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CAPACITAÇÃO DE PROFESSORES DO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO: PARA A EDUCAÇÃO FILOSÓFICA Por JOSÉ LUIZ LACERDA FERREIRA AGOSTO / 2001

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CAPACITAÇÃO DE PROFESSORES DO ENSINO FUNDAMENTAL E

MÉDIO: PARA A EDUCAÇÃO FILOSÓFICA

Por

JOSÉ LUIZ LACERDA FERREIRA

AGOSTO / 2001

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

INSTITUTO DE PESQUISAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS

PÓS-GRADUAÇÃO LATO-SENSU EM DOCÊNCIA DO ENSINO

FUNDAMENTAL E MÉDIO

CAPACITAÇÃO DE PROFESSORES DO ENSINO FUNDAMENTAL E

MÉDIO: PARA A EDUCAÇÃO FILOSÓFICA

Monografia apresentada por José Luiz Lacerda Ferreira como requisito final para conclusão do Curso de Especialização em Docência do Ensino Fundamental e Médio a Nível de Pós-Graduação “Lato Sensu”.

Orientadora: Professor Marco Antônio de Almeida Chaves

Rio de Janeiro, agosto / 2001

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DEDICATÓRIA

Dedico esta monografia à Profª Rosalia Rodrigues Mendes, que participou de todo o processo de formação Educacional em minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Marco Antônio de Almeida Chaves, por sua total dedicação a mim e a toda classe, sem distinção ou preferências.

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SUMÁRIO

Págs.

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 06

CAPÍTULO I - APRESENTANDO A FILOSOFIA

1.1 – Nasce a Filosofia .................................................................... 08

1.2 – Importância da Filosofia ........................................................ 09

1.3 – As Disciplinas Filosóficas ...................................................... 10

1.4 – Os Períodos da Filosofia Grega .............................................. 13

1.5 – A Filosofia através do Tempo e da História

1.5.1 – A Filosofia na História ............................................... 15

1.5.2 – Filosofia Antiga (do século VI a.C. ao século

VI d.C.) ...................................................................... 17

1.5.3 – Filosofia Patrística (do século I ao século VII) ......... 17

1.5.4 – Filosofia Medieval (do século VIII ao século XIV) .. 19

1.5.5 – Filosofia da Renascença (do século XIV ao século

XVI) ........................................................................... 20

1.5.6 – Filosofia Moderna (do século XVII a meados do

século XVIII) ............................................................. 22

1.5.7 – Filosofia da Ilustração ou Iluminismo (meados do

século XVIII ao começo do século XIX) ................... 24

1.5.8 – Filosofia Contemporânea ........................................... 25

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CAPÍTULO II – EDUCAÇÃO DO HOMEM SEGUNDO PLATÃO

2.1 – Introduzindo a Questão .......................................................... 28

2.2 – A Educação para Dialética ..................................................... 31

2.3 – Mito da Caverna, Ideal da Nova Educação ............................ 37

CAPÍTULO III – EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA

3.1 – Pedagogia e Senso Comum .................................................... 42

3.2 – A Importância da Pedagogia .................................................. 44

3.3 – Educar o Educador ................................................................. 45

CONCLUSÃO ............................................................................................................. 50

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 54

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INTRODUÇÃO

O homem é um ser de relação. Vivendo em sociedade, constrói cultura e

formas políticas de organização, que se caracterizam pela instituição de leis e formas de

governo, as quais garantam a vida em comunidade. Tal empreendimento denominou-se,

ao longo dos séculos, de Estado. A educação é um elemento importante na consolidação

do Estado. É ela justamente que possibilita a construção da unidade cultural de um

povo.

Sem dúvida, um dos grandes méritos de nosso século foi o de despertar uma

consciência, praticamente universal, a respeito da educação e sua importância para o

desenvolvimento das nações. A sociedade hodierna experimenta grandes

transformações. Uma pergunta que se encontra na pauta do dia é sobre a educação.

É de nosso interesse pesquisar o pensamento de Platão, filósofo grego, que

viveu entre os anos 427 e 347 a.C., especificamente seu pensamento sobre a educação.

Não seria desenterrar fósseis do passado ou mesmo fazer arqueologia

filosófica? Entendemos que não. Platão tem permanente atualidade. Apesar de

engenhosos esforços de grandes estudiosos, não foi ainda possível dar conta de entender

a amplitude de seu pensamento. Aliás, sua filosofia continua sendo objeto de grandes

estudos, discussões e interpretações.

No Livro VII de A República, antes da alegoria da caverna, Platão diz

expressamente que se trata de dar a conhecer o comportamento da natureza, conforme

ela é ou não submetida à educação. E o modo como esta há de processar-se constitui o

tema central do projeto.

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Desejamos refletir filosoficamente sobre o problema da educação, a partir

de Platão, para redescobrir seus valores, bem como conservar uma postura crítica em

relação àquelas idéias que hoje nos parecem irrelevantes. É importante retomar alguns

elementos básicos trabalhados por Platão a respeito da educação que continuam sendo

válidos para nossos dias. Somos desafiados a pensar uma educação integral, que supere

os unilateralismos de nossos sistemas educacionais. Isso implica formar o homem em

todas as suas dimensões e não somente na dimensão intelectual. Parece-nos insuficiente

educar apenas o indivíduo competente e capaz de competir e fazer parte do mercado de

trabalho. Urge, também, e sobretudo, educar e formar o homem ético, participante de

uma comunidade humana e, como tal, incidente sobre a sua realidade social,

transformando-a.

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CAPÍTULO I

APRESENTANDO A FILOSOFIA

1.1 – Nasce a Filosofia

A filosofia surgiu na Grécia, por volta do século VI a.C. A grande aventura

intelectual não começa propriamente na Grécia continental, mas em suas colônias, a

Jônia (metade sul da costa ocidental da Ásia Menor) e a Magna Grécia (sul da Península

Ibérica e Sicília).

Os escritos dos primeiros filósofos (os pré-socráticos) desapareceram com o

tempo, restando apenas alguns fragmentos ou referências feitas por filósofos

posteriores.

A filosofia nascente rejeitava as interpretações míticas que, baseadas no

sobrenatural, aceitavam a interferência de agentes divinos nos fenômenos da natureza.

Ao buscarem a racionalidade do universo, os filósofos dessacralizam a natureza, isto é,

retiram dela a dimensão do sagrado. A filosofia surge, então, como um pensamento

reflexivo que busca a definição rigorosa dos conceitos, a coerência interna do discurso,

a fim de possibilitar o debate e a discussão.

Enquanto o mundo mítico se baseia em certezas dogmáticas, a consciência

filosófica introduz a perplexidade. Para Platão, a primeira virtude do filósofo é ser capaz

de admirar-se. A admiração é a condição da qual deriva a capacidade de problematizar.

O conhecimento filosófico não é dado pelos deuses, mas procurado pelos homens.

O filósofo grego é de certa forma um “cientista”. O sábio (sophos, como se

diz em grego) reflete sobre todos os setores da indagação humana. Tales e Pitágoras são

os primeiros filósofos, e também matemáticos, enquanto Aristóteles aborda a física, a

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astronomia, a biologia, em suma, todo o saber de seu tempo. Desse modo, filosofia e

ciência se encontram intimamente ligadas na Grécia antiga1.

1.2 – Importância da Filosofia

O mundo contemporâneo é pragmático, voltado para as coisas práticas,

interessado na aplicação imediata dos conhecimentos. Por isso, a filosofia não encontra

muitos adeptos, sendo freqüentemente repudiada como uma ocupação inútil.

Contudo, a filosofia é necessária. É a filosofia que reúne o pensamento

fragmentado pelas ciências e demais formas de conhecimento, buscando compreender o

mundo da técnica dilacerado em tantas especializações. Quer resgatar, assim, a unidade

que se encontra no sentido humano do pensar e do agir.

É a reflexão filosófica que permite ao homem adquirir outra dimensão além

daquela que é dada pelo agir imediato, na qual estamos mergulhados no dia-a-dia.

É a filosofia que garante o distanciamento para a avaliação dos fundamentos

dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam, levantando, conseqüentemente, o

problema dos valores.

A filosofia impede a estagnação que resulta do não-questionamento. Sua

investigação não está alheia à ética e à política, fazendo com que se confronte sempre

com o poder. Daí sua função de desvelar a ideologia, as formas pelas quais é mantida a

dominação. Atentando para a etimologia do vocábulo grego correspondente a verdade

(a-létheia, a-letheúein, “desnudar”), vemos que a verdade põe a nu aquilo que estava

escondido. Eis aí a vocação do filósofo: desvelar o que está encoberto pelo costume,

pelo convencional, pelo poder.

