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O ERRO DO GOVERNO NAS POLÍTICAS SOCIAIS PP. 04 e 05 SAÚDE E EMPREGO CONTRA A COVID N.º 34 (SÉRIE II) – DEZEMBRO 2020 anti capItA lIsta PODE A ESQUERDA GANHAR SÃO PAULO? P. 08

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  • O ERRO DO GOVERNO NAS POLÍTICAS SOCIAIS

    PP. 04 e 05

    SAÚDEE EMPREGO

    CONTRA A COVID

    N.º 34 (SÉRIE II) – DEZEMBRO 2020

    a n t ic a p I t Al I s t a

    PODE A ESQUERDA GANHAR SÃO PAULO?

    P. 08

  • 3ANTICAPITALISTA

    Contactosemail [email protected]/redeanticapitalistaweb www.redeanticapitalista.net

    Ficha Técnica

    Conselho EditorialAna Bárbara PedrosaAndrea PenicheAndreia GalvãoHugo MonteiroMafalda EscadaRodrigo RiveraTatiana Moutinho

    DesignHelena Borges

    Participaram nesta ediçãoAbel RodriguesAna Bárbara PedrosaAndreia GalvãoCatherine Boutaud (capa, a partir de foto da zona de Marvila, Vale Fundão)João Daniel MendonçaJosé SoeiroLuis LeiriaMafalda EscadaRicardo MoreiraRodrigo Rivera

    Depósito Legal441931/18

    Lisboa: a responsabilidade da esquerda em tempo de pandemiaRicardo Moreira

    3

    Se se mudarem as caras, mudam-se as vontades?: Kamala Harris e críticas à política IdentitáriaAndreia Galvão

    6

    Brasil: a vitória de BoulosLuis Leiria

    7

    O erro do governo nas políticas sociaisJosé Soeiro

    4-5

    LeiturasO século XX português, Fernando Rosas, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, Andrea Peniche, Luís Trindade e Miguel Cardina

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    As responsabilidades do movimento pelo climaAbel Rodrigues e João Daniel Mendonça

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    Esta é uma publicação da Rede Anticapitalista, em que se juntam militantes do Bloco de Esquerda que se empenham nas lutas sociais e no ativismo de base.

    EditorialDepois do orçamento, a política que conta é o dia a dia do povo

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    Í N D I C E

    A crise social provocada pela pandemia atingiu Lisboa fortemente. No confinamen-to de março milhares de pessoas viram os seus trabalhos, muitas vezes a recibos ver-des ou informais, desaparecer. Caíram de um momento para o outro na pobreza. Me-ses depois, com a aprofundar da crise eco-nómica, há famílias inteiras que dependiam do turismo, da restauração, do comércio ou da cultura, que perderam tudo. Custa a acreditar, mas a fome voltou à capital.

    O desemprego em Lisboa no mês de agos-to aumentou 48,1% face ao ano passado. Na Baixa, já fecharam mais de 100 lojas e há milhares de pequenos negócios, cafés, bares, restaurantes, mercearias, lojas de rua que estão prestes a fechar portas porque não têm rendimentos suficientes desde março. Sem surpresa, a área do alojamen-to, restauração e similares que se regista a maior subida de desemprego: 88,4%, com-parado com agosto de 2019. Em Lisboa, só o turismo representava 150 mil empregos e agora não se sabe quando irá voltar esse turismo e como irá voltar.

    A crise social é mais grave ainda porque o governo não está a criar os apoios neces-sários para estas pessoas sobreviverem. Muitas pessoas que trabalhavam nestas atividades eram precárias e não têm aces-so aos apoios sociais clássicos porque não têm descontos suficientes para a Seguran-ça Social. O comércio e restauração querem voltar a trabalhar, mas sem apoios robus-tos, que António Costa tem recusado, uma grande parte não sobreviverá até ao fim do ano. Há mesmo organizações históricas da cidade, como a Casa do Alentejo, que já ponderam encerrar portas.

