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Faculdades Integradas Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú Volume 3 – 2015 CAPITÃES DA AREIA, UM RETRATO DO PRESENTE: REFLEXÕES SOBRE A NORMALIZAÇÃO DO SABER JURÍDICO E A NECESSIDADE DE FORMAÇÃO “DE RUA” DO BACHAREL EM DIREITO 1 Luiz Henrique Martim Herrera 2 “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo. Cultrix, 2003, p. 18) Resumo: o presente ensaio pretende demonstrar, a partir da obra “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, o papel da literatura como instrumento de reflexão sobre o Direito, na medida em que fornece elementos para se compreender a relação do Direito e o Estado com grupos sociais oprimidos. Em última instância, a obra fornece elementos para problematizar a temática da educação jurídica. PRÉ-TEXTO Direito é Literatura 3 . No processo de construção do texto (legal ou literário) entrecruzam ficção e a realidade. As ferramentas são as mesmas para o poeta e para o jurista: a retórica, a argumentação, a gramática, a linguagem, a técnica, a prudência (e a imprudência), compõem a estética. Na ficção, o idealizado; no real, os fatos. Na 1 Este ensaio é uma homenagem a Luiz Alberto Warat, quem em 1975, inaugurou os estudos sobre Direito e Literatura no Brasil com a obra “A ciência jurídica e seus dois maridos”, texto que toma por referência o romance “Dona Flor e seus dois maridos”, justamente de Jorge Amado. Neste livro, Warat tece críti cas ao modelo positivista praticado pela ciência jurídica, com reflexos na Educação Jurídica. 2 Mestre em Teoria do Direito e do Estado (UNIVEM). Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos éticos e políticos (UEL) e Especialista em Filosofia Política e Jurídica (UEL). Especialista em Antropologia (USC). Graduado em Direito na Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru/SP. Advogado e Professor Universitário. Dedica-se ao estudo de temas relacionados à Educação Jurídica e à Formação Humanística (Psicanálise, História, Ciência Política, Teoria do Estado, Constitucional, Filosofia, Sociologia, Antropologia, Estágio e Prática e Metodologia da Ciência). Autor da obra "Raízes da Educação Jurídica do Brasil" (Editora SAFE, 2015, 260p.) 3 Esta afirmação se sustenta em Ronald Dworkin: “Sustentarei que a prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. Mas o Direito não é uma questão de política pessoal ou partidária, e uma crítica do Direito que não compreenda essa diferença fornecerá uma compreensão pobre e uma orientação mais pobre ainda. Proponho que podemos melhorar nossa compreensão do Direito comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros campos do conhecimento, especialmente a literatura.” (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2001, p. 217).

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Faculdades Integradas – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab - Jahu ISSN 2318 - 566X

Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú

Volume 3 – 2015

CAPITÃES DA AREIA, UM RETRATO DO PRESENTE: REFLEXÕES

SOBRE A NORMALIZAÇÃO DO SABER JURÍDICO E A

NECESSIDADE DE FORMAÇÃO “DE RUA” DO BACHAREL EM

DIREITO1

Luiz Henrique Martim Herrera2

“A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir

essa distância que a literatura nos importa”. (BARTHES,

Roland. Aula. São Paulo. Cultrix, 2003, p. 18)

Resumo: o presente ensaio pretende demonstrar, a partir da obra “Capitães da Areia”,

de Jorge Amado, o papel da literatura como instrumento de reflexão sobre o Direito,

na medida em que fornece elementos para se compreender a relação do Direito e o

Estado com grupos sociais oprimidos. Em última instância, a obra fornece elementos

para problematizar a temática da educação jurídica.

PRÉ-TEXTO

Direito é Literatura3. No processo de construção do texto (legal ou literário)

entrecruzam ficção e a realidade. As ferramentas são as mesmas para o poeta e para

o jurista: a retórica, a argumentação, a gramática, a linguagem, a técnica, a prudência

(e a imprudência), compõem a estética. Na ficção, o idealizado; no real, os fatos. Na

1 Este ensaio é uma homenagem a Luiz Alberto Warat, quem em 1975, inaugurou os estudos sobre Direito e Literatura no Brasil com a obra “A ciência jurídica e seus dois maridos”, texto que toma por referência o romance “Dona Flor e seus dois maridos”, justamente de Jorge Amado. Neste livro, Warat tece críticas ao modelo positivista praticado pela ciência jurídica, com reflexos na Educação Jurídica. 2 Mestre em Teoria do Direito e do Estado (UNIVEM). Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos éticos e políticos (UEL) e Especialista em Filosofia Política e Jurídica (UEL). Especialista em Antropologia (USC). Graduado em Direito na Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru/SP. Advogado e Professor Universitário. Dedica-se ao estudo de temas relacionados à Educação Jurídica e à Formação Humanística (Psicanálise, História, Ciência Política, Teoria do Estado, Constitucional, Filosofia, Sociologia, Antropologia, Estágio e Prática e Metodologia da Ciência). Autor da obra "Raízes da Educação Jurídica do Brasil" (Editora SAFE, 2015, 260p.) 3 Esta afirmação se sustenta em Ronald Dworkin: “Sustentarei que a prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. Mas o Direito não é uma questão de política pessoal ou partidária, e uma crítica do Direito que não compreenda essa diferença fornecerá uma compreensão pobre e uma orientação mais pobre ainda. Proponho que podemos melhorar nossa compreensão do Direito comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros campos do conhecimento, especialmente a literatura.” (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2001, p. 217).

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ficção, o texto; no real, a norma. Direito é Literatura na medida em que permeado por

ficções e realidades sobre as quais se é possível compreender e interpretar.

Direito é Arte1. A Arte não produz unicamente o Belo. O Feio, o monstruoso,

representam também obras-primas. O texto legal, assim como o texto literário, podem

ser obras-primas belas ou feias. Uma lei pode ser fruto de idealizações sem nenhuma

correspondência com o real; o texto literário do mesmo modo. Uma obra-prima jurídica

pode ser ficcional, assim como o texto de um jurista na defesa de sua tese. Enfim,

tudo não passa da Arte de exercer a estética sobre a ficção ou sobre o real, seja uma

ficção que reproduza o feio ou o belo, seja pela narrativa de uma realidade de

satisfação ou de reprovabilidade.

Pois bem. A reflexão sobre o Direito a partir de interfaces que extrapolam as

lógicas jurídicas – a exemplo da proposta do presente livro – oportuniza ao escritor

momentos profícuos para desnudar-se de formalidades científicas comumente

esperadas pela comunidade jurídica, permitindo-se à licença poética e de estilo. São

com experiência de diálogo com outras áreas do conhecimento que se vê,

efetivamente, a produção de algo verdadeiramente emancipatório2; o esclarecimento

– a saída do homem de sua menoridade3 – constitui-se num ato de coragem de se

servir de seu próprio entendimento. Imerso, porém, tão somente nos circuitos de poder

e discursos jurídicos, o entendimento acaba por ser caudatário da tutela de outro

(doutrina, tribunais, discursos de autoridade). Ainda que se rejeite tal influência,

invariavelmente a produção jurídica se encerra reprodutora dos sentidos postos na

moldura disciplinar. “Raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que desejardes, mas

obedecei!”, disse Emmanuel Kant.

Por outro lado o diálogo transdisciplinar nos fornece espaço para livremente

1 Esta afirmação se sustenta em Gustav Radbruch: “O direito pode servir-se da arte, e esta dele. Como todo fenômeno cultural, o direito necessita de meios corpóreos de expressão: da linguagem, dos gestos, dos trajes, dos símbolos e edifícios. Como qualquer outro meio, também a expressão corpórea do direito está submetida à avaliação estética. E como fenômeno, o direito pode penetrar no domínio específico da valoração estética como matéria da arte.”. (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Trad. Marlene Holhausen. São Paulo: Martins Fontes. 2004, p. 156). 2 “O direito positivo na arte atual aparece ou como o destino fatal, no qual o indivíduo se despedaça, ou o poder insensível, contra o qual uma justiça suprema iça a bandeira da sublevação, talvez até mesmo simplesmente a estupidez burocrática, da qual a piada zomba com bom humor”. (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Trad. Marlene Holhausen. São Paulo: Martins Fontes. 2004, p. 160). 3 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo, in A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1990, passim.

