Latino-‐americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES) durante o primeiro semestre de 1970, contou com uma numerosa equipe, pretendeu combinar uma revisão dos principais paradigmas teóricos do desenvolvimento com um exame da experiência dos países latino-‐americanos. Destacava-‐se a necessidade de aprofundar a fundamentação histórica dos estudos de desenvolvimento e de realizar um esforço de incorporar criticamente as contribuições de outros grupos e autores de diversas partes do mundo, assim como de avaliar criticamente as políticas de desenvolvimento.
52
um discurso unificado e ideologicamente subalternizado da análise econômica. Esta
linha de trabalho se retoma no ponto onde foi interrompida, isto é, no questionamento
das diferenças entre o movimento mundial de acumulação de capital e as condições
restritas de acumulação em cada país, que se refletem no modo de controle da realização
de trabalho. Entende-se, desde então, que as sociedades latino-americanas enfrentam
pressões de subdesenvolvimento e que o desenvolvimento aqui é a superação e reversão
desses processos.
Tornou-se logicamente necessário trabalhar em uma teoria da acumulação restrita de
capital, que estaria determinada pela duração de determinados padrões de acumulação
de capital, que seguem certos percursos da formação de capital, com suas contradições
internas e seus bloqueios, operando com certos conjuntos de tecnologias básicas e
perfis da qualificação dos trabalhadores. A acumulação de capital não acontece in vitro,
senão nas condições praxeológicas da vida social e acontece em tempo e espaços
determinados. Se o capital é esse Proteu de mil caras, as pessoas que vivem os
processos do capital são pessoas concretas, que participam de algumas de suas
peripécias, mas não de todas e que, freqüentemente, são descartadas pelos movimentos
destruidores de capital, de trabalhadores e de recursos físicos. O capital contrata
aqueles trabalhadores que lhe são necessários em determinados momentos e em certos
lugares. Os trabalhadores podem ser necessários segundo sua qualificação, o momento
em que seu trabalho é requerido e a duração do tempo em que são requeridos. As
circunstâncias das políticas econômicas respondem por sua pertinência, assim como as
condições em que funciona o modo de produção capitalista37
Há, portanto, uma questão fundamental relativa à qualificação dos trabalhadores. A
rigor todos trabalhadores têm alguma qualificação, o que faz com que muitas vezes não
sejam plenamente substituíveis uns pelos outros. Algumas dessas qualificações passam
despercebidas, tal como acontece com as dos camponeses, cujos conhecimentos
localmente especializados geralmente são descartados como inferiores. A visão seletiva
e discriminativa das qualificações – nunca de uma única qualificação universalmente
comparável – é um poderoso mecanismo de controle da força de trabalho. Mas, a
37 Eduardo Fioravanti, El capital monopolista internacional, Barcelona, Península, 1975.Uma das mais completas análises da monopolização do capital, que trabalha com a interação entre Estado e empresa na era da supremacía norte-‐americana.
53
qualificação das pessoas para trabalhar é transitória e corresponde a situações
específicas de composição do capital. Os requisitos de qualificação de trabalhadores
evoluem de modo independente das suas necessidades de renda. De fato, não há relação
alguma entre os requisitos de trabalho para reprodução do capital e as necessidades de
renda dos trabalhadores. Durante os processos de urbanização e de industrialização
dependente encontra-se que os diversos grupos de trabalhadores realizam esforços
ingentes para se qualificarem e terem acesso a elevações de renda que somente em
pequena parte são recompensados. No essencial, os custos sociais da qualificação da
força de trabalho são transferidos pelo sistema de poder ao Estado e aos trabalhadores,
onde as pressões sobre as finanças públicas para cobrir os setores de energia e
transportes levam a transferir a maior parte dos custos da educação aos próprios
trabalhadores. Este tem sido um dos principais mecanismos de reprodução da
desigualdade de renda, que assume sucessivas e diferentes formas, mas drena uma parte
importante da taxa de salário para financiar o sistema educativo.
A combinação de movimentos irregulares de valorização e de desvalorização se
materializa na relação entre os sistemas de serviços sociais de utilidade pública, que
passaremos a chamar de capital indireto, e a capacidade direta de produção, que
acontece no contexto do movi mento geral de acumulação de capital.. Essa característica
faz com que os reajustes da capacidade de produção sejam irregulares, no relativo ao
grande e ao pequeno capital, levando os sistemas produtivos a mudarem sempre de
composição. As posições relativas dos diversos capitais são favorecidas ou dificultadas
segundo sua capacidade para captar renda através de contratos de infra-estrutura e
através dos usos do sistema de infra-estrutura.
Estes dados devem ser avaliados na presunção de que as nações desejam se desenvolver
e que os Estados nacionais têm uma responsabilidade nesse terreno. É preciso
reconhecer que isso nem sempre tem sido verdade e que a vontade de se desenvolver
emana sempre de uma ideologia de classe, refletida de algum modo no discurso oficial.
Sem dúvida há uma luta em torno da decisão de desenvolver, onde confrontam a
ideologia nacional do desenvolvimento e os interesses internacionais do capital. É
preciso lembrar que as políticas de auto contenção, sob diversos nomes, foram
empreendidas em países latino-americanos muito antes do Consenso de Washington, tal
como aconteceu com as políticas contracionistas e desestatizantes conduzidas pelos
54
ministros Aleman e Alsogaray na Argentina, Simonsen e Nóbrega no Brasil, Marshall
no Chile e Ortiz Mena, Lopez Portillo e Gortari no México, para só citar alguns. Uma
retrospectiva das décadas de 70 e 80 mostra um encurtamento claro dos objetivos de
política econômica, quando se tratou de financiamento público e crescimento tolerado.
A linguagem oficializada de trocar as políticas de substituição de importações por
estímulo a exportações – que ignorava os efeitos indiretos na composição das
exportações, além de bloquear a renovação tecnológica da indústria – de fato montava
um estilo de expansão econômica ajustada ã concentração do capital. Longe, portanto,
de pretender explicar a guinada das economias latino-americanas rumo à
desindustrialização e à reprimarização, é preciso situar o contexto de interesses que
prevaleceu na montagem das políticas econômicas. Os planos econômicos tornaram-se
cada vez menos de desenvolvimento e os ministérios de planejamento deixaram de
formular propostas de desenvolvimento e foram reduzidos à elaboração e ao controle
dos orçamentos. É sintomático que em todos esses países os ministérios da fazenda
tornaram-se mais poderosos que os ministérios de planejamento.
Na longa história da luta pelo desenvolvimento, ou para compreender e superar o
subdesenvolvimento – na América Latina há diversas vertentes de análise, que, em seu
conjunto, acentuam a fratura básica entre as análises históricas de processos que
reproduzem a subordinação do continente, ou que contribuem para sua emancipação e
as análises descritivas de situações de produtividade, de desigualdade, ou mesmo apenas
de custos. Não é um processo linear, é oscilatório e está sujeito aos efeitos de
irreversibilidade nas perdas dos sistemas de recursos físicos e na perda de
compatibilidade entre os equipamentos e a competência para usá-los, Os progressos no
desenvolvimento estão sujeitos a retrocessos em ciclos negativos e as condições
ambiente em que os sistemas se recuperam nunca são as mesmas, tal como mostrou
Haberler em um clássico da análise dos ciclos 38. Na segunda metade do século XX a
contenda com o subdesenvolvimento ficou às vezes de pé ou de cabeça para baixo e
desenvolvimento voltou a ser o desenvolvimento dos interesses do capitalismo a la
Schumpeter, ou veio a ser a busca de negócios, na linguagem palaciana dos governos
mais recentes da mediocracia latino-americana. A ascensão dos setores de rendas
38 Gottfired Haberler, Prosperidad y depresión, México, Fondo de Cultura Económica, 1956.
55
médias na América Latina, objeto de análise comparativa de Johnson 39, representava
novos âmbitos de socialização do poder, mas ao mesmo tempo novas aspirações de
enriquecimento individual e de subalternidade, interna e externa.
Nas diversas variantes de uma teoria social burguesa o significado social do
desenvolvimento ficou restrito a questões terminais de distribuição da renda, que jamais
penetram nos problemas mais profundos de concentração do capital – determinam a
referida distribuição da renda - portanto, dando lugar a uma brecha entre a análise
conjuntural da distribuição e a análise estrutural da concentração da formação de
capital. Daí, que a expressão social, portanto, ideológica e política, do
desenvolvimento da economia ficou reduzida ao que se passou a denominar de o social,
que nada mais é que o conjunto das despesas mitigadoras da desigualdade de
distribuição da renda, as quais, obviamente, se deixam de questionar. Isso, na prática
significa que a teoria do desenvolvimento fica apenas como uma teoria da expansão dos
sistemas produtivos, sem jamais penetrar nas relações de causalidade que permitem ou
impedem a continuidade desse processo, menos ainda na inter-relação entre crescimento
e distribuição de renda. Faltou incluir outros ingredientes negativos ao processo, tais
como os efeitos cumulativos do fisiologismo na política, ligado à reprodução da
corrupção.
Ficam, portanto, de fora os problemas de falta de desenvolvimento, expressos em
situações de marasmo40 ou de anomia 41 – e os processos de retrocesso ou mesmo de
decadência, que são parte essencial dos movimentos de expansão do capital. Ignoram-se
todas aquelas pessoas que jamais foram incluídos pelo sistema produtivo do capital, que
são não incluídos antes de serem excluídos. Descartam-se as contradições da
acumulação e da concentração do capital. No entanto, como os aspectos negativos da
39 John J.Johnson, Political change in Latin America, Stanford, Stanford University Press, 1965. 40 Há diversos exemplos na América Latina da situação de marasmo, de regiões que ficaram à margen da estruturação do sistema produtivo e de regiões que passaram – ou passam – por procesos prolongados de decadencia e que se tornam representativas de uma cultura de decadência. Por exemplo, a região do Recôncavo da Baía de Todos os Santos na Bahia, que foi a maior produtora de açúcar durante o período colonial e caiu nesse marasmo econômco, tornando-‐se área de extração de recursos naturais e de emigração. 41 Em trabalho anterior procurei ressaltar o significado histórico da aparente neutralização econômica do marasmo, mostrando que ele é uma forma de representação do movimento negativo de dissolução do sistema produtivo escravista, e que, necessariamente daria lugar a um novo dinamismo político e econômico da região. No entanto, a falta de crescimento não foi tema da teoria que, desse modo, pôde abster-‐se de estudar decadência.
56
acumulação tornam-se mais importantes que os positivos, os recuos têm que ser
reconhecidos como parte essencial do movimento geral da acumulação de capital e
devem ser explicados como parte do funcionamento do sistema capitalista de produção.
Em vez de falar em uma destruição criadora, cabe pensar em termos de movimentos de
destruição que têm que ser compensados por outros movimentos de criação, sem relação
alguma com os anteriores, que os superam em extensão e complexidade.
Isso tudo, na prática, significou que a teoria do desenvolvimento econômico ficou
imobilizada nos aspectos superficiais da mecânica do desenvolvimento dos sistemas
produtivos e que não se enfrentou com o dilema de emancipação ou subalternidade,
mesmo quando pretendeu tornar-se uma teoria social. A dimensão de emancipação ficou
restrita a uma parte bem definida das correntes de teoria social que se envolvem com
essa temática. Tivemos uma teoria weberiana da dominação, com o nome de teoria da
dependência, e ficamos à espera de uma conexão histórica entre os fenômenos locais de
dependência e os processos planetários do capital. Por isso, foi possível falar de fim do
colonialismo, como se fosse apenas aquele praticado pelos impérios formados no século
XIX e não compreendesse as formas atualizadas de colonialismo aberto, nem as
modalidades mais sutis de colonialismo conduzido pelo controle da produção de
tecnologia, da qualificação dos trabalhadores, e, acima de tudo, pelo controle ideológico
do progresso material. Nesse último sentido, por exemplo, há um amplo e profundo
colonialismo interno na potência hegemônica, que compreende uma exploração desigual
de imigrantes indocumentados e tolerados, junto com uma maciça desinformação da
maioria dos grupos de baixa renda e de setores dos grupos médios de renda.
Certamente, é um quadro que se repete no Brasil, onde reaparecem práticas de
escravização de trabalhadores, onde persistem condições de contratação de trabalho
originadas na sociedade escravista e que continuam quase inalteradas, e onde,
finalmente, apenas uma pequena parte da população tem acesso a meios de informação.
Grande parte do que se diz ou escreve sobre desenvolvimento não tem sido mais que
operacionalizações de processos de produção, ou mesmo, apenas, de expansão do
sistema produtivo na tradição de desenvolvimento em Schumpeter 42. A realização de
42 Joseph Schumpeter, Teoria del desenvolvimiento económico, México, Fondo de Cultura Económica, 1958. Muito festejado como precursor das teorías do desenvolvimento, Schumpeter na
57
programas de pesquisa nesse campo temático encontra-se na disjuntiva de questionar as
conseqüências do movimento de formação, acumulação e concentração do capital, ou de
simplesmente referir-se à relação entre formação de capital e determinação de
investimentos. Por isso, o estudo do desenvolvimento hoje carrega o peso de um
progressivo reconhecimento dos conteúdos subjacentes na análise e da experiência
acumulada ao longo das inúmeras tentativas de análise e de políticas nacionais e
regionais de desenvolvimento.
O aparecimento da teoria dos termos desfavoráveis de intercâmbio, ou teoria da relação
centro – periferia em 1949, apresentada por Raul Prebisch em 194943 foi um grande
salto na direção da construção de uma teoria do subdesenvolvimento, que se passou a
ver como um processo negativo (Furtado, 1959) correspondente ao da formação de
capital dos países industrializados. A subseqüente teoria da dependência e da
marginalização, que se identififcou com Cardoso e Faletto 44 e com Quijano 45 assinalou
aspectos da formação social e da estrutura institucional do subdesenvolvimento
econômico, que foram, adiante, explorados como parte de uma explicação da
concentração mundial de poder, como em Anibal Pinto 46 . Os fundamentos do sub-
desenvolvimento nas condições concretas da acumulação a escala mundial foram,
enfim, revelados como eixo central da explicação do processo desigual do
desenvolvimento capitalista por Prebisch 47, quando essa análise passava a incorporar a
dimensão sócio-cultural como Myrdal 48 e quando se tornava evidente a necessidade de
verdade apresenta uma abordagem microeconómica da expansão dos negocios que nada tem a ver com as preocupações sociais com o desenvolvimento. 43 As idéias de Prebisch foram apresentadas no Estudio Económico de América Latina, 1949 das Nações Unidas (E/CN.12/164/ de 1951 e representaram uma ruptura com as doutrinas em voga, de que o desenvolvimento poderia ocorrer por transbordamento de efeitos do crescimento dos países mais ricos. 44 Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependencia e desenvolvimento na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970. 45 Anibal Quijano, “Dependencia, cambio social y urbanización en Latinoamérica”. In F.C. Cardoso e outros, America Latina, ensayos de interpretación sociológico-‐política, Santiago, Ed. Universitaria, 1970. 46 Anibal Pinto, Distribuição da renda na América Latina e desenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. 47 Raul Prebisch, Capitalismo periférico, crisis y transformación, México, Fondo de Cultura Económica, 1987. 48 Gunnar Myrdal, Asian dramma, an inquiry into the poverty of nations, 3 vols. Nova York, Random House, 1968.A obra monumental de Myrdal representa um esforço de situar a problemática do desenvolvimento como uma ruptura com as condições de subdesenvolvimento impostas pela colonização, que torna necessário reverter os conteúdos de dominação embutidos
58
uma análise histórica capaz de ligar os processos do capital em sua totalidade com os
processos local e temporalmente situados. As diferenças de abordagem e de objetivos
de análise tornavam-se completamente claras, quando as abordagens de fundo marxista
se confrontavam com a ortodoxia neoliberal, respaldada pela onda de golpes de Estado
de 1964 a 1976, e quando a própria crítica dos processos de subdesenvolvimento se
partia entre o discurso único do chamado Consenso de Washington e a recusa de muitos
em admitir que haja um problema de subdesenvolvimento diferente dos aspectos
negativos da concentração de capital e da globalização financeira.
Uma escolha de armas
A experiência mostrou ser imperativa uma escolha de fundamentos conceituais e de
método para uma teoria econômica que saía da crise do marginalismo evidenciada pela
opção de Marshall por uma economia da prática. Além disso, o gradualismo de
Marshall impugnava os desdobramento paretianos da teoria trazidos por Hicks. A
análise do desenvolvimento é incompatível com o mecanicismo da economia
marginalista. A inadequação da teoria neoclássica é evidente, mas ela continuou sendo
aceita simplesmente porque representa a perspectiva dos interesses do capital
financeiro. A tudo isso, a versão keynesiana do marginalismo continuou sendo
esgrimida como opção válida, apesar das críticas ao monetarismo e ao “curtoprazismo”
de Keynes. Numa visão em retrospectiva de todo esse processo, verifica-se que tem
havido uma progressiva incorporação de aspectos temáticos, que qualifica e aprofunda a
discussão do subdesenvolvimento. Desde a inclusão da dimensão sócio-cultural à do
ambiente e desde o reconhecimento da questão energética à das alterações dos padrões
de consumo, os processos de desenvolvimento e de subdesenvolvimento tornaram-se
mais carregados de significado, tanto em seus aspectos internacionais como nos
aspectos internos a cada país. Mas, quanto dessa abordagem se faz em diálogo com a
realidade social latino-americana? A necessidade de situar-se frente às raízes históricas
do processo econômico foi uma das principais reivindicações do pensamento da CEPAL
em seu período criativo, quando se pretendeu que as políticas públicas se construíssem
sobre os fundamentos de uma análise social e institucional, do feitio da registrada pelo
nos projetos de modernização. No relativo às inter-‐relaçoes entre esse trabalho e a obra de Wicksell ver meu livro intitulado Uma introdução à pobreza das nações, Petrópolis, Vozes, 1991.
59
ILPES 49. A dificuldade prática de incorporar a dimensão ideológica do processo deveu-
se, sem dúvida, ao vezo de tentar comprimir as contradições do processo no espaço das
contradições da reprodução dos grupos dominantes, em vez de considerar o contexto
maior de contradições do processo social em sua totalidade. As análises sociológicas de
então organizaram-se para explicar problemas da estruturação social dos segmentos
superiores da sociedade, tomando sua relação com os segmentos de rendas inferiores e
com os segmentos excluídos como aspectos suplementares da reprodução do sistema em
seu conjunto.
Assim, a análise dos processos de desenvolvimento e de sub-desenvolvimento passa a
ter que se ver com um significado mais amplo e mais complexo de ideologia, próprio do
contexto da totalidade social. Isso envolve os aspectos ideológicos desse
enriquecimento temático e das opções que se encontram entre discutir o que há de
essencial das transformações econômicas das sociedades e confrontar os diversos
aspectos superficiais e transitórios desses movimentos. O foco da análise varia segundo
se absorvem novas bifurcações da análise social, mas há um núcleo central temático que
se mantém, justamente porque essa absorção de aspectos novos resulta em
reconsideração dos temas que sempre foram essenciais.
Isso nos leva a rever tudo que tem sido dito e feito na análise do desenvolvimento no
relativo à relação entre os componentes materiais e os componentes ideológicos do
processo econômico. As transformações do sistema produtivo são tão materiais quanto a
própria produção. O que está em pauta não é a perda de importância da esfera da
materialidade do sistema, senão o modo como ela é percebida e integrada pelas
estruturas ideológicas. As ideologias devem ser reconhecidas como as expressões de
interesses de classe embutidos na formação da sociedade política e da sociedade
econômica, que se manifestam mediante uma linguagem indireta do poder. Não há
porque trabalhar a dimensão ideológica como um espaço de atributos de cada classe
social, senão como algo que surge da própria relação entre as classes.
49 No período de 1970 a 1972 Prebisch realizou ou induziu uma série de debates destinados a alimentar uma renovação das idéias da CEPAL sobre desenvolvimento. Cita-‐se aquí o volumen do Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social, Dos polémicas sobre el desarrollo de América Latina, Santiago, Editorial Universitario, 1970.
60
Entende-se, portanto, que a montagem de uma análise do eixo concentração de capital –
mobilidade do trabalho partirá da mesma relação básica entre composição e velocidade
do capital, mas deverá registrar as condições sociais em que essa relação se efetiva, isto
é, deverá situar os processos do capital no tempo dos processos históricos. A análise dos
processos do capital na América Latina sempre padeceu dessa separação gnoseológica
entre a duração dos processos específicos de produção e o tempo dos grandes
movimentos em que eles estão inseridos. Por exemplo, o tempo dos processos de
produção de açúcar no século XVI e no século XIX e a velocidade de circulação do
dinheiro na economia mundial. Pode-se especular que o aumento de velocidade na
produção do açúcar tenha sido maior que a média da velocidade dos capitais aplicados
na produção em geral, tanto agrícola como industrial, e que a maior velocidade do
capital financeiro seja ilusória, porque na realidade ela é uma síntese das velocidades
dos capitais aplicados na produção.
Trata-se, portanto, de examinar o que há de substancial do processo econômico e de sua
expressão em relações sociais. Tal como no tempo de Marx, o que há de substancial no
sistema de produção é um problema de diferenciais de velocidade e de alterações nas
velocidades dos capitais, que permitem ou impedem que os capitais específicos mudem
de forma de aplicação, portanto, que se reproduzam ou sejam absorvidos por outros.
Hoje, como ontem, há uma questão a ser enfrentada, relativa à capacidade do sistema
produtivo para alterar as velocidades da esfera da circulação. E o que há de substancial
nas relações sociais que envolvem a atividade econômica é a relação de classe entre os
que detêm capital e os que dependem de vender tempo para obter renda.
Assim, o programa da Economia Política não pode continuar sob a influência do
projeto de unificação da teoria marginalista como bem colocou Shackle 50, e
especialmente ao mostrar que Myrdal já havia estabelecido objeções mortais ao projeto
de Keynes de uma teoria monetária da produção. A ancoragem histórica da economia
significa trabalhar sobre colocações atualizadas no relativo à engrenagem do sistema de
produção, centradas em três relações essenciais, que são as seguintes: (a) a relação
entre o crescimento do produto e a composição do capital; (b) a relação entre a
intensidade do crescimento do produto social e a duração dos movimentos de expansão
50 G.L.S. Shackle, The years of high theory, Cambridge, Cambridge University Press, 1983.
61
do capital; (c) a relação entre os movimentos de expansão do capital e a mobilidade do
trabalho, nela incluídas a renda e a qualificação dos trabalhadores. A questão geral da
relação entre produção e distribuição fica como o grande pano de fundo desse conjunto,
na definição de um programa de trabalho para a Economia Política, tal como
visualizado por Dobb 51 quando levanta os compromissos da teoria do valor com uma
teoria da distribuição.