    Os protestos das últimas semanas destes setores económicos têm juntado os donos e os trabalhadores desses pequenos negó-cios, foi assim com a manifestação da res-tauração na Baixa e com o encontro da cul-tura no Campo Pequeno, e têm como base desespero: sem apoios estas pessoas vão ver o seu ganha pão fechar. O Bloco tem de estar presente nesses protestos, ajudando a organizar esse descontentamento para que possa recusar uma agenda xenófoba, que, por exemplo, ataque quem vive do RSI e para que passem a defender o Estado So-cial e de exigência de Direitos como saída para a crise.

    Na Câmara de Lisboa, o Bloco tem traba-lhado para apoiar quem perdeu tudo e não encontra ajuda do governo. Nos pri-meiros dias da pandemia abrimos centros de apoio às pessoas em situação de sem abrigo, criámos uma nova rede de suporte alimentar com 15 mil refeições diárias, dis-tribuímos milhares de computadores às es-colas, criámos uma equipa de intervenção rápida para os lares e distribuímos equipa-mento de proteção. Criámos uma linha de apoio psicossocial e outra para apoiar víti-mas de violência doméstica, foi criado um fundo extraordinário para apoiar centenas de famílias e IPSS que estavam estrangula-das. O Bloco tem-no dito: a responsabilida-de da esquerda é responder à crise social; em Lisboa levamos essa responsabilidade a sério.

    Trabalhámos muito para garantir que no próximo ano esse apoio não falta. Sabemos que muita gente pode ficar desamparada, por isso, queremos chegar às 400 casas de Housing First, manter os centros de emer-

    gência para pessoas em situação de sem abrigo e distribuir refeições a quem deixou de se conseguir alimentar, quer nas ruas, ou mesmo nas suas casas com o apoio das juntas de freguesia. Este setembro passá-mos a gerir o pessoal não docente das es-colas e, apesar da pesadíssima herança que o governo passou, com a falta de centenas de assistentes operacionais, estamos a con-tratar para as escolas 180 assistentes ope-racionais e garantimos a gratuitidade das refeições escolares para todas as crianças dos escalões A e B. Os apoios às famílias, às IPSS e à cultura vão manter-se no próximo ano e foi criado um novo apoio a fundo per-dido para apoiar os pequenos negócios do comércio e restauração. O orçamento mu-nicipal para o próximo ano está marcado pela resposta à pandemia.

    Face à insuficiência da resposta do Gover-no, muitos municípios estão a ser a tábua de salvação de muitas famílias e em Lisboa, o Bloco fez, exigiu esse apoio aos que mais precisam. Mas precisamos de continuar a trabalhar para garantir a Tarifa Social da Água automática no concelho e a constru-ção de habitação pública para responder à crise na habitação. Só o investimento nessas medidas estruturais pode ajudar a manter o emprego e resolver os enormes problemas de desigualdade e pobreza da capital. Não desistimos de nada, nem larga-mos a mão de ninguém.

    DEPOIS DO ORÇAMENTO, A POLÍTICA QUE CONTA É O DIA A DIA DO POVO

    E D I T O R I A L

    Terminou o drama do Orçamento, com a sua aprovação garantida pela abstenção do PCP e do PAN. Erguendo o tema em drama político,

    o primeiro ministro anunciou em agosto que se demitiria se não tivesse maioria e, dois meses depois, que não se demitiria, pois percebeu que dificilmente esta joga-da vingativa seria popular, pendurando o governo numa situação de gestão até ao verão. Mas, como conseguiu aprovar o or-çamento, toda a encenação desce agora à realidade: o que vai contar, em cada dia de 2021, é o que se passa nos hospitais e cen-tros de saúde, nos balcões da segurança social e nos centros de emprego. Aí não há gritaria ou manobras do poder, há só a vida de quem vive do seu trabalho.