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ampliar os conhecimentos, purificar-se dos erros e avançar no caminho do

esclarecimento, de desconstrução de dogmas. Numa dimensão científica em que se

entrecruzam Direito e Literatura a liberdade resurge sentida pelo alívio. Nessa medida

é que a literatura vem a ser instrumento para um olhar que suspende certezas e impõe

desordem ao sistema de regulação do Direito (calcado no edifício das certezas

jurídicas). Essa perspectiva é bem delineada por François Ost1:

O direito faz escolhas que se esforça por cumprir, em nome da ‘segurança jurídica’ à qual atribui a maior importância. Entre os interesses em disputa, ele decide; entre as pretensões rivais, opera hierarquias. Assim o exige sua função social que lhe impõe estabilizar as expectativas e tranquilizar as angústias. Livre dessas exigências, a literatura cria, antes de tudo, a surpresa: ela espanta, deslumbra, perturba, sempre desorienta. Isso produz, entre ela e o direito, uma segunda diferença importante. Livre para entregar-se às variações imaginativas mais inesperadas a propósito de um real sempre muito convencionado, ela explora, como laboratório experimental do humano, todas as saídas do caminho. Às vezes com passagens radicais que têm por efeito inverter os pontos de vista e engendrar novos olhares, quando não novas realidades.

O texto que se propõe explorar neste ensaio2 – “Capitães da Areia”, de Jorge

Amado – revela esta faceta: expõe o cotidiano de crianças vulneráveis às mazelas

sociais, abandonadas pelos pais e pelo Estado, e se insere numa vertente

humanística que revela os efeitos da marginalidade nos jovens pobres e sua relação

com um sistema social perverso, que os considera, inclusive “delinquentes” pelo

Código de Menores de 19273. O livro, em linhas gerais, tece críticas à sociedade

excludente e conservadora e posiciona-se em favor da transformação do real, da

emancipação dos sujeitos, numa “harmoniosa convivência e troca de serviços entre

literatura e estudos sociais”4. O contexto literário da década de 30 expõe mazelas

1 OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Tradução de Paulo Neves. São Leopoldo. Unisinos, 2004, p. 15. 2 Não serão levados em conta no presente artigo aspectos dos personagens ou cenas que possam retratar determinado fato. Nossa pretensão é valer-se genericamente do enredo para discutir o problema da exclusão social e, consequentemente, o quando a Educação Jurídica encontra-se afasta do “direito achado na rua”. 3 Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, que dispõe sobre a consolidação das leis de assistência e proteção a menores. 4 CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro. Ouro dobre Azul, 2006, p. 142.

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sociais que transcendem o tempo: mostra as brutais diferenças de classe, a má

distribuição de renda e os efeitos da marginalidade nas crianças e adolescentes

discriminados.

Daí sua leitura ser de fundamental importância nos dias de hoje, em que temas

como exclusão social, diferenças de classes, marginalidade e criminalidade praticada

por menores são caros ao enfrentamento com pés na realidade. No Brasil, tais

mazelas sociais persistem. São seculares, apesar de ser histórica a existência de

movimentos político-sociais de mitigação. O programa constitucional de 1988 custa a

ser concretizado, o que revela evidente a existência de barreiras à transposição entre

o real e o ficcional, o feio e o belo, a ordem e o caos, o dogmático e o zetético.

No livro, os jovens são protagonistas em uma sociedade que os oprime, que os

vê simplesmente como delinquentes. Crescidos, cada uma assume seu destino.

Novos moradores chegam ao trapiche e tudo indica que a história se repetira. Na

ficção tudo indica; na realidade, se repete.

Diante desse cenário, a obra nos fornece elementos para uma contranarrativa

à ordem sociojurídica1 e, consequentemente, problematizar a Educação Jurídica a

partir da reflexão sobre os rumos da construção do saber jurídico nas instituições de

ensino.

CONTEXTO

O texto literário “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, é considerada uma obra-

prima do movimento romancista neorrealista regionalista. Lançada em 1937, está

inserida no contexto brasileiro da década de 20 e 30, período em que o Brasil vive

intensa transformação política, econômica e social.

Já no século XIX, o sistema econômico (capitalista) passaria por profundas

transformações. O progresso da indústria, da tecnologia, deu origem a um processo

de reorganização das estruturas sociais. A concentração de operários, reivindicações

1 “[...] a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre atrasada ou adiantada com relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que irradia de noite o que improvisou durante o dia, e, por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que chega. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo. Cultrix, 2003, p. 18)

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salariais e desemprego, agitaram ideias contrapostas à política vigente. O modelo

liberal que outrora se fortalecia pelo projeto burguês, passa a ser alvo de críticas pela

classe operária, que reivindicava a liberdade econômica e a igualdade entre as

classes (e, consequentemente, fim das classes), tese protagonizada por Karl Marx,

sobretudo em seu Manifesto Comunista de 1848, em coautoria com Friedrich Engels.

O pensamento de Karl Marx – o Socialismo Científico – abriria caminho para

um movimento intelectual de rejeição ao projeto liberal. Isso viria a provocar no início

do século XX inúmeros manifestos populares que evocavam transformações de

imenso alcance social, porém, sob a vertente de um Estado Socialista. Esse contexto

histórico é lembrado por José Luiz Borges Horta1, em referência à encíclica papal

Rerum Novarum, de Leão XIII (1891):

As novas fontes de inspiração dos Direitos fundamentais são: 1) o Manifesto Comunista e as doutrinas marxistas, com sua crítica ao capitalismo burguês e ao sentido puramente formal dos Direitos do homem proclamados no século XVIII, postulando liberdade e Igualdade materiais num regime socialista; 2) a doutrina social da Igreja, a partir do Papa Leão XIII, que teve especialmente o sentido de fundamentar uma ordem mais justa, mas ainda dentro do regime capitalista [...]; 3) o intervencionismo estatal, que reconhece que o Estado deve atuar no meio econômico e social, a fim de cumprir uma missão protetora das classes menos favorecidas.

Na prática, entretanto, o que o passado demonstrou foram estados sociais que

mantiveram sobrevivente o sistema político-econômico ocidental, o capitalismo. Esse

sistema foi, inclusive, o vigente em períodos totalitários, a saber, na Alemanha nazista,

na Itália fascista, na Espanha franquista e em Portugal salazarista2.

Este cenário, paradoxalmente, revelou que o declínio das condições sociais se

tornava evidente ao passo que ocorria a expansão econômica do capitalismo. A

verdade é que o velho liberalismo – permeado pela influência do imperialismo

capitalista – não pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas

camadas proletárias da sociedade e por isso entrou irremediavelmente em crise. A

1 HORTA, José Luiz Borges. História do estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2011, p. 120. 2 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 184.

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estratificação das classes, o sufrágio censitário e o poder da burguesia de fazer o

governo e a lei, são exemplos de justificação desse movimento reacionário. A

intensificação desta crise lançaria a Europa para uma Guerra Mundial (1914-1918).

Em janeiro de 1918 – ainda no curso da guerra – os revolucionários russos,

inspirados pela revolução socialista Bolchevista de outubro de 1917, aprovariam a

Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado no III Congresso Panrusso

dos Sovietes, reconhecendo os Direitos econômicos e sociais. Desse encontro

ensejaria a Constituição Soviética de 10 de julho de 1918.

Nessa esteira, no Brasil, na contramão das aspirações liberais, surge o Partido

Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, ao qual Jorge Amado se filiaria em 1932 e se

tornaria Deputado Federal em 1946. Pontualmente, a obra é lançada pouco antes do

início do Estado Novo (1937), durante a Era Vargas (1930-1945).