O crescimento do produto e a composição do capital. A questão da composição do
capital traz a assinatura de Marx e define as limitações da macroeconomia
simplificadora. A relação capital/produto que está na base da análise do
desenvolvimento econômico não adere à simplificação neoclássica de olhar o capital
como uma magnitude financeira, mas não entra no mérito da composição do capital que
permite que a produção aconteça. O crescimento do produto social é a representação
sintética de um conjunto de componentes interdependentes de capital, cujo valor
depende do modo como eles se combinam e do modo como os interesses que
comandam o capital manejam suas opções de tecnologia. O que choca na análise de
alguns autores, como Sraffa 52 , é que tratem do capital apenas como manifestação
mecânica e não explicitem os interesses do capital, tal como faz Marx em seu
tratamento do grande capital e da maquinaria.53 O capital se reproduz mediante um
movimento de reposição que se dá sobre a trajetória de sua composição, de que sua
composição atual é apenas a face mais recente. O efeito multiplicador do emprego está
historicamente situado com a composição do capital por Kahn 54 e não pode ser
esvaziado como a mecânica linear da versão convencional do multiplicador que
descarta os efeitos de composição do acelerador da demanda. Na versão inicial de
Harrod 55 o efeito de acelerador da demanda contempla que a substituição de
equipamentos gastos significa uma troca de tecnologias, com efeito final de
reorganização da composição da oferta. A questão fundamental a esclarecer refere-se a
como se determina o rumo dessa trajetória da composição do capital e esta não poderia
51 Maurice Dobb, Theories of value and distribution since Adam Smith, Cambridge, Cambridge University Press, 1973. 52 Piero Sraffa, Production of commodities by means of commodities, Cambridge, Cambridge Press, 1961. 53 Karl Marx, El capital, México, Fondo de Cultura Económica, 3 vols, 1956. 54 Richard Kahn, Selected essays on employment and growth, Cambridge, Cambridge University Press, 1972. 55 Roy Harrod, Toward a dynamic economics, Londres, Macmillan, 1960
62
ser representada sem distinguir as diferenças entre grande e pequeno capital, como fez
Steindl 56 e sem considerar os deslocamentos na divisão do trabalho e na distribuição
social da renda.
A intensidade do crescimento do produto e a duração dos movimentos do capital. Uma
observação fundamental sobre a produção capitalista é que ela tem se acelerado em seu
conjunto, tanto pela mobilização de pesquisa científica e tecnológica como pela
capacidade de encomendar equipamentos que refletem as preferências dos capitalistas
na organização da produção. Essa aceleração aparece como uma pressão sobre a
substituição de maquinaria e como um encurtamento dos lapsos de tempo entre
inovação e difusão. Distinguiremos uma visão interna e uma visão externa dos
movimentos do capital, entendendo que a descrição das variações na relação
capital/produto a la Kuznets 57 corresponde à visão externa, enquanto a perspectiva de
Marx é a da visão interna do processo. O capital é datado e historicamente situado, isto
é, tem um momento em que surge e outro em que se esgota ou que é absorvido por
formas mais novas e isso acontece em ambientes históricos definidos, com certas
condições de desenvolvimento das forças produtivas. Isso significa que o capital se
reproduz mediante movimentos que se realizam em certos tempos, que se alteram ao
longo do tempo. Na essência da análise de O capital está a identificação desse
entrecruzamento de movimentos com diferentes velocidades e durações. O crescimento
do produto social se realiza no nível de desenvolvimento das forças produtivas, que se
altera continuamente, pelo que é sempre um processo que se realiza num contexto de
novos dados do sistema produtivo. Tais novos dados ficam por conta das iniciativas dos
detentores do capital, mesmo em situações em que a inovação surge de práticas do
cotidiano dos trabalhadores. O controle do processo de produção também é o das
inovações, que são reguladas pelos objetivos da reprodução do capital. A aceleração dos
processos do capital não necessariamente se traduz em incrementos do produto, porque
as velocidades dos processos do capital são internas ao processo de produção, enquanto
o crescimento do produto social mostra os resultados finais desse processo. Não há
como pensar em movimentos de crescimento do produto social que não correspondam a
56 Joseph Steindl, Pequeno e grande capital, São Paulo, Hucitec, 1986. 57 Simon Kuznets, Postwar economic growth, Cambridge, Harvard University Press, 1964.
63
deslocamentos na composição do capital e não contemplem as condições de
aproveitamento da capacidade produtiva tal como insistiu Baran 58.
A expansão do capital e a mobilidade do trabalho. Uma questão central da continuidade
do sistema capitalista de produção consiste em saber se o capital pode continuar a se
expandir e a quais custos essa expansão pode ser alcançada. Para o próprio capital esses
custos são contabilizados segundo eles são percebidos pelos empreendimentos e são
internalizados como gastos de capital que não se recuperam, como custos de recursos –
que aparecem apenas como custos ambientais – e como custos de trabalho, que são os
custos diretos e indiretos com força de trabalho, em pagamento de salários, treinamento
de trabalhadores e gastos com saúde. O que está em jogo é a diferença entre os custos
percebidos pelos empreendimentos e os custos sociais da irreversibilidade do processo;
e que os interesses do capital em evadir ou transferir custos caminham no sentido
oposto ao daqueles para os quais esses custos são transferidos. Os resultados do
processo de produção aparecerão na forma de renda e de acesso à formação de capital, a
qual pode assumir outras formas não monetárias. Por exemplo, uma teoria monetária da
produção não tem como registrar um aumento da capacidade de alguns grupos de
trabalhadores para operarem com novas tecnologias, nem pode escolher entre projetos
cujos efeitos se realizam mediante interações crescentes com outros projetos. A
concentração exige grandes aplicações do capital concentrado que funcionam como
buracos negros do sistema produtivo, atraindo e neutralizando investimentos de
pequenos capitais que são induzidos a opções menos rentáveis e mais arriscadas.
A expansão do capital tem efeitos inevitáveis na capacidade dos trabalhadores para se
moverem entre diferentes posições no sistema para defenderem seus interesses. O
capital se expande mediante variações nos requisitos de trabalho vivo, em suas
combinações com o trabalho acumulado, com alterações na totalidade dos usos de força
de trabalho. É o movimento da totalidade do trabalho empregado que responde pela
criação de valor. A renovação tecnológica altera a relação de composição entre o
conjunto do trabalho vivo e o conjunto do trabalho acumulado. O controle do sistema
surge em dois momentos, que são o controle direto do trabalho acumulado por parte dos
capitalistas e o controle indireto das oportunidades de qualificação dos trabalhadores.
58 Paul Baran, La economia política del crecimiento, México, Fondo de Cultura Económica, 1959.
64
Na perspectiva da reprodução do sistema produtivo, os requisitos de trabalho variam em
quantidade e em qualificações, enquanto a busca de renda por parte dos trabalhadores
determina estratégias de deslocamento entre empregos e entre localizações. A
expectativa de vida profissional dos trabalhadores completa e corrige dados sobre sua
qualidade atual de vida e seus horizontes de mobilidade. Assim a mobilidade dos
trabalhadores se materializa em oportunidades diferenciadas de progresso material e
liberdade de escolha.
A seqüência inevitável da polêmica
Há uma crise de paradigmas no desenvolvimento do alto capitalismo, que se revela no
fundamento ontológico da teoria, levando a manobras de evasão de problemas e em sua
relação com a irracionalidade no campo social. A aceitação da síntese neoclássica pós-
keynesiana como ortodoxia econômica, junto com a condução da análise de matriz
keynesiana por suas variantes mais conservadoras deram lugar a uma análise restrita
aos preceitos neoclássicos, infensa ao desafio do desenvolvimento. Por muitos meios,
nesse campo da economia procurou-se demonstrar que o debate sobre o
desenvolvimento tornou-se inútil com a progressão da mundialização do capital. Faltou
dizer que é um debate inevitável, simplesmente porque é o pleito de uma vida
independente. Não se discute desenvolvimento para atender aos interesses do capital
senão para confrontá-los com os da sociedade. Nesta diferença de sentido de finalidade
a teoria do desenvolvimento tacitamente rompe com o marginalismo e tem que olhar
para os resultados das últimas décadas. Não se trata de ter uma teoria latino-americana
do desenvolvimento, porque os problemas são de todos, mas se os latino-americanos
não se fizerem representar dificilmente terão uma teoria de sua emancipação produzida
pelos que os subordinam.
O desenvolvimento de uma linha de trabalho – pesquisa, debate e ações - sobre a
temática de desenvolvimento e do subdesenvolvimento representa uma definição de
campo temático quee exige uma abordagem capaz de refletir esses conteúdos e indicar o
caminho de análise a ser seguido. As referências históricas têm que ser atualizadas
porque as pressões de subdesenvolvimento se renovam e porque os efeitos das políticas
econômicas se incorporam no quadro objetivo do sistema de produção. A tese que surge
do embate das tendências de subdesenvolvimento e de superação via concentração de
65
capital é que as condições ambiente da aplicação do capital e do controle da força de
trabalho se deslocam, progressivamente, acompanhando rumos específicos da divisão
do trabalho e da tecnologia. Assim, a polêmica sobre as perspectivas e restrições das
transformações do sistema produtivo envolve, igualmente, o modo social de distribuição
da renda, cujos efeitos na reprodução do sistema produtivo se realizam através da
composição e da magnitude de demanda. O papel dos trabalhadores na sociedade do
capital se define por sua capacidade de participar da vida econômica, que se dá por sua
capacidade de comprar e de obter rendas indiretas através do Estado. A reinserção da
distribuição na explicação do desenvolvimento é um passo necessário para uma
valorização social da teoria do desenvolvimento.
66
4. O MOVIMENTO EXTERNO: CONTROLE POLÍTICO DA ECONOMIA NO ALTO CAPITALISMO
Preliminares
O debate em torno das possibilidades de auto-regulação do sistema capitalista de
produção por meio do funcionamento de um mercado em expansão, que muda em
termos de composição da demanda, enfrenta condições diferenciadas entre o que ocorre
nas nações que combinam o controle da renovação tecnológica, com posições de
preeminência no mercado financeiro e as nações cuja economia anda a reboque dessas
condições. Neste ensaio, propõe-se examinar o significado do controle político nas
economias detentoras dessa posição vantajosa em tecnologia e financiamento, que
denominamos de economia do alto capitalismo59. Trata-se de avaliar as condições
diferenciadas de acumulação nesses dois tipos de nações, distinguindo os movimentos
de expansão de trabalho e recursos físicos, que são os de extroversão do
desenvolvimento e os movimentos de encolhimento dos sistemas atingidos por crises
quando passam a viver de capital acumulado. A questão central é a relação entre os
movimentos dos ciclos e a superação do subdesenvolvimento60.
Erupção e expansão da crise
Estamos hoje diante de novos fatos e tendências da política econômica que mostram a
necessidade de uma retomada da reflexão teórica e prática sobre esse tema. Desde
alguns textos clássicos das décadas de 50, como os de Bettelheim (1951) e de Nurkse
59 Em livro recente, Economia, política e poder (2009) apresento uma análise da territorialidade do poder na economia globalizada de hoje, distinguindo a especificidade da reprodução do poder econômico na periferia industrializada. 60 A questão geral de superação do subdesenvolvimento sempre distinguiu uma abordagem crítica do problema do desenvolvimento, que se vê como um impulso inserido nos movimentos contraditórios do capital na periferia da economia mundial e não como um projeto humanista compartilhado pelas elites dos países centrais com as elites dos países periféricos. O desenvolvimento na escala nacional envolve uma visão igualmente crítica do papel da ideologia na transformação social (Pedrão, 2004), onde é inevitável uma análise das relações de classe e da divisão internacional do trabalho.
67
(1955), e da década de 60, como os de Tinbergen (1961) e Myrdal (1968), tem havido
poucas contribuições significativas ao pensamento da política econômica para o
desenvolvimento. Além do velho debate entre crescimento com equilíbrio ou sem
equilíbrio, que envolveu diversos autores, ligado ao terror da inflação, oo ao debate
recorrente da conversão de valor em preços, a política econômica tornou-se um campo
de mecânica de modelos estáticos repetitivos, que esquivam o substrato de conflito
social de interesses das sociedades de hoje. A mudança de atitude dos países mais ricos
diante desta nova crise demonstra a fragilidade dos pressupostos de política
imobilizados pelos objetivos de equilíbrio macroeconômico. As novas políticas
européias primam por falta de originalidade e o que há de mais novo ao norte do Rio
Grande é a volta dos arquitetos da Era Reagan.
Certamente, há uma questão relativa à capacidade de cada país para decidir sobre sua
política econômica e, como extensão desse ponto, um problema operacional relativo à
capacidade dos países para pensarem em termos de longo prazo. A Europa ocidental,
que é hoje um conceito impreciso, procura soluções defensivas que conciliem projetos
de poder tão diferentes, uns dos outros, quanto os da Alemanha e da França. A
articulação de um espaço econômico germânico fica mais longe, dados o aumento da
influência da Rússia e o surpreendente desempenho do grande capital italiano. Há
muito, a Europa deixou de ser um aliado constante dos Estados Unidos e agora procura
de modo exposto alianças internacionais que a libertem da supremacia norte-americana.
O fim da “era” Blair também significa que o Reino “Unido” está menos preso ao redil
dos norte-americanos. Esta fluidez de alianças pode explicar diversos aspectos menos
claros das políticas anticíclicas, inclusive o fato de que os europeus reagiram mais
rápido e de modo mais profundo à crise do que os norte-americanos. Esse super-
realismo político europeu está bem descrito por Grabendorff e Seidelman (2005) em sua
análise dos dilemas e das antinomias da União Européia.
A crise obriga a rever o significado das esferas de poder e, especialmente, o da
supremacia norte-americana. A supremacia econômica e política de cada país contém
elementos culturais e técnicos que a identificam em seu tempo61. Não se pode pensar na
61 Essa concretude do tempo histórico como época e como modo de situar historicamente o capital foi tratado por Mészáros (2007) como “a tirania do imperativo do tempo do capital” e
68
supremacia britânica sem sua ligação com a vitória ideológica da combinação de
utilitarismo da classe dominante e de seus mecanismos ideológicos e religiosos de
legitimação. O mesmo aconteceu com o projeto de poder norte-americano, que realizou
o controle ideológico de uma maioria socialmente fluida, impregnada dos efeitos
combinados de escravidão e de integração maciça de trabalhadores destituídos de seus
mecanismos originais de defesa. O fator integração interna dessas nações poderosas
continuou a afetar as modificações do conjunto, mas foi oportunamente absorvido pelo
sistema de poder ao qual passou a contribuir. O componente de religião desempenhou
um papel crucial nessa amálgama política, para isso bastando ver que a ocupação inicial
das terras62 e os posteriores movimentos de emancipação dos negros nos EUA foram
canalizados através de lideranças religiosas, com a mesma indefectível Bíblia e com o
mesmo culto do individualismo operoso e antípoda de quaisquer movimentos de classe.
O controle do sistema de poder se realizou mediante mecanismos de flexibilização
controlada na esfera política, permitindo absorver as tensões que se formam na esfera
econômica. A expansão do comércio desempenhou um papel fundamental, fazendo a
ponte entre uma economia rural dispersa e uma produção industrial regionalmente
concentrada. O controle do sistema se manteve sólido mediante a incorporação de
vantagens que se obtêm através da expansão dos interesses de grande capital, no país e
no exterior. A concentração do capital tornou-se um fato da economia mundial que deu
a sustentação necessária para a internacionalização do dólar. A religião entrou nesse
conjunto como uma referência unificadora, uma ideologia acima de qualquer suspeita de
ser desagregadora, ou que não contribua para a perpetuação do sistema. Não há,
portanto, porque se surpreender que a ofensiva do sistema de poder na geopolítica da
energia se fizesse, justamente, sobre a base do fundamentalismo. O fundamentalismo
surge, no fim do século XX, como uma expressão que designa irracionalismos políticos
com fundamentos mais ou menos religiosos, com uma linguagem religiosa.
Diferentemente do ocorrido nos primeiros cem anos de formação do sistema capitalista
de produção, a partir da década de 1920, houve uma inversão da racionalidade
adiante (2008) colocando a formação da consciência de classe como uma decorrência de uma inserção histórica específica. 62 O ideal de um sistema de pequenas e médias propriedades – farms – e de seus ocupantes dedicados a trabalho familiar – homestead – correspondeu a uma imagem de uma sociedade pré-‐industrial, tal como bosquejada por Benjamin Franklin, baseada em trabalho árduo e frugalidade.
69
instrumental63 inicial do sistema, quando a mecânica da racionalidade da produção foi
transformada em artefato político pelos autoritarismos, especialmente pelo nazismo, e
utilizada como mecanismo de poder com uma teleologia de poder supra-econômico. A
expansão do poder de monopólio e a subseqüente formação de redes mundiais,
combinando sistemas de produção e distribuição, colocaram o tema da eficiência como
de eficiência de cada sistema, ignorando os fatores de racionalidade do sistema
produtivo em seu conjunto. Há uma nova trajetória de irracionalismo64, que escolhe
símbolos próprios, tal como fez o nazismo, ou que cria versões simplificadas das
referências religiosas das nações triunfantes e desempenha uma função fundamental de
controle político dos grupos ideologicamente mal estruturados, majoritários na
sociedade de consumo de massa. A trajetória ideológica do novo irracionalismo
arrebanha o poder da mídia sobre esta sociedade de massas, onde se substituem os
valores de coletivos locais – a partir dos familiares – por valores do individualismo.
A individualidade indiferenciada dá suporte à visão de Negri e Hardt (2005) sobre a
multidão, que rematam uma longa trajetória de percepção e de crítica da sociedade de
massas, desde Ortega y Gasset (1960) a Elias Canetti e a estes novos pós-anarquistas e
quase-marxistas. A invocação da categoria massa social em lugar de classes revela uma
dificuldade orgânica em reconhecer o trabalho como categoria ordenadora do mundo
social. Quanto dessa rejeição procede de observação da realidade social e quanto é
projeção de intenções ainda está por esclarecer. A sociedade nacional de classes está
fragilizada diante da internacionalização da divisão do trabalho, mas isso significa
apenas que há novos dados sobre o modo de alinhamento das classes e não quer dizer
que a condição de classe tenha sido revogada. Desviar a atenção do conflito de
63 Neste excurso precisaremos revisar o significado praxeológico de racionalidade instrumental, distanciando-‐nos do significado original dado por Habermas a esse termo em sua Teoria da ação comunicativa (1987, vol I), para nos ocuparmos da racionalidade enquanto princípio de uso da faculdade da razão, como ocorreria na tradição kantiana. Habermas já tinha se colocado perante a historicidade do discurso em seu Dialética e hermenêutica (1987), em seu debate com Gadamer, mas não tinha superado o viés de substituir o tempo genuinamente histórico pelo tempo contextual da subjetividade. 64 Precisamos retomar o desafio levantado por Lúkacs (1964) em sua análise histórica do irracionalismo, para mostrar que ele foi capaz de encontrar novos modos de reprodução, utilizando a combinação de mídia e marketing como as armais mais letais do grande capital no controle do consumo. O irracionalismo se desenvolve, simultaneamente, no plano de uma negação do fundamento histórico em favor de um pragmatismo imediato e no espaço em expansão ocupado pela mídia vulgarizadora.
70
interesses entre classes pode ser mais uma manobra sutil a favor da famosa harmonia
social dos ideólogos do Ancien Régime.
A crise simplesmente revela tensões longamente fermentadas, que se precipitam sobre o
tecido social. Mais que a crise, o realinhamento do poder mundial detonou uma revisão
do princípio de poder hegemônico, que se identificou com a supremacia norte-
americana. A suposição de unipolaridade ou de poder incontestável passou a se
enfrentar com áreas políticas impenetráveis65 e com esferas de poder econômico e
político, dotadas de dinamismo próprio, que geram relações de complementaridade fora
do alcance do poder do bloco hegemônico66. O poder hegemônico passou a ser um
poder restrito, que tem que reconhecer limites e negociar, inclusive com países mias
fracos. Esses deslocamentos de poder aparecem com sinais inesperados para o mundo
do capital, tais como são o poderio de empresas públicas e a intervenção do Estado nas
grandes empresas dos países mais ricos. Desses eventos e da compreensão de seu
significado como reversão da visão neoliberal parte uma leitura de desmonte da
economia neoclássica e, com ela, de todo o paradigma marginalista.
As novas iniciativas de saneamento de grandes corporações deficitárias por parte do
governo norte-americano e dos europeus desvelam a verdadeira linha de defesa do
sistema central do capitalismo, que é a posição das megaempresas, tanto daquelas
emblemáticas como a General Motors, como de outras desconhecidas do público no
controle do processo de acumulação de capital. A aliança Estado-empresa, que conduziu
a etapa superior da segunda revolução industrial e transferiu para os pequenos capitais e
para os trabalhadores uma noção mecânica de eficiência baseada em aproveitamento
indireto do trabalho foi instrumental para sustentar os objetivos de uma acumulação
sacralizada, mas encontrava seu fosso na contradição entre a centralidade do lucro
financeiro e a eficiência na esfera da produção. Que significa um equilíbrio entre fundos
para investimento e liquidez, senão um cálculo bancário do custo do pleno emprego?
65 O conceito de áreas de poder impenetráveis vem a ser necessário para explicar o mundo atual do poder mundial, em que há países que não poderiam derrotar o poder principal, mas tampouco poderiam ser derrotados ou invadidos por ele. Não são simplesmente territórios identificados com uma presença social contínua. São manifestações territorializadas de poder que se revelam imunes à supremacia política e militar. 66 O exemplo mais recente e mundialmente mais expressivo é a formação do bloco apelidado de BRIC, que reúne China, Índia, Rússia e Brasil, com maior capacidade de crescimento no PIB mundial e que considera operações financeiras fora da esfera do dólar.
71
Como se sustenta eticamente uma aliança entre Estado e empresa em que os critérios
privados de emprego dos capitais têm como regra básica o desemprego como custo
social necessário para preservar a taxa de lucro? Espera-se que o crescimento do PIB
crie novos postos de trabalho, mas a demissão de trabalhadores é uma parte essencial
reconhecida da estratégia do grande capital para preservar sua taxa de lucro. O conflito
entre investir e empregar e desempregar acontece na economia real, longe da lógica
financeira do capital.