1 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Editora Moderna, 1996, p. 105.

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Por isso a atitude de filosofar exige coragem. A filosofia não é um exercício

puramente intelectual. Descobrir a verdade é aceitar o desafio da mudança, é ter a

coragem de enfrentar as formas estagnadas de poder que mantêm o status quo2.

1.3 – As Disciplinas Filosóficas

Quando se diz que a Filosofia, por meio da meditação, esforça-se por buscar

uma compreensão universal da realidade, isto não significa que ela não tenha campos

determinados de estudo. Desde seu surgimento na Grécia Antiga, em torno do século VI

a.C., a Filosofia foi ampliando os temas de suas reflexões até alcançar a vastidão que

tem hoje.

O surgimento dos vários campos da Filosofia obedeceu, e ainda hoje

obedece, às exigências do pensamento humano, suas necessidades e crises ao longo da

história, pois, se a Filosofia é crítica sobre a vida, ela vai repensar exatamente aquelas

questões que incomodam em cada momento da história humana.

Sem nos prendermos aqui ao processo histórico que serviu de cenário para o

desenvolvimento de cada um dos campos da Filosofia, vejamos quais são as principais

disciplinas filosóficas na atualidade3:

Metafísica (Ontologia) – reflete sobre o ser em geral. Pode ser dividida em

Metafísica Geral e Metafísica Especial. A Metafísica Geral estuda o ser em geral,

tentando responder a questão: o que é o ser? A Metafísica Especial dedica-se ao estudo

racional e crítico da alma (Psicologia Racional), de Deus (Teodicéia) e do mundo

(Cosmologia). Alguns autores chegam a diferenciar Ontologia de Metafísica: enquanto

a Metafísica estuda o ser em geral in abstracto, a Ontologia estuda o ser a partir da

2 SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. p. 55. 3 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1988, p. 294-295.

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consciência do indivíduo, ou seja, busca o significado do ser a partir da experiência

concreta do homem.

Lógica – estuda as regras do bom raciocínio. Classicamente, divide-se em

Lógica Formal e Lógica Material. A Lógica Formal estuda a coerência do raciocínio

independente do seu conteúdo e a Lógica Material estuda a correspondência entre o

raciocínio e a realidade. Modernamente, desenvolveram-se a Lógica Dialética e a

Lógica Matemática.

Teoria do Conhecimento (Gnosiologia) – tem por objeto o conhecimento

em geral (a possibilidade, a origem, a essência do conhecimento e a natureza da

verdade).

Cosmologia (Filosofia da Natureza) – reflete sobre a natureza última do

mundo físico (sua origem, sua constituição, o que é tempo, espaço etc.). A física atual,

ao desenvolver certos aspectos da teoria do big bang, acaba por se inserir no campo da

cosmologia.

Ética (Filosofia Moral) – tem como objeto todos os aspectos relacionados à

vida moral. Enquanto tal, reflete sobre o que é o bem e o mal, sobre o fim da conduta

humana, sobre o modo como efetivamente os homens se comportam e sobre os

pressupostos necessários à ocorrência de um ato moral (liberdade, consciência e norma).

Axiologia – vinculada à ética, investiga a natureza dos valores; seu caráter

objetivo e/ou subjetivo; o caráter histórico, pessoal e social da atividade valoradora do

homem.

Antropologia Filosófica – procura responder à pergunta: quem é o homem?

Neste campo, os filósofos, de acordo com sua tendência, acabam por realçar um aspecto

da natureza humana ou do comportamento humano: a racionalidade, a linguagem, a

dimensão física, o espírito, a sociabilidade, a dimensão religiosa, a libido, a dimensão

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econômica, a historicidade, a utopia, a angústia etc. Assim, para alguns, o homem é

essencialmente um ser econômico, para outros é um ser espiritual, um ser utópico, um

ser simbólico etc...

Filosofia da Cultura – analisa as diversas manifestações culturais,

particularmente aquelas que se expressam sob forma de conhecimento, por meio das

quais o homem interpreta o mundo que o cerca e as relações sociais que estabelece.

Filosofia Política – reflete sobre a necessidade, os fundamentos e a

legitimidade da constituição do poder político. Também se preocupa com o respeito à

ética por parte dos modelos de governo, em geral, e dos governantes, em particular.

Filosofia Social – pensa os mais diversos aspectos da vida social: a

sociabilidade humana e os vários modos de relacionamento que se estabelecem entre os

homens, tanto em seus aspectos positivos quanto naqueles negativos (afetividade ou

alienação).

Filosofia do Direito – investiga os fundamentos últimos do Direito: a

legitimidade da norma, suas relações com os valores, os limites das instituições

jurídicas e as bases científicas do Direito.

Filosofia da Linguagem – reflete sobre os mais variados problemas

relativos à linguagem: sua origem, as condições necessárias à linguagem humana, suas

funções e suas relações com o pensamento.

Filosofia da História – pensa sobre a historicidade do ser humano, o

sentido e a direção da história, a natureza e o significado do tempo, enquanto

pressuposto da história.

Estética – reflete sobre o belo em geral, tanto o belo produzido pelo homem

quanto o belo natural. Realça as diversas questões relativas às artes: sua natureza, sua

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finalidade, suas relações com a moral, com a religião, com a sociedade, com o

conhecimento.

Filosofia da Religião – procura caracterizar a essência do sentimento de

religiosidade no homem, a origem da religião, suas funções, suas relações com as outras

dimensões da experiência humana.

Filosofia da Ciência – investiga os fundamentos das ciências, a natureza e

os limites do conhecimento científico, seus métodos, sua história, suas relações com a

sociedade, com a política, com a economia.

Filosofia da Educação – pensa sobre o sentido da atividade educativa, a

natureza do educando e os alcances dos métodos desenvolvidos pela Pedagogia. Reflete,

também, sobre o caráter controlador ou libertador da educação.

Estas são as principais disciplinas filosóficas; há ainda outros campos, na

medida em que a Filosofia pode tomar como tema qualquer parte da realidade, quer em

seu aspecto concreto, quer em seu aspecto abstrato. Num certo sentido, pode-se concluir

que: “Tudo passa pela Filosofia”4.

1.4 – Os Períodos da Filosofia Grega

A Filosofia terá, no correr dos séculos, um conjunto de preocupações,

indagações e interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grécia.

Assim, antes de vermos que campos são esses, examinemos brevemente os

conteúdos que a Filosofia possuía na Grécia. Para isso, devemos, primeiro, conhecer os

períodos principais da Filosofia grega, pois tais períodos definiram os campos da

investigação filosófica na Antigüidade.

4 CHAUÍ, Marilena. Idem, ibidem.

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A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro

grandes fases ou épocas:

1. a da Grécia homérica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta

Homero, em seus dois grandes poemas, Ilíada e Odisséia;

2. a da Grécia arcaica ou dos sete sábios, do século VII ao século V antes

de Cristo, quando os gregos criam cidades como Atenas, Esparta, Tebas,

Megara, Samos, etc..., e predomina a economia urbana, baseada no

artesanato e no comércio.

3. a da Grécia clássica, nos séculos V e IV antes de Cristo, quando a

democracia se desenvolve, a vida intelectual e artística entra no apogeu

e Atenas domina a Grécia com seu império comercial e militar;

4. e, finalmente, a época helenística, a partir do final do século IV antes de

Cristo, quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre

da Macedônia e, depois, para as mãos do Império Romano, terminando a

história de sua existência independente.5

Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas, já

que ela não existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica.

Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade

gregas; portanto, durante a Grécia clássica.

Os quatro grandes períodos da Filosofia grega, nos quais seu conteúdo muda

e se enriquece, são:

1. Período pré-socrático ou cosmológico, do final do século VII ao final

do século V a.C., quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a

origem do mundo e as causas das transformações na Natureza.

5 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 35-39.

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2. Período socrático ou antropológico, do final do século V e todo o

século IV a.C., quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é,

a ética, a política e as técnicas (em grego, ântropos quer dizer homem;

por isso o período recebeu o nome de antropológico).

3. Período sistemático, do final do século IV ao final do século III a.C.,

quando a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado

sobre a cosmologia e a antropologia, interessando-se sobretudo em

mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosófico, desde que

as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente

estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência.