A Era Vargas é marcada por sua forte tendência anticomunista. Afinal, o

movimento ideológico comunista foi o mais contundente adversário à ascensão de

Getúlio Vargas ao poder, a exemplo da “Coluna Prestes”, que percorreu o Brasil entre

1924-1927, lutando por abertura política e melhorias para o povo a partir de um ideário

revolucionário socialista, sem olvidar a contribuição do movimento “tenentista”1. Em

última instância visava a derrota de Getúlio Vargas na eleição de 1930.

Luiz Carlos Prestes foi líder do PCB e organizou uma insurreição no Brasil em

1935 por meio da Aliança Nacional Libertadora2, o que culminou em instabilidade

política e acirramento com as denominadas tendências fascistas (Ação Integralista3).

Esse contexto e, particularmente, a pessoa de Luiz Carlos Prestes, influenciaria Jorge

Amado, ao ponto desse publicar, em 1942, o livro intitulado "O Cavaleiro da Esperança

1 “O tenentismo vinha preencher o vazio deixado pela falta de lideranças civis aptas a conduzirem o processo revolucionário brasileiro que começava a sacudir as já caducas instituições políticas da República Velha. Os "tenentes" substituiriam os inexistentes partidos políticos de oposição aos governos oligárquicos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes. [...] Os "tenentes" eram parte de uma corporação militar com interesses próprios, mas essa instituição não estava afastada da sociedade e dos seus problemas por uma muralha chinesa; ao contrário, os militares não só provinham, em sua maioria, dos setores médios dessa sociedade, como mantinham estreito contato com as populações civis, com a vida nacional. É nesse complexo emaranhado de relações sociais que devem ser compreendidas as suas posições e atitudes, o seu comportamento político. [...]” (PRESTES, Anita Leocadia. A Coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 73). 2 Vide “À Nação Brasileira” da Aliança Nacional Libertadora, de 1934. Cf. CHACON, Vamireh. História dos partidos políticos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. 2 ed. Editora UNB, 1985, p. 327-330. 3 Vide “Manifesto Integralista de Outubro”, de 1932. Cf. CHACON, Vamireh. História dos partidos políticos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. 2 ed. Editora UNB, 1985, p. 333-338.

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– Vida de Luís Carlos Prestes"1:

Muito se tem falado nos motivos que resultaram na moderna literatura brasileira, na novelística e na crítica. Inúmeros artigos e ensaios se têm escrito sobre isso e não sei de nenhum que ligue o nome de Luiz Carlos Prestes a esse movimento. No entanto, ninguém teve em relação a ele uma importância maior, uma influência mais decisiva. [...] A moderna literatura brasileira, aquela que deu os grandes romances sociais, os estudos de sociologia, a reabilitação do negro, os estudos históricos, resulta diretamente do ciclo de movimentos iniciado em 22 que só encontrará seu término com o pleno desenvolvimento da revolução democrático-burguesa. 22, 24, 26, 30 e 35 trouxeram o povo à tona, interessaram-no nos problemas do Brasil, deram-lhe uma ânsia de cultura da qual resultou o movimento literário atual. E como Luiz Carlos Prestes foi e é a figura máxima de todos esses movimentos, chefe, condutor e general, a sua ligação com a moderna literatura brasileira é indiscutível. E essa literatura não tratou dele, da sua figura em nenhum momento.2

No ano de 1930, com a Revolução Liberal, tem-se o fim da República Velha,

da política do “Café com Leite”, dando-se início à derrocada da República das

Oligarquias. A dualidade do poder oligárquico de São Paulo e de Minas Gerais

possibilitou o surgimento de movimentos populares favoráveis à democratização e ao

desenvolvimento do país. Ocorre que, em novembro de 1930, Getúlio Vargas

assumiria o governo por meio de um golpe de Estado.

Doravante, empreende um projeto político de reconfiguração de Estado a partir

de reformas na esfera política, jurídica a administrativa, tendo como protagonista

Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos3. No plano jurídico, a

1 O livro foi publicado originalmente no idioma espanhol. Lançado em Buenos Aires, em 1942, Jorge Amado o escreveu por ocasião de seu autoexílio na Argentina e Uruguai. O livro foi lançado no Brasil somente em 1945, coincidindo com a libertação de Prestes, o fim do governo Vargas e a abertura política para o Brasil. Jorge Amado possui profunda adoração a Prestes. Confira: “Este não é nem pretende ser um livro frio. Não analiso uma figura distante na minha afeição. Nunca trataria de uma figura que não amasse. Este é um livro escrito com paixão, sobre uma figura amada. E, quanto ao equilíbrio e à imparcialidade, de referência a Luiz Carlos Prestes são coisas que não se faz necessário medir. Porque nele os lados negativos não surgiram nunca, nem nos dias de luta, nem nos dias de triunfo, nem nos dias de prisão, esses dias que despem o homem de todas as capas artificiais e o colocam nu nos seus verdadeiros sentimentos. Nestes dias Prestes apareceu ainda maior e mais Herói” AMADO, Jorge. O Cavaleiro da Esperança: vida de Luiz Carlos Prestes. Record, Rio de Janeiro: 1979, p. 18. 2 AMADO, Jorge. O Cavaleiro da Esperança: vida de Luiz Carlos Prestes. Record, Rio de Janeiro: 1979, p. 16

3 Com a implantação do Estado Novo, Francisco Campos elabora a Constituição de 10 de novembro de 1937 – outorgada por Getúlio Vargas –, possibilitando a abertura de uma grande renovação legislativa no Brasil. Inúmeros diplomas legais são preparados: Código de Processo Civil (1939), Lei de Registros Públicos (1939), Lei de Sociedade por Ações (1939), Código Penal (1940), Código de Processo Penal (1941), nova Lei de Introdução ao

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Revolução Constitucionalista de 1932 exigia a elaboração de um novo texto

constitucional, de modo a romper com o modelo de 1891. Em 1934, Getulio Vargas é

eleito Presidente da República por voto indireto. Vota-se e aprova-se a Constituição

Federal no mesmo ano.

A Aliança Nacional Libertadora assumiria posição de opositora ao governo;

adotaria o discurso anti-imperialista e de defensora do povo trabalhador e pobre.

Como consequência, Vargas, a pretexto de um suposto “estado de apreensão criado

no País pela infiltração comunista”1, imporia uma nova Constituição2.

A partir desses fundamentos tem-se que a narrativa de “Capitães da Areia” foi

fortemente influenciada pelo ideário comunista. Daí ser detectável a mensagem – sob

o viés marxista, de compromisso ideológico de esquerda – de luta por uma sociedade

mais igualitária a partir da temática da exclusão social, das diferenças de classes, da

marginalidade, e da violência. Em razão dessa adesão ideológica, o livro seria

censurado e incinerado pela Comissão Executora do Estado de Guerra sob o

argumento de ser “propagandista do credo vermelho”3.

Código Civil (1942) e Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Antonio Carlos Wolkmer é incisivo ao apontar as contribuições de Francisco Campos. “Francisco Campos foi o protótipo do jurista que sempre colocou seu saber enciclopédico a serviço das formas mais retrógradas e mais autoritárias que governaram o Brasil (mentor da Constituição ditatorial de Vargas e do Ato Institucional nº 1 do golpismo militar de 1964). Em sua tese Introdução Crítica à filosofia do Direito (Belo Horizonte, 1978), deixa claro todo seu repúdio a uma deontologia do Direito, fazendo apelo tanto ao positivismo naturalístico quanto à orientação cientificista, delegando à filosofia jurídica um papel meramente fenomenológico. (WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 173). 1 Este é um dos trechos que sustenta o Preâmbulo da Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas. Cf.: “Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). O Presidente da República dos

Estados Unidos do Brasil, ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente; ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas; Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o Pais:” (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm)

2 Cabe ressaltar que a Constituição de 1937, em razão de sua imposição, seria submetida a plebiscito nacional (Art. 187 - Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República). O plebiscito nunca ocorreu.

3 “Incinerados vários livros considerados propagandistas do credo vermelho”. Lide da matéria do Jornal “O Estado da Bahia”, de 17 de dezembro de 1937, p. 3. (Fonte: imagem mimeografada: in AMADO, Jorge. Capitães da areia. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, apenso).