Essa constatação obriga a revisar um problema teórico básico. Há uma diferença
fundamental entre uma teoria da produção formada na perspectiva do desenvolvimento
econômico e uma teoria monetária da produção. A primeira considera a relação entre a
taxa de crescimento do produto e as variações na distribuição da renda. A teoria
monetária da produção reflete apenas interesses do capital e observa a demanda como a
um requisito da reprodução do capital. O principal pressuposto de uma teoria monetária
da produção – do qual não escapou Keynes – é que ela considera modos definidos e
invariantes de relacionamento do sistema bancário com a produção, onde a rentabilidade
dos ativos financeiros é plenamente comparável com a da produção. Por extensão,
entende-se que se trata de um sistema de ativos equivalentes, cuja gestão pode ser
apenas financeira, independente das condições operacionais da gestão industrial. A
eficiência do grande capital poderia ser aferida pelo desempenho na bolsa de valores e
seus grandes referenciais seriam: (a) uma relação custos/riscos onde os riscos são
expurgados por contratos públicos e por estratégias de ampliação do grau de monopólio;
e (b) uma relação lucros/riscos, onde a eficiência marginal do capital é, de fato,
estabelecida pelos rendimentos garantidos oferecidos pelo sistema financeiro.
No marginalismo keynesiano, a intervenção do Estado seria aferida por efeitos globais
para ativar a demanda efetiva. Não considera a composição da demanda nem a
distribuição da renda, que são aspectos que mereceram a atenção de Kaldor e de
Robinson, no campo keynesiano e de Prebisch e Aníbal Pinto, dentre diversos
economistas latino-americanos. Os efeitos dinâmicos dos investimentos são vistos
através do mecanismo do multiplicador, que considera a propensão a consumir como
variável indicativa da disponibilidade de renda. Na prática, o multiplicador do emprego
seria um pseudo-efeito na formação de capital, que é o verdadeiro sustentáculo de sua
72
reprodução, mas não contempla o papel do Estado nas transformações estruturais da
indústria67.
O modo de ver a dinâmica da economia também tem um significado ideológico que
agora deve ser explicitado. A diferença entre a percepção do dinamismo do sistema
através do multiplicador e não do acelerador tem como conseqüência sacrificar a
complexidade real pela simplificação financeira e em adotar a igualdade entre poupança
e investimento sem questionar a realização do dinheiro engajado no financiamento da
produção. A brilhante síntese do desenvolvimento contraditório da teoria oferecida por
Shackle (1981) recupera a substância polêmica da contribuição de Myrdal em sua etapa
“ortodoxa”, mas ignora totalmente o giro dado por ele ao procurar realizar uma pesquisa
econômica socialmente realista e socialmente significativa68. Assim, a leitura reflexiva
do movimento keynesiano pára um passo antes de ter que reconhecer o papel da análise
social da economia em Marx. A nova grande questão, que se encontra nos fundamentos
da crise hoje em curso, resulta da separação dos interesses da reprodução do grande
capital frente aos da sustentação da base nacional hegemônica.
Numa visão em retrospectiva do processo recente de formação da crise no alto
capitalismo, pode-se admitir que a versão fundamentalista da irracionalidade,
característica da década de 1990, apenas dava foros de geopolítica a objetivos de uso
militar para sustentar hegemonia econômica. Esse fundamentalismo corresponde a
algumas organizações sócio-políticas norte-americanas dificilmente explicáveis, tais
como a John Birch Society ou a Daughters of American Revolution. Certa literatura do
período entre guerras, onde se incluem as obras de Sinclair Lewis, Erskine Caldwell e
John dos Passos, constitui um testemunho de uma sociedade com uma juventude à
deriva e sem absorver as novas manifestações do individualismo da pequena classe
média. O reconhecimento recente por parte do governo norte-americano, de que não
67 Este aspecto foi trabalhado por Hollis Chenery em seu Structural change and development policy (1979). A indústria tem que ser vista como um campo estruturado da produção e não como cifras de produto e coeficientes extraídos do desempenho de fábricas. Entristece ver que a análise industrial recuou de modo inescusável rumo a pseudo problemas de competitividade que vão na direção oposta de enfrentar a complexidade do sistema e de chegar a políticas para a produção industrial em seu conjunto. 68 A obra principal de Myrdal, o “Drama Asiático” (1968) ficou até hoje ignorada no Brasil, onde ele é conhecido por suas obras menores, ou lembrado por monetaristas, aparentemente sem que se perceba que o grupo sueco, de que ele foi o mais famoso, representa uma discordância antecipada e radical com os pressupostos da Teoria Geral de Keynes.
73
havia armas nucleares no Iraque e que Saddam Hussein nada teve a ver com o ataque de
11/9/2001 corrobora esta observação. Objetivamente, a política externa do
fundamentalismo mobiliza argumentos do irracionalismo medieval, como o curioso
“creacionismo”, com teses tais como intervenções defensivas, ou como a “expansão
natural” de Israel69. São argumentos que não se sustentam perante o racionalismo
operacional do capital, mas que não podem ser ignorados, dados seus efeitos finais na
reprodução política do poder.
A introversão do processo
O processo do capital se extroverte ao incluir mais pessoas e mais recursos e ao
impulsionar a produção e a ampliar os usos de recursos e tecnologia. As turbulências do
processo da formação do capital alteram a relação entre incorporação e valorização e
exclusão e desvalorização, fazendo com que o sistema viva de suas próprias forças. A
substituição de movimentos de crescimento pela queima de recursos acumulados leva a
outra disputa de poder, qual seja, de decidir quem paga a conta da crise. A crise se
desenvolve segundo reações dos participantes do processo econômico que agem
racionalmente em função de seus interesses, criando, entretanto, contradições quando
são consolidadas para a sociedade em seu conjunto.
Historicamente, as políticas econômicas tornam-se parte integrada dos processos da
economia porque seus efeitos se fundem com os processos do capital e do trabalho,
determinando novos modos específicos de participação para os diversos agentes sociais
e alterando horizontes de renda e de mobilidade com que cada um deles trabalha. A
política econômica surgiu como um campo de interesse quando se tomou a organicidade
da presença do Estado na economia, isto é, quando se identificou o agir do Estado como
um modo de planejar. Na raiz da lógica da política econômica está o pressuposto de um
Estado interventor, que se considera como protagonista do processo econômico e não só
como participante compensatório. Encontram-se teóricos da política econômica entre
reformistas como Tinbergen (1961), Prebisch (1949) e entre os responsáveis do
planejamento estatal soviético, mas onde sempre foi necessário o questionamento dos
69 Pelo que se pode ler, não há diferenças significativas entre essa doutrina de expansão natural e as doutrinas de espaço vital adotadas por regimes autoritários europeus.
74
objetivos a serem alcançados, que é uma tarefa que, na prática, só pôde ser enfrentada
em regimes políticos onde foi possível discutir objetivos.
Como são processos que se renovam e mudam de feição, distinguiremos as diferenças
entre os efeitos iniciais propostos das políticas econômicas e seus efeitos finais, que
surgem depois que elas são aplicadas e refletem as idiossincrasias e os defeitos de
competência. Vista na distância do tempo e lida através de seus próprios depoimentos, a
teoria econômica se apresenta como um movimento intelectual espontâneo, que se
realizou por obra e graça da genialidade de alguns pensadores e não pelo fato de que
eles tivessem que responder a problemas concretos de seu tempo. No entanto, a crise
econômica que eclodiu em 1929 foi cultivada pelos resultados da Primeira Guerra
Mundial, que alteraram o sistema mundial de trocas, enfraqueceram os centros europeus
do capitalismo e deixaram um espaço que foi ocupado pelos Estados Unidos, mas sem
absorver a crise de demanda no mercado internacional. O desastre das economias do
Conesul, nessa época, é um testemunho irrefutável dessa brecha. A virtual falência da
orgulhosa economia argentina teve sua correspondência na crise da economia baiana,
que não tinha mais a quem vender fumo nem cacau.
O tema para uma teoria da recuperação da demanda internacional estava colocado pela
incapacidade do marginalismo positivista para enfrentar processos determinados por
causas indiretas. A magia de um mercado auto-regulado, explicado pela lei de Say, se
desvanecia nas novas condições de funcionamento da economia internacional. Além
disso, o mundo da regulação financeira do mercado encontrava as novas opções de
política representadas pelas variedades do planejamento, especialmente do
planejamento econômico soviético, que foram olimpicamente ignoradas pelas potências
ocidentais. Definiam-se os contornos de uma economia de guerra, que se tornaria
imperativa a partir de 1939.
No relativo à recomposição da economia internacional, formara-se uma brecha
conseqüente da substituição de uma economia líder que operava com um elevado
coeficiente de importação por outra que importava relativamente muito pouco enquanto
absorvia vultosos investimentos de outros países. A crise se reproduzia como uma
queda irrefreável da demanda internacional esfriando as iniciativas de industrialização
periféricas. Nos anos que se seguiram à eclosão da crise de 1929, houve uma busca de
75
políticas eficientes para compensar esse fosso70 por parte de vários países integrados aos
circuitos internacionais com variados resultados, que assinalaram uma guinada na
direção da industrialização. Suas políticas contradizem a imagem difundida de que os
norte-americanos foram os únicos inovadores com políticas keynesianas. A
instrumentalização para enfrentar a depressão começou na América Latina antes que
Keynes aparecesse e mediante políticas inspiradas na necessidade. Em 1930, os chilenos
criaram a Corporação de Fomento, os argentinos criaram o Banco Industrial da
República Argentina e o México criou a Nacional Financeira. Os norte-americanos
incorporaram os preceitos da política de emprego de Keynes sem questionar a ligação
entre essa dimensão social da política econômica e a visão monetária do sistema de
produção a que se filiava Keynes. Mesmo Hansen (1954), que tinha uma visão prática
de homem da pequena produção, caiu nessa armadilha teórica de generalizar sobre o
sistema produtivo com a visão dos banqueiros. Não poderia confundir a liquidez geral
no sistema financeiro com a disponibilidade de crédito para produção.
Trata-se, portanto, de definir como o governo intervirá e não se ele intervém. A
suposição de que o governo deveria reativar o sistema produtivo significava realmente
que a parte do Estado na aliança política do poder econômico deveria ser realizada de
modo direto, injetando poder de compra no sistema, além dos contratos que ofereceria
às empresas. O mecanismo considerado é um dispositivo global de intervenção
financeira, que se orienta pelo volume de operações financeiras, isto é, que é atraído
pela atividade bancária e financeira, tendo sempre os bancos como referência
institucional. É inevitável considerar que essa perspectiva monetária, trabalhada por
Keynes desde seu Tratado da moeda, se formula sobre uma concepção de capital
homogêneo e onde o epicentro da teoria é uma teoria monetária da produção.
Na perspectiva teórica do problema, portanto, faltam dois elementos essenciais a essa
política de multiplicador, que são os de composição do capital e de distribuição da
renda. São referências que levam a distinguir entre modelos simplificados de
crescimento econômico e planos de desenvolvimento. Sempre e quando se revelam as
conseqüências dos desdobramentos no tempo das políticas públicas, torna-se inevitável
considerar que os impulsos de dinâmica do sistema produtivo envolvem diferenças de
70 É oportuno mencionar que no Brasil o governo de Epitácio Pessoa, na década de 1920, adotou as primeiras medidas que podem ser reconhecidas como de substituição de importações.
76
composição dos novos investimentos frente ao capital em operação e que a distribuição
de seus resultados altera a repartição da renda em seu conjunto. As diferenças de
composição entre o capital investido e o dos novos investimentos se convertem em
correspondentes situações de tecnologia, que representam custos e demanda de crédito.
Por sua vez, o efeito distribuição da renda embutido na concentração do capital e na
precarização do emprego se traduz em variabilidade da demanda que só pode ser
apreciada quando se comparam períodos, isto é, quando se examinam as limitações de
representatividade da análise quantitativa do processo. A conclusão inevitável é que as
alterações na distribuição da renda resultam em efeitos na composição e na magnitude
da demanda que se transmitem através das modificações na composição do capital.
Com estes elementos de experiência, vê-se porque as políticas anticíclicas não podem
ser concebidas sobre o curto prazo e porque devem apoiar-se em referências realistas
atualizadas do funcionamento do sistema produtivo, onde os efeitos na composição do
capital e na distribuição da renda responderão por possíveis alterações do consumo em
médio prazo. Assim, não há como ignorar a necessidade de rever a teoria do consumo
para colocá-la em termos compatíveis com a explicação do ciclo e a do
desenvolvimento.
Trata-se, no essencial, de reconhecer o fundamento objetivo do comportamento do
sistema correspondente a seu modo e nível de organização frente a fatores impregnados
de subjetividade, tais como a preferência por liquidez ou a propensão a consumir.
Quando se escolhe e aplica uma política econômica, enfrentam-se condições ambiente
concretas dentro das quais se colocam os elementos de subjetividade dos agentes
econômicos. Certamente, há uma cultura de expectativa de lucros do grande capital,
mas tal como a experiência mostra, também há uma cultura de supor que os governos
serão constrangidos a transferir os recursos que forem necessários para salvar as grandes
corporações, simplesmente porque elas são a espinha dorsal da economia mundializada.
No entanto, as mesmas disputas de defesa da taxa de lucro se reproduzem na esfera do
grande capital e as compras de participação e as disputas por fatias de mercado
prosseguem, inclusive, ultrapassando os objetivos das políticas públicas de salvaguarda
das empresas.
77
Uma hipótese a considerar é que a reprodução do grande capital, na qual já se
incorporaram os desígnios do capital especulativo, depende do que Mészáros (2007)
denomina de imperativo do tempo do capital, que é o que surge da imposição à
sociedade do tempo da reprodução do capital incorporado no sistema de produção. A
reprodução do grande capital envolve complexas cadeias de decisões e, freqüentemente,
faz com que as grandes empresas controlem empresas de menor porte, que são parte dos
grandes interesses. A mobilização da sociedade para garantir a reprodução do capital
resulta em exaurir o tempo próprio da vida das pessoas, que são coagidas a um esforço
conducente a um vazio ontológico. As pessoas trabalham para sua própria negação, em
um sistema cuja lógica orgânica consiste em rejeitá-las.
No que a sociedade descobre a negatividade da salvaguarda do grande capital,
desenvolve-se uma introversão do processo social da política econômica, cuja
tecnicidade deixa de poder ocultar seu significado ideológico. Volta a ser necessário
explicar quais são os destinatários dos benefícios da política econômica, que também se
explicita como uma ação pública. Subrepticiamente, volta-se a enfrentar a questão
ideológica relativa ao sentido de finalidade da ação pública: proteger o grande capital, o
pequeno capital e setores médios de renda ou os trabalhadores em geral? A
complexidade da composição social dos países mais ricos não permite conduzir este
argumento sobre uma relação geral de classes, mas tampouco dá lugar para
desconsiderar seu papel na estruturação das relações de poder. Tudo isso envolve um
problema prático relativo a como projetar efeitos em mais longo prazo de políticas
anticíclicas, isto é, a como convertê-las em políticas de desenvolvimento.
A dialética do ciclo e a do desenvolvimento
Nos parágrafos anteriores procuramos expor as ligações entre os ciclos e as condições
de desenvolvimento, por extensão, levantando as correspondentes conexões entre as
políticas controladoras dos ciclos e as políticas propulsoras do desenvolvimento. As
motivações da luta contra o movimento depressivo do ciclo e da luta para superar o
subdesenvolvimento procedem de diferentes condições de classe. Tradicionalmente, as
chamadas políticas cíclicas são desenhadas para enfrentar os movimentos negativos do
ciclo. São políticas compensatórias, organizadas sobre condições operacionais definidas
78
em curto prazo, mesmo quando reconhecem que a gênese dos ciclos ocorre em períodos
em que se sobrepõem oscilações de curta e de média duração e em que a visibilidade do
processo diminui sobre o horizonte de tempo, mas onde a visão em longo prazo se
ajusta continuamente.
Em cada momento da trajetória do sistema econômico coincidem movimentos
engendrados em diferentes momentos, que também interagem de diferentes modos uns
com os outros. É a leitura dinâmica da interposição dos prazos com que operam os
diversos componentes do capital. Também, é a lógica de compensar movimentos
negativos, mas não é a de gerar novos movimentos positivos que alterem a capacidade
das economias nacionais para mudarem. Por isso, a necessidade de trabalhar sobre os
nexos entre as conseqüências das políticas anticíclicas e das políticas de
desenvolvimento é um tema que ocupa os momentos de insônia mais profundos dos que
tratam dos problemas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.
Um argumento que se impõe reconhecer neste campo é que as sucessivas ações em
curto prazo têm efeitos cumulativos que fazem delas verdadeiras políticas de maiores
efeitos sobre durações mais longas. O curto prazo não está constituído de ações
esporádicas senão de ações que integram efeitos em prazos mais longos. A acumulação
de efeitos introduz um argumento relativo a dispersão ou a convergências das ações em
economia. Nelas, a questão do desenvolvimento fica latente como um problema que não
se nega, mas que não se tem como tratar. No entanto, a questão do desenvolvimento se
manifesta através das conseqüências das políticas anticíclicas e com seus efeitos
acumulados e não previstos. Nelas, a questão do desenvolvimento fica subsumida, como
um problema que não se nega, mas que não se tem como tratar. O desafio do
desenvolvimento se manifesta através das conseqüências das políticas anticíclicas e de
seus efeitos acumulados e não previstos. Na realidade, o movimento negativo da
economia pode ser visto como um problema de conjuntura ou como uma tendência que
afeta negativamente as perspectivas de desenvolvimento, portanto, cujo significado só
se percebe quando é colocado segundo o modo como afeta ao futuro da economia.
Uma rápida revisão dos aspectos de transformação social que estão subentendidos na
dinâmica manejados pela teoria indica alguns princípios de dinâmica do mundo da
economia que não se pode deixar de considerar. Seriam eles o multiplicador do
79
emprego, o acelerador da despesa, a causação circular cumulativa dos efeitos de
dinâmica e a entropia do sistema produtivo. A eles somaremos os efeitos da
concentração do capital na continuidade da acumulação, que é o modo de ver como os
diferentes efeitos da mecânica do processo deságuam em um processo econômico e
político, em que favorecem algumas mudanças necessárias ao desenvolvimento,
enquanto cerceiam outras e, em todo caso, que modificam as condições sociais e
políticas do processo de desenvolvimento.
O problema todo gira em torno da continuidade da acumulação, que é um pressuposto
inerente ao sistema do capital. A suposição que o processo de desenvolvimento pode
prosseguir é compatível com essa premissa de uma acumulação sem prazo para
terminar, mas é negada ou questionada pelo pressuposto de comportamento cíclico, que
acarreta aceitar como natural a hipótese do ciclo negativo que interrompe a acumulação.
A seguir, trata-se de estabelecer o desenvolvimento como movimento de auto-superação
da sociedade. Se esse processo consiste em superar inércias e reverter movimentos
negativos, desenvolvimento será superar tendências do subdesenvolvimento, onde os
ciclos negativos operam como vetores dissonantes do movimento geral do capital. As
crises obstruem ou tergiversam a trajetória do capital. Com essa percepção da realidade,
será preciso ver a gestão anticíclica da economia como uma dimensão inseparável da
política de desenvolvimento. Se o crescimento é oscilatório, se está sujeito a
movimentos de irreversibilidade e de entropia, a gestão da crise atual é parte de uma
política concebida em longo prazo. Além disso, se as crises apontam a novas condições
e objetivos para o crescimento da economia obrigam a refazer os horizontes de
desenvolvimento com que se trabalha.
Nesse contexto colocam-se os espaços de manobra em que opera a política econômica
reconhecendo um papel ativo ao Estado na fiscalização e na participação em grandes
empresas e estabelecendo padrões de eficiência junto com argumentos éticos que são
contraditórios com a premiação pela concentração do capital. O poder de fiscalizar tem
um aspecto aparente, mas pertence a uma realidade em que disputam espaço forças
políticas que controlam os meios formalizados da política.
80
Volta-se a uma questão essencial da dialética do desenvolvimento, que é a de combinar
os objetivos de aumentar o produto e distribuir a renda com os outros objetivos de criar
condições sociais e políticas compatíveis com esse objetivo. Será preciso colocar as
políticas anticíclicas como parte de políticas de desenvolvimento em longo prazo.
Este objetivo principal exige que se considerem quatro referências essenciais do
funcionamento do sistema produtivo, que são as de: (a) modificações nas condições
técnicas de uso do capital disponível; (b) modificações no quadro da ocupação total,
compreendendo a composição de empregos regulares e ocupações precárias; e (c)
modificações no contexto das relações de poder na condução da economia. Em síntese,
os obstáculos e as vantagens com que se conta para superar o subdesenvolvimento
mudam ao longo dos tempos da formação do capital e da conseqüente composição das
relações de classe. A análise das relações entre o poder econômico e o político envolve
uma dimensão de previsão que é incompatível com a visão mecanicista da economia
(Badaloni, 1989). Se, por um lado, as políticas determinadas pela compensação dos
ciclos geram efeitos que condicionam as políticas de desenvolvimento, estas, por sua
vez, causam efeitos sobre a composição da demanda, onde o acelerador da despesa
influi no comportamento cíclico da produção. As interdependências entre estas duas
abordagens de política dão um sentido historicamente novo à intervenção dos governos
nacionais na condução do grande capital. Torna-se, portanto, necessário examinar o
potencial destas novas políticas como instrumentos anticíclicos e de desenvolvimento.
Tanto as políticas anticíclicas como as de desenvolvimento são complexas e geram
alguns resultados previstos e outros inesperados, mas que em seu conjunto
correspondem a novos padrões de possibilidades de agir do Estado.
81
5. Alienação e ideologia na formação do capital.
As idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época. Marx71
Passaram os tempos em que a força de trabalho se submetia incondicionalmente às leis de mercado e também os tempos em que o Estado era prescindente em matéria de distribuição da renda. Raul Prebisch72
Preliminares
Esta pesquisa começa com a observação de que a alienação não é um estado senão é um
processo que desenvolve seus próprios modos de reprodução, incorporando e
modificando as instituições e as relações reais entre os capitais e os trabalhadores. À
medida que as relações de trabalho se tornam mais indiretas elas também desenvolvem
mecanismos diretos de controle que podem ser comunitários ou de auto controle. A
vigilância mútua entre os membros de corporações, a censura da mídia, o sentimento de
culpa promovido pelas religiões, são mecanismos eficazes para promover novos modos
e instâncias da alienação, que deverão ser examinados numa perspectiva emancipatória
não européia.
Os processos históricos da alienação
A alienação é o processo pelo qual se faz a ponte entre os modos de controle social da
sociedade patrimonial pré-capitalista e a sociedade capitalista avançada. Evoluem as
condições concretas e as referências simbólicas da alienação. Desse modo se constroem
as condições objetivas pelas quais se realiza a exploração do trabalho na produção
capitalista. Nas transformações do capitalismo e da sociedade moderna as condições da
alienação mudam junto com a organização social do capital, portanto, em consonância
com as condições objetivas de sobrevivência dos trabalhadores. No bojo dos
movimentos de assalariamento e de desassalariamento, foram quebradas as referências
de responsabilidade do Estado pelo emprego e pela renda dos trabalhadores e a filosofia
do neoliberalismo simplesmente deu uma explicação doutrinária para uma tendência
generalizada do grande capital de se desentender da renda da classe dos trabalhadores.