    Para chegar à aprovação do Orçamento, o governo rejeitou as condições do Bloco e conseguiu que o PCP e o PAN aceitassem a sua regra: só se mexe em medidas provi-sórias, não se toca em nenhuma medida estrutural. Pode-se prometer concursos para médicos, mesmo que fiquem meio desertos, mas não haverá a criação de car-reiras com exclusividade no SNS. Pode-se anunciar camas de cuidados continuados, mas não se pode ir buscar profissionais ao setor da medicina privada. Pode-se subir o mínimo de existência para vinte mil pes-soas, mas não se mexe na progressividade dos impostos. Pode haver subsídios episó-dicos para alguns dos deserdados da crise, mas não uma prestação social que proteja os trabalhadores informais e os empobreci-dos. Pode-se fingir muito, desde que se faça pouco.

    Ao contrário do PCP e do PAN, o Bloco centrou-se no essencial e evitou uma con-fusão de propostas, por uma única razão: estamos numa situação de crise grave e que vai piorar. Por isso, são precisas priori-dades claras, e as prioridades são saúde e emprego. Como o PCP não colocou como condição a alteração das leis laborais ou ga-rantir as condições estruturais do SNS, acei-tou um acordo com o PS com as medidas provisórias que foram sendo anunciadas. O Bloco não o podia fazer e não o fez. Assim, as suas propostas foram recusadas, só ten-do sido aprovada a exclusão do pagamento pelo Fundo de Resolução ao Novo Banco – é uma vitória importante, mesmo que inicial, na luta pela transparência e contra o abuso financeiro.

    E agora vem o resultado do orçamento e da estratégia do governo para 2021: muita parra e pouca uva, deixar andar na saúde, esperar que o emprego seja miraculosa-mente recuperado, que venham fundos eu-ropeus e que tudo corra bem. O problema é que não estamos todos no mesmo barco e, mesmo onde seria preciso um mínimo de cuidado, o improviso e desleixo se vão re-velando, como aconteceu com a promessa da distribuição universal da vacina sazonal contra a gripe. A esquerda que não desiste é a que faz a luta em nome das prioridades. Saúde e emprego são as bandeiras do Blo-co e é com essa força que respondemos às inquietações de tanta gente. O país não está condenado a ser o bobo da corte da finan-ça internacional e a vítima do definhamen-to das políticas públicas de proteção social no altar do défice.

    LISBOA: A RESPONSABILIDADE DA ESQUERDA EM TEMPO

    DE PANDEMIA

    N A C I O N A L

    RICARDO MOREIRA

    Ricardo Moreira é membro da equipe municipal do Bloco em Lisboa.

    FOTO: LISA FOTIOS@PEXELS

  • 4 5ANTICAPITALISTA ANTICAPITALISTA

    T R A B A L H O

    JOSÉ SOEIRO

    O ERRO DO GOVERNO NAS

    POLÍTICAS SOCIAIS

    Quarta: é cada vez maior o contingente de pessoas que ficam de fora da prote-ção, por não terem um contrato ou serem vítimas de formas extremas de precarie-dade contratual. Neste universo encon-tram-se, por exemplo, os trabalhadores em período experimental. Encontram-se tam-bém todas as pessoas cujas relações labo-rais foram “deslaboralizadas”, isto é, atiradas para fora da regulação da lei do trabalho e enquadradas formalmente pela lei dos negócios: “emprecários” das plataformas, prestadores de serviços, pessoas forçadas a constituir empresas unipessoais para dis-simular relações de trabalho subordinado. Do grupo de desprotegidos fazem parte, ainda, os trabalhadores informais, cujo nú-mero não é fácil de estimar com rigor.