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Por estas razões é que se pode dizer que Jorge Amado vale-se da arte da

literatura para denunciar, característica típica da prosa modernista de geração de 30.

Em síntese, a estética de Jorge Amado seria fruto de três acontecimentos de

importância decisiva, conforme explica Eduardo de Assis Duarte1:

A Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB. No momento em que o país comemora o primeiro centenário de independência política e procura fazer um exame crítico de sua história, tais eventos condensam – e irradiam – todo um sentimento de negação do status quo político, artístico e social. Modernismo, tenentismo e comunismo superam a condição de meros acontecimento circunscritos ao ano de 1922 e constituem-se em balizar muito claras para a literatura que irá surgir a partir de 1930.

Com uma linguagem coloquial, acessível ao leitor, a obra versa sobre temas

afetos à dimensão social popular. O próprio fluxo narrativo (carente de uma técnica

poética) transmite uma visão humanizada sobre os problemas sociais numa

sociedade de classes, do mundo intransponível entre desfavorecidos (excluídos) e a

burguesia (incluídos) no sistema capitalista. De outra banda, o contexto social narrado

e as personagens estereotipadas expõe um retrato um tanto quanto maniqueísta, em

que a classe pobre é essencialmente boa e oprimida pela malévola sociedade

burguesa.

TEXTO

O livro “Capitães da Areia” narra o cotidiano de um grupo de crianças e

adolescentes das ruas da cidade de Salvador, entregues a própria sorte e marcadas

pela infância de pobreza. O livro tem como olhar “as crianças abandonadas, que nas

cidades de Salvador e Aracaju, vivem do furto e de assaltos”, dizia Jorge Amado2. Em

diversas passagens do livro, os “Capitães da Areia” são retratados. Um trecho é

1 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 20.

2 AMADO, Jorge. A ronda das Américas. Salvador: Casa de Palavras. Fundação Casa de Jorge Amado, 2001, p. 15.

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lapidar:

Depois o Sem-Pernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinquenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. E o grupo era de mais de cem crianças, pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava. Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar, Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo Don'Aninha ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando. E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida.1

Durante todo o texto os menores são retratados a partir de uma narrativa

humanizada. Em tom lírico, o trapiche2, onde dormem – apesar dos ratos – é

acolhedor. Após seus atos de marginalização e violência para arranjar alimento e

dinheiro, se valem do trapiche como morada e esconderijo. No local estabelecem

regras éticas de convivência e laços de solidariedade. Os atos de marginalização, em

muitos momentos, compõe um enredo de descontração e de ética. Afinal, os “Capitães

da Areia” são os protagonistas da cidade: “Vestidos de farrapos, sujos, semi-

esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em

1 Ob. cit., p. 46. 2 Um armazém desativado no cais do porto, usado no passado como depósito de mercadorias destinados à exportação. O trapiche é o local escolhido por Jorge Amado como elemento para, veladamente, tecer críticas ao empobrecimento e abandono da cidade, originariamente escolhido como a principal potência econômica no período do Brasil-Colônia. Veja: “Sob a lua num velho trapiche abandonado as crianças dormem. Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. Desta ponte saíram inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de estranhas cores, para a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do mar-oceano, as noites diante dele eram de um verde escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite. Hoje a noite é alva em frente ao trapiche. É que na sua frente se estende agora o areal do cais do porto. Por baixo da ponte não há mais rumor de ondas. A areia invadiu tudo, fez o mar recuar de muitos metros. Aos poucos, lentamente, a areia foi conquistando a frente do trapiche. Não mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados. Não mais trabalharam ali os negros musculosos que vieram da escravatura. Não mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro nostálgico. A areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche. É nunca mais encheram de fardos, de sacos, de caixões, o imenso casarão. Ficou abandonado em meio ao areal, mancha negra na brancura do cais.” (Ob. cit., p. 27).

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verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a

amavam, os seus poetas.”1 Essa perspectiva revela uma postura de alteridade que

conduz à formulação de bases para uma compreensão dos fenômenos sociais

exposto à luz da antropologia e da sociologia.

De outro lado, os “donos do poder”: autoridades e forças políticas que se

esquivam dos reais problemas com manifestações retóricas, linguagem formal,

discursos de autoridades, a partir do que se imprime uma postura excludente e

procrastinatória.

As matérias jornalísticas expressam bem os motes de uma sociedade de

repressão e de rotulação dos menores como “delinquentes”. Essa era, inclusive, a

categoria jurídica dada pelo Código de Menores, instituído em 19272, no qual se

instituiu a doutrina da “situação irregular”.

Como medida saneadora – e porque não dizer higienista – os Comissários de

Menores, com suas “carrocinhas” conduziam as crianças (geralmente negras e

podres) para instituições de abrigo de menores, os reformatórios, onde se imporia

práticas de “normalização”. Na prática, tudo não passava de um assistencialismo

simbólico que fortalecia a estigmatização do “menor”. Em “Capitães da Areia” são

inúmeras as passagens que retratam relatos de tortura desses menores, de violação

de direitos humanos.

Não há de se olvidar que o Código Criminal de 1830, então vigente, tinha como

tônica mecanismos jurídicos de controle da “ordem pública” e da “manutenção da paz

social” por meio de técnicas de “economia das populações” consideradas

inconvenientes (mendigo, ébrio, vadio, delinquente). Esse contexto converge com a

ideia de “sociedade disciplinar” (ou de controle) de Michel Foucault, que bem delimita

os espaços entre o normal e o anormal. Os chamados “sujeitos de obediência” são

aqueles que são vistos sob o prisma do “não”, da proibição, da negatividade, a partir

do que se produzem, simbolicamente, loucos e delinquentes. Os jovens do Trapiche

eram estes anormais que haviam de ser “controlados”3.

1 Ob. cit., p. 29. 2 Decreto Federal n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. 3 A propósito, como dizia Michel Foucault “Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos, mas dos políticos;

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O livro é iniciado com cartas e reportagens fictícias1 (“Cartas à Redação”) que

expõem um contexto de escamoteamento pelo Poder Público. Na esteira de seu

realismo poético, Jorge Amado expõe diversas vozes sociais sobre as “Crianças

Ladronas”, título da primeira matéria, publicada no “Jornal da Tarde”.

As cartas têm como pano de fundo evidenciar a ideia de um modal

comportamental de ordem e punição àqueles que foram desprovidos de cuidado pelo

Estado; visa também por à mostra os estamentos2 numa sociedade de classes.

Apresenta-se abaixo a matéria jornalística que inaugura a obra:

CRIANÇAS LADRONAS – AS AVENTURAS SINISTRAS DOS CAPITÃES DA AREIA – A CIDADE INFESTADA POR CRIANÇAS QUE VIVEM DO FURTO – URGE UMA PROVIDÊNCIA DO JUIZ DE MENORES E DO CHEFE DE POLÍCIA – ONTEM HOUVE MAIS UM ASSALTO. Já por várias vezes nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias sobre a atividade criminosa dos Capitães da Areia, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo jus a uma imediata providência do juiz de menores e do Dr. Chefe de polícia. Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a cem crianças das mais

devemos compreender quais são as relações de luta e de poder E é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros – que compreendemos em que consiste o conhecimento”. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3 ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 23). Sobre o assunto, confira sobretudo: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. 1 Ob. cit. p. 11-23 2 Conforme nos explica Fábio Konder Comparato: “Foi de Weber que Faoro tomou emprestado o conceito-chave de estamento (Stand). A sociedade feudal européia havia sido estruturada em três estamentos – o clero, a nobreza

e o povo – cada qual com um estatuto jurídico próprio, e encarregado, permanentemente, de determinada função social. Aos nobres, por isso chamadosbellatores, competia guerrear; aos clérigos, orar (oratores); ao povo, ou melhor dizendo, aos servos camponeses, lavrar a terra (laboratores). Weber deu à noção de situação estamental (ständische Lage) uma abrangência maior e descreveu-a com contornos menos precisos. Tratar-se-ia, assim, de

uma situação de privilegiada estima ou consideração social, da qual gozam certos grupos de pessoas, ainda que essa posição não seja juridicamente reconhecida. Tal situação pode ocorrer, segundo ele, tanto no tipo de senhorio político tradicional (traditionelle Herrschaft), como no tipo moderno, por ele denominado "poderio legal com quadro administrativo burocrático" (legale Herrschaft mit bürokratischem Verwalgungsstab). Ora, uma das modalidades do senhorio político tradicional, na classificação de Weber, seria a estamental-patrimonial (ständische-patrimoniale Herrschaft), em que o estamento dominante utiliza-se do poder político como se fora sua propriedade (de onde o subtítulo da obra de Faoro)”. COMPARATO, Fábio Konder. Faoro historiados. in Estudos Avançados, vol. 17, n. 48, São Paulo, Mai./Ago., 2003, p. 333.. Nas palavras de Raymundo Faoro, vide nota 44.