4. Período helenístico ou greco-romano, do final do século III a.C., até o

século VI depois de Cristo. Nesse longo período, que já alcança Roma e

o pensamento dos primeiros Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa

sobretudo com as questões da ética, do conhecimento humano e das

relações entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus.6

1.5 – A Filosofia através do Tempo e da História

1.5.1 – A Filosofia na História

Como todas as criações e instituições humanas, a Filosofia está na História e

tem uma história.

Está na História: a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões

que, em cada época de uma sociedade, os homens colocam para si mesmos, diante do

que é novo e ainda não foi compreendido. A Filosofia procura enfrentar essa novidade,

6 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem.

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oferecendo caminhos, respostas e, sobretudo, propondo novas perguntas, num diálogo

permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo, do qual ela faz parte.

Tem uma história: as respostas, as soluções e as novas perguntas que os

filósofos de uma época oferecem tornam-se saberes adquiridos que em outros filósofos

prosseguem ou, freqüentemente, tornam-se novos problemas que outros filósofos

tentam resolver, seja aproveitando o passado filosófico, seja criticando-o e refutando-o.

Além disso, as transformações nos modos de conhecer podem ampliar os campos de

investigação da Filosofia, fazendo surgir novas disciplinas filosóficas, como também

podem diminuir esses campos, porque alguns de seus conhecimentos podem desligar-se

dela e formar disciplinas separadas.

Assim, por exemplo, a Filosofia teve seu campo de atividade aumentado

quando, no século XVIII, surge a filosofia da arte ou estética; no século XIX, a filosofia

da história; no século XX, a filosofia das ciências ou epistemologia, e a filosofia da

linguagem. Por outro lado, o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências

particulares que dela faziam parte foram-se desligando para constituir suas próprias

esferas de investigação. É o que acontece, por exemplo, no século XVIII, quando se

desligam da Filosofia a biologia, a física e a química; e, no século XX, as chamadas

ciências humanas (psicologia, antropologia, história).

Pelo fato de estar na História e ter uma história, a Filosofia costuma ser

apresentada em grandes períodos que acompanham, às vezes de maneira mais próxima,

às vezes de maneira mais distante, os períodos em que os historiadores dividem a

História da sociedade ocidental.7

7 CHAUÍ, Marilena. Idem, ibidem, p. 42 e 43.

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1.5.2 – Filosofia Antiga (do século VI a.C. ao século VI d.C.)

Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia greco-romana, indo

dos pré-socráticos aos grandes sistemas do período helenístico, mencionados no

capítulo anterior.

1.5.3 – Filosofia Patrística (do século I ao século VII)

Inicia-se com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e

termina no século VIII, quando teve início a Filosofia medieval.

A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo

e João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião – o

Cristianismo – com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com

tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê-los a ela.

A Filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da

religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos.

Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística

latina (ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino,

Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório

Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Beda e Boécio.

A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos

greco-romanos: a idéia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como trindade

una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição

dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, já que

tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade. Introduziu, sobretudo com

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Santo Agostinho e Boécio, a idéia de “homem interior”, isto é da consciência moral e do

livre-arbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo.

Para impor as idéias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em

verdades reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos

divinos, seriam dogmas, isto é, irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge uma

distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da

razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras

introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao

simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema de toda a Filosofia

patrística é o da possibilidade ou impossibilidade de conciliar razão e fé, e, a esse

respeito, havia três posições principais:

1. Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão

(diziam eles: “Creio porque absurdo.”).

2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé

(diziam eles: “Creio para compreender.”).

3. Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada

uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem

misturar-se (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos

homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à

vida eterna futura).8

8 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 43-44.

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1.5.4 – Filosofia Medieval (do século VIII ao século XIV)

Abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja

Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa e

criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a partir do século

XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval também é conhecida com o

nome de Escolástica.

A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles,

embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico (vindo da

Filosofia de Plotino, do século VI d.C.), e o Aristóteles que conhecessem fosse aquele

conservado e traduzido pelos árabes, particularmente Avicena e Averróis.

Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a Filosofia

medieval acrescentou outros – particularmente um, conhecido com o nome de Problema

dos Universais – e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande influência das idéias

de Santo Agostinho. Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã, que é,

na verdade, a teologia. Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de

Deus e da alma, isto é, demonstrações racionais da existência do infinito criador e do

espírito humano imortal.

A diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a

diferença entre razão e fé (a primeira deve subordinar-se à Segunda), a diferença e

separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), o Universo como uma hierarquia de

seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, arcanjos, anjos,

alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do poder temporal dos reis e

barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os grandes temas da Filosofia medieval.

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Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado

para expor as idéias filosóficas, conhecido como disputa: apresentava-se uma tese e

esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles,

de Platão ou de outros Padres da Igreja.

Assim, uma idéia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo

da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa desse

método de disputa – teses, refutações, defesas, respostas, conclusões baseadas em

escritos de outros autores -. Costuma-se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava

subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma idéia é considerada verdadeira se

for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles,

um papa, um santo).

Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto,

Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno,

Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena,

Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônides, Nahmanides, Yeudah ben

Levi.9

1.5.5 – Filosofia da Renascença (do século XIV ao século XVI)

É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade

Média, de novas obras de Aristóteles, bem como pela recuperação das obras dos

grandes autores e artistas gregos e romanos.

São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na

Renascença:

9 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 45.

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21

1. Aquela proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos

livros do Hermetismo; nela se destacava a idéia da Natureza como um

grande ser vivo; o homem faz parte da Natureza como um microcosmo

(como espelho do Universo inteiro) e pode agir sobre ela através da

magia natural, da alquimia e da astrologia, pois o mundo é constituído

por vínculos e ligações secretas (a simpatia) entre as coisas; o homem

pode, também, conhecer esses vínculos e criar outros, como um deus.

2. Aquela originária dos pensadores florentinos, que valorizava a vida

ativa, isto é, a política, e defendia os ideais republicanos das cidades

italianas contra o Império Romano-Germânico, isto é, contra o poderio

dos papas e dos imperadores. Na defesa do ideal republicano, os

escritores resgataram autores políticos da Antigüidade, historiadores e

juristas, e propuseram a “imitação dos antigos” ou o renascimento da

liberdade política, anterior ao surgimento do império eclesiástico.

3. Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio

destino, tanto através dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia),

quanto através da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina,

arquitetura, engenharia, navegação) e das artes (pintura, escultura,

literatura, teatro).

A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes descobertas

marítimas, que garantiam ao homem o conhecimento de novos mares, novos céus,

novas terras e novas gentes, permitindo-lhe ter uma visão crítica de sua própria

sociedade. Essa efervescência cultural e política levou a críticas profundas à Igreja

Romana, culminando na Reforma Protestante, baseada na idéia de liberdade de crença e

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22

de pensamento. À Reforma a Igreja respondeu com a Contra-Reforma e com o

recrudescimento do poder da Inquisição.

Os nomes mais importantes desse período são: Dante, Marcílio Ficino,

Giordano Bruno, Campannella, Maquiavel, Montaigne, Erasmo, Tomás Morus, Jean

Bodin, Kepler e Nicolau de Cusa.

1.5.6 – Filosofia Moderna (do século XVII a meados do século XVIII)

Esse período, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, é marcado

por três grandes mudanças intelectuais:

1. Aquela conhecida como o “surgimento do sujeito do conhecimento”,

isto é, a Filosofia, em lugar de começar seu trabalho conhecendo a

Natureza e Deus, para depois referir-se ao homem, começa indagando

qual é a capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a

verdade dos conhecimentos. Em outras palavras, a Filosofia começa

pela reflexão, isto é, pela volta do pensamento sobre si mesmo para

conhecer sua capacidade de conhecer.

O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si

reflexiva, isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer. O sujeito

do conhecimento é um intelecto no interior de uma alma, cuja natureza ou substância é

completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e dos demais corpos

exteriores.

Por isso, a segunda pergunta da Filosofia, depois de respondida a pergunta

sobre a capacidade de conhecer, é: Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é

diferente dele? Como pode conhecer os corpos da Natureza?

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23

2. A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança

intelectual dos modernos, e essa mudança diz respeito ao objeto do

conhecimento. Para os modernos, as coisas exteriores (a Natureza, a

vida social e política) podem ser conhecidas desde que sejam

consideradas representações, ou seja, idéias ou conceitos formulados

pelo sujeito do conhecimento.