    Quinta: há uma exaustão das prestações não contributivas (isto é, aquelas que não resultam das contribuições dos trabalha-dores e são prestações de solidariedade financiadas pelo Orçamento do Estado), limitadas quer pelas condições de recur-sos demasiado apertadas, quer pela falta de articulação com outros mecanismos de proteção e ação sociais. Os desempre-gados e os jovens adultos, o grupo social mais vulnerável à pobreza em Portugal, não tem no Rendimento Social de Inserção uma

    medida capaz de lhes responder. O mesmo acontece com os trabalhadores informais, que maioritariamente não cabem na condi-ção de recursos. Desde 2010, as alterações restritivas nas condições de acesso e na definição dos agregados familiares ditaram uma degradação destas prestações. Os elementos diferenciadores do RSI, assen-tes num compromisso do Estado com um plano de inclusão para cada pessoa, desva-neceram. O estigma social lançado sobre a medida fez o resto.

    O que fazer?

    Perante este diagnóstico, o que fazer? Ele exige, se quisermos ser consequentes, uma transformação profunda no nosso sistema de proteção social e este seria o momento de começar a realizá-la. Essa intervenção impõe-se a quatro níveis:

    1. Mudar as regras do subsídio de de-semprego, em três dimensões. No que diz respeito ao acesso, o que implicaria repensar prazos de garantia. No que diz respeito aos valores, o que poderia ser feito recuperando o princípio de indexa-ção do montante da prestação a uma proporção do salário e não ao indexante de apoios sociais, recuperando aliás um

    É já um lugar-comum, mas nem por isso é menos verdadeiro: a pandemia expôs, tam-bém no campo do emprego e da proteção social, as debilidades estruturais do sistema de relações laborais e dos mecanismos de segurança social que temos. Por um lado, o crescimento da economia assente no tu-rismo e nos serviços que dele dependem tornou-a extremamente vulnerável à con-juntura. Por outro, o padrão de criação de emprego marcado pela precariedade signi-ficou que, mal a crise rebentou, o trabalho precário se transformou em desemprego desprotegido.

    Para debatermos soluções e uma estratégia de transformação no campo da proteção social, vale a pena insistir no diagnóstico. Destacaria cinco dimensões, que são tam-bém aquelas a que uma política de esquer-da deve responder neste campo.

    As propostas prioritárias do BlocoPrimeira: o reduzido rácio de cobertura das prestações de desemprego é insus-tentável. Em plena crise, já com a vaga de desemprego resultante pela pandemia, as prestações de desemprego cobrem apenas 58% dos desempregados. Na realidade, eram menos de metade os desempregados que tinham acesso a esta proteção antes da crise e talvez a percentagem não ande muito longe disso ainda hoje, se conside-rarmos o desemprego que não está regis-tado. Por que razão isto acontece? Há que olhar essencialmente para três variáveis: i) limitações no acesso, resultantes de pe-ríodos insuficientes de descontos que não permitem atingir o prazo de garantia neces-sário para ter direito ao subsídio (que é um ano de contribuições); ii) períodos de con-cessão curtos, que significam que, mesmo permanecendo numa situação de desem-prego, o subsídio se esgota (é importante

    princípio básico de contributividade. E no que diz respeito à duração, anulando os cortes da troika e aumentando a sua duração. Qualquer uma destas medidas foi rejeitada pelo PS, mesmo as que sig-nificavam voltar a regras que o próprio PS desenhou no passado.

    2. Reforçar o apoio aos trabalhadores independentes. É preciso fazer uma análise detalhada das razões de uma tão reduzida cobertura das prestações de inatividade dos trabalhadores inde-pendentes e, quem sabe, caminhar para uma prestação por redução de atividade e não apenas por “desemprego”. O deba-te em curso sobre o estatuto dos profis-sionais das artes pode ser interessante a este nível. Para já, para 2021, a única medida anunciada é um novo apoio ex-traordinário que é mais limitado do que aquele que vigorou em 2020.

    3. Desprecarizar e laboralizar. Isto é, com-bater a precariedade, designadamente rejeitando o alargamento do período experimental consagrado em 2019, limi-tando fortemente o recurso ao trabalho temporário, revertendo a informalidade e garantindo contratos para os traba-lhadores das plataformas. Infelizmente, todas estas medidas foram também re-jeitadas pela direita e pelo PS no debate orçamental.