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diversas idades, indo desde os oito aos dezesseis anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimento cristão, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São chamados de Capitães da Areia porque o cais é o seu quartel-general. [...]1

O excerto expõe a crítica de Jorge Amado aos discursos de poder (elite,

imprensa e das autoridades do sistema penal e judiciário). Segundo a opinião do jornal

local – que invoca a representação da moralidade vigente – os menores delinquentes

seriam os próprios culpados pela sua condição naturalmente criminosa, mesmo

porque não foram guarnecidos por um “sentimento cristão” por seus pais2.

A solução dada no editorial seria a imediata criminalização/judicialização da

questão, postura não muito diferente da dada nos dias atuais. Na sequência o texto

de Jorge Amado prossegue com a carta-resposta de algumas autoridades, de uma

costureira e a do pároco da igreja.

CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr. Diretor do Jornal da Tarde. Cordiais saudações. Tendo chegado ao conhecimento do Dr. Chefe de Polícia a local publicada ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos "Capitães da Areia", bando de crianças delinquentes, e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na residência do comendador José Ferreira, o Dr. Chefe de Polícia se apressa a comunicar à direção deste jornal que a

1 Ob. cit., p. 11. 2 A propósito, apesar da revogação do Código de Menores de 1927, o Código de Menores de 1980 continuou com a tônica de focalizar a responsabilização aos pais. Vejamos: Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei. Parágrafo único - As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de dezoito anos, independentemente de sua situação. Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal. Parágrafo único. Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.

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solução do problema compete antes ao juiz de maiores que à policia. A polícia neste caso deve agir em obediência a um pedido do Dr. Juiz de Menores. Mas que, no entanto, vai tomar sérias providências para que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores do de anteontem sejam presos para sofrerem o castigo merecido. Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica pela sua atitude em face desse problema. Não tem agido com maior eficiência porque não foi solicitada pelo juiz de menores. Cordiais saudações. Secretário do Chefe de Policia. (Publicada em primeira página do Jornal da Tarde, com clichê do chefe de polícia e um vasto comentário elogioso.)1

Nesta carta, Jorge Amado expõe o habitual comportamento das instâncias de

Estado à frente de sua própria incapacidade de solucionar problemas sociais: desloca-

se a questão de mérito – o problema em si a ser resolvido – valendo-se de argumentos

de cunho procedimental, formal (de quem é a competência?). Diante de problemas

sociais evidentes e historicamente negligenciados, o discurso, via de regra, assume

contornos políticos. A imputação das responsabilidades a outrem tem se revelado o

modo-regra do agir institucional diante de questões sensíveis e de alta complexidade

(miséria, distribuição de renda, marginalidade, violência).

Esta postura de tangenciar soluções ou responsabilidades num espectro

microfísico, reverbera, sintomaticamente, em escala macro-sistêmica. Ainda hoje,

aproximadas três décadas de modelo federado de cooperação instituído na

Constituição Federal de 1988, não raro se deparar com debates políticos que cingem

tentar encontrar o responsável pela não consecução de projetos sociais. Pouco se

avança, em termos pragmáticos, em projetos para consecução articulada entre os

entes federativos ou entre veículos institucionais e sociedade organizada (articulação

entre polícia, poder judiciário, sociedade civil e poder executivo).

Na sequência, o jornal publica carta-resposta do juiz de menores, pela qual se

defende da acusação de negligência na repressão aos menores.

CARTA DO DOUTOR JUIZ DE MENORES À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE

1 Ob. cit., p. 15.

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Exmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarde. Cidade do Salvador Neste Estado. Meu caro patrício. Cordiais saudações. Folheando, num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas preocupações do meu espinhoso cargo, o vosso brilhante vespertino, tomei conhecimento de unia epístola do Infatigável doutor Chefe de Polícia do Estado, na qual dizia dos motivos por que a Polícia não pudera até a data presente intensificar a meritória campanha contra os menores delinquentes que infestam a nossa urbe. Justifica-se o doutor Chefe de Polícia declarando que não possuía ordens do juizado de menores no sentido de agir contra a delinquência infantil. Sem querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável Chefia de Polícia, sou obrigado, a bem da verdade (essa mesma verdade que tenho colocado como o farol que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima), a declarar que a desculpa não procede. Não procede, Sr. Diretor, porque ao juizado de menores não compete perseguir e prender os menores delinquentes e, sim, designar o local onde devem cumprir pena, nomear curador para acompanhar qualquer processo conta eles instaurado, etc. Não cabe ao juizado de menores capturar os pequenos delinquentes. Cabe velar pelo seu destino posterior. E o Sr. doutor Chefe de Polícia sempre há de me encontrar onde o dever me chama, porque jamais, em 50 anos de vida impoluta, deixei de cumpri-lo. Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores vários menores delinquentes ou abandonados. Não tenho culpa, porém, de que fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho. Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho. Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim, simples curioso da filosofia. O que quero deixar claro e cristalino, Sr. Diretor, é que o doutor Chefe de Polícia pode contar com a melhor ajuda deste juizado de menores para intensificar a campanha contra os menores delinquentes. De V. Exa., admirador e patrício grato, Juiz de Menores. (Publicada no jornal da Tarde com o clichê do juiz de menores

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em uma coluna e um pequeno comentário elogioso)1

Valendo-se da mesma lógica (retórica, linguagem formal, discurso de

autoridade e atitude procrastinatória), o juiz de menores expõe o seu papel frente à

delinquência juvenil e devolve à polícia a responsabilidade. Delimita sua atuação. Atua

sempre a posteriori ao delito. Ou seja, como ato consequente, tem a função de julgar

e encaminhar os delinquentes e abandonados para o Reformatório de Menores, local

que, na visão do juiz, é um ambiente de paz, de trabalho e de afeto; um espaço

exemplar para bem conduzir a vida dos internados. Deixa claro que não é de sua

competência buscar soluções à delinquência, assunto que deve ser resolvido por

psicólogos. A propósito de sua postura, ficcional – do ponto de vista literário – ela

traduz bem o senso jurídico da época, a exemplo do pronunciamento (paradoxal) do

Juiz de Menor Noé Azevedo, de 1920.

Não impõem os juízes de menores penas ou castigos, com o fito

de vingar um mal passado; prescrevem medidas que evitem um

mal futuro, por meio da reforma ou educação dos criminosos ou

abandonados. Inspiram-se em sentimento de uma justiça

esclarecida, que não enxerga só as causas imediatas do crime,

pesquisando a intenção do autor; eles vão estudar os seus

antecedentes, as taras dos antepassados, os vícios do ambiente

em que foi criado o menor, a fim de ensaiar um tratamento capaz

de o resgatar e reconduzir para o grêmio da gente honesta2.

O texto ficcional é monumental. Jorge Amado consegue com precisão

demonstrar diversos paradoxos: um juiz que decide, mas que não quer saber o porquê

esta decidindo (a causa da delinquência); um juiz que acredita na recuperação, mas

que não quer saber o porquê os menores não se recuperam; um juiz afeto à filosofia,

1 Ob. cit., p. 16-17. 2 AZEVEDO, Noé. Dos tribunais especiais para menores delinquentes e como podem ser criados entre nós. São Paulo, 1920, p. 129 apud prefácio de Adriano Marrey em prefácio ao livro: Associação Paulista de Magistrado.