Isso significa, por um lado, que tudo o que pode ser conhecido deve poder

ser transformado num conceito ou numa idéia clara e distinta, demonstrável e

necessária, formulada pelo intelecto; e, por outro lado, que a Natureza e a sociedade ou

política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito, porque elas são inteligíveis em

si mesmas, isto é, são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas

idéias do sujeito do conhecimento.

3. Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode

ser plenamente captada pelas idéias e conceitos preparou a terceira

grande mudança intelectual moderna. A realidade, a partir de Galileu, é

concebida como um sistema racional de mecanismos físicos, cuja

estrutura profunda e invisível é matemática. O “livro do mundo”, diz

Galileu, está escrito em caracteres matemáticos.

A realidade, concebida como sistema racional de mecanismos físico-

matemáticos, deu origem à ciência clássica, isto é, à mecânica, por meio da qual são

descritos, explicados e interpretados todos os fatos da realidade: astronomia, física,

química, psicologia, política, artes são disciplinas cujo conhecimento é de tipo

mecânico, ou seja, de relações necessárias de causa e efeito entre um agente e um

paciente.

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24

A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser

conhecidas e transformadas pelo homem. Nasce a idéia de experimentação e de

tecnologia (conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas) e o ideal de que

o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade.

1.5.7 – Filosofia da Ilustração ou Iluminismo (meados do século XVIII ao

começo do século XIX)

Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de As Luzes (por

isso, o nome Iluminismo). O Iluminismo afirma que:

• pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e

política (a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as idéias da

Revolução Francesa de 1789);

• a razão é capaz de evolução e progresso, e o homem é um ser

perfectível. A perfectibilidade consiste em liberar-se dos preconceitos

religiosos, sociais e morais, em libertar-se da superstição e do medo,

graças ao conhecimento, às ciências, às artes e à moral;

• o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações,

que vão das mais atrasadas (também chamadas de “primitivas” ou

“selvagens”) às mais adiantadas e perfeitas (as da Europa ocidental);

• há diferença entre Natureza e civilização, isto é, a Natureza é o reino das

relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e

imutáveis, enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade

aperfeiçoamento moral, técnico e político.10

10 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 47 e 48.

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Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D’Alembert,

Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling (embora este último costume ser colocado

como filósofo do Romantismo).

1.5.8 – Filosofia Contemporânea

Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega

aos nossos dias. Esse período, por ser o mais próximo de nós, parece ser o mais

complexo e o mais difícil de definir, pois as diferenças entre as várias filosofias ou

posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as estamos vendo surgir diante

de nós.11

No século XIX, o otimismo positivista ou cientificista levou a Filosofia a

supor que, no futuro, só haveria ciências, e que todos os conhecimentos e todas as

explicações seriam dados por elas. Assim, a própria Filosofia poderia desaparecer, não

tendo motivo para existir.

No entanto, no século XX, a Filosofia passou a mostrar que as ciências não

possuem princípios totalmente certos, seguros e rigorosos para as investigações, que os

resultados podem ser duvidosos e precários, e que, freqüentemente, uma ciência

desconhece até onde pode ir e quando está entrando no campo de investigação de uma

outra.

Os princípios, os métodos, os conceitos e os resultados de uma ciência

podem estar totalmente equivocados ou desprovidos de fundamento. Com isso, a

Filosofia voltou a afirmar seu papel de compreensão e interpretação crítica das ciências,

11 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 47 e 48.

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discutindo a validade de seus princípios, procedimentos de pesquisa, resultados, de suas

formas de exposição dos dados e das conclusões, etc.

Foram preocupações com a falta de rigor das ciências que levaram o

filósofo alemão Husserls a propor que a Filosofia fosse o estudo e o conhecimento

rigoroso da possibilidade do próprio conhecimento científico, examinando os

fundamentos, os métodos e os resultados das ciências. Foram também preocupações

como essas que levaram filósofos como Bertrand Russel e Quine a estudar a linguagem

científica, a discutir os problemas lógicos das ciências e a mostrar os paradoxos e os

limites do conhecimento científico.12

No século XIX, o otimismo filosófico levava a Filosofia a afirmar que,

enfim, os seres humanos haviam alcançado a maioridade racional, e que a razão se

desenvolvia plenamente para que o conhecimento completo da realidade e das ações

humanas fosse atingido.

No entanto, Marx, no final do século XIX, e Freud, no início do século XX,

puseram em questão esse otimismo racionalista. Marx e Freud, cada qual em seu campo

de investigação e cada qual voltado para diferentes aspectos da ação humana – Marx,

voltado para a economia e a política; Freud, voltado para as perturbações e os

sofrimentos psíquicos -, fizeram descobertas que, até o final de nosso século, continuam

impondo questões filosóficas. Que descobriam eles?

Marx descobriu que temos a ilusão de estarmos pensando e agindo com

nossa própria cabeça e por nossa própria vontade, racional e livremente, de acordo com

nosso entendimento e nossa liberdade, porque desconhecemos um poder invisível que

nos força a pensar como pensamos e agir como agimos. A esse poder – que é social –

ele deu o nome de ideologia.

12 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 49-52.

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Freud, por sua vez, mostrou que os serem humanos têm a ilusão de que tudo

quanto pensam, fazem, sentem e desejam, tudo quanto dizem ou calam estaria sob o

controle de nossa consciência porque desconhecemos a existência de uma força

invisível, de um poder – que é psíquico e social – que atua sobre nossa consciência sem

que ela o saiba. A esse poder que domina e controla invisível e profundamente nossa

vida consciente, ele deu o nome de inconsciente.

Diante dessas duas descobertas, a Filosofia se viu forçada a reabrir a

discussão sobre o que é e o que pode a razão, sobre o que é e o que pode a consciência

reflexiva ou o sujeito do conhecimento, sobre o que são e o que podem as aparências e

as ilusões.

Ao mesmo tempo, a Filosofia teve que reabrir as discussões éticas e morais:

O homem é realmente livre ou é inteiramente condicionado pela sua situação psíquica e

histórica? Se for inteiramente condicionado, então a História e a cultura são

causalidades necessárias como a Natureza? Ou seria mais correto indagar. Como os

seres humanos conquistam a liberdade em meio a todos os condicionamentos psíquicos,

históricos, econômicos, culturais em que vivem?13

13 CHAUÍ, Marilena. Idem ibidem, p. 53.

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CAPÍTULO II

A EDUCAÇÃO DO HOMEM SEGUNDO PLATÃO

2.1 – Iniciando a Questão

O gênero humano é marcado fundamentalmente por duas tríades: a tríade

composta de mente-vontade-coração e a tríade trágica marcada pelo sofrimento-culpa e

morte. Essas duas tríades afloram no homem sua consciência de caminheiro. O ser

humano, na crueza de seu ser, se percebe como um eu que não está pronto. Vive sua

vida segundo o reino das possibilidades, cresce no ser e seu existir manifesta-se como

um constante fazer-se num eterno vir-a-ser.14

Diferente dos animais, que estão na natureza como seres já dados, prontos,

e, portanto, fechados, o homem traz consigo o imperativo de crescer sempre mais no seu

ser. Sua vida se manifesta como abertura. Através da relação e na relação, existe a

possibilidade de tornar-se sempre mais e melhor. A vida do homem, antes de mais nada,

se apresenta como um encontro. Essa possibilidade aberta ao homem nós a chamamos

de educação.15

Na educação e por ela, o homem não somente assume uma condição de

abertura ao novo, mas, sobretudo, supera a si mesmo, atualiza suas capacidades e

potencialidades. Por isso, a tarefa primeira da educação é a humanização. Educar um

homem implica ajudá-lo a tornar-se humano.16

14 TEIXEIRA, Evilázio. A Educação do Homem Segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999 – (Filosofia). 15 Idem ibidem. 16 Idem ibidem.

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Só o homem é um ser educável que consegue conservar e propagar a sua

forma de existência por meio da vontade e da razão. O ser humano cria

progressivamente a si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior,

formas melhores de existência humana.

Daí advém uma velha e antiga pergunta filosófica, sempre nova e sempre

atual: o que é o homem? E o que torna este homem humano?

Como pano de fundo, o que está em jogo é o que poderíamos denominar

uma Antropologia que seja capaz de responder a estas perguntas: que homem educar?

Educar para qual sociedade? Ou seja, qual é o modelo de homem e que sociedade

queremos?