71 Karl Marx, A ideología alemã 72 Discurso de despedida no XXI período de sessões da CEPAL, México, 24 de abril de 1986.
82
A alienação quebra o sentido de solidariedade de classe dos trabalhadores, tornando-os
individualmente mais expostos às pressões do capital.
O reconhecimento da objetividade da alienação torna necessária uma revisão da teoria –
em seu sentido mais amplo de filosófica e social – pelo menos desde os rumos postos
pela obra de Hegel e seguindo pela de Marx para registrar os elementos concretos das
relações de produção que surgem nas transformações das sociedades de hoje. A
originalidade das novas sociedades ascendentes envolve composições do antigo com o
moderno, que não são parte dos processos das sociedades européias.. As condições
especiais de diferenciação social criadas pela colonização fizeram com que a alienação
se processasse concomitantemente de distintos modos, no plano da produção simples e
no da produção de alta tecnologia. A articulação entre as esferas da produção de alta
tecnologia e as de baixa tecnologia é a marca mais nova do modo operacional do grande
capital, que transfere custos e riscos para a produção periférica e garante lucros elevados
a baixo risco. Mas é preciso registrar a originalidade do grande capital que aproveita
vantagens das situações modernas e das arcaizadas.
Os processos da alienação são movimentos que se renovam, que mudam de forma
segundo o controle dos interesses do capital se traduz em novos elementos ideológicos
da produção capitalista avançada. Não se trata de mapear o mecanismo original da
alienação que sustentou as formas básicas de exploração na produção capitalista
industrial, senão de ligar a progressão dos movimentos de alienação com os da
organização social da produção. Deste modo define-se um tratamento não ideológico da
alienação, ou de ver a alienação como um componente de um processo histórico
concreto de formação de capital. Se ela começa como uma operação que se realiza no
plano da subjetividade, imediatamente se resolve objetivizada como uma estratégia de
luta pelo poder político na economia.
Ao ver a alienação como processo objetivo de poder torna-se necessário segui-la como
ela se realiza nos diferentes ambientes da produção, como se converte no circuito
economia->política->economia. Começamos por reconhecer que a alienação passa por
sucessivas e diferentes formas ao longo da história, correspondendo a diferentes
condições de organização social da economia e da política. Primeiro foi conduzida pelos
processos da colonização, passando de formas impostas pela força, pela dominação da
83
exploração econômica privilegiada a formas mais sutis de controle ideológico, com
mecanismos de valorização tais como símbolos de status da combinação de elementos
da política e da religião. Em diferentes dosagens, segundo o componente religioso foi o
catolicismo ou foi alguma das diversas variedades de protestantismo, em todo caso foi a
combinação de política e religião sempre o caldo básico da construção das estruturas de
poder que conduziu a alienação, operando principalmente sobre grupos sociais
ascendentes, que são os mais expostos a novas influências. O panorama social da
alienação torna-se e mesmo as formas tradicionais de alienação, como o trabalho
subjugado do meio rural, são penetradas de separação, tal como acontece com a difusão
de novos meios de comunicação sobre os grupos de baixa renda. O recrudescimento de
religiões sem teologia, ou de religiões involucionistas, constitui uma demonstração das
novas formas de irracionalidade que surgem nas brechas da racionalidade instrumental
do capitalismo desigual.
Esses movimentos de irracionalidade representam contradições da racionalidade
operativa com que opera o capital tecnicamente avançado mas que são funcionais à
racionalidade da reprodução orgânica do capital. Servem aos objetivos implícitos do
sistema de poder econômico e político, traduzindo-se em uma mobilização ideológica
que alcança os mecanismos de reprodução do poder. Nesse ponto não há como separar a
racionalidade econômica do capital de sua racionalidade política.
A alienação herdada
Há uma diferença insuperável entre o discurso da luta pelo desenvolvimento que brota
da consciência social da periferia do sistema mundial de acumulação de capital e o que
se forma como concessão, ou mesmo como cessão dos países detentores das posições
centrais dos movimentos de acumulação e de concentração do capital. O movimento
geral de acumulação e concentração do capital não só é desigual em tempo e espaço,
como e principalmente se realiza mediante a construção de diferenças sociais mais ou
menos prolongadas. A consciência social do desenvolvimento é a de uma luta pertinaz
para superar os processos do subdesenvolvimento, que ressurgem através do controle da
renovação tecnológica e do capital financeiro e resistem a interpretações simplificadoras
enquanto mudam constantemente de forma. A referência inevitável é a trajetória das
origens até o quadro de hoje. Significa tratar com as marcas das diversas versões de
84
colonialismo e dominação, compreendendo a escravidão, a servidão e a pobreza aguda
crônica generalizada.
Este sistema de poder opera através de um conjunto de mecanismos de alienação que
separam os trabalhadores de seu contexto original de identidade. O atual sistema de
poder representa a substituição do velho colonialismo por um sistema complexo de
dominação, cujo eixo é uma aliança do grande capital com os Estados nacionais
poderosos, com uma adesão das elites dos diversos países e um controle institucional do
poderio militar. A concentração internacional de poder se traduz em formações
nacionais interdependentes, que operam de modo interligado. Esta nova aliança torna
necessária uma criticas das estruturações políticas a partir do desempenho econômico.
A questão social da ideologia pertence à problemática da reprodução do mundo material
da produção. É um problema central do capitalismo numa época em que os modos de
funcionamento da sociedade do capital mostram maiores e mais complexos mecanismos
de irracionalidade. Como em tempo percebeu Lukacs, há uma trajetória do
irracionalismo, que se move desde um terreno filosófico até o da gestão direta dos
capitais aplicados. A rigor, há trajetórias interligadas entre tudo que se processa no
plano dos conceitos e da linguagem e o que se desenvolve no da realização de mais
valia e no que impacta na distribuição da renda. Se são as idéias da classe dominante
que predominam, é preciso perguntar quanto a classe dominante é consciente de seus
interesses, quanto seus integrantes agem como classe e quanto têm as competências
necessárias para cuidar de seus interesses.
A explicação histórica do processo do capital não pode prescindir dos componentes de
alienação e de ideologia, porque eles são os determinantes dos processos de poder que
ligam a esfera da economia com a da política e se tornam as âncoras de uma análise
social que com freqüência acede aos riscos e encantos do personalismo. Tampouco
pode substituir a análise do poder historicamente construído pela dos modos de
vivenciar o poder. Por isso não se irá muito longe se em vez de tratar de situações
históricas concretas de poder e dominação se desenvolve um raciocínio limitado a
referencias entre autores, onde a crítica é apenas uma discordância. Assim como a teoria
da Física se distanciou de experimentos concretos, a teoria do mundo da economia se
85
separou da ancoragem de referências a processos concretos e se satisfez com criticar
pensadores contraditórios com esse processo ou se refugiou em modelos simplificantes.
Ao reconhecer o papel ativo da ideologia na formação do sistema de produção a teoria
deve tomá-la como parte integrante da realidade social histórica, segundo ela está
integrada no mundo da economia e da política. Justamente, o que se cobra da
explicação da ideologia é estabelecer sua função na realização da esfera material e não
só na reprodução da própria esfera ideológica. Se a ideologia é o campo de
manifestação de idéias de classe, a alienação é o mecanismo que transforma as idéias de
classe em ferramentas de poder, que dão ao capital a capacidade de conduzir o processo
de captação de valor, isto é, de converter a mais valia em parte integrada do sistema
operacional do capital. Esse processo se realiza segundo a maturidade dos capitalistas e
de suas instituições para combinar a gestão do capital acumulado com a busca de novas
oportunidades para aplicar capital novo. Em todos lugares e momentos a ideologia
reúne os dois aspectos de refletir o conhecimento de um momento anterior do mundo
social e de reagir ao funcionamento do mercado onde operam. A ideologia é um reflexo
de condições de vida historicamente identificadas, pelo que não pode ser apenas o
discurso do campo imaterial da vida social, desprendido da movimentação do sistema
produtivo. O que liga os movimentos da ideologia com o plano das condições
individuais das pessoas é a alienação.
Neste esforço precisamos mais de uma análise do contexto histórico que das teorias,
mas não podemos prescindir de uma revisão delas, porque finalmente elas situam nossa
capacidade de ver os processos históricos. A reflexão sobre este tema traduz-se em um
exercício de análise comparada das obras de Hegel e de Marx e não na de um ou do
outro. O propósito de convalidação de Marx filósofo através de uma crítica
desqualificadora de Hegel perde a riqueza dessa complementaridade inerente ao
desenvolvimento da obra de Marx. São dois projetos pessoais de trabalho, em que o
segundo não poderia acontecer sem o primeiro, mas onde o primeiro construiu uma
noção de totalidade que jamais foi superada. A explicação da materialidade nas
transformações da sociedade moderna levou Marx a desenvolver uma crítica da teoria
de Hegel sobre o Estado, como parte de uma colocação maior da dialética da formação
86
social do poder, compactada em sua filosofia do Direito73. A descoberta da
complexidade do sistema socioprodutivo só se realizaria plenamente no primeiro
volume de O Capital, quando Marx inverteu a ordem ontológica da exposição em favor
de uma ordem categorial, numa manobra aristotélica, de apoiar-se na categoria
mercadoria que encerra duas armadilhas mortais. Primeiro, porque não existem
mercadorias individuais, senão elencos de mercadorias, onde o valor de cada uma delas
depende do das demais. Segundo, porque o conteúdo de trabalho de cada mercadoria
muda de modo inevitável, segundo o sistema incorpora tecnologia. Criticar Hegel seria
um passo necessário na direção de uma maioridade ontológica. Marx centrou sua crítica
nesse texto, mas não desconhece outras formulações anteriores de Hegel.74 Tornou-se
consensual entre os leitores de Marx que a afirmação do rumo de suas pesquisas começa
com uma ruptura com o idealismo de Hegel, de quem, entretanto, absorve o método
dialético e a visão histórica. A crítica de Marx a Hegel envolve uma combinação de
elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito central da dialética
hegeliana, a superação/subsunção representada pela expressão aufheben, que se
encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a contradição dada pela
inter-relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o processo do Estado do
processo da sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos Manuscritos depende
desse salto de raciocínio despregado na Crítica da filosofia de Hegel, de 43, em que a
disputa conceitual na verdade se revela como uma querela sobre a historicidade da
sociedade e do Estado. Nada a ver com a versão popularizada de uma inversão
superficial do uso do método dialético.
A querela de Mézsáros sobre a alienação
A categoria da alienação ocupa um determinado espaço na doutrina de Marx, que
recebeu diferentes leituras no campo marxista, divergentes mesmo quando parecendo
semelhantes. Desde logo, é preciso entender que a alienação em Marx é uma síntese
conceitual de um processo de desligamento do trabalhador com sua condição de
produtor, onde se registram a fragilidade de sua posição no mercado de trabalho.
Apresentam-se aqui comentários à Teoria da Alienação em Marx por Istvan Meszáros,
73 G.W.F.Hegel, Elementos preliminaries de uma filosofia do Direito, Lisboa, Presença, 1984. 74 Marx conhecia a Fenomenologia do Espitito e a Ciência da Lógica, mas devemos entender que não conheceu as Lições de História Universal, que só foram publicadas depois de sua morte.
87
que se coloca na chamada corrente historicista do marxismo, basicamente, seguindo a
obra de Georg Lukács, centrando esforços na explicação da ideologia na sociedade de
hoje. O objetivo destas reflexões é a teoria da alienação e não uma exegese da obra de
Meszaros, mas convém esclarecer que seu ensaio sobre a teoria da alienação em Marx
ocupa um lugar significativo numa seqüência de análise sobre o componente ideológico
do sistema social, que marca uma diferença fundamental frente a outras correntes de
pensamento que separam a subjetividade do sujeito historicamente consistente. Esse
debate tem uma trajetória especial no contexto do marxismo, que está em torno do
reconhecimento do sujeito como ser social e da determinação da personalidade como
decorrência do sistema em que a vida social se realiza.
Lukács geralmente é identificado como fundador do marxismo ocidental com seu ensaio
História e consciência de classe, mas é autor de uma notável leitura de Hegel 75 e de
uma importante análise crítica da ideologia enquanto parte do sistema social do
capitalismo. Especialmente, em seu último trabalho, que foi a Ontologia do ser social,
Lukács oferece uma análise da historicidade na análise de Marx, que envolve a
interação entre os componentes materiais e os ideológicos do processo social e que
desqualifica qualquer análise separada da ideologia. Meszáros retoma uma parte
importante da proposta de Lukács, mas se separa dessa tradição, na medida em que
omite uma análise histórica concreta. Usar experiências concretas, ou referir à
pluralidade histórica do capital, não significa sucumbir à maré da “economia nacional”,
que significa descartar a própria pluralidade da história e supor que todos os
movimentos do capital podem ser percebidos desde o centro mundial da acumulação. 76
Logicamente, toda essa especulação se remete à obra de Marx, em que se destaca a
importância de seus primeiros trabalhos na construção da crítica do sistema capitalista
de produção. Marx identifica o problema da alienação em dois momentos especiais e
diferentes de suas primeiras obras, que são sua crítica da filosofia do direito de Hegel e
o Manifesto Comunista. As teses desenvolvidas na crítica da filosofia do direito de 1843
foram resumidas e integradas no corpo analítico mais complexo que são os Manuscritos
75 Georg Lukács, El joven Hegel, Barcelona, Ariel. 1967. 76 A economia ortodoxa está, toda ela, fundada em pressupostos da economia nacional e trata dos temas da economia internacional a partir de uma visão de economia nacional. A internacionalidade do capital e a mobilidade do trabalho entram como campos adicionais que se exploram, mas cuja exploração não muda em nada a perspectiva da análise.
88
Econômicos e Filosóficos de 1844, que, por isso, passaram a constituir o corpo de
análise – sistema em status nascendi, como o denomina Meszaros – apesar de ainda não
terem incorporado a crítica histórica da materialidade do sistema do capital, que surgiria
com os Grundrisse. Nos Manuscritos já se encontram os elementos básicos de uma
teoria da exploração, que, entretanto, passa a incorporar os elementos daquela dimensão
histórica que permitirá contrastar o sistema capitalista de produção com seus sistemas
antecessores. A alienação passa a ver-se como elemento essencial da produção
capitalista, que se aprofunda à medida que a produção se torna mais indireta. Desde aí
fica superada a idéia de uma análise da alienação que não se fundamente em dados da
história e que não trate especificamente do capitalismo. Já no Manifesto o tema central é
a alienação imposta pelo capital, onde por um lado os trabalhadores são isolados como
pessoas e por outro lado são agrupados como operários. A alienação converte-se em
controle social.
Em ambos momentos, a noção de alienação surge como detecção de um processo social
concreto, que tem um pé no controle dos trabalhadores e outro pé no controle de umas
seções do capital por outras com a ajuda dos próprios trabalhadores. As duas formas de
controle variam ao longo do processo de acumulação, compondo situações em que as
posições das pessoas são incomparáveis com momentos anteriores do processo e onde
as pessoas são desvestidas de seu caráter histórico e podem ser substituídas ou terem
sua identidade apagada. A alienação atinge ao sistema socioprodutivo em seu conjunto e
não só àqueles que estão trabalhando hoje. No que pode ser o contrário da alegada
empregabilidade, o que há realmente é que as pessoas se tornam descartáveis, que sua
qualificação pode ser anulada, e junto com ela sua capacidade de pensar e agir de modo
autônomo.
A alienação é o processo que torna possível a exploração, portanto, não se limita à
esfera da ideologia. A grande força da alienação é que ela explica a energia que conduz
a produção capitalista através do sem sentido da acumulação. Istvan Meszáros realiza
uma exaustiva revisão dos fundamentos civilizatórios da alienação, reunindo suas raízes
ideológicas junto com suas pistas nos processos concretos da produção burguesa.
Constrói um importante modelo explicativo, que foi recolhido em suas obras
posteriores, especialmente em O Poder da Ideologia. É uma contribuição inestimável,
que, entretanto, nos deixa diante do problema crucial de distinguir as diferenças entre
89
identificar ideologia como parte da construção ideológica da produção capitalista, ou
como parte da progressão das contradições da organização social da produção burguesa.
Teremos que ver a alienação como uma força que encontra novas formas de expressão
no ambiente da produção moderna e no da produção ultra moderna.
O propósito de explicar a explicação da materialidade da sociedade moderna levou
Marx a desenvolver uma crítica da teoria de Hegel sobre o Estado, que é parte de uma
colocação maior do mestre da dialética sobre a formação social do poder, que está
compactada em sua filosofia do Direito77. Com o conhecimento que se tem hoje do
pensamento de Hegel em seu conjunto, que não estava disponível para Marx, impõe-se
visualizar o projeto de Hegel, em sua forma final, tal como se vê hoje. O objetivo final
de Hegel é uma teoria do poder na formação da sociedade moderna que passa por uma
economia política, mas que é, essencialmente, uma filosofia do poder. É necessário
ressaltar que Marx centrou sua crítica nesse texto, mas que não desconhece outras
formulações anteriores de Hegel.78 Tornou-se consensual entre os leitores de Marx que
a afirmação do rumo de suas pesquisas começa com uma ruptura com o idealismo de
Hegel, de quem, entretanto, Marx absorve o método dialético e a visão histórica, que
aplica a sistemas historicamente situados. No entanto, costuma haver muita
simplificação nesse argumento, atribuindo a Marx um tipo de crítica muito inferior ao
escopo de seu projeto intelectual. Pode-se identificar a raiz dessa crítica em um ponto na
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em que diz Marx “ A subjetividade éuma
determinação do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa. Em vez de
concebe-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza seus predicados e logo
os transforma em forma mística em seus sujeitos. [...] Hegel autonomiza os predicados,
os sujeitos, mas ele os autonomiza separados de sua autonomia real, de seu sujeito”79
A nosso ver, a crítica de Marx a Hegel é muito mais complexa que isso e envolve uma
combinação de elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito
central da dialética hegeliana, a superação/subsunção representada pela expressão
aufheben, que se encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a
contradição dada pela inter-relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o 77 G.W.F.Hegel, Elementos preliminaries de uma filosofia do Direito, Lisboa, Presença, 1984. 78 Marx conhecia a Fenomenologia do Espitito e a Ciência da Lógica, mas não poderia conhecer as Lições de História Universal, que só foram publicadas depois de sua morte. 79 Karl Marx, Crítica da filosofía do Direito, São Paulo, Boitempo, 2005, pp.44.
90
processo do Estado do processo da sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos
Manuscritos depende desse salto de raciocínio despregado na Crítica da filosofia de
Hegel, de 43, em que a disputa conceitual na verdade se revela como uma querela sobre
a historicidade da sociedade e do Estado. Na abordagem de Marx as transformações que
acontecem na esfera do Estado são parte integral das transformações da sociedade em
seu conjunto, inclusive, porque somente através da análise das interações entre o Estado
e a sociedade civil é possível penetrar na metamorfose política do capital.
Numa leitura linear da crítica de Marx, dir-se-ia que o Estado hegeliano separado da
sociedade reduz-se a uma realidade positiva, cujo único produto é a burocracia. De fato,
nesse momento do pensamento de Marx surge uma identificação crítica da burocracia,
cujo sentido de finalidade se diferencia do modo histórico do Estado e se torna um
aparelho da burguesia. Marx dedica algumas páginas à burocracia na Crítica da filosofia
em que se antecipou à temática de Weber, vendo, entretanto, o papel da burocracia
como instrumento de poder do capital. Mas não se pode esquecer que foi justamente
Hegel quem rompeu com o jus naturalismo 80 para erigir o direito como formalização
histórica. Qual será, então, o processo que desveste a condição histórica do Estado?
Marx focaliza sua crítica na objetivização do predicado feita por Hegel, que permitiu a
este último tratar o Estado como sujeito do poder, com um sentido de finalidade que é a
reprodução do poder do soberano, isto é, do monarca, por separado da legitimidade que
lhe é dada pelo povo.
\
Assim, essa crítica que começa como uma análise do processo da análise, torna-se uma
reivindicação do fundamento antropológico de processo do poder, onde surge o povo
como presença essencial da sociedade. O povo é o princípio ativo da dialética do poder.
Mas o povo não é uma entidade amorfa, não é uma multidão regida apenas por
solidariedades momentâneas, senão carrega uma história com processos próprios de
coesão e de conflito. O povo brasileiro interage com a história do Brasil. Faltará,
portanto, resolver o problema de ligar essa crítica do processo político do poder com a
materialidade da economia. Esta se transforma junto com a composição do capital e
com a das forças do sistema político.
80 Ver Norberto Bobbio, Quatro ensaios sobre Hegel
91
Esse será o programa de trabalho da crítica da Economia Política, que não pode se
eximir de enfrentar a inter-relação entre os processos pretéritos e os atuais. A
historicidade da análise social da economia é uma qualidade a ser preservada e que
permite acompanhar as mudanças de composição e de rumo do sistema produtivo.
Há uma diferença radical entre o papel do descobrimento da teoria da alienação na
formação do corpo de idéias de Marx e o significado que lhe é atribuído na leitura de
Meszáros. A proposta de Meszaros compreende uma identificação do sujeito da análise,
que, afinal, é sujeito do processo de reflexividade que surge no contexto da sociedade
burguesa, que é esta consciência social crítica. A identificação do sujeito é um processo
que extroverte as diferenças de situação das pessoas por sua identidade como
trabalhadores ou simplesmente como pessoas – o que remete essa análise ao corte
antropológico do contexto social. Para Marx, tal como ele coloca em sua crítica da
filosofia do direito de Hegel e como desenvolve na Ideologia alemã, o sujeito se realiza
mediante a práxis e esta é a matriz de que parte Lúkacs na sua História e consciência de
classe. A derivação constante de práxis – identidade – práxis é o fundamento dialético
do movimento ideológico contra-hegemônico que situa a representação do trabalho no
processo do capital
A questão é que nessa análise social há um humanismo que é mais que um humanismo
ético, porque qualifica o humanismo de processos sociais específicos. Nessa qualidade,
entra o trabalho de Meszáros sobre a questão do judaísmo , que ele trata como uma
marginalidade e como uma tradição de individualismo e independência. Observe-se que
no estudo de Meszáros se cruzam duas vertentes de leitura dessa marginalidade, que lhe
permitem tratar o judaísmo como fonte de liberdade. A cultura oficial será uma prisão
cultural, porque se converte em imposição irracional de uma determinada forma. Por
exemplo, o formalismo metrificado da poesia francesa, ou o viés empirista da filosofia
inglesa. Marginalidade significa dispor de liberdade para pensar os processos sociais
além de seu enquadramento atual, por isso, em condições de expor seus fundamentos
ideológicos.