Menores. RT, 1980, p. 12. Já em 1972, o presidente do Tribunal de Menores de Paris, manifesta numa outra perspectiva: “o juiz das relações humanas, que intervém no coração dos conflitos que existem entre menores e a sociedade, entre eles e sua família; ele vai além da família, relaciona-se também com a comunidade, as equipes técnicas, os serviços administrativos, as instituições particulares; deve obter a adesão da família; falar uma linguagem não estereotipada, não convencional; deve ter uma educação contínua; ir alem dos seus julgamentos; acompanhar as medidas decretadas; acompanhar o progresso das técnicas das ciências sociais e humanas; deve ser uma autoridade real e reconhecida”. (apud CAVALIERI, Alyrio. Direito do menor. Livraria Freitas Bastos S.A. Rio de Janeiro, 1976, p. 254).

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mas que, aparentemente, não possui qualquer capacidade de juízo crítico e que não

deseja se aprofundar na questão, pois a resolução estaria no campo da psicologia.

Sua postura, a propósito, assemelha-se ao modelo de jurista produzido pelas

faculdades de Direito nos dias de hoje.

Na sequência, a costureira Maria Ricardina, mãe de um menino que fora interno

no reformatório, encaminha carta ao jornal – numa clara intenção de Jorge Amado em

explicar os porquês ao juiz de menores – na qual denuncia o tratamento desumano

dado no Reformatório. Seu testemunho é confirmado, na sequência, por carta

subscrita pelo padre José Pedro.

CARTA DE UMA MÃE, COSTUREIRA, À REDAÇÃO DO

JORNAL DA TARDE

Sr. Redator:

Desculpe os erros e a letra pois não sou costumeira nestas

coisas de escrever e se hoje venho a vossa presença é para

botar os pontos nos ii. Vi no jornal uma notícia sobre os furtos

dos "Capitães da Areia" e logo depois veio a polícia e disse que

ia perseguir eles e então o doutor dos menores veio com uma

conversa dizendo que era uma pena que eles não se

emendavam no reformatório para onde ele mandava os pobres.

É pra falar no tal do reformatório que eu escrevo estas mal

traçadas linhas. Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa

ver o tal do reformatório para ver como são tratados os filhos dos

pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas

sem alma. Meu filho Alonso teve lá seis meses e se eu não

arranjasse tirar ele daquele inferno em vida, não sei se o

desgraçado viveria mais seis meses. O menos que acontece

pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia. O

diretor de lá vive caindo de bêbedo e gosta de ver o chicote

cantar nas costas dos filhos dos pobres. Eu vi isso muitas vezes

porque eles não ligam pra gente e diziam que era para dar

exemplo. Foi por isso que tirei meu filho de lá. Se o jornal do

senhor mandar uma pessoa lá, secreta, há de ver que comida

eles comem, o trabalho de escravo que têm, que nem um

homem forte aguenta, e as surras que tomam. Mas é preciso que

vá secreto senão se eles souberem vira um céu aberto. Vá de

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repente e há de ver quem tem razão. E por essas e outras que

existem os "Capitães da Areia". Eu prefiro ver meu filho no meio

deles que no tal reformatório. Se o senhor quiser ver uma coisa

de cortar o coração vá lá. Também se quiser pode conversar

com o Padre José Pedro, que foi capelão de lá e viu tudo isso.

Ele também pode contar e com melhores palavras que eu não

tenho.

Maria Ricardina, costureira.

(publicada na quinta pagina do jornal da Tarde, entre anúncios,

sem clichês e sem comentários)1

A carta é um retrato atualíssimo da realidade, que subsiste no nosso sistema

policial e carcerário. O texto é perspicaz ao apresentar nas entrelinhas que a violação

aos direitos humanos custa a ser revelada. Daí porque, simbolicamente, o juiz não

sabe o porquê que os menores saem piores do reformatório. Esta pergunta encontra-

se respondida no texto: a conivência do Estado.

Não é novidade alguma que o sistema carcerário é ineficiente e retroalimenta

a criminalidade, tanto que o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347 (decisão de

27/8/15) reconheceu sê-lo, estruturalmente, um “estado de coisas inconstitucional”2.

A carta de Maria Ricardina clama, ainda, que alguém do jornal (e porque não o juiz de

menores), certifique a denuncia, bastando que não se avise as autoridades

previamente, por razões óbvias. Na sequência, o padre José Pedro – mencionado na

carta – sente-se no dever de “sair da obscuridade” em que vive para confirmar todos

os abusos praticados pelas no reformatório.

CARTA DO PADRE JOSE PEDRO À REDAÇÃO DO JORNAL

DA TARDE

Sr. Redator do Jornal da Tarde.

1 Ob. cit., p. 18-19. 2 Segundo STF, o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” necessita dos seguintes pressupostos: a) vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas; b) prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos; c) a superação das violações de direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou formulação de novas políticas, dentre outras medidas; e d) potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados acorrerem individualmente ao Poder Judiciário.

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Saudações em Cristo.

Tendo lido, no vosso conceituado jornal, a carta de Maria

Ricardina que apelava para mim como pessoa que podia

esclarecer o que é a vida das crianças recolhidas ao reformatório

de menores, sou obrigado a sair da obscuridade em que vivo

para vir vos dizer que infelizmente Maria Ricardina tem razão.

As crianças no aludido reformatório são tratadas como feras,

essa é a verdade. Esqueceram a lição do suave Mestre, Sr.

Redator, e em vez de conquistarem as crianças com bons tratos,

fazem-nas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos

e castigos físicos verdadeiramente desumanos. Eu tenho ido lá

levar às crianças o consolo da religião e as encontro pouco

dispostas a aceitá-lo devido naturalmente ao ódio que estão

acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade.

O que tenho visto, sr. Redator, daria um volume.

Muito grato pela atenção.

Servo em Cristo, Padre José Pedro

(Carta publicada na terceira página do Jornal da Tarde, sob o

título Será Verdade? e sem comentários.)1

Ao final da carta, Jorge Amado é magistral ao por em xeque a parcialidade da

imprensa ou, porque não, de expor a relação espúria que possa haver entre as

instâncias de comunicação e as estruturas de poder. “Será Verdade?”, indaga o jornal

ao publicar a carta do padre José Pedro. Agora a denuncia não partiria de “uma

mulherzinha do povo” (como adjetivará o diretor do reformatório), mas sim de um

personagem de indiscutível influência da sociedade, porquanto autoridade religiosa

na cidade de Salvador, no contexto da década de 20. Por certo que o jornal não

cometeria o erro de não publicar a carta da mãe e do padre “demônio”, de modo

impedir a exposição das autoridades diretamente implicadas no cenário de violação

de direitos humanos. Mais que isso: o jornal irá se valer de tais cartas para,

habilidosamente, atender às forças ocultas do poder.

CARTA DO DIRETOR DO REFORMATÓRIO À REDAÇÃO DO

JORNAL DA TARDE

1 Ob. cit., p. 20.

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Exmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarde.

Saudações.

Tenho acompanhado com grande interesse a campanha que o

brilhante órgão da imprensa baiana, que com tão rútila

inteligência dirigis, tem feito contra os crimes apavorantes dos

"Capitães da areia", bando de delinquentes que amedronta a

cidade e Impede que ela viva sossegadamente. Foi assim que li

duas cartas de acusações contra o estabelecimento que dirijo e

que a modéstia (e somente a modéstia, sr. Diretor) me impede

que chame de modelar. Quanto à carta de uma mulherzinha do

povo, não me preocupei com ela, não merecia a minha resposta.