Esta talvez tenha sido a preocupação central de Platão: formar o homem

para uma sociedade ideal. A ela dedicou grande parte de sua filosofia.

A motivação filosófica-chave de Platão consiste em tentar reconstruir com

novos pilares a paideía grega, forçando a passagem de uma explicação

predominantemente mítica da realidade para uma compreensão mais consistente dela

em que seus fundamentos se encontrem na filosofia e não mais no mito.17

A paideía não é para os gregos um aspecto exterior da vida,

incompreensível, fluído e anárquico. Na paideía grega está presente a idéia de uma

educação do homem de acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico

ser. Não se pode evitar o emprego de expressões modernas, como civilização, cultura,

tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que

os gregos entendiam por paideía. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um

aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego,

17 JAEGER, Werner. Paideía, a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 8.

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teríamos de empregá-los todos de uma só vez. Paideía tem que ver com a educação da

pessoa física, estética, moral, religiosa e política, ou seja, uma educação integral.18

Platão parece ter claro que somente as matemáticas poderão provar as

melhores naturezas e selecionar aqueles espíritos que um dia serão dignos da Filosofia,

porque somente devem ocupar-se dela aqueles que estão à sua altura. A função

educativa que exerce a matemática é uma função preparatória. Ao mesmo tempo que

seleciona os filósofos, também os prepara para o seu futuro trabalho: governar a cidade

com justiça, coragem, temperança e sabedoria.

A juventude deve ser posta em contato, primeiramente, com o mundo

sensível, através da música e da ginástica. Paulatinamente, com o estudo da matemática,

ela aprenderá a se desprender do mundo sensível para contemplar a verdadeira

realidade. O estudo da dialética assumirá a cúpula dessa formação intelectual, visto que

somente pela dialética chega-se à Filosofia.19

Essa educação continua até os dezoito anos, quando começa a preparação

cívico-militar. Os moços mais capazes continuam a educação depois dos vinte anos, já

com caráter superior, onde se intensifica o estudo das matemáticas, da dialética e da

Filosofia. Dentre eles, se escolhem os futuros governantes, cuja educação prossegue até

os cinqüenta anos, que em tese deverão continuar durante toda a vida. Pois a educação

filosófica possui um caráter permanente.20

Reale, em seu estudo sobre as doutrinas não escritas de Platão, que mais

adiante teremos oportunidade de referir, fala de um Platão esotérico, que insiste na

18 JAEGER, Werner. Idem ibidem, p. 7. 19 TEIXEIRA, Evilázio. Idem ibidem. 20 Idem ibidem.

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oralidade dialética como única condição de possibilidade de se chegar à doutrina dos

primeiros princípios.21

2.2 – A Educação para a Dialética

O diálogo foi o método por excelência adotado por Sócrates para transmitir

suas idéias. Daí resulta a palavra “dialética”. Dentro desse contexto, dialético é aquele

que está aberto ao diálogo, a um diálogo vivo e livre. Nessa forma peculiar de ensinar

socrático, o papel do educador é muito mais o de perguntar e inquirir do que o de

responder ou contestar.

Esse método socrático, baseado no diálogo, compreende duas etapas: a

ironia e a maiêutica. Na primeira, Sócrates procura evidenciar as contradições presentes

no discurso de seus discípulos, repleto de conteúdos vagos e vazios, ajudando-os a

purificar o espírito da falsa ciência. Através da ironia. Sócrates tinha como objetivo

bombardear nos discípulos o orgulho e a arrogância do saber. Por isso, a necessidade de

conhecer-se a si mesmo. A intenção de Sócrates não era propriamente destruir o

conteúdo proclamado por seus interlocutores, mas conscientizá-los de suas próprias

respostas e de suas imprecisões.22

Liberto do orgulho e de toda a pretensão, o discípulo poderia fazer o

caminho de volta, reconstruindo suas próprias idéias e, conseqüentemente, rever onde

errara, corrigindo-as. Essa segunda etapa Sócrates chamava de maiêutica, arte de parto

ou arte de trazer à luz. Sócrates traz para a Filosofia um exemplo baseado na sua

experiência de família, pois sua mãe era parteira. Assim como a mãe Fenareta ajudava a

trazer crianças ao mundo, Sócrates ajudava a extrair a verdade dos discípulos.

21 REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, p. 96-97. 22 TEIXEIRA, Evilázio. Idem ibidem, p. 22.

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A dialética platônica tem como centro o diálogo com a vida. A esfera da

dialética é a esfera da vida. Educar implica aprender a perguntar sobre a vida, na vida e

com a vida. A vida também traz perguntas. O homem não apenas pergunta pela vida,

senão também é perguntado por ela. Dentro dessa perspectiva, aparece a pergunta pelo

sentido. Não sou eu que pergunto pelo sentido de minha vida, mas é a própria vida que

me indaga a respeito da qualidade como eu a estou vivendo.23

A dialética está presente em todos os diálogos de Platão. Ela consiste num

processo de divisões e aproximações que permitem ao indivíduo falar e pensar. Aptidão

de dirigir a vista para a unidade e a multiplicidade. O filósofo é aquele que possui uma

visão de conjunto. Somente ele é capaz de captar a unidade na multiplicidade. “Quem

sabe ver o conjunto é dialético, quem não sabe não o é”. A trajetória da dialética tem

como objetivo levar do sensível ao inteligível, passar do plano físico ao metafísico,

aproximar a multiplicidade do sensível à unidade do inteligível. Uno e múltiplo se

fundem e se juntam na síntese, possibilitando a unidade na multiplicidade. O que busca

a dialética é chegar à contemplação das Idéias Supremas, ou seja, à abstração última da

unidade absoluta. De todas as idéias, a mais especial é a idéia do Bem.

A dialética tem como objetivo último elevar-se até a nóêsis, a ciência

suprema. Se a maioria dos homens é incapaz de ir além da opinião, e, alguns, através

das matemáticas, chegam à diánoia; somente o filósofo, por meio da dialética, alcança a

nóêsis. O filósofo é o dialético por excelência. A dialética é este proceder pelo qual a

inteligência passa do sensível ao inteligível e vai de idéia em idéia até intuir a Idéia

Suprema, ou seja, o Bem, o Uno, o incondicionado.

A dialética possui dois movimentos: um ascendente, outro descendente. O

caminho ascendente possui um caráter sinótico. Consiste em libertar-se dos sentidos e

23 TEIXEIRA, Evilázio. Idem ibidem.

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abstrair de idéia em idéia até alcançar a Idéia Suprema, no caso o Bem, a fonte de ser e

inteligibilidade. O caminho ascendente, portanto, passa das idéias, hipóteses inferiores

às superiores. Eis a afirmação de Platão:

“Quem não for capaz de definir com palavras a idéia do bem, separando-a de todas as outras, e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as refutações, esforçando-se por dar provas, não através do que parece, mas do que é, avançar através de todas estas objeções com um raciocínio infalível – não dirás que uma pessoa nessas condições não conhece o bem em si, nem qualquer outro bem, mas, se acaso toma contato com alguma imagem, é pela opinião, e não pela ciência que agarra nela, e que a sua vida atual a passa a sonhar e a dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro descerá ao Hades para lá cair num sono completo? (...) Mas se um dia tiveres de fato de educar na prática aquelas crianças que educas e instruir em palavras, não consentirás, segundo creio, que sejam como simples quantidades irracionais, se têm de governar a cidade e de ser senhores de altas instâncias”.24

O outro caminho da dialética é o descendente, conhecido também como

diaírisis. Esse caminho é oposto do primeiro. Ele parte da Idéia Suprema e, através de

sucessivas divisões, busca compreender a complexidade existente entre as partes e o

todo.

A fim de entendermos mais claramente esses dois procedimentos da

dialética, leiamos as devidas distinções feitas por Reale:

“a) primeiramente é necessário ter bem presente que o procedimento sinóptico e o diairético se entrecruzam de várias maneiras e encadeamente, de sorte que um só é compreensível em conexão com o outro e reciprocamente; b) em segundo lugar, é preciso ter bem presente o fato de que os nexos fundacionais consistem exatamente nas relações Uno/muitos e que as gradações dos dois procedimentos dialéticos são as que levam passo a passo a se abraçar a multiplicidade na unidade suprema; e as que levam a decompor diaireticamente a unidade na multiplicidade, de modo que se compreenda como o Uno se desdobra nos muitos”.25

- Perfeitamente.