Com a teoria da alienação se questiona a combinação do movimento concreto de
separação do trabalhador do processo de produção com o movimento de transfiguração
ideológica do processo produtivo em seu conjunto, que reverte sobre todos seus
92
participantes e não só sobre os trabalhadores, que são vitimados por essa separação. A
alienação compreende processos da produção material e processo simbólicos, em que o
controle do universo simbólico passa a ser manejado como uma mercadoria colateral
que se torna essencial ao capital, que é a publicidade. A alienação é um movimento
gerado pela transposição do poder do capital para a esfera do trabalho, onde ele passa a
reger o modo como as pessoas vêm a ser trabalhadores funcionais à reprodução do
capital, ou como protagonizam comportamentos de resistência e procuram se emancipar
da tutela do capital.
A renovação do debate sobre a alienação
O trabalho de Meszaros mostrou a necessidade de reconstruir o debate sobre a
alienação, agora, dizemos, incorporando-o à critica da colonização. O essencial do
processo da alienação é que o envolvimento progressivo da alienação supera os
horizontes de percepção dos participantes do processo de poder, dando-se que o escopo
da alienação é o do nível histórico do processo e não o da situação de cada trabalhador
no processo. As condições de alienação variam segundo os integrantes da sociedade são
atingidos por movimentos gerais do capital, tal como pela difusão da mídia eletrônica,
ou por estratégias específicas do grande capital. Logicamente, pesam as iniciativas dos
diversos grupos para ampliarem seus espaços de poder, tal como acontece com os
grupos de rendas superiores, que usam sua educação e sua mobilidade para se
associarem ao bloco de poder. Em síntese, o processo de alienação é um aspecto
essencial da sociedade do capital não se restringe às condições de pessoa alguma em
particular. Trata-se de um traço essencial da sociedade do capital e não de pessoas.
Por isso, e não por se tratar em geral de um contexto histórico em que mudam os
significados das relações de produção, é preciso não perder de vista as alterações
dialéticas do arcabouço conceitual, que tornam necessário reconhecer que acontecem
mudanças de significado de conceitos aparentemente invariantes. Conceitos tais como o
de indústria, usado por Meszaros como invariante, deve ser substituído pelos conceitos
de grande capital e de pequeno capital e com uma extensão da análise do aparelho
produtivo, que reconstrua a ligação entre as formas de produção e os mecanismos
políticos e operacionais do capital. Ao escolher a denominação indústria Meszaros cai
na armadilha que foi evitada por Marx, que consiste em confundir o modo técnico com
o modo de organização social.
93
O modo técnico, que é a produção industrial, se resolve mediante diferentes escalas de
tamanho dos diversos capitais, cuja organização é a produção industrializada. A
organização social é a que liga a grande indústria ao grande capital e ao capital
financeiro e que gera relações de trabalho que aprofundam a alienação. Cabe aqui,
portanto, a observação de Sartre, que demarcou a diferença entre a visão progressiva-
regressiva, que está no centro da prática da dialética desde Hegel; e a visão geométrica
da estrutura conceitual, que se reporta apenas a um movimento do processo. 81 No
mesmo caminho, Maurice Godelier lembra que “ os conceitos de economia são,
segundo Marx, representações do visível”. 82 Na economia crítica os conceitos
aparecem com seus contrários: emprego vs desemprego, lucro vs salário etc. O que não
é visível são as relações sociais de produção, que estão por trás do emprego e do salário.
A distinção aristotélica entre aparência e essência está na raiz desse pensamento crítico.
A critica de Marx é uma combinação do que é visível com o que não é visível.
Ao procurar explicar o processo de alienação através de um jogo de posições
aparentemente fixas, Meszáros revela situações de contradição, mas compromete o
poder explicativo da análise e deixa em aberto uma questão, de método e de
interpretação, relativa à relação entre os níveis de abstração com que se desenvolve a
análise e a generalidade dos problemas. Assim, diante dessa percepção dos problemas
históricos da alienação, cabe indagar quanto se pode generalizar sobre a questão da
alienação na sociedade de hoje sem perder a capacidade de registrar a pluralidade de
situações concretas em que ela se apresenta? Esse é um problema ao qual
inevitavelmente se chega quando se reconhece que Marx desenvolveu seus conceitos
sobre uma fundamentação histórica concreta. A essência da teoria marxista da alienação
é a captação desse movimento histórico que substitui posições e erode a identidade do
ser social.
A renovação das condições históricas da alienação
81 “ Desde que se introduz a temporalidade, deve considerar-‐se que no interior do processo temporal o conceito se modifica. A noção, pelo contrário, pode definir-‐se como o esforço sintético para produzir uma idéia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas, e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas.” (1965). Cabe agregar que as modificações no quadro conceitual alcançam o significado ou alcançam o conceito enquanto significante. 82 Maurice Godelier, (1965).
94
O tempo da cooptação local e direta de trabalhadores e demais participantes mal
definidos do mundo da produção por parte de representantes simples do capital já
passou e os processos de alienação passaram a ser conduzidos por sistemas complexos
que operam de modo indireto. A renovação dos mecanismos de alienação corre por
conta de transformações do sistema produtivo em seus aspectos organizacionais e
operacionais. No decorrer da segunda metade do século XX os movimentos do grande
capital alteraram os processos de alienação. A universalização de procedimentos que
veio junto com a globalização financeira e com a condução da hegemonia pelas
multinacionais, impôs padrões culturais que se identificam com os das nações que
lideram no eixo tecnologia-financiamento. Os sistemas e as organizações que se
distanciam desses padrões passam a ver-se como desvios de uma racionalidade
inquestionável que deve ser incorporada por todos. Daí surge uma suposta reversão da
alienação, em que ser alienado é não estar incorporado na alienação geral de todos 83.
83 Nada mais oportuno para descrever essa inversão da alienação que o Ensaio sobre a cegueira de José Saramago.
95
6. Criação, perda e recuperação da totalidade social
No todo nada há de vazio ou de supérfluo. Empédocles
Os modos do todo
Como colocou sinteticamente Aristóteles, o que se cria já nasce com a marca da
corrupção, pelo que o que se detecta como definido do futuro já é parte integrante do
passado. A imanência da destruição é o que assegura O mundo social representa um
desafio ao conhecimento nos dois sentidos de penetrar na problemática da sobrevivência
e de auto-descobrimento do sujeito do processo social. Perante esse amplo desafio, as
ciências sociais se dividem em torno do tempo e de uma visão do mundo social que se
forma desde as diferentes perspectivas daqueles que se identificam mediante projetos de
poder sobre outros e dos que não participam desse tipo de projeto de poder. A totalidade
será um atributo de um determinado espaço de tempo histórico e corresponderá a
situações históricas específicas. Por isso, as tentativas de síntese ficam do processo
social ficam aprisionadas em um determinado projeto de história de época, como
aconteceu com Polanyi (2000) e com Elias (1994), apesar de que o primeiro pretendeu
oferecer uma ancoragem genuinamente secular para a atualidade enquanto o outro
procurou renovar no mapeamento da pluralidade de dimensões fugazes do que é secular.
A indagação sobre o significado de totalidade no campo social existe desde que há
grupos estáveis, mas a ascensão da burguesia projetou um novo conceito de totalidade
que se realiza sem rupturas sociais iniciais. A compreensão do mundo social sugere uma
incursão nos conceitos de todo e totalidade historicamente construída que é a grande
definição do esforço critico de Marx, corporificada no conceito lukacsiano de histórico
concreto. O mundo social é uma totalidade ou é uma totalização parcial e provisória que
se modifica? Ou é uma totalidade composta de totalidades e insondável, como
infinitude, como propôs Nicolas de Cusa. É preciso começar por distinguir o todo em
sua objetividade e a totalidade como uma propriedade do todo. O todo é móvel porque
se auto-renova e seus elementos se repõem e suas perdas de energia sempre se
compensam ou ele não será o todo. O acesso ao todo é sempre parcial e diferente para
uns e outros e segundo onde eles se encontram. Todos são iguais no caminho ao todo,
mas alguns sabem disso e outros ainda não. A totalidade é a qualidade do todo, mas ele
96
mesmo não tem qualidades nem atributos, que seriam sinais de parcialidade. O contrário
do todo seria o nada, mas como o nada só pode existir como conceito o todo não tem
contrário.
Na esfera social o caráter seletivo das totalizações dá lugar a uma totalidade positiva, de
tudo e todos que são reconhecidos como incluídos e seu negativo, que é a totalidade dos
excluídos. O progresso do capitalismo produz diferentes momentos de exclusão, com
diversos tipos de excluídos e uma ordem do mundo da exclusão que se passa a ver como
o mundo da informalidade. Os excluídos não são um universo pulverizado de
indivíduos, mas controlados pela ordem oficial e e carregam ordens anteriores ou criam
sua própria ordem como meios de defesa.
A totalidade social como parcialidade e como circunstância
Como mostrou Lucien Goldmann (1967) a noção moderna de totalidade foi gerada pela
sociedade urbana ascendente do capital, correspondendo à presença da burguesia como
principal força unificadora dos espaços nacionais. A totalização burguesa ligou a noção
de sociedade à de mercado. Associou as liberdades civis a participação no mercado,
logo convertendo os cidadãos em consumidores, isto é, transferindo os direitos das
pessoas às mercadorias. Desse modo definem-se pautas de ação com noções próprias de
tempo.
O reconhecimento da categoria colonização impõe considerar uma totalidade a ser lida a
partir da separação essencial entre os componentes da sociedade partida que se reproduz
a partir de sua divisão interna inicial. O movimento da colonização se fundamenta em
um principio separador que supõe diferentes condições de tempo para colonizadores e
colonizados. A noção moderna de totalidade foi gerada pela sociedade urbana
ascendente do capital, que ligou a noção de sociedade à de mercado e associou as
liberdades civis à participação no mercado e onde se definem suas pautas de ação, com
sua própria noção de tempo. É uma totalidade da sociedade burguesa, onde prevalece o
pressuposto de participação universal na produção e no consumo. Uma totalidade que
surge de um ambiente de conflitos e consensos de interesses. O mercado é o ambiente
dos negócios mediante os quais esses interesses se comunicam. O mercado
perfeitamente livre seria tão utópico como uma sociedade sem pressões de poder. As
97
desigualdades de poder não seriam um desvio nessa realidade senão um traço essencial
do mundo da economia burguesa, na qual os processos do capital são sempre
temporários.
A distinção entre o que é permanente e o que é temporário denota sempre o
reconhecimento de diferentes escalas de tempo, com processos cuja duração pode
revelar-se maior ou menor que o previsto, em função do aparecimento de imprevistos.
Por exemplo, o uso maciço de carvão continua por muito mais tempo depois que esse
combustível foi declarado técnica e ambientalmente inadequado.
A formação de uma totalidade social é um processo sujeito a avanços e retrocessos, em
que os modos de incluir e de excluir pessoas estão expostos a alterações em um mesmo
padrão de organização, tal como aconteceu no contexto do escravismo, com o aumento
do número de escravos que se tornaram trabalhadores a soldo e na produção industrial,
que passou a substituir salários por contrato por peça. Dessa realidade surge a
percepção de uma totalidade de processo e não de estado, de uma totalidade constituída
de combinação de movimentos e não de situações.
A apresentação de um conceito de totalidade social tem duas raízes. A visão de uma
totalidade cósmica copernicana, que transmite um sentido de unidade de corpos
diferentes e uma totalidade no princípio de autoridade, onde o fundamento religioso
cedeu ao político e onde o centro do poder monárquico entrava um crescente conflito
com os interesses do capital. A secularização do poder resulta em uma requalificação do
tempo (MARRAMAO, 1995) que praticamente exclui as perspectivas de futuro
indeterminado e inclui uma continua transformação do passado. Trata-se da mais
profunda revolução do mundo moderno, que além de apresentar novas categorias do
tempo desenvolve nova relação entre o tempo e o ser, tanto no plano do ser puramente
ser, como em Heidegger (1974) como no plano do ser social como no hegelianismo de
Lúkacs 84. Há, portanto, uma diferença entre aquela percepção de totalidade emanada da
harmonia celeste e a do meio social conflitivo.
84 O fundamento hegeliano da Ontologia do ser social não só não pode ser negado como deve ser explorado como uma dimensao do discurso de Lukacs que começa com seu monumental Jovem Hegel.
98
A noção de totalidade se forma do reconhecimento de elementos de solidariedade que
garantem a coesão do conjunto social. Na América em geral ela se forma através de um
processo colonial que se faz às custas da destruição das sociedades indígenas
(RIBEIRO, 1996), com uma gradual diferenciação do projeto original de poder e
adotando modos de organização pré-determinados pelas formas de produção, mineiras
ou rurais, com suas correspondentes formas de comércio. Historicamente, surgiram
núcleos que combinaram uma organização local com uma articulação externa e as
sociedade “regionais” evoluíram para situações nacionais através de processos de
supremacia interna de poder econômico e controle institucional, que representaram
novos modelos políticos diferentes dos europeus colonizadores. A totalidade nacional
demandou soluções de composição de regiões fortemente diferenciadas, tal como
aconteceu nos países de grande extensão territorial e de hegemonia de cidades nos
países de pequena extensão territorial.
A construção de uma totalidade social no ambiente latino-americano correspondeu a
uma variedade de possibilidades de Estados nacionais, com as peculiaridades de
sistemas de poder econômico e social. O principal esteio do sistema político foi o poder
rural que sustentou uma classe dirigente, diferentemente do sistema da mineração que
permaneceu sob controle de interesses internacionais. Essa classe internamente
poderosa mas dependente do comércio internacional teve que se adaptar a mudanças no
esquema do mercado e na conseqüente estruturação do poder político. Oportunamente a
classe dos proprietários teve um papel decisivo na produção de uma ideologia de
conservadorismo tradicionalista que se projetou nas forças armadas, transformando-as
em tropas de ocupação internas, identificadas com as grandes potências. Esse processo –
que ainda está a espera de uma explicação mais completa – foi o retrato fiel dos
movimentos autoritários das décadas de 1960 a 1980.
Historicamente, a classe dos proprietários tornou-se o eixo de um processo de extensão
dos interesses do grande capital mercantil, com seu projeto de induzir a produção das
mercadorias que pretende trocar. Os proprietários desempenham o papel primordial de
controlar a força de trabalho necessária ao funcionamento do sistema. No
desenvolvimento do sistema mercantil o papel dos proprietários teve que mudar para se
adaptar às transformações do sistema de financiamento e às mudanças nas condições de
mobilidade dos trabalhadores. Assim será preciso distinguir entre o papel funcional dos
99
proprietários e o rentismo no sistema produtivo em seu conjunto. A classe dos
proprietários torna-se o lócus de um processo de diferenciação de interesses no bloco
dominante porque detém os meios políticos do controle do poder, porém perde espaço
para os interesses mercantis que, além de deter as vantagens de controle do
financiamento da produção ficam com o controle dos acessos a mercado. A classe dos
proprietários gera a elite que adiante conduz a atualização do bloco de poder, mas cria
também representantes contestatórios, estimulados pelas crises, pela espoliação do
comércio
A percepção de totalidade sempre foi o ponto de partida de um pensar independente e a
totalidade social, desde o logos à energéia e à praxis, é a marca de pensar o mundo
social como um coletivo dotado de vida própria e de uma subjetividade construídas na
história. A totalidade social se forma continuamente através dos mecanismos de
inclusão e de exclusão de pessoas e de grupos segundo eles ganham ou perdem posições
no sistema de relacionamentos que perfazem esta totalidade denominada de sociedade.
Primeiros os bruxos, depois os artesãos especializados e mais tarde os operários
perderam posição, salário e status na sociedade industrial moderna. A ruptura entre
capital e trabalho estabelece uma distinção entre as pessoas que são identificadas como
detentoras de controle de capital e que dependem de sua capacidade de ofertar trabalho
desejado pelo capital. A estruturação do mundo social em classes estabelece uma
abrangência e regras de inclusão, segundo os grupos realizam a passagem desde os
movimentos mecânicos do trabalho repetitivo para as inferências em defesa de
interesses e a conseqüente formação de consciência social.
A consciência do trabalho é uma forma de subjetividade que se desprende da esfera
mais simples da sobrevivência e que se projeta como potencialidade sobre os
relacionamentos que se definem sobre as progressivas situações de necessidades e de
escolhas criativas de tempo retirado das tarefas de sobrevivência. Assim como o
trabalho simples não é comparável com o complexo em momento algum do processo
produtivo, as situações do trabalho tornam-se incomparáveis ao longo do tempo.
O potencial de autonomia do trabalho negado ao capital é um aspecto essencial para
quem trata de transformações atingida por formas de dominação coletiva como a
colonização. A observação cobre iniciativas na esfera da economia doméstica e que
100
transcendem à escala de mercado local em feiras livres e em artesanato, assim como
empreendimentos que se convertem na esfera local articulada com escalas mais amplas
de mercado, portanto, que em seu conjunto representam trajetórias de formação do
sistema produtivo na perspectiva do trabalho que interagem na totalidade social. O
capital trouxe um sentido de totalidade forçada em que todos são constrangidos a estar
à disposição das opções de emprego oferecidas pelas iniciativas do capital, o que
significa que estão igualmente expostos ao desemprego determinado pelas opções de
tecnologia e organização preferidas pelos capitais e não têm como se protegerem das
tendências de desemprego seletivo e dirigido. É uma redução do problema da ocupação
aos termos da produção capitalista. Mas como os rejeitados pelo sistema não se
autoeliminam – exceto quando emigram – o que acontece de fato é uma outra regra
geral do sistema, pela qual a perda de uma ocupação remunerada leva a estratégias de
busca de renda real alternativa.
No entanto, como essas estratégias divergem da lógica da reprodução conduzida pelo
capital, têm que prosperar segundo outras trilhas de formação de renda e patrimônio. A
análise urbana de cidades latino-americanas mostra como se organizam processos de
formação de patrimônio a partir de moradias mínimas em favelas, tanto pela expansão
dessas habitações como pelos negócios imobiliários que se desenvolvem nos circuitos
de baixa renda 85. A tendência a que as coisas se processem desse modo é reforçada
pela concentração do capital que condiciona o nível e a composição do emprego nos
diversos setores da economia à demanda de força de trabalho pelo grande capital. As
relações técnicas entre indústrias exprimem interdependências de emprego que indicam
como as indústrias de grande porte e de alta tecnologia transmitem impulsos diretos às
demais indústrias ou como induzem seu comportamento através de controle financeiro.
O campo social é sempre uma totalidade governada pela experiência, onde a
identificação do homem surge de sua dupla relação direta com os demais e de sua
relação indireta com o conjunto das experiências reconhecidas. A vida social envolve
construção e desconstrução constantes, e quem o domínio da memória é uma vantagem
85 Há muitas referências a serem aduzidas sobre experiências de pesquisas em cidades latino-americanas. Começamos por referir ao trabalho pioneiro de Larissa Lomnitz sobre os modos de sobre vivência de grupos marginalizados em poblaciones na Cidade do México e vamos referir também a pesquisas em Salvador em bairros como em Pau da Lima e Suçuarana na década de 1990, quando pudemos constatar esses circuitos de negócios.
101
e um modo de poder. O reconhecimento da totalidade é um movimento positivo que,
entretanto, revela suas contradições no que limita a totalidade ao horizonte da
totalização realizada pela expansão desigual do capitalismo. Como pensar uma
totalidade social que decreta a inutilidade dos rejeitados? A crítica do desenvolvimento
desigual é a mesma do modelo de civilização que se fez sobre essas progressões de
desigualdade. Conduzir a polêmica sobre o desenvolvimento como um problema da
civilização moderna do capital envolve o compromisso implícito de ir ao fundo dos
processos geradores de desigualdade.
O fundamento da questão é o controle da força de trabalho, que tem sido alcançado
mediante a desorganização dos sistemas anteriores e a pilhagem do trabalho. A
totalidade no universo da burguesia seria necessariamente contraditória e conteria o
germe do conflito de interesses que em primeira mão seria entre capital e trabalho, mas
que se manifestaria em conflitos de interesses entre os capitais sempre em pugna por
posições vantajosas em mercado. Nesse movimento, o concurso do Estado foi essencial
desde os governos conservadores da era pós-napoleônica até os atuais neoliberais sob a
mesma fórmula de contratos públicos para empresas com influência política.
A questão efetivamente consiste em que o nível e a composição do emprego formal
estão determinados pelo mecanismo do emprego criado pelo capital, onde há uma
relação orgânica entre o emprego formal e o universo das demais atividades que se
designa como informais. Logicamente, para aqueles classificados como informais essas
atividades não são informais nem dispensáveis. A informalidade é uma falsa definição,
que deve substituída por outra, que seja capaz de reconhecer a diferença entre o que se
apresenta como custo social da reprodução da mão de obra para a economia na visão do
capital e o que se enfrenta como custo da defesa da renda familiar para os trabalhadores.
A dominância é a função do poder extravasado sobre outros, pelo que é uma situação
temporária de poder, de duração e formas variáveis, que se assenta sobre uma
combinação de imposição e subserviência, decorrente de uma composição de meios
materiais e ideológicos com que se constitui o sistema produtivo. A dominância está
sempre sob a pressão das contradições de interesse incorporadas no modo de
funcionamento do sistema. No mundo contemporâneo a dominância é resultado de uma
combinação de poder econômico e político, conduzida por uma aliança de interesses
102
privados com os Estados nacionais, que torna ingênuas as chamadas políticas de
privatização.
A recuperação da totalidade social Nada muda mais depressa que o passado. William Waak
A rigor, a recuperação da totalidade social surge da eclosão de movimentos sociais que
concretizam a presença de segmentos sociais alijados do cenário do poder pelo
colonialismo e por suas derivações. Significa uma totalização que inclui a pluralidade
antes negada. A atualização do sistema mundial do capital tem se feito às custas de
enormes perdas em guerras e em crises de ajuste entre a reprodução do sistema
produtivo e do capital financeiro especulativo. A transferência de custos sociais aos
trabalhadores – na forma de contenção dos salários e de desemprego – veio
acompanhada de contradições no centro da supremacia mundial, com diferenças de
interesses entre os EUA e os países europeus, que já se definia no relativo aos conflitos
do Oriente Médio, mas que se tornaram ostensivos no relativo a relações com nações
ascendentes, especialmente com a China. A unidade do sistema torna-se, de repente,
questionável quando há divisões de nações reconhecidas e quando as condições de
associação entre nações mudam, oscilando entre relações diretas e o uso de órgãos
internacionais que funcionam como espaços de negociações indiretas. Segundo
situações transitórias que aparentemente são flutuantes, mas que estão ancoradas em
preceitos de longo prazo, as nações variam entre uma ordem colegiada como a União
Européia e uma imposição regional como são as relações dos EUA no hemisfério norte.