Sem dúvida é uma das multas que aqui vêm e querem impedir

que o Reformatório cumpra a sua santa missão de educar os

seus filhos. Elas os criam na rua, na pândega, e como eles aqui

são submetidos a uma vida exemplar, elas são as primeiras a

reclamar, quando deviam beijar as mãos daqueles que estão

fazendo dos seus filhos homens de bem. Primeiro vêm pedir

lugar para os filhos. Depois sentem falta deles, do produto dos

furtos que eles levam para casa, e então saem a reclamar contra

o Reformatório. Mas, como já disse, sr. Diretor, esta carta não

me preocupou. Não é uma mulherzinha do povo quem há de

compreender a obra que estou realizando à frente deste

estabelecimento. O que me abismou, sr. Diretor, foi a carta do

Padre José Pedro. Este sacerdote, esquecendo as funções do

seu cargo, velo lançar contra o estabelecimento que dirijo graves

acusações. Esse padre (que eu chamarei padre do demônio, se

me permitis uma pequena ironia, sr. Diretor) abusou das suas

funções para penetrar no nosso estabelecimento de educação

em horas proibidas pelo regulamento e contra ele eu tenho de

formular uma séria queixa: ele tem incentivado os menores que

o Estado colocou a meu cargo à revolta, à desobediência. Desde

que ele penetrou os umbrais desta casa que os casos de

rebeldia e contravenções aos regulamentos aumentaram. O tal

padre é apenas um instigador do mau caráter geral dos menores

sob a minha guarda. E por isso vou fechar-lhe as portas desta

casa de educação. Porém, sr. Diretor, fazendo minhas as

palavras da costureira que escreveu a este jornal, sou eu quem

vem vos pedir que envieis um redator ao Reformatório. Disso

faço questão. Assim podereis, e o público também, ter ciência

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exata e fé verdadeira sobre a maneira como são tratados os

menores que se regeneram no Reformatório Baiano de Menores

Delinquentes e Abandonados. Espero o vosso redator na

segunda-feira. E se não digo que ele venha no dia que quiser é

que estas visitas devem ser feitas nos dias permitidos pelo

regulamento e é meu costume nunca me afastar do

regulamento. Este é o motivo único por que convido o vosso

redator para segunda-feira. Pelo que vos fico imensamente

grato, como pela publicação desta. Assim ficará confundido o

falso vigário de Cristo.

Criado agradecido e admirador atento, Diretor do Reformatório

Baiano de Menores Delinquentes e Abandonados.

(Publicada na 3º página do Jornal da Tarde com um clichê do

reformatório e uma notícia adiantando que na próxima segunda-

feira irá um redator do Jornal da Tarde ao reformatório.)1

A série de manifestações se encerra quando o Jornal, assumindo os interesses

dos donos do poder, encaminha um repórter para visitar ao reformatório, com hora e

dia marcados, a convite do diretor. Após a visita, a reportagem destaca ser o

reformatório “um estabelecimento modelar onde reinam a paz e o trabalho”.

UM ESTABELECIMENTO MODELAR ONDE REINAM A PAZ E

O TRATADO - UM DIRETOR QUE É UM AMIGO - ÓTIMA

COMIDA - CRIANÇAS LADRONAS EM CAMINHO DA

REGENERAÇÃO - ACUSAÇÕES IMPROCEDENTES - SÓ UM

INCORRIGÍVEL RECLAMA - O REFORMATÓRIO BAIANO É

UMA GRANDE FAMÍLIA - ONDE DEVIAM ESTAR OS

CAPITÃES DA AREIA.

(Títulos da reportagem publicada na segunda edição de terça-

feira do jornal da Tarde, ocupando toda a primeira página, sobre

o Reformatório Baiano, com diversos clichês do prédio e um do

diretor.)2

Por meio desses discursos, a narrativa de Jorge Amado põe em evidência os

1 Ob. cit., p. 21-23. 2 Ob. cit., p. 24.

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interesses de dois segmentos sociais, representados por aqueles que fazem parte do

poder instituído, as elites, e por aqueles, na figura da costureira e do padre, que

representam o descontentamento de uma parcela pobre, vítima da repressão das

instituições do sistema penal, e da qual o narrador toma partido na trama, dando-lhe

existência e dignidade.

A reportagem, divulgada em toda a primeira página, endossa a tese de que as

acusações são improcedente. O resultado seria obviamente este, considerando a

nítida relação entre as forças políticas que objetivam a manutenção de um modelo de

segregação que decorre de uma visão estereotipada dos menores delinquentes e

abandonados numa sociedade de classes.

Este “fechar os olhos” tem sido a postura adotada pelo Estado diante de

problemas sistemicamente desestruturados. Quando as verdades são reveladas,

entretanto, todos se moralizam; os discursos éticos surgem em prol da punição dos

culpados e para cobrar resolução pelo Estado. Na prática o que se vê são reações

político-governamental pontuais e não consistentes; não são estruturadas como

programas de Estado, mas sim como programas de governo (temporários). Possuem

como marca distintiva, o que Marcelo Neves denomina de legislação simbólica, cuja

finalidade manifesta é criar uma imagem favorável do Estado no que concerne à

resolução de problemas sociais como estratagema para adiar a solução (compromisso

dilatório)1.

De um modo geral, o livro retrata a catastrófica situação social da Bahia. Eram

inúmeros os desassistidos pelo Poder Público, que acabaram por ocupar o morro, a

Cidade da Palha, o bairro operário de Itapagipe, o cais e algumas ruas do centro

(cidade baixa). Expõe, também, que a modernização urbanística acentuou a

miserabilidade dos pobres, uma vez que todo desenvolvimento e infraestrutura eram

direcionados onde viviam as elites (cidade alta). O contraste entre Cidade Alta, com

refinamento e conforto, e a miséria no trapiche, cidade baixa, zona portuária onde

vivem meninos invisíveis aos olhos da sociedade, persiste em todo o Brasil. O cenário

ficcional não é diferente do das grandes cidades brasileira nos dias atuais. As cidades

crescem claramente numa perspectiva que acentua a divisão entre incluídos e

1 NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 27-43.

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excluídos.

PÓS-TEXTO

A tônica da obra “Capitães da Areia” é a exclusão social. Jorge Amado explora

esta temática com um profundo realismo e, para tanto, coloca como protagonistas os

meninos de rua do “Trapiche”. Com olhos voltados para o social, faz dos “Capitães da

Areia” cidadãos titulares de direitos subjetivos, mas que, relegados pelo Estado,

vivenciam a experiência de desproteção e do estado de ilegalidade. Nas palavras de

Giorgio Agamben seriam aqueles que experienciam a vida nua, acuados a viver em

estado de exceção, intocados por codificações sociopolíticas1.

Sob outra ótica, a obra expõe um contexto social de privilégios e de

desenvolvimento das estruturas institucionais e políticas centralizadas, pelas quais se

permite a continuidade e permanência das estruturas políticas (comportamento

estamental, dos donos do poder) e a uma sociedade de incluídos e excluídos2.

Diante desse cenário, o presente ensaio visa, em conclusão, provocar reflexão

sobre o distanciamento da Educação Jurídica da realidade.

A realidade revela que pouquíssima coisa mudou em relação à história dos

meninos do Trapiche. As “crianças ladronas”, jovens que infestaram a urbe de

Salvador na década de 20 e 30, são os mesmos que hoje organizam arrastões ou

“rolezinhos”, moram nas ruas, “trabalham” nos semáforos, se entorpecem, frutam,

traficam, matam para roubar. Como solução, o Brasil discute a delinquência de jovens

sobre a perspectiva da punibilidade3, do mesmo modo como o Dr. Chefe de Polícia, o

1 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, passsim. 2 “O caminho burocrático do estamento, em passo entremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal [...] Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelho político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo de cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores”. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patrimônio político brasileiro. 5 ed. São Paulo: Globo, 2012, p. 823-824. 3 A discussão sobre a redução da maioridade penal do Brasil é sempre revolvida quando algum fato indigna a sociedade. Porém, o parlamente tem se revelado incapaz de promover um debate científico e sob a perspectiva do Direito (em sentido amplo, isto é, sob as inúmeras interfaces que o Direito perpassa). Os discursos sempre desviam para conotações políticas e populistas, de modo que há propostas de redução para 16 e para 14 anos. Na verdade não há homogeneidade no conceito de menoridade ou infância, em sentido lado, por razões de natureza sociocultural. Nesse período podem variar o tempo psicológico e o social. Pode haver um desequilíbrio

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Dr. Juiz de Menores e o Diretor do Reformatório.