    4. Redesenhar as prestações não con-tributivas, designadamente através da criação de uma nova prestação social, de caráter universalista, que absorva as prestações existentes (subsídio social de desemprego e rendimento social de in-serção), que seja capaz de chegar aos tra-balhadores informais e às trabalhadoras do serviço doméstico, de anular o estig-ma associado ao “rendimento mínimo” e de ganhar um novo fôlego no combate à pobreza.

    Para fazermos este caminho precisamos de vencer a abordagem minimalista à crise que hoje prevalece no Governo, para o qual todas as medidas no campo laboral e da proteção social devem ser temporárias, não estruturais e limitadas às “franjas”. Precisa-mos, também, de mais força à esquerda e de alianças amplas com sindicatos, movi-mento de precários, especialistas em segu-rança social e redes de combate à pobreza. É um trabalho de fundo, mas urgente.

    não esquecer que o corte na duração das prestações de desemprego operado em 2012, entre 5 meses e um ano, permanece na lei, e o Governo recusou alterá-lo neste Orçamento); iii) no caso do subsídio social de desemprego, para o qual o prazo de ga-rantia exigido é menor, existe a barreira da condição de recursos, que exclui a maioria.

    Segunda: a proteção no desemprego não permite sair da pobreza. Os desem-pregados são hoje o grupo mais exposto à pobreza: entre 2005 e 2018, a taxa de risco de pobreza dos desempregados teve um aumento de cinquenta por cento (de 28% para 42%), o que contrasta com a redução da pobreza entre idosos e crianças. Uma razão importante para que isto aconteça é, além do reduzido rácio de cobertura das prestações, o facto de o seu limiar mínimo se encontrar abaixo do limiar de pobreza. Em 2020, essa diferença é de cerca de 64 eu-ros no subsídio de desemprego e de cerca de 150 euros no subsídio social.

    Terceira: os trabalhadores independen-tes continuam a ter uma proteção insig-nificante. Em novembro de 2020, dos cerca de 315 mil trabalhadores independentes que não acumulam o recibo verde com nenhum contrato, isto é, que dependem exclusivamente do trabalho declarado como independente, só 386 trabalhadores tinham acesso ao subsídio por cessação de atividade (o correspondente à “prestação de desemprego” para recibos verdes). Este número compara, por exemplo, com os 170 mil que solicitaram o apoio extraordinário para a ausência ou redução de atividade durante a pandemia. A regra da dependên-cia económica (só pode requerer o subsí-dio quem concentre mais de 50% dos seus rendimentos numa única entidade contra-tante), os indeferimentos injustificados, o desconhecimento dos direitos e exigências burocráticas desadequadas ajudarão a ex-plicar esta realidade. José Soeiro é deputado do Bloco de Esquerda.

    O SNS é prioridade socialComo se verifica no gráfico, e tem sido tema insistente do Bloco desde a negociação do Orçamento, a redução do número de médicos no SNS (e a falta de outros profis-sionais) deveria ter indicado uma prioridade: é preciso começar por salvar a saúde. No entanto, o PS e, naturalmente, a direita, recusaram qualquer medida estrutural que recuperasse o SNS.

    FOTO: NATE JOHNSTON@UNSPLASH

    REDUÇÃO DO NÚMERO DE MÉDICOS NO SNSDESDE JANEIRO DE 2020

  • 6 7ANTICAPITALISTA ANTICAPITALISTA

    No dia 20 de Janeiro de 2021 Kamala Har-ris, advogada e política filiada ao Partido Democrata nos EUA, tomará posse como vice-presidente dos Estados Unidos. Estas eleições foram particulares pelas condições específicas do momento político em que vivemos, pelo findar de um momento polí-tico dominado por Donald Trump que veio alterar fundamentalmente o modo de fazer as campanhas presidenciais.

    A vitória Biden-Harris foi bastante celebrada tanto por alguma esquerda liberal estadu-nidense como por grande parte do mundo ocidental como um marco para a luta antir-racista, conferindo um papel de estatuto e importância política a uma mulher negra, de forma inédita para um país com um le-

    gado esclavagista e segregacionista tão de-marcado.