Conceitos tais como os de Europa e de América Latina designam realidades em que a
totalidade nacional se vê como um contexto processual, em que conflitam forças
unificadoras e forças dispersivas, portanto, cuja solidez varia de um caso a outro.
A substituição do mundo colonial por um mundo pós colonial é muito recente e não se
completou, já que o sistema de poder pós-colonial, chame-se de hegemonia ou de
supremacia, herdou vários dos elementos de controle do trabalho gerados naquele
ambiente mas voltou-se contra eles quando passou a exercer poder em demitir e em
conter os salários dos grupos de média e baixa renda, ao tempo em que defende
ostensivamente o direito de pagar quaisquer cifras que julgue conveniente aos gestores
do grande capital.
103
O movimento de recuperação da totalidade social é produto das alterações do mundo
político que se desdobraram a partir das guerras de independência, tanto das bem
sucedidas como das mal terminadas, que deram voz a povos até então percebidos apenas
como reservatórios de força de trabalho. Nesse contexto as propostas de políticas de
desenvolvimento apareciam como outorgas dos países desenvolvidos, dirigidas para
resolver problemas de bem estar mas não contemplam realmente a rejeição da
desigualdade e preservam os mecanismos de dependência ideológica. O “perigo” latente
representado pelas ex-colônias – países que foram criados como colônias ou que foram
colonizados – apresenta-se de diferentes modos segundo são aliados cronicamente
convenientes como a Índia ou nações essencialmente suspeitas como qualquer nação
islâmica, dadas as tradições do medo medieval da expansão islâmica. A grande fratura
da totalidade ocidental que se formou da quebra do princípio do poder imperial romano,
que jamais foi completamente apropriado pelos projetos medievais de poder de
inspiração germânica (D’Hondt, ; Le Goff, ) deixou o espaço o espaço que foi invadido
pelo impulso unificador islâmico. A referência unificadora representada pela Igreja
tornou-se logo contraditória com os projetos nacionais de poder referendados por direito
divino e em conflito com a religião oficial organizada. A principal ameaça representada
pelo islamismo é justamente sua unidade interna, que permite tratar com uma totalidade
de todo o corpo social.
O colonialismo criado pelo capital ascendente desenvolveu formas de separação social
que se projetaram ao mundo do capital industrial através das diferenças entre o centro e
a periferia da acumulação, onde o centro é conduzido pelo grande capital de alta
tecnologia e a periferia é comandada por uma composição de grande capital de baixa
tecnologia com Estados nacionais fracos. O mundo pós colonial torna-se a um tempo
uma transição entre o mundo politicamente ungido pela religião e o mundo pós
Revolução Francesa, legitimado pela sociedade de classes e despojado da legitimação
religiosa. Mas sua autenticidade fica em jogo e a consistência dessa totalidade torna-se
incerta. O mundo do colonialismo do capital industrial veio a configurar uma ordem
internacional conduzida por uma tensão entre interesses de grande capital das
metrópoles e sistemas pré-industriais de produção de matérias primas que envolveram
combinações de produção primária – extração, agricultura ou mineração – com negócios
104
que combinavam indústria e comércio 86. A nova totalidade social é a dos processos da
nova sociedade desigual, que gerou suas próprias regras de inclusão e de exclusão. Os
trabalhadores de classe média não são mais obrigados a permanecer em seus empregos
iniciais, mas passaram a lutar para preservar seus salários e seus postos de trabalho, para
permanecerem em empresas que cobram lealdade de seus empregados, mas trabalham
com estratégias de contenção de salários e controle do tempo de permanência dos
empregados na empresa. Na nova totalidade social a incerteza se distribui
desigualmente, junto com diferenças do sistema educativo, que funcionam como
divisores de águas dos movimentos de inclusão e de inclusão nos circuitos de altos
salários e empregos garantidos.
O processo da desigualdade opera simultaneamente no plano internacional e no plano
interno de cada país, configurando uma separação entre os que têm renda e e mobilidade
para obterem renda e os que estão constrangidos a aceitar as opções de trabalho
disponíveis. Há uma questão relativa a uma totalidade definida pela impossibilidade de
poder concomitante com outra, formada a partir das contradições e convergências da
formação social. Nada mais longe da macroeconomia baseada em cifras globais de
procura e oferta.
86 Inserir nota sobre a visão marshalliana de negócios em diversos setores
105
7. O humanismo negativo do capital
Uma antropologia da história
Assim como a visão dialética da história tornou inevitável uma sociologia como disse
Marcuse, a visão histórica do mundo social levou a uma antropologia crítica que nada
tem a ver com a antropologia cultural nem com a do resgate de etnias. A construção do
alto capitalismo é um processo de despersonalização das decisões que em seus últimos
resultados é um movimento de desumanização do mundo do capital. A antropologia
imanente em Marx de que nos dá conta Mészaros, é a resposta da história de classes que
se abalança no interior dos movimentos do capital para desenhar as grandes
insatisfações e decepções da época do alto capitalismo e do capitalismo avançado.
A distancia entre o capital e o trabalho
As atividades em sociedade são realizadas por pessoas que nem sempre são percebidas
ou reconhecidas com o significado pleno que esse termo representa. No mundo
econômico do capital há uma série de processos que desmontam o significado histórico
da pessoa como e enquanto representativa de humanismo, que é substituído por aspectos
funcionais dos indivíduos ou por sua afiliação a aparelhos ideológicos tradicionais, tais
como igrejas ou partidos políticos fisiológicos. Estes funcionam como sistemas de
poder e de reconhecimento, enquanto os anteriores são como aparelhos de resistência à
perda de identidade conduzida pelos processos de controle social realizado pelo capital.
As referências pessoas ou indivíduos são pólos de significância na sociedade do capital,
onde os aspectos externos e os internos da individualidade são reduzidos por critérios de
classe social utilizando argumentos estamentais associados a preconceitos herdados do
colonialismo escravista. A grande contradição do capitalismo de priorizar o
individualismo e cercear a individualidade impregna o sistema em seu modo
operacional e em sua ideologia de poder. Falta voltar a sua base material que são
pessoas.
A atividade econômica é realizada por pessoas que aparecem como integrantes de
diversos grupos com variados graus de permanência, com condições pré-determinadas
106
de associação das quais se separam quando alcançam condições favoráveis de
mobilidade. A identidade das pessoas na qualidade de trabalhadores depende de
condições internas e externas a suas atividades; e sua continuidade na qualidade de
trabalhadores depende de uma relação incerta e obscura entre a situação de estar
ocupado ou desempregado, bem como de depender de situações erráticas de mercado
para planejar a vida profissional. Na relação entre identidade e consciência de classe a
precariedade do emprego tem um papel decisivo na determinação de formas básicas de
solidariedade e a sobrevivência é atribuída ao sucesso individual. Não é que haja
relações líquidas entre pessoas sólidas, senão que os traços de identidade das pessoas se
tornam menos nítidos e que as relações entre as pessoas reflitam o clima defensivo em
que elas vivem.
A questão relativa aos interesses aflora através da erraticidade da renda. No atual
mundo desigual e disperso do capital, a preservação dos interesses do capital em seu
conjunto e independente de quem sejam seus integrantes, depende de uma centralidade
do interesse individual que corresponde a uma identificação da esfera privada com a da
individualidade e sublima a qualificação da condição das pessoas pela exploração delas
mesmo como trabalhadores.
A continuidade do capital depende de uma apropriação maciça de valor, que tem sido
obtida mediante exploração, que é uma captação de valor que não beneficia os
trabalhadores na escala de seu esforço. As duas leis básicas de alienação e exploração
constituem um conjunto que é administrado através da divisão do trabalho e do controle
dos usos de dinheiro e de tecnologia. Subjaz que o processo do capital trata com a
individualidade genérica mas ignora pessoas e empresas concretas. Significa, também,
que a sobrevivência de uns e outros só é necessária no que eles são funcionais à
reprodução do sistema.
Irracionalidade e crise. Os efeitos da concentração de capital em termos de uma
crescente instabilidade do sistema socioprodutivo significam uma exposição inevitável a
tendência à crise, levando a uma nova leitura do problema da irracionalidade do
movimento do capital. Nessa perspectiva, são dois aspectos complementares de crise
que se cruzam: a intermitência ou o encadeamento de movimentos cíclicos e o perfil
estrutural da instabilidade do sistema, evidenciado pelos momentos de queda da
107
demanda, mas que devem ser procurados no modo como as crises se formam, que no
perfil de cada uma delas em particular. A diferença entre eventos específicos de crise e
processos geradores de crise está na raiz do funcionamento do sistema, em que a lógica
da reprodução do capital financeiro tende a reduzir a pluralidade de problemas
concretos da indústria nos de gestão financeira do capital. Ao revisar os principais
movimentos de capital na esfera mundializada nos últimos decênios vê-se que há
principalmente dois grandes padrões de mobilidade do capital. Um deles é conduzido
pela mobilidade financeira garantida por grandes massas de liquidez, que é a marca dos
grandes operadores de capital financeiro, tanto de operadores individuais como de
bancos, e opera sobre a expansão do terciário no mundo ocidental. Mas não se pode
descuidar que esse movimento tem se abastecido de contratos que dependem da
economia real e em grande parte em países periféricos. Por isso, contém ligações
profundas com os movimentos da economia real, com sua pluralidade de mercados e de
localizações. O outro movimento mundial é o que vem de novas formas de economia
real, com novas escalas de demanda e capacidade de processar tecnologia. O fenômeno
China mostra que há em marcha um movimento de escala mundial que segue um
caminho alternativo de superação da segunda revolução industrial, realizando o
movimento contrário, de expandir a esfera financeira na proporção da necessidade da
produção real, ao invés da licença incontrolada do capital financeiro no Oeste.
A distância entre o controle direto do trabalho nos locais de produção e o controle
indireto, que se realiza através do controle das oportunidades de emprego dos
trabalhadores, veio a sustentar o discurso da “sociedade do conhecimento”, que é um
eufemismo da diluição da responsabilidade do Estado perante a regularidade da renda
dos trabalhadores e seu acesso a emprego. Nesse ambiente de queima de perspectivas de
renda dos trabalhadores, há, de fato, novas condições de exploração, que põem em
relevo a necessidade de ver o movimento da produção em seu conjunto, entendendo a
exploração indireta como um aspecto essencial do modo de acumulação do capital
avançado e ainda, reconhecendo que a destruição de empregos regulares é um custo
social de certa etapa da acumulação do capital, que pode prosseguir ou ser revertida. As
condições de mobilidade do trabalho surgem por contraste desse movimento e da
capacidade acumulada dos trabalhadores de representarem seus próprios interesses.
108
A polêmica sobre a mobilidade do trabalho abre horizontes para diversas abordagens,
que batem de frente com os problemas de organização social da produção, ou que roçam
com as manifestações de irracionalidade embutidas nos comportamentos dos
capitalistas. 87 A mobilidade em seus dois aspectos, de capacidade de mudar de emprego
e de capacidade de migrar, também deve ser vista como a materialidade da condição
social dos trabalhadores. Por isso mesmo, pode dar lugar a pesquisas sobre os processos
materiais da produção e sobre os processos ideológicos do controle da produção. Há um
componente de controle social – resultando em dominação - e um componente de
resistência à dominação, que surge como as contra-estratégias mencionadas por nosso
autor. Esses dois componentes se desenvolvem segundo as condições objetivas em que
se encontram em cada sociedade. São diferentes condições de resistência em sociedade
unificadas por um processo de capital que envolve a todos e em sociedades em que há
fraturas, como a da escravidão, que resultam em processos diferentes e interligados.
O trabalhador integrado ao capitalismo surge como ser social quando assume sua
consciência de classe (Lúkacs, 1926) e quando se torna membro desse sistema de
controle, apropriação e alienação. Nestas notas coloco-me na perspectiva da questão
humanista, ou da questão do fundamento social, tal como visto através do capitalismo.
Quando exclui, o capitalismo, induz uma estratégia de resistência por parte dos
trabalhadores, que compreende luta por salário, por redução da jornada de trabalho e
migrações, que em seu conjunto refazem o caminho da restituição da identidade, que é o
caminho da contraposição à dialética da civilização, tal como denunciado por
Marcuse.88
A estratégia de De Gaudemar, de valer-se de um longo prólogo, que funciona como um
similar do VI Capítulo Inédito do Livro I de Marx, isto é, de um texto que antecipa o
trabalho e adianta inferências do conjunto, tem um papel especial, que, adiante, ressurge
no capítulo 3, intitulado O conceito marxista de mobilidade do trabalho, que é o centro
teórico do estudo. De fato, em Marx, a produção da força de trabalho, isto é, quando o 87 A questão da irracionalidade – um contraste entre uma racionalidade superficial e instrumental – e uma irracionalidade essencial, inerente ao sem sentido da acumulação de poder, é um aspecto que liga a acumulação de capital à concentração de poder político, portanto, que é uma chave da análise das contradições da concentração do grande capital. A partir do trabalho seminal de Lukács – O assalto à razão, trajetória do irracionalismo de Schelling até Hitler – desenha-se uma linha de reflexão, que virá a ser uma crítica interna da sociedade econômica e da sociedade política de hoje. 88 O discurso da dialética da civilização é parte da leitura freudiana de Marcuse do capitalismo. Ver Eros e civilização ( Rio de Janeiro, Zahar, 1981).
109
trabalhador mercantiliza seu tempo, é o momento em que se define o trabalho
socialmente necessário. 89 A pesquisa teórica transcende os objetivos imediatos de
explicar as condições atuais de determinados tipos de trabalhadores, para ter que se
referir aos trabalhadores em geral e a trabalhadores específicos.
Nessa orientação há, portanto, um viés inconfesso, de procurar legitimidade mediante
um retorno aos fundamentos filosóficos do debate, pelo que, assumindo os termos e os
modos de diálogo entre Sartre e Althusser. Nada de errado com isso, mas, na
perspectiva de uma leitura realizada no Brasil de hoje, torna-se imperativa uma
atualização ideológica. Aquilo que depois ficou definido como Marxismo Ocidental não
seria um cacoete saxão, mas um sinal da transferência do debate dos sindicatos para as
universidades, ou seria uma desvinculação de pensar e agir. Neste último sentido,
tornaria necessária uma revisão do próprio conceito de agir, se apenas como ação
partidária ou se como um agir nas diversas dimensões da vida social. A rigor, o ser
social não tem como não agir.
Primeiro, é preciso dar conta do imperativo do humanismo embutido no conflito da
mobilidade, que, de fato, descreve o mecanismo de sujeição do trabalhador ao controle
do capital. Não há como escapar de um humanismo, do mesmo modo como não há
como escapar de ter uma ética, seja um humanismo conducente a uma superação de
condições que descrevem a todos, ou seja um humanismo que convive com as
separações do campo social, que são aceitas como “naturais”, tais como foram nas
sociedades escravistas, desde a antiguidade até hoje. A questão do humanismo não
esgota o problema social da emancipação, já que o humanismo pode ficar num plano
genérico, sem entrar no miolo da questão da relação de classes.
O fundamento humanista da mobilidade do trabalho está ligado à condição da relação
entre classes, isto é, um humanismo que deve enfrentar a realidade do conflito social em
sua variedade e profundidade, que não pode ficar no plano indeterminado de uma ética
separada da situação social histórica.90 Tal situação é o ambiente da participação dos
89 É preciso lembrar que o trabalho socialmente necessário é o tempo médio de trabalho necessário a um dado nível de desenvolvimento do sistema produtivo. O trabalho socialmente necessário diminui nos setores que incorporam tecnologia e onde a força de trabalho se qualifica mais. 90 Distinguimos a discussão de uma ética socialmente representativa de uma ética abstrata socialmente indeterminada de expoentes da filosofia idealista, tais como Appel e Jonas. A questão levantada por
110
diversos integrantes do processo, que podem mudar de posição, tal como mudar de sua
posição específica como e enquanto trabalhadores, tanto como podem passar de
capitalistas a trabalhadores, ou de trabalhadores a capitalistas, entretanto, sempre
mediante processos que estão integrados nessa situação.91
Entre a mobilidade forçada e uma mobilidade autônoma, há uma diferença fundamental
de condição social, dos diversos tipos de trabalhadores nas diversas sociedades
nacionais. Precisamos extrair o que há de universal – dentro da produção capitalista –
no relativo a condições de autonomia de decisão dos trabalhadores, e o que há de
circunstancial. Entendo que as diferenças de autonomia são registros claros das
diferenças de condições de classe. O argumento levantado por muitos dos que
integraram a chamada teoria da dependência, de que as diferenças são antes de raça e
cultura que de classe, constitui uma simplificação histórica surpreendente, porque
pressupõe que as relações de raça e cultura não foram geradas em um sistema de
controle internacional do capital, que, justamente, fundamentou o projeto europeu de
dominação. Tal simplificação não registra as diferenças étnicas só existem para fins
práticos no capitalismo como meio de dominação, e que foram usadas do mesmo modo,
nos países europeus e em suas aventuras coloniais na América.
Segundo, não há como separar o processo de produção da força de trabalho das
condições de mobilidade dos trabalhadores concretos. Vale sublinhar, com De
Gaudemar, que a força de trabalho é a mercadoria do trabalhador, que é ele próprio, mas
que é uma alienação de sua pessoa. Assim, quando ele desenha o fundamento de
mercantilização da força de trabalho, termina por chegar ao conceito – a meu ver
duvidoso – de liberdade positiva e de liberdade negativa (pp.131). A liberdade negativa
é o negativo da versatilidade do trabalhador. A perda dos instrumentos de trabalho, ou a
inviabilização da pequena produção rural determinam essa perda de mobilidade própria,
que constrange o trabalhador a aceitar assalariamento, mesmo quando em condições
extremamente desfavoráveis. Nesse sentido, o mapeamento das condições de
mobilidade depende do mapeamento do processo de produção da força de trabalho.
Lukács na sua crítica do irracionalismo ganha atualidade frente aos desafios da sociedade periférica fraturada. 91
111
Estamos, portanto, diante de uma ética do individualismo, que pretende se legitimar,
alegando que todos têm direitos iguais de tentar enriquecer. Essa ética admite os
desastres das maiorias, do mesmo modo como as forças de segurança hoje falam em
danos colaterais, quando erram alvos e atingem inocentes. Depois de se ter trabalhado
com os desastres sociais causados pela escravidão e pela colonização, essa igualdade de
oportunidades parece tão real como a concorrência perfeita. A questão ética ressurge de
modo mais radical que quando foi exposta por Adam Smith.
B.
O processo social de produção de força de trabalho é aquele mesmo processo que induz
deslocamentos dos usos do tempo das pessoas, para que elas se tornem trabalhadores a
serviço do capital. Esses deslocamentos jamais foram espontâneos. Foram induzidos ou
foram conduzidos pelo poder do capital associado a força militar. Sua forma extrema
obviamente é a escravidão, mas é preciso ter claro que ela sempre esteve associada a um
grande número de formas de dominação que têm permitido reduzir as pessoas livres a
trabalhadores, tal como indica a própria denominação de reduções indígenas. Não se
pode ir muito mais longe nesta reflexão sem tratar do papel da escravidão na formação
do capitalismo moderno. Ver Marx em Miséria da Filosofia.
A produção social da força de trabalho tem aspectos quantitativos e aspectos
qualitativos, onde os primeiros abrangem o número de pessoas e seu vigor físico e os
segundos tratam da qualificação atual e da capacidade de atualizar a qualificação. A
produção de força de trabalho, portanto, gera uma magnitude variável, cuja capacidade
de decidir com autonomia varia segundo se forma sua consciência social e segundo ela
é atingida por novas estratégias de dominação do capital.
A variação quantitativa da força de trabalho resulta dos dois grandes fatores, que são a
pressão do capital em expansão sobre populações de sociedades pré-industriais e de
migrações, que refletem a variedade das condições objetivas de mobilidade dos
trabalhadores. O papel dos bandeirantes na formação do contingente de trabalho
dominado no período colonial no Brasil, forçando a entrada dos índios no sistema
produtivo e o papel das migrações forçadas de nordestinos, são fundamentais na
provisão de força de trabalho na formação da economia de São Paulo. As subseqüentes
112
variações quantitativas, tais como aquelas representadas pelo deslocamento maciço de
trabalhadores na corrida da borracha, foi alcançada por conta de fatores da expulsão de
trabalhadores, de regiões que não eram capazes de absorver seu próprio crescimento
demográfico.
Observa-se que esses movimentos, que se apresentam como quantitativos, têm uma
expressão qualitativa, no fato de que em todos os casos os grupos de trabalhadores
deslocados, especialmente os indígenas, dispunham de um conhecimento prático e
tradicional incomparável, que veio a ser a principal base da adaptação do sistema
produtivo, cuja mecânica foi européia, mas cuja fisiologia foi americana.92 Em resumo,
não há movimentos puramente quantitativos, ou todo movimento quantitativo que
representa trabalho simples contém um traço distintivo de qualidade.
No relativo aos aspectos qualitativos propriamente ditos, há um significado adicional
relativo à não substutibilidade dos recursos humanos qualificados e à oportunidade em
que eles entram no sistema produtivo. A qualificação é um atributo volátil, que se repete
mudando sempre de composição, que pode incorporar valor indefinidamente, mas que
está sujeita a rupturas tais como aquelas determinadas por mudanças nas tecnologias
básicas.
O resultado final desse processo é a historicidade da força de trabalho, que por sua
transformação substancial, não pode ser considerada como uma mercadoria comparável
com as demais. As máquinas são projeções de trabalho acumulado, mas que passou para
o controle do capital. O que se coloca com a disputa sobre a substituição de trabalho
atual por trabalho anterior, é que o aumento do controle do capital sobre o valor social
produzido torna-se maior que a mais valia extraída. Nesta etapa da acumulação, a
estratégia do capital ultrapassa o objetivo de aumentar a quantidade de mais valia
extraída e vai ao objetivo de aumentar a capacidade de extrair mais valia.
92 Sem a contribuição dos indígenas como poderiam os negros se adaptarem ao novo continente? A história oficial não se ocupa muito das relações entre os dominados e não dá muito peso às comunicações entre os diferentes grupos de africanos e entre eles e os índios e mestiços no ambiente complexo da colônia. No entanto, esse outro lado da formação sócio-cultural tem um papel insubstituível na explicação das camadas sociais dos que buscam e ampliam espaços nos espaços de trabalho contratado na sociedade pós colonial, como artesãos e como donos de oficinas tais como de alfaiates, barbeiros, instrumentistas etc.