É nesse ponto que a obra “Capitães da Areia”, proporciona uma abertura da

consciência para o popular da nossa realidade, fornecendo ingredientes para

pensarmos numa reconciliação da dogmática com o humanismo, ou em outras

palavras, da técnica com a práxis. Pode parecer óbvio, mas a Educação Jurídica não

pode ignorar as dimensões da realidade, como se a norma não tivesse qualquer

relação e dependência com o mundo-da-vida.

É justamente na rua que o direito se dá e se exorta. Numa sociedade

extremamente desigual como a brasileira, “estranho” que os cursos de Direito, em sua

grande maioria, apresente-se cômodo, inebriado pelo utilitarismo da técnica. A

Educação Jurídica deixou de se preocupar com a verdade, a rua. A Educação Jurídica

é uma trincheira que resiste (teimosa-mente) a essa viragem humanística, crítica e

prática.

Historicamente, o estilo dogmático que delineou as práticas judiciárias, a teoria

jurídica e os métodos de ensino, serviu de aporte ideológico para que as instâncias

jurídicas e políticas – em correspondência aos anseios de um Brasil-colonial, imperial

e ditatorial – fizessem do Direito um instrumento legitimador – por meio das normas

positivas e procedimentos formais – de uma sociedade desigual. Não há dúvidas de

que essa tradição foi importante para o desenvolvimento das formas jurídicas, pois a

racionalização do conhecimento jurídico é útil para sistematizar os parâmetros de

entre maturidade física e maturidade psicológica. De um modo geral, o limite da idade de 12 anos para o adolescente potencializou a concepção inflacionária da delinquência dos menores, ao compreender outros tipos de desvios comportamentais, como a pré-inadaptação social e a pré-delinquencia. Particularmente, o Projeto de Emenda Constitucional – PEC 171/93, que visa a alterar o art. 228 da Constituição Federal brasileira de forma a estabelecer a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Cabe aqui nossa particular opinião: reduzir a maioridade penal é uma solução simplista e simbólica para problemas complexos e sérios (educação, desigualdade social etc.); é demagógica, porque quer encarcerar mais sem antes equacionar os problemas dos presídios; é populista e simbólica, pois é álibi político para sedar a ira e dar alento ao profundo sentimento de impotência da população; é contra a história, tendo em vista que o endurecimento das penas desde a década de 40 só aumentou a criminalidade; é retrograda, pois desconsidera a evolução dos direitos humanos e da garantia do não retrocesso; é antiemancipatória, pois não vem acompanhada de subsídios para a reflexão sobre as reais causas da criminalidade, imprimindo, por consequência, justificativas de senso comum; é uma agravante, pois a sociedade vivenciará o encarceramento de cidadãos ainda mais jovens, jovens invariavelmente pobres e excluídos. Por ocasião dos debates sobre a PEC 171/93 a ONU divulgou artigo técnico sobre a maioridade penal no Brasil. Em um dos trechos destaca: “A redução da maioridade penal opera em sentido contrário à normativa internacional e às medidas necessárias para o fortalecimento das trajetórias de adolescentes e jovens, representando um retrocesso aos direitos humanos, à justiça social e ao desenvolvimento socioeconômico do país. Salienta-se, ainda, que se as infrações cometidas por adolescentes e jovens forem tratadas exclusivamente como uma questão de segurança pública e não como um indicador de restrição de acesso a direitos fundamentais, o problema da violência no Brasil poderá ser agravado, com graves consequências no presente e futuro.” (https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/06/Position-paper-Maioridade-penal-1.pdf).

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controle epistemológico da própria dogmática jurídica. A dogmática jurídica cumpre

sua função de construir uma identidade estrutural do Direito (ela compõe a estrutura

do eixo de formação profissional e prática), formulando proposições, categorias e

princípios obtidos a partir dos conceitos jurídicos extraídos do texto legal e para o

próprio processo legislativo.

Ocorre que sob esta única perspectiva – a dogmática – as estruturas prévias

de legitimação e justificação não são questionadas. E neste ponto que a Educação

Jurídica se afasta de seu verdadeiro objeto: os dilemas reais da rua. Afinal, diante do

grito dos excluídos, quais os obstáculos que impedem que a Educação Jurídica os

escute e os acolha? Qual o obstáculo para que, valendo-se da rua, se ensine a

dogmática?

Creditamos esta dificuldade, justamente, pelo histórico de um ensino

dogmático, indiferente à dimensão fundamental – Antropologia, Ciência Política,

Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia, Sociologia e Direitos Humanos. O que

acontece é que no plano pedagógico as práticas didáticas e os conteúdos continuam

a ser ensinados com amparo em verdades normativas e de modo unidisciplinar, hábito

este fortalecido pelos “cursinhos preparatórios” – alinhados com o paradigma

dogmático dos concursos – e pela idolatria aos manuais de ensino (uniformizadores

de sentido) e exame de ordem (instância que legitima a “boa” formação). Ora, não há

razão para se mudar os modelos curriculares e as práticas pedagógicas se as

exigências do mercado impulsionam a manutenção dos mesmos hábitos do passado.

Os estamentos sobrevivem.

Ademais, cotidianamente se ensina que as leis e os direitos são para todos, ao

passo que todos têm por evidente que boa parte das pessoas está alijada da esfera

de concretização dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição

Federal. A obra “Capitães da Areia” nos demonstra uma realidade de exclusão social

que custa a ser sanada. Daí se pôr em reflexão outro aspecto da Educação Jurídica,

que possui direta relação com a rua: a inserção na sociedade por meio da pesquisa e

da extensão.

O conhecimento dogmático deve conviver numa unicidade sistêmica que capta

outros saberes, em prol de uma leitura integral do Direito. A formação humanística,

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interdisciplinar e, em última instância, transdisciplinar, bem como a articulação da

pesquisa e da extensão com o ensino, são os eixos condutores de um processo de

modernização da educação jurídica, de reconciliação da técnica com a práxis, enfim,

de redenção com seu débito histórico para com a sociedade. As perspectivas

humanista, interdisciplinar e transdisciplinar partem da ideia de que a ciência jurídica

– assim como toda e qualquer ciência – é insuficiente para subsidiar o próprio

conhecimento jurídico. A capacitação técnica do aluno é indissociável da reflexão

crítica e substancial das ideias jurídicas.

Parece indispensável relembrar que pesquisa, ensino e extensão – por força

normativa – são atividades coligadas e que se devem conjugar em plena integração

na arquitetura do ensino superior. Embora este modelo esteja desenhado há bastante

tempo, a educação jurídica pouco caminhou nesse sentido: encontra-se martirizada

por um ensino dogmático e formal, que pretende desvendar um sistema jurídico a

partir da norma, sem qualquer imersão do aluno na realidade, na rua.

O ponto central é que pesquisa e extensão são tratadas isoladamente, quando

deveriam estar articuladas entre si e com o ensino, tornando a prática pedagógica do

professor uma unidade sistêmica complexa. Isso é reflexo do enorme fosso existente

entre a teoria e a prática. Nesse contexto, o professor, como protagonista do processo

de ensino-aprendizagem, deve se convencer da necessidade de articular-se com um

novo-modo-de-se-ensinar, que reconhece a interdisciplinaridade, a

transdisciplinaridade e as disciplinas que compõe o eixo de fundamentos, como

elementos que dão suporte à reflexão e ao ensino da própria dogmática.

Não podemos crer que a partir de um ensino dogmático teremos certeza de que

daremos respostas corretas numa sociedade multicultural, pluralista e desigual. Afinal,

o modelo de respostas corretas não favorece em nada o desenvolvimento da

criatividade, da reflexão crítica ou, como denominam os pedagogos, as competências

e habilidades. Embora seja esta a crença de muitos, esta visão nos leva a deduzir que

a vontade de certeza e da verdade nasce justamente do medo da incerteza que a

reflexão holística pode gerar. Acredito tenha sido esta a sensação do juiz de menores

ao não querer investigar as causas da delinquência.

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