    No entanto, também foram muitas as críticas traçadas ao que nos referimos vulgarmente como política identitária, tratando-se do alar-gado leque de atividade política e teórica as-sente na premissa da experiência coletiva de injustiça social direcionada especificamente a elementos de um determinado grupo so-cial. Esta abordagem visa colmatar a liberda-de política das comunidades marginalizadas na sociedade, de modo transversal.

    São muitos os posicionamentos críticos a este modo de fazer política, advindo de uma diversidade de contextos. Francis Fukuya-ma no seu livro “Identity” associa a política

    identitária a uma das maiores ameaças que afligem as democracias liberais contem-porâneas, explicitando como se apresenta como um obstáculo para a apresentação de soluções políticas para problemas maioritá-rios que garantam coesão social.

    Por outro lado, também nos movimentos e organizações de esquerda se têm verificado críticas à política identitária. Falamos aqui, principalmente do modo como a ascensão de determinados elementos diversos étnico--racialmente não implica necessariamente um compromisso com a luta contra as es-truturas sociais desiguais que imperam na nossa sociedade.

    Que marco determina verdadeiramente a vitória de Kamala para a luta antirracista? Quão possível é a exigência de mudanças estruturais para o dia-a-dia das pessoas das comunidades na linha da frente da falência do capitalismo, através de um programa eleitoral do partido democrata, assente na manutenção do status quo?

    Que diferença farão as black faces in high places sem políticas imbuídas de consciên-cia de classe, comprometidas a superar este sistema sócio-económico? É possível enfren-tar a injustiça social de mãos dadas com os maiores lobbies financeiros a nível interna-cional? Se se mudarem as caras, mudam-se as vontades?

    Andreia Galvão é atista estudantil.

    Luís Leiria é redator do Esquerda.net.

    INTERNACIONAL

    INTERNACIONAL

    ANDREIA GALVÃO

    LUIS LEIRIA

    SE SE MUDAREM AS CARAS, MUDAM-SE AS VONTADES?:

    KAMALA HARRIS E CRÍTICAS À POLÍTICA

    IDENTITÁRIA

    BRASIL: A VITÓRIA DE BOULOS

    No momento em que escrevemos este arti-go, falta ainda uma semana para o segundo turno das eleições municipais do Brasil e, portanto, não temos como conhecer o re-sultado da disputa que opõe o atual prefeito Bruno Covas, do PSDB, e Guilherme Boulos, do PSOL, na capital de São Paulo. Mas, seja qual for o resultado, a campanha de Boulos e a ida à segunda volta já significam uma enor-me vitória desta candidatura e do Partido So-cialismo e Liberdade.

    O segundo lugar da lista Boulos-Erundina, com 20,2% dos votos, foi resultado de uma campanha que empolgou. A candidatura combinou a juventude, o vigor e a combati-vidade de uma liderança do movimento so-cial mais dinâmico dos últimos anos, o Movi-mento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), com a experiência da sua vice, Luísa Erundi-na, que já foi prefeita de S. Paulo (1989-1993). Boulos começou a campanha com pouco mais de 4% e atropelou os outros candida-tos, entre os quais Celso Russomano, apoia-do por Bolsonaro, e Márcio França, do PSB, ex-governador de São Paulo entre 2018 e 2019 (assumiu no lugar de Geraldo Alckmin, do PSDB, quando este se candidatou à Pre-sidência).

    Hegemonia do PT em disputaBem mais atrás, em 6º lugar, ficou Jilmar Tatto, do PT, com 8,6%, um resultado histo-ricamente mau para o partido de Lula: pela primeira vez, desde 1988, um candidato do PT não ficou nem em 1º, nem em 2º lugar na capital paulista. A candidatura do deputado federal Tatto apareceu como expressão de um aparelho partidário envelhecido, incapaz de se renovar e de conviver com uma nova situação: a hegemonia do PT sobre a esquer-da está em disputa. O PSOL, um dos princi-pais candidatos a superar o PT, mostrou estar no bom caminho.