24 REALE, Giovanni. Idem ibidem. 25 Idem ibidem, p. 166.

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- Ora, esse dom, o dom dialético, não atribuirás a nenhum outro, acredito,

senão àquele que filosofa com toda pureza e justiça.

Somente por meio da oralidade dialética chega-se à verdade. A educação se

faz no diálogo; portanto, no encontro de uma ou mais pessoas. Parece ter estado muito

presente na mente do fundador da Academia que educação é, sobretudo, encontro e

processo. Segundo Reale, “a dialética no seu sentido global leva à compreensão

daquela coisa ‘admirável’, a saber, de como ‘os muitos sejam um e o um seja muitos’.

No seu grau máximo, ela é exatamente o conhecimento que o demiurgo (a inteligência

suprema) possui de maneira perfeita”.

Platão é o filósofo que mais aplicou o jogo dos opostos, levando-o à sua

máxima perfeição. “Perfeição é aquilo para o que Platão nos aponta, quando faz

filosofia. Nunca antes dele, nunca depois, o homem apontou para tão alto.”26

Carlos Cirne Lima, em sua obra Dialética para principiantes, mostra a

sutileza presente na dialética platônica. Platão é considerado o filósofo das aporias. Com

muita propriedade, esboça a tese e traceja a antítese, mas a síntese quase nunca aparece.

Como é possível falar de perfeição sem remeter à síntese?

Para entender a dialética de Platão, não há outro remédio senão recorrer às

suas doutrinas não escritas. Somente aqui podemos contemplar a síntese em sua máxima

expressão. Comumente fala-se que em Platão há duas doutrinas. Uma, a doutrina

exotérica, outra, a doutrina esotérica.27

A doutrina exotérica é destinada àqueles que estão fora da Academia e,

portanto, não possuem as condições necessárias para compreender com mais

26 REALE, Giovanni. Idem ibidem. 27 CIRNE LIMA, Carlos. Dialética para Principiantes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. Coleção Filosofia,

48. p. 37.

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profundidade a doutrina. Aqueles que estão fora recebem uma formação mais leve, mais

didática; para esses, os jogos dos opostos ficam quase sempre em aberto.

Há também a doutrina esotérica, aquela destinada àqueles que estão dentro

da Academia, e que, portanto, não só gozam da intimidade do mestre, como também

estão a par das discussões. São os iniciados. Entre esses, a dialética assume a sua

máxima expressão. Aqui fazem-se as sínteses. Aqui pratica-se a oralidade dialética em

seu grau máximo. Aqui, não há dualismos como aqueles que estão presentes na doutrina

exotérica.28

Platão traz consigo certa desconfiança com relação à letra morta da

escritura. O que é a escritura em comparação ao logos vivo e falado? A concepção de

escrito em Platão remete para aquilo que o filósofo entendia por linguagem. A

linguagem verdadeira é oral. Na Carta VII contesta seriamente a validade de sua

filosofia escrita. Platão usa alguns argumentos para provar que, se um escritor é “sério”,

as coisas, que para ele são as mais sérias, não são confiadas ao escrito, já que o lugar

por excelência onde devem ser guardadas é a própria alma.29

“Posso dizer o seguinte sobre todos aqueles que escreveram ou que escreverão: todos os que afirmam saber as coisas sobre as quais medito, seja por tê-las ouvido de mim, seja por tê-las ouvido de outros, seja por tê-las descoberto sozinhos, não é possível, segundo meu parecer, que tenham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas não existe um texto escrito meu nem existirá jamais”.30

Quais as razões que levaram Platão a confiar as coisas maiores somente à

oralidade dialética? As razões que levaram Platão a não escrever possuem, sobretudo,

um caráter didático-ético-pedagógico. E, por outro lado, sabe ele do abismo existente

entre o que é experimento e a sua possibilidade de ser expressado e compreendido.

28 CIRNE LIMA, Carlos. Idem ibidem, p. 38-50. 29 Idem ibidem. 30 Idem ibidem.

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Segundo Reale:

“o conhecimento dessas coisas não pode ser comunicado como o conhecimento das outras coisas, porque ele requer uma longa série de discussões feitas em conjunto e em estreita comunhão entre quem ensina e quem aprende e uma comunhão de vida, até que nasça na alma de quem aprende a luz que ilumina a verdade”.31

A educação à dialética não é apenas colocar a serviço do educando

determinadas ferramentas racionais que o ajudem a pensar e conhecer a verdade das

coisas. O método dialético, sobretudo, tem o caráter de purificar a alma, portanto educar

o coração. O diálogo vivo, tão apregoado por Sócrates e assumido por Platão de modo

incondicional, prova, a rigor, que educar implica uma relação de comunhão.

Compreende uma relação de subjetividade e intersubjetividade. É no encontro subjetivo

e intersubjetivo que mestre e discípulo aprendem juntos, educam-se. O diálogo vivo

rompe com as unilateralidades onde “alguém” que sabe ensina a “alguém” que não sabe.

O diálogo vivo supõe exterioridade, onde se manifesta a vontade de fazer o outro

melhor e de ser melhor, mas também manifesta a interioridade, isto é, diálogo interior

com a própria alma. No Teeteto, Platão fala do filósofo, quando está exercendo sua

atividade que lhe é própria: fica em silêncio, em colóquio íntimo com a própria alma,

fica isolado do que está ao seu redor, e coloca o exemplo de Tales de Mileto, que estava

de tal modo absorto, ao contemplar os astros e olhar o céu, que acabou caindo num

poço.32

31 REALE, Giovanni. Idem ibidem, p. 69-75. 32 Idem ibidem.

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2.3 – Mito da Caverna, Ideal da Nova Educação

Poderíamos começar questionando se Platão, por vezes, não é contraditório,

ou mesmo ambíguo: de um lado, critica e rejeita os mitos e, de outro, usa

constantemente mitos para expor sua filosofia. Posto de outro modo: Platão parece estar

ora numa e ora noutra margem do mesmo rio. De um lado, propõe desmistificar; de

outro lado, utiliza-se abundantemente do recurso mitológico. De um lado, recorre à

mitologia; de outro lado, rejeita-a. Um exemplo do que estamos falando está em A

República. Propõe expulsar os poetas e dramaturgos de sua Politeía ideal e, nessa

mesma obra, expõe seu pensamento a respeito do mundo das idéias, valendo-se de três

mitos: o mito do sol, o mito da linha e o mito da caverna. Aparentemente, não seria uma

contradição, ou mesmo uma falta de intelecção do filósofo da Academia?

Platão começa como poeta da tragédia, depois a abandona, sob a influência

de Sócrates. No final das contas, sentia necessidade de voltar, de retornar à própria

mitologia.

Procuremos clarear a questão. Platão utiliza mitos, mas diferencia-se da

origem da palavra “mito”. Originalmente, mito se refere a histórias sagradas tidas como

verdadeiras. Em Platão o mito assume um sentido de alegoria, ou como entendemos

hoje, um sentido de metáfora. Por isso, o uso de mitos em Platão não significa um

simples recuo ao mitológico, mas um recuo ao reflexivo. O mito não aparece da mesma

maneira. Há uma tentativa explícita de esclarecer o mito. Platão esclarece o mito, e o

mito esclarecido tem absoluta certeza de não ser verdade. Ou melhor, o mito esclarecido

está a serviço da própria verdade. Ele pertence àquele deúteros + ploûs (segunda

navegação) da qual fala Platão33. O recurso ao mito múltiplo na unidade, ou o inverso:

33 PAVIANI, Jayme. Escrita e linguagem em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. Coleção

Filosofia, 5, p. 65-72.

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dissolver a unidade na multiplicidade, ao passo que o homem nem é capaz agora de

realizar essas duas operações, nem jamais chegará a realizá-las no futuro.

Leiamos Jayme Paviani:

“Não basta afirmar que o mito é ‘intuição e crença vivida e logos o verdadeiro pensar, a alma do discurso filosófico’. Na realidade, toda a linguagem carrega algo de mítico. Dizer que a crença mítica no Sol ou na Lua, enfim, nesse ou naquele deus, tem origem na falsa interpretação dos nomes de fenômenos naturais é desconhecer a estrutura, a organização e a linguagem do mito. Por isso, a distinção entre ‘mythos’ e ‘logos’, em Platão, permanece indeterminada, problemática, suspensa. Seu discurso filosófico, sua indagação teórica, recorre ao mito todas as vezes que a busca da definição e a tentativa das perguntas não encontram respostas. Seria absolutamente impossível eliminar o mito da filosofia de Platão. Não teríamos mais a teoria das Idéias, da alma, do conhecimento, do mundo, da imortalidade e também da escrita. O mito é mais que sabedoria camponesa (agroíkês sophía), a opinião comum. Ele é introduzido para apontar, possivelmente, a doutrina não escrita de Platão, o inatingível aos não-iniciados. Expressa o reino de devir. O mito remete romanticamente para a explicação onto-teológica”.34

Platão insiste em que devemos trabalhar as paixões, ou seja, superar aquelas

inclinações que puxam o homem para baixo, tornando-o irascível.