113
C
O que dá crédito ao gênio de Aristóteles é ter descoberto na
expressão de valor das mercadorias uma relação de igualdade. Foi
a limitação histórica da sociedade de seu tempo que lhe impediu
desentranhar em que consistia a rigor essa relação de igualdade.
Marx, L. I pp.26
A compenetração da história leva-nos a ver a sociedade em geral através de sociedades
concretas. Assim, nossa sociedade é nosso objeto inevitável, que define nossas
limitações para entender o mundo. Temos uma sociedade ex-escravista, marcada por
relações de dominação quase escravistas, penetrada pelos aspectos mais sombrios da
Inquisição e do Estado expropriador, que sempre teve um componente
internacionalizado e um componente isolado, genericamente definido como restrito a
circulação local.
O fundamento ideológico é o mesmo da alienação! Como a maior parte das leituras
desta sociedade se faz mediante visões que representam preferências ideológicas de se
identificar com nações mais avançadas, isto é, como são visões das elites condutoras
dos movimentos de modernização, tendem a suavizar esse subsolo sombrio da formação
da sociedade brasileira. Essa manobra de suavização retarda a compreensão objetiva do
processo. Essa manobra de suavização retarda a compreensão do processo que
dependeu, justamente, do exercício da violência, tanto da violência física como da
violência ideológica, que consistiu em negar a capacidade de desenvolver um nova
identidade que nega o colonialismo apenas por se afirmar.
De Gaudemar trabalha com as referências do Marxismo Ocidental através das leituras
de Althusser, mas, a nosso ver, deixa escapar o sentido histórico do debate, que,
justamente através de Althusser se transforma em discussão categorial. Esse é o desvio
do debate que o torna separado da realidade de que tratamos. Para captar este contexto,
a análise filosófica tem que recuperar seu caráter de análise social, para perceber o
estatuto histórico das sociedades onde acontece o relativo aos trabalhadores. A categoria
de prático inerte trabalhada por Sartre refere-se exatamente ao contexto do trabalho
anterior realizado, que não pode voltar ao sistema em sua forma inicial, mas que pré
114
condiciona o trabalho atual. Por isso, a nossa leitura dessa questão remete-se à relação
orgânica entre esse prático inerte de o prático ativo, isto é, a relação orgânica entre a
esfera do trabalho anterior e a do trabalho atual, que é por onde se realiza o mecanismo
social da acumulação.
No entanto De Gaudemar nos oferece uma leitura criativa de Adam Smith, que nos leva
de volta à abordagem de Marx da obra do escossês, mas que, para nós tem um escopo
muito mais amplo, que coloca a complexidade do tratamento da combinação dos
aspectos éticos com os das práticas da sociedade econômica. Como já tinha assinalado
Dobb 93 , o fundamento ético da doutrina de Smith garantia a integração da justificativa
individual com a justificativa coletiva e via a divisão do trabalho como um dispositivo
de liberação de opções de participação no sistema produtivo. A ponte entre Smith e
Marx, descuidada pela maioria, em favor das referências a Ricardo, opõe-se exatamente
a essa redução da análise a um cruzamento de conceitos. O contraste com a análise
atemporal de Ricardo torna-se mais claro e significativo. A polaridade entre leis naturais
e leis institucionais, levantada por Smith, obriga a trabalhar com referências históricas
do processo social, numa posição que seria, adiante, confirmada pela filosofia da
História e do Direito de Hegel.
A oposição de Sartre a Althusser está nesse ponto, onde o Marxismo Ocidental se revela
como exercício intelectual daquele ocidente europeu, 94 que não se resigna a ter deixado
de ser colonialista e que continua a produzir novas modalidades de racionalização para
uma posição de predomínio em suas relações com os latino-americanos.
Temos aqui uma questão relativa à validade do intelectual como tal, como representante
de uma visão sintética do mundo social e como integrante de uma posição de classe,
Deter uma visão sintética do mundo social é uma situação que, inevitavelmente,
qualifica a visão de classe, mas não a substitui. Pelo contrário, representa uma
responsabilidade adicional, de atualizar a crítica ao nível da complexidade da época.
93 Maurice Dobb, Theories of production and distribution since Adam Smith , idelology and economic theory, Cambridge, Cambridge University Press, 1973. 94 Uma referência necessária nesse ponto é o trabalho de Perry Anderson Considerações sobre o marxismo ocidental (Boitempo, 2004), onde se vê que, ao tornar-se uma disciplina acadêmica o marxismo perde seu compromisso com uma teoria do conflito social. Nestas notas encontramos a necessidade de rever o próprio conceito de Ocidente, ressaltando como as potencias ocidentais de fato são impérios baseados no controle de territórios fora dessa parte do mundo.
115
Isso é o que diferencia O Capital das obras que refletem sobre os dados de época de
outros textos. A crítica da Economia Política aponta, justamente, ao fato de que ela, em
seu desenvolvimento, passou de ser uma teorização historicamente consciente, para ser
uma teoria separada da experiência histórica. Essa separação culminaria com a
economia neoclássica, que procurou construir uma análise formalmente consistente,
entretanto desprendida de qualquer compromisso com consistência material. Suas
referências empíricas fenômenos isolados, que, por isso, podem ser denominadas de
estudos de casos. A crítica de De Gaudemar ao empobrecimento da fundamentação
histórica da análise espacial, teria que ser estendida à análise neoclássica em geral,
entendendo que, na perspectiva neoclássica a análise territorializada é sempre uma
aplicação de princípios analíticos gerais e o espaço é sempre um objeto, cujas alterações
são externamente determinadas, mas que não devolvem efeitos aos movimentos do
capital. A grande questão está em que se o espaço é alterado por uma atividade social
ele é, em essência, social e não pode ser reduzido a uma condição historicamente
inespecífica. Esse é o ponto crucial da separação das heranças kantiana e hegeliana. Na
última espaço e tempo são dimensões da história e não são princípios atemporais
explicativos, nem são categorias ahistóricas. Estão conjugados no percurso das
experiências da sociedade, que tem seu próprio espaço-tempo. Por isso, tampouco essas
dimensões podem ser reduzidas à generalidade da Física, onde a vida surge apenas
como um dado biológico e não como vida social.
A originalidade da vida social e sua tendência a gerar modos e formas de organização
que sustentam trajetórias próprias que se distanciam de suas situações iniciais. As
grandes linhas da dinâmica do poder mundial combinam a concentração de capital com
a atualização de um bloco histórico de poder. O desenvolvimento do sistema moderno
de produção não está restrito às perspectivas dos países mais ricos de hoje, senão que
compreende mudanças nas relações entre os países que chegaram a posições de
liderança internacional, os que têm alcançado situações de maior poderio econômico e
os que permanecem relegados a posições de completa dependência. Pelo contrário,
vemos que a dinâmica da concentração de capital desenvolve efeitos contrários de peso,
tais como o aumento da competitividade dos grandes países periféricos, que passam a se
beneficiar da exportação de empregos dos países mais ricos. A originalidade desse novo
movimento é que ele absorve essa faixa de mercado, mas que não depende de capitais
ocidentais, por mais que um grande número de empresas ocidentais cria empresas na
116
China para captar aquele mercado interno. Tudo nos mostra que há uma maior
exploração dos trabalhadores nos países orientais, mas que é um movimento de
acumulação que escapa do controle do Ocidente. Trata-se, portanto, da relação entre
exploração e acumulação, ou de como o movimento da exploração confirma ou
modifica o movimento da acumulação.
O que dá unidade a esta parte da análise é a hipótese que a exploração seja equivalente
num sistema socioprodutivo onde coexistem capitais que operam diferentes taxas de
lucro. Será preciso substituir aquela análise do capital que se apóia numa visão de
indústria que confunde empresa com indústria, ou que não distingue a mobilidade do
capital entre empresas e entre empreendimentos, que, portanto, não pode perceber que
uma parte fundamental da exploração consiste, justamente, em administrar essa
pluralidade de situações.
A exploração é como se materializam relações contratuais de trabalho muito desiguais e
onde os trabalhadores são compelidos a trabalhar mais por remuneração equivalente. A
teoria da exploração é o grande tema do Livro III de O Capital, que ao desenhar os
movimentos dos capitais específicos em busca de sua reprodução, explica as condições
de exploração que se instalam em cada uma delas. A polêmica sobre a exploração ganha
novos matizes quando se situa nos termos da atualidade do sistema produtivo, que é
algo que foi feito por Paul Sweezy há cinqüenta anos e que tem que ser reavaliado hoje,
quando a análise do capital monopolista ressurge como a análise de uma economia
mundializada e que opera mediante oligopólios e com a prevalência da lógica do capital
financeiro. Seus desdobramentos tornam-se referências necessárias de uma análise
regional que supere a análise organicista tradicional.
As condições sociais variam entre diferentes sociedades nacionais. Historicamente,
sociedades que foram escravistas, tal como a sociedade brasileira, herdaram formas de
controle dos trabalhadores fundadas no autoritarismo patriarcal. A análise da exploração
no capitalismo avançado seguiu o rumo da explicação do capital monopolista e do
debate sobre o papel do oligopólio na acumulação do capital integrado em alta
tecnologia e no capital financeiro. Exploração aí consiste em como aumentar a massa de
lucro numa economia cuja demanda é bloqueada por uma distribuição desigual da
renda. A dissolução do emprego formal, com as estratégias de defesa da renda dos
117
trabalhadores, não supera o fato de que há fossos entre grupos de renda que não se
explicam somente como falta de mobilidade vertical, senão como separação entre
grupos sociais, e que apontam a novas formas de conflito, que estão bem representadas
pela articulação de uma sociedade econômica criminal paralela e pela desvalorização da
vida humana em geral.
A análise da exploração atual no Brasil tem que reconhecer a pluralidade de formas de
controle social com que opera essa economia desigual e que se atualizam mediante
diferentes regras para o grande e para o pequeno capital.
O segundo ponto que nos interessa é a situação histórica da exploração, com seus
fundamentos no controle da força de trabalho e dos mecanismos de comercialização das
diversas formas de trabalho. A extração de mais valia está historicamente limitada pelas
condições materiais do desenvolvimento da produção, mas a exploração sempre pôde
manter seus termos de exploração absoluta, que é a escravidão. Isso acontece com a
proliferação de atividades em que há monopólio das oportunidades de emprego, mesmo
quando são atividades aparentemente avançadas. A exploração se desenvolve como um
atributo do sistema do capital e depende da combinação do controle do trabalho no local
e tempo da produção, com o controle fora do processo de produção, que é onde no
essencial, o capital assume o risco de converter o produto físico da produção em
dinheiro. Nas condições de hoje, a questão da exploração tem que ser revisada, porque
a concentração da comercialização na esfera internacional representa uma separação
entre as condições de contrato de trabalho nos estabelecimentos produtivos e o modo de
contratar trabalho na comercialização,, que permite ao grande capital operar com uma
segmentação das condições de contrato de trabalho, assim como dá ao capital uma
vantagem especial sobre a organização territorial dos negócios.
As condições sociais e técnicas da exploração mudam, junto com as transformações da
produção industrial. Na expansão da segunda revolução industrial, a exploração
avançou de modo linear, isto é, acompanhou a seqüência da renovação tecnológica que
se dava, principalmente, de modo previsível, seguindo padrões de transformação
gradual do sistema produtivo. Mas, com o aprofundamento desse processo, e com a
conseqüente expansão da comercialização da produção industrial, os controles indiretos
do trabalho tornam-se predominantes. A queda do emprego formal e a desqualificação
118
de treinamento, praticamente retiraram a capacidade de reivindicação dos movimentos
sindicais, que passaram a funcionar como um recurso residual, ou foram simplesmente
desqualificados.É preciso ter clara a diferença entre o controle da força de trabalho, que
se organiza a partir do processo produtivo e o controle da comercialização, que se
desenvolve sobre a gestão do capital imobilizado, que opera de fora para dentro do
sistema produtivo. O controle da comercialização torna-se um controle sistêmico, capaz
de determinar o próprio programa de produção.
Entre a produção e a comercialização há diferentes condições objetivas de realizar esse
controle do trabalho, em que o controle na produção compreende o controle permanente
ou o controle temporário dos trabalhadores, enquanto o controle da comercialização é
indireto e permite operar com diferentes condições de contratação de trabalhadores. Está
claro que a linha divisória entre escravidão e trabalho assalariado não dá conta da
complexidade do problema, onde há uma variedade de movimentos de aumento do
controle e de lutas de independência, e onde aumentam as formas de controle indireto
do trabalho sobre as formas de controle direto.
Como nos mostrou Marx, a mola central da produção capitalista consiste em
transformar a força de trabalho em mercadoria. Mas essa é uma mercadoria especial,
que está submetida a processos simultâneos de valorização, que oscilam segundo
evoluem as condições de captação e de controle de recursos físicos. A discussão da
mobilidade do trabalho que cabe na realidade do Brasil tem que levantar uma questão
fundamental, relativa ás rupturas das condições de mercantilização da força de trabalho,
que não se limita às condições de mercado de trabalho, senão que abrange todas as
condições sociais e psicológicas da auto compenetração dos trabalhadores, em sua
qualidade de proprietários de sua força de trabalho. A peculiaridade da força de trabalho
é que ela pode, ao mesmo tempo, ser mobilizada para objetivos diferentes daqueles do
capital, configurando condições de resistência, que se manifestam, principalmente, em
relação com o Estado. As duas tendências, de controle e de resistência, se desenvolvem
segundo a capacidade dos gestores do capital para desenvolverem processos de
apropriação que envolvem os recursos naturais e o uso espoliativo do trabalho, assim
como incluem a capacidade dos trabalhadores para resistirem.
119
Uma rápida revisão dos processos de apropriação espoliativa 95 no Brasil de hoje mostra
que há uma atualização e um aperfeiçoamento dos mecanismos de captação de recursos
naturais e de trabalho, que precisa de mais recursos e de mais trabalho para reproduzir o
capital já acumulado. A presunção de que o crescimento da economia acontece sempre
em seus segmentos mais modernos não procede, já que há um aumento generalizado de
atividades extrativas, causado pelo aumento da população marginalizada, assim como
há um uso cada vez maior dos segmentos mais atrasados da economia por parte de
empresas acionadas por capital financeiro perfeitamente integrado no mercado.
A captação de trabalho combina a manutenção de salários baixos, na esfera pública e na
privada, com um controle político dos cargos melhor remunerados e da corrupção, junto
com um controle combinado dos preços. Avançou nos últimos tempos, combinando o
controle dos sistemas de previdência na parte avançada da economia com a apropriação
mais brutal na parte que usa trabalho não qualificado, desde a reincidência de
escravização dos trabalhadores até a manutenção de setores que se reproduzem em
condições técnicas superadas, mas que são funcionais à reprodução dos setores mais
avançados. Assim, a produção rural familiar realiza a tarefa de reproduzir aquela força
de trabalho que oferece mão de obra barata para as tarefas mais desqualificadas e pior
pagas do sistema, como substituta do trabalho escravo, antes que como exército de
reserva de operários. A questão que se apresenta no Brasil é que a inclusão não é uma
mudança de status, senão uma fronteira entre uma esfera de funcionamento do
efetivamente assalariado a preços de mercado e o trabalho submetido pela falta de
opção de contrato. A submissão causada pela falta de opção de emprego gera uma
paralisação dos trabalhadores, que em nada se parece com a mobilidade que pode ser
atribuída ao espaço de mercado desigual de trabalho. Temos, portanto, uma situação
própria do desenvolvimento histórico desta sociedade, que deverá ser atacada por uma
análise interna do problema de dominação das oportunidades de emprego. Resumindo, é
preciso garantir o caráter histórico da análise.
B.
95 Vamos preferir essa expressão a acumulação primitiva, por entender que ela melhor descreve o modo de apropriação e que se atualiza com a modernização do sistema produtivo
120
O modo de converter força de trabalho em mercadoria é que distingue as condições de
desigualdade de renda das condições sociais de ruptura de classe. A sociedade
tradicional usou combinações de trabalho escravizado com trabalho dominado em
diversas situações e com pequenos componentes seletos de trabalho livre, em diversas
formas de associação e de subordinação. Ao ampliar-se a esfera da produção capitalista
e aumentar o componente de trabalho contratado, ampliou-se, também, o campo social
sobre o qual o capital passou a poder extrair mais valia. Subsequentemente, como esse
componente de produção capitalista passou a incorporar renovação tecnológica, criou,
também, a base material sobre a qual tornou-se possível extrair mais valia relativa. O
trabalho escravizado seria cada vez menos atrativo para o capital , porque seria
incompatível com a renovação tecnológica.
Para o capital que se expande na economia pós escravista, o problema consiste em
garantir as condições adequadas para prosseguir na captação de mais valia, o que só se
dá quando ele abre novas fontes de produção que absorvem mais trabalhadores,
portanto, que ampliam a extração de mais valia, assim como aumentam as compras
locais de bens salários e de serviços aos trabalhadores. Isso foi o que a economia
brasileira fez, com a expansão dos segmentos tradicionais de exportações, agrícolas e
mineiras, tais como o café, o cacau, o fumo e o minério de ferro pouco elaborado. A
massa de salários pagos converteu-se em compras locais, enquanto as rendas dos
proprietários fluíam no sentido da concentração do capital. Finalmente, a substituição de
trabalho escravo por trabalho contratado significou que o trabalho passou a ser
apropriado junto com sua mobilidade, isto é, que a mobilidade se tornou um elemento
adicional da produção de mais valia. Esta é a tese principal que sai desta segunda parte
da revisão do tema.
A originalidade da América Latina é que a mercantilização da força de trabalho tem se
feito conduzida por uma combinação do segmento exportador do sistema produtivo com
a operacionalização do Estado, como responsável dos serviços sociais de utilidade
pública, compreendendo a construção e a operação dos sistemas de infra-estrutura e dos
serviços prestados com ela. O sistema produtivo “moderno” surge como um objetivo de
Estado, já seja de iniciativas promovidas pelo Estado ou apoiadas por ele, em todo caso,
por associação do Estado com os proprietários da terra. Isso aconteceu no Segundo
Império no Brasil e no Porfiriato no México. Na maior parte dos casos, as indústrias
121
surgiram aproveitando espaços de mercado criados pela demanda controlada por essa
combinação. A expansão do mercado interno é um processo indiretamente subordinado
ao segmento internacionalizado da economia, pelo que o mercado de trabalho está
subordinado à dinâmica da exportação, e, através deste, ao modo de relacionamento
com a economia mundial, que é onde se realizam os conflitos essenciais entre a
dinâmica do poder econômico e político, que tem lugar na esfera da hegemonia, mesmo
que em posições secundárias; e os países periféricos, mesmo quando são mais
poderosos que essas nações secundárias da hegemonia.
Essa peculiaridade do bloco hegemônico hoje merece atenção especial. Precisamos
situar historicamente o bloco histórico, em sua internacionalidade, como primeiro passo
para entender que ele compreende uma combinação de nações, do mesmo modo como
compreende uma composição de classes, instituições e etnias. A nação hegemônica
sustenta sua hegemonia num tecido de interesses que envolvem outras nações ricas e
segmentos de classe de nações que são classificadas como periféricas. A hegemonia
torna-se uma empresa coletiva do capitalismo, onde são os grandes interesses comuns
do grande capital, especialmente o controle da energia e dos minerais estratégicos que
dão sentido à coesão do bloco mundial de poder.
Daí , que um aspecto fundamental da composição do poder mundial de hoje é a série de
transformações ocorridas no contexto do bloco mundial de poder, com alterações na
relação entre a nação hegemônica e seus aliados, onde há interesses convergentes e
divergentes, e onde questões como comércio e energia têm sido fundamentais na
definição do quadro de referencias em que se coloca a condução do capital financeiro.
Ao longo da Guerra Fria formou-se um sistema de lideranças, que foi aperfeiçoado no
modelo de uma OTAN que passou a incluir nações que antes foram contendoras e que
substitui o poder político efetivo das Nações Unidas. Nesse ambiente, países tais como a
Bélgica, a Holanda, Portugal e mesmo a Espanha, são beneficiados de disporem de
condições privilegiadas de financiamento no contexto da União Européia e voltam a
exibir um desempenho de expansão de capital - que não se confunde com exportação de
capital, já que captam capital nos países onde investem – que lhes dá um novo perfil
expansionista que seria impossível em suas reais condições de economias nacionais de
pequena escala e sem crescimento significativo de seu próprio mercado. Está claro que
são movimentos subordinados ao aval da relação da União Européia com os Estados
122
Unidos, mas são parte de uma estratégia defensiva ofensiva, porque são países que
dependem da demanda de outros países para reproduzirem seu capital.
Por oposição desses movimentos, a reprodução da periferia é um dado essencial do
problema, que tem seu próprio modo de acontecer. Nas nações que surgiram como
periféricas e que continuam nessa condição, há um encontro dos interesses dos grupos
locais dominantes com os interesses dos capitais dos países do bloco hegemônico, cuja
principal explicação é que a sustentação da dominação interna se faz sobre as premissas
de um sistema de poder baseado no controle das oportunidades de lucrar, que envolvem
controle de privilégios e exclusão das maiorias. Longe de ser uma simples subordinação
aos interesses dos capitais das nações mais ricas, trata-se de um mecanismo de aliança
dos dirigentes dos países periféricos, que procuram sua identidade mimetizando-se com
as sociedades mais ricas e prósperas.
C.
Ao descobrir a relação entre a mobilidade do trabalho e a captação de mais valia,
encontra-se com que esta análise se remete à questão que foi primeiro levantada por
Adam Smith, relativa à necessidade dos capitalistas individuais, de garantirem a
disponibilidade de oportunidades de investimento, suficientes para realizar a reprodução
do capital acumulado. De fato, os capitalistas precisam dispor de força de trabalho
suficiente e com as qualificações adequadas, e precisam dispor dessa força de trabalho
sem incorrer nos custos de sua formação. Isso significa que na dinâmica do capital é
sempre a etapa anterior que sustenta a seguinte e que a superação da etapa anterior é
administrada em função dos resultados da seguinte. Essa é a manobra que o capital tem
feito para viabilizar o passo seguinte de cada movimento da acumulação, que depende
de que o bloco de poder mantenha o controle sobre os recursos humanos engajados na
etapa anterior de acumulação.
No contexto político do movimento de acumulação, o grande capital controla as opções
de investimento, 96 já seja pelos mecanismos de oligopólio, ou seja pelo controle da
96 A suposição de mobilidade irrestrita do capital, que é essencial à teoria marginalista em suas diversas correntes, não contempla o fato de que as oportunidades de investimento são controladas pelo grande capital em geral, ou por capitalistas que dispõem de vantagens especiais de posição social. A capacidade
123
tecnologia e do financiamento. A partir desse dado, há distribuição dos espaços de
mercado, por associação com o grande capital ou por vantagens locais do poder político.