    Isto também só foi possível porque o PSOL, ao mesmo tempo que combatia a política de austeridade aplicada por Dilma Rousseff no seu 2º mandato, soube opor-se ao golpe palaciano que a derrubou; e compreendeu que a prisão de Lula tinha motivação políti-ca, e por isso defendeu a sua libertação. Por

    outro lado, enquanto que o PT esteve de-saparecido do combate ao neofascismo de Jair Bolsonaro, o PSOL foi vanguarda nessa luta. Assim, o PSOL conseguiu apresentar-se como uma alternativa à esquerda, mas sem romper o diálogo com o eleitorado do PT.

    A força e o entusiasmo com a candidatura Boulos-Erundina empurraram os partidos de esquerda e de centro-esquerda a uni-rem-se para apoiá-lo no segundo turno. Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PC do B) apareceram juntos no tempo de antena do candidato do PSOL. Foi a primeira vez que se uniram no apoio a um candidato desde 2006, quando Lula con-quistou o segundo mandato na Presidência da República.

    A dinâmica de crescimento manteve-se: Boulos passou dos seus 20,2% no 1º turno, para 42% no início da campanha do segun-do turno, subindo para 45% (votos válidos) a uma semana da ida às urnas. Bruno Covas subiu dos seus 32,8% no 1ºturno para 58%, caindo para 55%. Vença, ou perca, Boulos e o PSOL serão sempre os grandes vitoriosos, porque passaram a ocupar um lugar central em futuras negociações que envolvam a candidatura da esquerda à Presidência da

    República e reforçam-se para chamar à mo-bilização – mais que necessária – para abre-viar o mandato de Jair Bolsonaro à frente do governo.

    Discriminação racial entra em cheio na campanhaEntretanto, o assassinato de um homem negro por dois seguranças do supermerca-do Carrefour de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, caiu como uma bomba no país e na campanha do segundo turno. Na quinta-feira 19, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, soldador de profissão, foi imobiliza-do e espancado e morreu devido à agressão. A cena foi filmada e causou indignação em todo o país, fazendo recordar, inevitavel-mente, o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e a influência que teve na derrota de Trump.

    O vice-presidente Hamilton Mourão pôs mais lenha na fogueira, afirmando que “não existe racismo no Brasil”. Bolsonaro esperou, acabando por referir-se ao trágico episó-dio apenas de forma indireta, dizendo que “Como homem e como Presidente, sou dal-tónico: todos têm a mesma cor.”

    “Alguém consegue imaginar aquela cena com uma pessoa branca engravatada?”, rea-giu Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo. “Isso é racismo. Racismo puro”, afirmou. O debate contra a discriminação racial tende a favorecer a esquerda, já que é uma das suas principais bandeiras.

    FOTO: WIKIPEDIA

  • email [email protected] facebook.com/redeanticapitalista web www.redeanticapitalista.net

    CONTACTOS

    Neste livro, os seis autores debruçam-se sobre a história do século XX em Portugal, analisando a persistência da desigualdade, o papel central do Estado e das políticas dominantes na economia, assim como o peso ideológico do colonialismo na cultura portuguesa. Cada um no seu domínio, os autores procuram ainda formular respostas aos desafios destas constatações.

    O SÉCULO XX PORTUGUÊS

    Fernando Rosas, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, Andrea Peniche, Luís Trindade e Miguel Cardina, Tinta-da-china, Novembro de 2020

    L E I T U R A S

    2019 foi o ano das mobilizações pelo clima. Na altura, várias foram as apostas em como o assunto seria apenas uma “moda” que logo sairía dos noticiários e do centro dos grandes debates políticos. Volvido um ano atribulado e na reta final de 2020, o que podemos afir-mar sobre a trajetória dos movimentos pelo clima?