“De acordo com esse princípio, quem de nós for temperante será amigo de

Deus, por assemelhar-se-lhe, enquanto o intemperante, que não se lhe assemelha, é

injusto e diferente dele.” A experiência humana tem demonstrado que a capacidade de o

homem decidir livremente depende do teor de suas paixões. Educar as paixões implica

não se deixar guiar pela embriaguez da matéria, nem pela avidez dos sentidos que

buscam somente as gratificações aparentes.

Em Platão aparece fortemente a dimensão transcendente da educação. O

homem é um ser faminto de infinito, sedento da totalidade e do inteligível. Assemelhar-

se a Deus implica “trabalhar” os desejos irascíveis presentes na obscuridade humana.35

34 PAVIANI, Jayme. Idem ibidem, p. 65. 35 Idem ibidem.

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39

Quando Platão fala das paixões a serem trabalhadas, está se referindo às

paixões negativas. A paixão tomada no sentido negativo diz respeito à estrutura

psicológica do homem. Daí a sua necessidade de ordenação, para que o homem não

fique abandonado à sua mercê, vindo a falsear a realidade e a perder sua liberdade.

O homem impossibilitado de superar seus desejos irascíveis torna-se um

ébrio, um louco, debilitado na sua vontade, ignora a inteligência e todo o bom senso,

torna-se um sujeito imprudente, exagerado, pois fantasia a realidade. Em contrapartida,

quando o homem ordena seus desejos e afetos desordenados, trabalhando a paixão

negativa em si, então será capaz de guiar-se por autênticos valores. Deixa-se guiar pelo

bom senso do logos, escolhendo sempre o melhor. O homem que age assim é um

purificado, pois realiza por atos e palavras o melhor de si, enfim, torna-se quase

divino.36

Vejamos, resumidamente, o que diz Platão na alegoria da caverna. Num

primeiro momento, o que temos são homens numa habitação subterrânea em forma de

caverna. Estão lá desde a infância, algemados de tal maneira que estão impedidos de se

mexerem. Permanecem no mesmo lugar e só podem olhar para uma única direção, para

o fundo da caverna. Serve-lhes de iluminação um fogo que está atrás deles. Entre a

fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, e ao longo desse caminho

construiu-se um muro, ao longo do qual passam homens transportando toda espécie de

objetos. Os prisioneiros nessas condições não podem ver os objetos, senão apenas a

sombra desses objetos projetada ao fundo da caverna.

A atitude dos prisioneiros é de total despreocupação. Estão totalmente

absortos na contemplação das sombras, que, por sua vez, para aquele que as contempla,

36 MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1966-67, vol.I, p. 218-225.

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constituem a totalidade da realidade e, portanto, a verdade. O homem nasce nessa

situação de caverna, portanto de ignorância. A tarefa do filósofo educador é mostrar o

caminho aos acomodados da caverna, para que estes superem seu estado de

ignorância.37

Eis que de repente um desses prisioneiros é solto dos grilhões que o

prendem e forçado a olhar para os lados, a andar e a olhar para a luz.

“(...) O que aconteceria, se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver, se regressados à sua natureza, as coisas se passavam desse modo. Logo que alguém soltasse um deles e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora.”38

A partir dessa perspectiva, a educação aqui consiste numa provocação e

numa ocasião. O educador é aquele que provoca o educando, forçando a sua

desinstalação. Toda a desinstalação supõe uma reeducação: abandono do “bem-estar”

do mundo das sombras, portanto da ignorância, para o mundo da realidade.

Mondolfo, interpretando essa passagem, diz que:

“O prisioneiro libertado das cadeias, que conseguiu ver a luz, é o filósofo que, da contemplação das causas sensíveis, sombras das idéias, se eleva à visão da luz das idéias mesmas. Mas então começa a sua missão iluminada e libertadora para os outros prisioneiros: e esta é a missão que Sócrates dizia ter-lhe sido confiada por Deus, comparável à descida ao Hades, celebrada por órficos e pitagóricos”.39

“Se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e

voltar-se-ia para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar e julgaria

ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam.”40

37 MONDOLFO, Rodolfo. Idem ibidem. 38 A República, 515 c. 39 MONDOLFO, Rodolfo. Idem ibidem, p. 218. 40 A República, 515 e.

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O processo educativo, portanto, começa no interior da caverna, mas seu

objetivo é maior. Não basta contentar-se em ver os objetos através da luz do fogo, e,

sim, contemplá-los à luz do sol. Sair da caverna será, portanto, um imperativo

inevitável. Não é um processo fácil. Tanto a experiência dentro da caverna quanto a

saída dela implica perdas, momentos de dúvidas, incertezas, sacrifícios. Não nos

esqueçamos de que, em ambas as circunstâncias, a libertação dos grilhões bem como a

saída da caverna não se dão de modo natural e pacífico. O homem é como que forçado,

empurrado, arrastado sempre mais para cima.

“E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até a luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos ser os verdadeiros objetos? (...) Precisava se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia imagens dos homens e dos outros objetos, refletidos na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia (...) Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer lugar, mas a ele mesmo, no seu lugar.”41

A experiência do prisioneiro na caverna mostra o que significa um processo

educativo capaz de levar o homem à sua verdadeira condição. A educação é justamente

essa atitude de forçar o homem a galgar píncaros sempre mais altos. Platão sabe que não

existe educação sem desafios. Educar comporta também passar por determinadas crises,

por momentos de incerteza. De antemão, no mito da caverna, Platão mostra claramente

o que é a vida do homem sob a influência da educação ou a falta dela.42

41 A República, 516 a-b. 42 Idem ibidem.

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CAPÍTULO III

EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA

3.1 – Pedagogia e Senso Comum

O ato de educar é uma práxis. E, como toda práxis, supõe uma relação

recíproca entre teoria e prática.

A prática de educar, no entanto, nem sempre foi embasada por uma teoria

rigorosamente elaborada. Durante muito tempo a humanidade se utilizou do saber

espontâneo (e muitas vezes do conhecimento mítico) para orientar a ação educativa.

Ainda hoje muitos educam dessa forma. Basta lembrar a educação informal

que se efetua na família, bem como a maneira pela qual as tribos preparam as novas

gerações. Não seria exagero dizer que muitas escolas também aplicam fórmulas

tradicionais baseadas no senso comum e, portanto, empíricas.

A necessidade de tornar a prática da educação intencional e mais eficaz traz

consigo a exigência de maior rigor conceitual, de sistematização dos conhecimentos, de

definição dos fins a serem atingidos e da escolha dos meios a serem utilizados. Assim,

surge a pedagogia ou teoria geral da educação.43

No início, a pedagogia se acha intimamente ligada à filosofia. Na Grécia

antiga, os filósofos teorizam sobre a educação não como um projeto específico, mas

decorrente do próprio filosofar. Os sofistas são educadores, mas, quando ensinam

retórica, na verdade estão ocupados com a formação do homem público, capaz de

defender suas idéias na assembléia democrática. Preocupado com a definição de

43 A República, 516 c.

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43

conceito, Sócrates desenvolve a ironia e a maiêutica, que constituem os dois passos de

seu método.44

Essa pedagogia nascente tem como característica o enfoque metafísico

próprio da filosofia antiga, que acentua a atitude teórica de análise dos conceitos

universais. Segundo essa perspectiva, educar seria desenvolver todas as possibilidades

da natureza humana, fazer o homem tender para a perfeição, desabrochar o que tem em

potência, o que pode vir a ser.

Platão, por exemplo, considera que a verdadeira educação ajuda o homem a

superar a sua existência empírica, dimensão em que se encontra de certa forma asfixiado

pelos sentidos e pelas paixões, e a atingir a essência verdadeira, no mundo das idéias.