As condições para ocupar esses espaços são fundamentais. De fato, o capitalismo cria
escalas diferenciadas nos modos de usar a força de trabalho, com diferentes regras
contratuais, desde o mercado de trabalho de que participam as elites internacionalizadas
até os mercados locais em que ficam confinados os trabalhadores menos favorecidos do
sistema. O operário, identificado com trabalho manual em fábricas, torna-se uma
minoria, não só porque o assalariamento é reduzido, como porque há maior pluralidade
de formas de trabalho.
A diferenciação dá lugar ao aparecimento de regras de adequação entre esses diferentes
patamares, que são indicativas de desigualdade de renda ou de rupturas na estruturação
social. Substitui-se a visão estritamente econômica da renda por uma visão social, em
que a renda se vê por sua capacidade de escolha entre possibilidades de consumo. Como
fica a liberdade de decidir dos consumidores que cujas compras são programadas pelo
capital e cujas opções são pré-definidas pela vigilância da sociedade da obediência? A
questão que nos defrontará a seguir será a de examinar essas regras de adequação, de
como elas surgem, como se renovam e como são administradas, portando, como se
convertem em meios de poder.
Por aí se encontra como se desenha o perfil da exploração no mundo desigual da
periferia do capitalismo avançado. A diversidade de condições de capitalização coincide
com uma pluralidade de condições de qualificação real do trabalho, 97 portanto, de
condições objetivas para manejar a razão entre o número de pessoas que precisam
trabalhar para sobreviver e o número dos que constituem um verdadeiro exército de
reserva do sistema produtivo. A captação de trabalho se efetiva sobre uma existência de
trabalhadores dotados de qualificações que os separam entre os que podem efetivamente
vir a participar de contratos de trabalho suficientes para garantir subsistência familiar e
os que não têm condições de aspirar a esses contratos de trabalho. Mas, como a
demanda de trabalho qualificado não se amplia sequer na escala do contingente de
novos trabalhadores com maior formação, há uma pressão crescente para a emigração de garantir a reprodução do capital depende do acesso a aquelas oportunidades de aplicação de capital que permitem produzir em escala e que podem conviver com as taxas de juros disponíveis no mercado. 97 Diferente da qualificação formal dada pelo sistema de educação, que não mede seus resultados em termos de capacidade de participar do sistema produtivo.
124
de trabalhadores qualificados, o que vem a ser um modo indireto de subsidiar o
crescimento das economias mais ricas, especialmente a dos Estados Unidos.
125
8. Acumulação geral e restrita
As questões gerais da acumulação
A dimensão regional da análise social expõe as combinações de condições sociais e de
restrições de recursos físicos da produção capitalista, que situam o desenvolvimento dos
meios de produção e que são dados que antecedem e situam a determinação das escalas
de mercado. Assim, a dimensão regional do processo social leva a discutir as condições
concretas da acumulação na sociedade de hoje, reconhecendo que as possibilidades de
acumular são restritas e desiguais em cada situação no tempo e no espaço, para todas as
economias nacionais, desde a economia hegemônica, que reúne as maiores condições
para acumular, até as economias periféricas mais pobres. No capitalismo avançado no
mundo contemporâneo o essencial é que a acumulação de capital muda de mãos, sejam
nações ou particulares, e se realiza mediante maior fluidez dos mercados.
Estas colocações logicamente envolvem uma conceituação de dinâmica
econômica. Há duas grandes matrizes da compreensão de dinâmica, que correspondem,
respectivamente, à mecânica e à genética do capital, e que aparecem como uma teoria
do crescimento do produto social e como uma teoria do desenvolvimento do sistema
produtivo. A mecânica da economia (Hicks, 1965) trata do crescimento do produto
social, considerando as grandes variáveis que participam desse crescimento e
registrando as inter-relações entre elas, bem como as inter-relações entre o produto e o
capital. Não considera as relações sociais subjacentes nos movimentos do produto. A
genética do capital vê o produto como um resultado dos movimentos e das
transformações do capital e de suas relações com o trabalho. Vê a composição do
produto social como interdependente da composição do capital.
Uma primeira observação de que todas as economias operam com limitações,
torna necessário explicar em que consistem essas limitações e de que modo elas
interagem com as transformações do sistema de produção em sua escala mundial,
portanto, que se trabalhe com uma teoria da acumulação restrita e desigual.
Logicamente, são diferentes limitações que afligem economias em diferente situação de
126
desenvolvimento. Há restrições para que as sociedades simplesmente se reproduzem,
desde as simples às mais complexas, bem como há restrições para que se consolidem e
ganhem em complexidade e restrições para que se mantenham em determinadas
posições no concerto mundial.
Uma segunda observação, depois de verificar que a acumulação acontece num
quadro de condições restritivas, é que essas restrições variam ao longo do tempo, isto é,
que a capacidade de acumular aumenta ou diminui ao longo do tempo. As variações na
capacidade de acumular envolvem elementos dos recursos físicos, da composição e
magnitude do capital, bem como elementos culturais e institucionais. O jogo de tensões
internas e externas, que se apresentam em cada situação específica, reflete as condições
de estruturação dos Estados nacionais e das regiões em seu conjunto e ao mesmo tempo.
Em resumo, as variações na capacidade de acumular estão associadas à capacidade de
usar efetivamente o capital, o que significa uma combinação de controle de variáveis
locais e variáveis representativas de condições de mercado.
As posições das economias nacionais variam ao longo do tempo, segundo elas
ganham ou perdem capacidade para produzir atrair e reter capitais e trabalho
qualificado, portanto, segundo o desempenho de cada uma delas se situa no processo do
capital em seu conjunto. Tal participação muda segundo varia a capacidade de atrair e
reter capital e trabalho, já que o poder de concentrar capacidade de produzir depende da
capacidade de produzir mercadorias que o mercado pode absorver. Há condições
diferenciadas de acumulação, que decorrem das diferenças de escala de capital, das
estruturas de mercado – tais como oligopólio e monopólio – e das condições de
transformação do trabalho.
A análise do sistema capitalista de produção em seu conjunto trata com um
movimento geral de formação de capital, que se torna progressivamente mais complexo
e que desenvolve interdependências também cada vez mais complexas, substituindo
formas de capital e substituindo modos de engajamento de trabalho. A leitura
desenvolvida por Marx trata do sistema capitalista em seu conjunto, assim como as
teorias macroeconômicas desde então subentendem uma economia mundial – quando
não mundializada – que não é mais que a produção capitalista em seu conjunto.
127
Isso significa, no essencial, que a teoria macroeconômica presume: (a) condições
simétricas de acumulação para todos os capitais que estão integrados no processo
produtivo, (b) condições equivalentes de todos os mercados – nacionais e por produtos
– para sustentarem um movimento geral e integrado de acumulação e (c) capacidade dos
capitais e dos trabalhadores para se adaptarem às modificações na composição técnica
do capital.
Isso mostra que a teoria macroeconômica convencional opera com uma
simplificação incompatível com a realidade. Primeiro, porque na prática, diferentes
capitais têm diferente capacidade de acumular, já que têm diferentes condições para
participar do mercado. Segundo, porque a capacidade das pessoas de participarem do
processo produtivo na qualidade de trabalhadores depende da atualização do trabalho,
isto é, que eles tenham a capacidade de realizar aqueles trabalhos requeridos pela
composição do capital. Terceiro, porque a capacidade dos capitais e dos trabalhadores
para se adaptarem à atualidade da acumulação é inevitavelmente desigual, em função de
diferenças de qualificação, de informações e de capital para realizarem essa atualização.
As simplificações da análise macroeconômica refletem a perspectiva
mecanicista da teoria marginalista, que considerou (a) condições invariantes de mercado
e (b) diferenças de escala das empresas, que não alteram seu comportamento no relativo
à composição de seu capital. Essas simplificações são perfeitamente aceitáveis quando
se trata de problemas que podem ser colocados de modo representativo num quadro de
análise instantânea ou de análise a curto prazo. Mas levam a erros crescentes e cada vez
menos previsíveis, quando os períodos de análise se estendem, ou quando é preciso
considerar margens crescentes ou variáveis de incerteza.
No relativo ao campo regional, a análise macroeconômica faz duas opções, sobre
a comparabilidade dos agentes e das transações, que significaram que a economia
mundial opera segundo os mesmos padrões, no centro e na periferia, com diferenças
que se limitam às escalas do capital, e com desigualdades que podem ser explicadas
mediante diferenças de renda. A dificuldade é que as desigualdades ficam
indeterminadas, já que esse esquema de raciocínio não prevê de onde surgem as
desigualdades nem como elas se eternizam. Pelo contrário, a principal questão
macroeconômica a ser preservada pela análise do sistema produtivo em seu conjunto,
128
consiste na continuidade do sistema produtivo em seu conjunto, apesar da incidência de
fatores erráticos 98 e de alterações nos padrões comportamentais dos fatores
incorporados no sistema.
Além disso, a teoria macroeconômica corrente, mesmo aquela que se distancia
da ortodoxia neoclássica, tem dificuldade para registrar que as mudanças de velocidade
do processo econômico são concomitantes com alterações irreversíveis na composição
do capital. Entretanto, esse é um aspecto que deverá ser pesquisado com cuidado, dada
sua posição central numa teoria da acumulação restrita.
A teoria geral da acumulação
A afirmação da produção capitalista enquanto modo operacional da sociedade
moderna tornou necessária uma explicação do sistema produtivo em seu conjunto, com
seu modo de funcionamento e suas contradições. O trabalho de Marx expõe a
fundamentação histórica do capitalismo. Mostra como ele se afirma, através da
superação de formas de capital que não foram capazes de incorporar sistematicamente
os resultados econômicos do controle da tecnologia aos resultados políticos do controle
do trabalho. Ao realizar essa ligação, o capitalismo canalizou as forças da captação de
trabalho compatível com a reprodução e ampliação do sistema de produção, definindo
as contradições de interesse entre capitalistas e proprietários de um lado e trabalhadores
e excluídos de outro lado.
A teoria geral da acumulação visualiza o conjunto dos movimentos de
recomposição e de expansão do capital – composição e mudança – que viabilizam a
acumulação, tratando com as escalas operacionais do capital em seu conjunto. Presume-
se que o horizonte efetivo de acumulação está dado pelo conjunto dos elementos
técnicos, culturais e institucionais com que o sistema econômico opera.
A teoria geral da acumulação apóia-se em alguns pressupostos que devem ser
explicitados. Primeiro, que sempre há oportunidades de investimento acessíveis
98 A erraticidade é um aspecto essencial do sistema produtivo, segundo ele tem que registrar e incorporar outras experiências.
129
suficientes para sustentar a reprodução do capital em sua totalidade. Segundo, que essas
oportunidades de investimento sempre estão reguladas pelas tecnologias mais
avançadas. Terceiro, que sempre há mobilidade dos capitais entre as oportunidades de
aplicação, suficientes para compensar as diferenças de escala entre grande e pequeno
capital e entre as diferenças de tecnologia. 99
Esse é o ambiente da economia articulada na esfera mundial, em que os
capitalistas operam de modo equivalente e em que as diferenças de escala dos
capitais não alteram o elenco das aplicações. Isso significa que os diversos capitalistas
têm acesso efetivo à totalidade das opções de acumulação.
Marx não cai nesse erro de simplificação, porque considera diferenças de
composição de capital no sistema em seu conjunto e entre empresas específicas. Mas a
questão não está superada, porque as diferenças de acessibilidade dos diversos capitais
não se restringem a um dado conjunto de capitais, senão a uma relação entre a formação
de empresas e a proliferação de oportunidades de investimento. Essa questão só se
revela em sua real complexidade quando se consideram processos de adequação e de
desadequação dos capitais ao ambiente tecnológico em que o mercado opera.
Esses processos só podem ser percebidos por uma teoria da ação social,
entretanto, por uma teoria que ligue as ações aos grupos sociais que as realizam, isto é,
de uma teoria histórica do agir social.
Elementos de uma teoria da acumulação restrita e desigual
99 O trabalho de Marx pode ser visto como uma teoria geral da acumulação, que trata do movimento do capital em seu conjunto, tomando como principal referência histórica a formação do capital n o centro da economia mundial. O significado dessa teoria é a explicação da materialidade da sociedade moderna, que é, essencialmente, a sociedade do capitalismo. Essa teoria contém os elementos necessários para acompanhar os modos e as tendências da produção capitalista como tal, e para situar as contradições acarretadas pela produção capitalista na sociedade em seu conjunto. O registro da experiência dos países periféric os obriga a pensar na diversidade de condições históricas em que a acumulação acontece, que , justamente, revelam seus limites. Para as sociedades periféricas, faz-‐se necessária uma teoria da acumulação que represente as condições históricas em que elas funcionam.
130
O tratamento dos problemas do desenvolvimento econômico e social, ou do
desenvolvimento desigual, ou da perpetuação de uma periferia sub-industrializada,100
obriga a rever esses pressupostos, indicando a necessidade de contar-se com uma teoria
da acumulação capaz de refletir as condições concretas em que se realizam movimentos
específicos de acumulação no contexto de cada economia nacional.
Há várias razões para entender que se precisa de uma teoria da acumulação
restrita e desigual, começando pelas condições cíclicas em que se dão os dados
mundiais da acumulação em geral, continuando com os dados representativos dos
sistemas produtivos específicos e dos dados da mobilidade do capital e do trabalho em
cada um deles e entre eles. A produção capitalista funciona mediante sistemas
desigualmente capitalizados e com diferente capacidade de se capitalizarem, que, por
isso, só podem se desenvolver alterando suas condições atuais de funcionamento.
As desigualdades na capacidade de se capitalizarem decorrem de progressões de
fatores favoráveis e desfavoráveis, que aparecem de modo cumulativo ou de modo
incidental, resultando em padrões que têm componentes previsíveis e componentes
erráticos. Previsibilidade e erraticidade são atributos do sistema produtivo que resultam
de combinações de ações socialmente desenvolvidas com dados básicos da dinâmica da
natureza, com a peculiaridade de que a dinâmica da natureza se manifesta sobre uma
variedade de escalas de tempo e as ações sociais se desenvolvem na escala de tempo da
ação social.
Assim, as perspectivas de mudança do sistema em seu conjunto e dos sistemas
que o compõem, jamais podem ser atribuídas a uma única causa, nem a uma única causa
dominante. A leitura da ascensão das grandes potências, e, principalmente, a leitura do
declínio dos impérios (Cipolla, 1987) mostra conjuntos de relações causais, que se
alternam e substituem, que obrigam a admitir que há uma variedade de situações em
100 Neste trabalho trataremos apenas de modo preliminar um aspecto essencial do problema que são as filtrações de capital dos países periféricos para os centrais, que, finalmente, tem sido o mecanismo central do colonialismo e foi incorporado pelo capitalismo avançado. A filtração de capitais acontece porque membros integrantes das economias mais poderosas transferem recursos, ou porque membros integrantes das economias periféricas vão investir seus capitais nas economias centrais. Mas, no conjunto, há um mecanismo geral que transfere uma parte da formação de capital dos países subdesenvolvidos para os desenvolvidos.
131
cada experiência de expansão ou de declínio, com alguns traços comuns no relativo a
controle dos recursos naturais e controle do trabalho.
A explicação da acumulação restrita passa por uma leitura da reprodução do
capital. A reprodução do capital na prática é a reprodução do sistema do capital, isto é, é
a reprodução do capital em seu conjunto e igualmente a reprodução do sistema
produtivo do capital. O sistema do capital compreende o capital diretamente engajado
no processo de produção e o capital em forma financeira. Tal como mostrou Marx, a
proporcionalidade entre esses dois componentes é determinada na esfera da produção,
mas a capacidade do componente financeiro de se mover fora do sistema de produção
tem, de volta, a capacidade de influir na esfera da produção, já com a lógica da
comercialização e não mais com a lógica da produção.
Isso quer dizer que o capital só pode acumular na extensão em que o
desenvolvimento do sistema permite. Isso também significa quanto o sistema precisa
acumular para se manter. Mas que só pode acumular daqueles modos permitidos pela
composição do capital.
O que discutimos aqui como uma teoria da acumulação restrita é a parte da
teoria que trata dessa combinação de possibilidades e restrições que estabelecem a
situação histórica atual do sistema, com sua situação histórica e suas restrições
institucionais.
A noção de acumulação restrita vem de que o sistema pode ampliar ou restringir
suas possibilidades de acumular, segundo se alargam ou estreitam as capacidades dos
participantes do processo, para participarem de novas condições de controle sobre a
formação de capital.
A acumulação restrita trata dos processos que se realizam em cada economia
nacional e que não necessariamente se propagam a outros países ou regiões. A
suposição de que o processo de acumulação não necessariamente é contínuo, ou que
está sujeito a fatores de descontinuidade, que podem ser predominantes, e que os
resultados que são efetivamente alcançados são o saldo de sucessos e fracassos de
inclusão e exclusão, de períodos seguidos de variada duração.
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Como, na prática, todos países funcionam com dotações limitadas de recursos e
com oferta e demanda em escalas também limitadas, o ambiente atual da formação do
capital é sempre o da acumulação restrita. Nesse caso o que se entende como
acumulação restrita não é uma situação limitada da acumulação geral, senão é uma
instância do processo de acumulação. Assim, para os fins da teoria, é parte da
construção da teoria geral, da acumulação e é um componente essencial de uma visão
crítica da acumulação em seu conjunto.
Assim, a teoria da acumulação é uma dimensão do corpo teórico que explica o
conjunto dos movimentos de transformação do capital e do trabalho na economia
moderna.
O mecanismo que caracteriza a acumulação restrita pode ser exposto nos
seguintes passos.
a. A relação entre uso potencial e uso atual de recursos comparada com as
tendências de uso dos recursos incorporados na relação entre tecnologias velhas
e tecnologias novas.
b. A relação entre usos de tecnologia e usos de trabalho, tal como registrado na
relação entre qualificações velhas e qualificações novas.
c. A relação entre os usos de recursos e a aplicação de capital necessária para
realizar o produto social compatível com a reprodução do capital em seu
conjunto.
d. A relação entre a produção do capital e a configuração do mercado,
compreendendo a composição das compras efetivamente realizadas.
O mecanismo da acumulação restrita pode ser descrito a partir do uso efetivo de
recursos para produzir, ou através da demanda social que determina o uso de recursos.
A segunda opção parte da esfera das trocas, por isso refere-se a uma situação
circunstancial que não necessariamente se mantém ou se repete. Essa impossibilidade
de ligar organicamente a situação com o processo de que ela é parte, torna inprofícua
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essa abordagem, que pode ser útil apenas para examinar situações hipotéticas de
conjuntos de alternativas.101
A primeira opção, isto é, de partir de condições concretas de uso de recursos. O
controle da acumulação coloca-se perante situações históricas de disponibilidade de
recursos e de tecnologia, portanto, considerando as condições técnicas de uso dos
recursos.
Essas condições técnicas representam, portanto, a escala de viabilidade conferida
pelo perfil da demanda. O capital será atraído a gastar com tecnologia na medida em
que essas tecnologias foram absorvidas pelo mercado . Conseqüentemente, a
acumulação só poderá prosseguir em cada país e em cada região se houver uma
expansão de demanda suficiente para sustentar a reprodução de capital suficiente para
manter o capital acumulado.
Na prática esse mecanismo não pode ser tomado em sua forma genérica, porque
os movimentos de acumulação acontecem em países que são incorporados ao sistema
mundial de produção em posições desiguais no relativo a controle sobre o destino da
renda que geram, portanto, de controle sobre sua formação de capital. Nunca houve,
realmente, um problema de escassez de poupança nos países e nas regiões que
acumulam pouco, senão um problema geral de saída de riqueza, que vem desde as
formas mais simples de pilhagem sos sistemas coloniais até as modalidades mais
modernas de controle dos sistemas de comercialização. A periferia do sistema
capitalista está constituida de nações que foram e são objeto de uma acumulação
depredatória, que tem impedido sua emancipação econômica.
Nessas condições, a acumulação surgirá do controle da formação de renda antes
que da formação de renda; e não poderá jamais ser tratada como um problema apenas
técnico de quantitativos de crescimento, senão como o resultado de produção e
comercialização. A produção de riqueza será apenas um dado preliminar de um
problema muito mais complexo, que se resolverá na esfera da comercialização,
compreendendo o controle político da circulação.
101 É o espaço da teoria dos jogos em que as alternativas podem ser temporais mas não são históricas. Trata-‐se com séries temporais mas não com progressões históricas.
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A acumulação restrita é, também, irregular, porque em cada país depende mais
de fatores externos que de fatores internos e porque essa dependência tem mudado de
forma, mas, substancialmente, tem tido a mesma importância para as atuais periferias,
desde sua anterior situação de colônias até sua atual condição de economicamente
dependentes.
As teorias do desenvolvimento que se desenvolveram nas décadas de 1940 a
1960 focalizaram em mecanismos do comércio e em condições da formação do capital.
Por decisão própria ou como desdobramento da matriz teórica com que trabalhavam,
ativeram-se à perspectiva de produção, que trataram por separado da perspectiva da
distribuição e sem levar em conta o papel do controle político da esfera da
comercialização. Observe-se que há uma aparente contradição entre o tratamento dado
por Prebisch, Myrdal e outros, às políticas de desenvolvimento, em que procuraram
criar mecanismos contrapostos ao controle político do comércio; e a concepção
fundamental do eixo análise-política, que continuou preso aos preceitos de uma teoria
da produção, razão que levou a aceitar a premissa da falta de poupança – suficiente e
oportuna – para uma acumulação historicamente suficiente.
A perspectiva de análise da acumulação restrita torna logicamente necessário
considerar o papel do controle político da comercialização na fixação da formação de
capital, que é o movimento prévio da continuidade da acumulação. O foco da análise
desloca-se para a internacionalidade do controle político dos mecanismos que ligam o
controle político da comercialização com o controle financeiro da mobilidade do capital.
O que limita os horizontes da acumulação em cada país é a internacionalidade desses
controles financeiros. O pacto implícito do capital financeiro com a estruturação do
controle político da comercialização tem a aparência de uma sólida estabilidade, mas
não é mais estável que um vento constante. A polêmica histórica descobre que a
racionalidade separada de sua raiz ontológica torna-se uma perversão. A teoria da
acumulação precisa de uma teoria histórica da ação social, isto é, de uma teoria que
relacione as ações com os grupos que as realizam. A questão teórica levantada pela
Economia Política Crítica consiste em situar as ações como conseqüência do modo
como os grupos se formam e desenvolvem.
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