    Nos primeiros meses de 2020 assistimos a grandes mobilizações pelo clima. 60.000 pessoas protestaram, a 21 de Fevereiro, em Hamburgo; uma semana depois, outra gran-de manifestação, desta vez em Bristol, no Reino Unido, reuniu 15.000 pessoas. Os nú-meros seriam excelentes indicativos de um ano repleto de protestos em massa, não só na Europa, mas em todo o mundo. Contudo, a chegada da pandemia fez com que a pauta climático-ambiental começasse a ser enter-rada por jornalistas e críticos, iniciando-se uma onda de ceticismo sobre o quão longe a pauta poderia ainda ir. Como esperado, com a pandemia, assistimos a uma desmo-bilização.

    Porém, a desmobilização não significou o fim da luta climática e acabou por não se

    provar tão má como anunciavam céticos e negacionistas. Os movimentos climáticos reinventaram-se e exploraram outras formas de ativismo, especialmente online, mobi-lizando centenas de milhares de pessoas num contexto difícil. No dia 24 de abril, data marcada para a primeira Greve Global pelo Clima, os movimentos climáticos ao redor do globo mobilizaram-se para uma digital strike, a primeira greve climática online. A ideia era simples: cada um faz o seu cartaz, como de costume, mas não sai da sua casa - usam-se as redes sociais para popularizar uma hashtag e passar uma mensagem que chegasse não só a amigos e familiares, mas a todos os milhões de potenciais utilizadores. Como avaliar o sucesso de uma greve climá-tica global? As redes sociais permitem dar conta de números concretos: no Instagram, a hashtag #ClimateJustice conta hoje com 285.865 publicações e #ClimateStrike com 664.565. No Twitter, embora não seja possí-vel contabilizar a quantidade de vezes que uma hashtag é usada, é fácil notar que não estará muito longe do Instagram no quesito de ativismo climático.

    As limitações físicas do online não impedi-ram que se fizesse um esforço para ultrapas-sar o questionar da política e passar a fazer política, nomeadamente criando pontes en-tre o local e o global e novas possibilidades de intervenção concreta, sempre sob o mote da justiça social. Em plena pandemia, o Fri-days for Future - hoje maior símbolo da luta climática - organizou diversas campanhas para a proteção de povos vulneráveis. Por exemplo, foram angariados 160 mil euros

    para construir um projeto de telemedicina e aliviar o sistema de saúde público da metró-pole da Amazónia, a cidade de Manaus.

    Ativistas socioambientais e climáticos tam-bém passaram a usar a plataforma mediática construída nos últimos anos para pressionar agentes públicos de forma mais direta. Este foi, por exemplo, o caso de Angela Merkel quando deu um passo atrás no acordo de Livre Comércio entre a União Europeia e o Mercosul, ou as cartas ambientais assinadas por candidatos às autarquias brasileiras nas eleições deste ano. Esta plataforma mediá-tica se manifesta, seja na popularidade dos movimentos climáticos (observada pela mo-vimentação de grandes números de pessoas nos protestos), seja na própria cobertura da mídia dada a diversos ativistas climáticos. De maneira geral, é possível verificar uma gran-de influência de opiniões por parte dos mo-vimentos climáticos atualmente - demostra-ção direta disto é a eleição da ativista Greta Thunberg como Pessoa do Ano pela Time, no ano passado.

    Aproximando-nos do fim do ano, é possí-vel afirmar que houve uma desmobilização acentuada das massas que se mobilizaram nas ruas, seja na Europa ou no resto do mun-do. No entanto, é de destacar o amadureci-mento social do movimento que definitiva-mente afasta de si o fantasma do modismo e de facto inaugura uma consolidada agenda política que invade gradativamente todos os espaços de poder.

    ATIVISMO

    ABEL RODRIGUES E JOÃO DANIEL MENDONÇA

    AS RESPONSABILIDADES DO MOVIMENTO PELO CLIMA

    Abel Rodrigues e João Daniel Mendonça são ativis-tas pelo clima.