Na Idade Média, Santo Tomás caracteriza a educação como instrumento para a

realização das potencialidades do homem. Também durante o Iluminismo, no século

XVIII, a ênfase recai sobre o ideal do homem racional, e Kant define a educação como

o processo pelo qual o homem chega a ser homem, ou seja “o fim da educação é

desenvolver, em cada indivíduo, toda a perfeição de que ele é capaz”.

Os limites dessa abordagem se encontram na visão parcial dos

procedimentos educacionais, excessivamente centrados no indivíduo e nos modelos

ideais que determinam, a priori, o que é o homem “universal” e como deve ser a

educação.

Trata-se, portanto, de uma visão individualista e intelectualista da

pedagogia. O educador polonês Suchodolski chama de essencialista essa tendência que

marca a pedagogia por um longo período da história da educação e que coexiste ainda

hoje com outras tendências.45

44 A República, 516 c. 45 Idem ibidem.

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44

3.2 – A Importância da Pedagogia

Qualquer atividade educacional que se queira intencional e eficaz tem claros

os pressupostos teóricos que orientam a ação. Ao elaborar leis, fundar uma escola,

preparar o planejamento escolar ou enfrentar dificuldades específicas em sala de aula, é

preciso ter clareza a respeito da teoria que permeia as decisões.

No entanto, é comum observarmos o “espontaneísmo”, resultado da

indevida dicotomia entre teoria e prática, gerada porque o professor não foi

adequadamente informado a respeito da teoria ou porque não sabe como integrá-la à

prática efetiva. A realidade concreta, que se resume no convívio com os alunos, é

sempre um desafio quando o professor não assimilou bem as teorias.

Vejamos alguns exemplos. Pensemos em uma escola de 2º grau que oferece,

a cada semana, dez aulas de química, uma de história e nenhuma de filosofia; em uma

sala de primário em que as carteiras estão fixadas no chão; em um professor que prefere

estimular os trabalhos em grupo e outro que privilegia a exposição oral; em alguém que

lamenta o fato de não se ensinar mais latim no colégio; em outro que exige leituras

extraclasse; em um que faz chamada oral com freqüência e outro que não dá valor às

avaliações.46

Todos esses aspectos resultam de concepções – tematizadas ou não – que

revelam, primeiramente, a seguinte questão: que homem se quer formar? Para que tipo

de sociedade? A partir da elucidação da base antropológica, passamos para a seleção

dos conteúdos a serem transmitidos. O que ensinar para formar aquele tipo de homem?

Só então se colocam questões metodológicas: como ensinar?

46 O problema da pesquisa em educação e algumas de suas implicações, Revista Educação Hoje, n. 2,

São Paulo: Ed Brasiliense, mar. 1969.

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45

Portanto, a escolha dos conteúdos e do método não é casual, mas se enraíza

– quer o professor saiba, quer não – em uma determinada concepção de homem e de

sociedade, concepção esta que não é neutra, estando impregnada da visão política que a

anima.

Dessa forma, os procedimentos específicos usados em sala de aula adquirem

sentido a partir do esclarecimento dos pressupostos antropológicos, bem como da

constatação a respeito da coerência (ou incoerência) com o método e o conteúdo

escolhidos.47

Vejamos, como exemplo, a escola tradicional, que parte de uma concepção

de natureza humana universal que precisa ser “trazido à luz” pela educação. Para

“atualizar” as potencialidades, busca-se transmitir a maior quantidade possível de

conhecimentos (ênfase no conteúdo) e de valores desta sociedade relativamente estável.

Para tanto, usa-se o recurso do método expositivo, por meio de procedimentos

específicos como a exposição oral, feita pelo professor, ou a exposição escrita dos

manuais escolares. Na avaliação da aprendizagem, utilizam-se procedimentos tais como

exercício de fixação e provas periódicas, nas quais se exige a reprodução do

conhecimento.48

3.3 – Educar o Educador

Quando examinamos a história da educação, constatamos que nem sempre

se cuidou adequadamente da importante questão da formação do professor. Há uma

idéia corrente de que vocação e desprendimento generoso bastam para que a pessoa se

47 O problema da pesquisa em educação e algumas de suas implicações. Idem ibidem. 48 Idem ibidem.

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46

encaminhe para essa profissão. Esta crença gera a ilusão de que ela não precisa de

preparo especializado.

Aqui vamos discutir não só a importância de se educar o educador quanto

também a premente necessidade de sua adequada profissionalização.

A revalorização da profissão de magistério deve começar pelos cuidados

com a formação do professor. Tornar os cursos de magistério momentos efetivos de

reflexão sobre a educação é condição para a superação da atividade meramente

burocrática em que mergulham muitos desses cursos. Afinal, não basta ser químico para

ser um bom professor de química nem “ter jeito para lidar com crianças” para dar aulas

no pré-primário.

Os cursos de magistério, pedagogia e licenciatura devem proporcionar uma

compreensão sistematizada da educação, a fim de que o trabalho pedagógico se

desenvolva para além do senso comum e se torne realmente uma atividade intencional.49

Destacaremos três aspectos importantes na formação do professor:

• qualificação: o professor deve adquirir os conhecimentos científicos

indispensáveis para o ensino de um conteúdo específico;

• formação pedagógica: a atividade de ensinar deve superar os níveis do

senso comum, tornando-se uma atividade sistematizada;

• formação ética e política: o professor deve educar a partir de valores e

tendo em vista um mundo melhor.

No primeiro aspecto, busca-se garantir a competência do professor por meio

do domínio do conteúdo dentro da área escolhida – história, geografia, matemática etc.-,

já que ninguém ensina o que não sabe.

49 ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Idem ibidem, p. 152-155.

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47

O segundo aspecto nos mostra que não basta ser bem informado. É

fundamental que se saiba selecionar o conteúdo a partir dos objetivos concebidos de

antemão, visando garantir a eficácia da ação. Nesse caso, o professor precisa ter acesso

às contribuições das ciências auxiliares da educação, da filosofia da educação e da

história da educação. Deve dominar também, além dos aspectos teóricos, os recursos

técnicos, desenvolvendo as habilidades que viabilizem a atividade docente.

O último aspecto diz respeito ao fato de que o professor desenvolve um

trabalho intelectual transformador: ele não só quer mudar o comportamento do aluno,

como também educa para um mundo melhor, que está para ser construído. A educação

está inserida em um contexto maior – social, econômico e político. Por isso o professor

não pode estar alienado dos acontecimentos de seu tempo, devendo ser capaz de realizar

juízos de valor a respeito dos comportamentos coletivos e individuais sempre atento aos

valores políticos e morais.50

Só assim o professor poderá desenvolver nos alunos a capacidade de

questionamento e promover a desmistificação da cultura. Embora não atue de forma tão

revolucionária quanto sonharam os escolanovistas, não resta dúvida de que a escola

desempenha importante papel no processo de conscientizar as novas gerações com

relação aos problemas a serem enfrentados.

Além disso, a formação ética e política permite uma melhor compreensão a

respeito do que é relevante ensinar e de como fazê-lo, a fim de não se cair no

enciclopedismo, no academicismo ou no tecnicismo. Nesse caso, é sempre bom

lembrar: mesmo quando existe um falso apoliticismo e a crença de que se está

desenvolvendo uma atividade neutra, encontramos bem escondidos os interesses do

grupo que se acha no poder. Quer queira, quer não, as convicções do professor a

50 ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Idem ibidem.

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48

respeito da ética e da política aparecem na forma como os conflitos surgidos em classe

são trabalhados por meio daquilo que ele diz, assim como por meio daquilo que

silencia.

Convém que o professor se posicione diante do mundo, o que não significa,

em absoluto, assumir atitudes de proselitismo, perniciosas porque visam doutrinar o

aluno, abusando de sua receptividade intelectual. Assumir posições significa estar

comprometido com o mundo e disposto a participar, lutando contra o trabalho

degradante, a submissão política, a alienação da consciência, as exclusões injustas e as

diversas formas de preconceito.51

Chamar a professora de “tia” ou exclamar, com reverência, que “o

magistério é um sacerdócio” são formas semelhantes de depreciação do trabalho do

mestre.

O tom falsamente afetivo dessas expressões descaracteriza o cunho

profissional da atividade docente, que merece ser respeitada principalmente sob o

aspecto do trabalho realizado, e não como ocupação desinteressada, amorosa ou mística.

A expressão “tia”, além de conferir um “ar doméstico” à atividade

profissional, nos faz lembrar a desde sempre existente “feminização” do magistério.

Não é a vocação o motivo pelo qual predominam as mulheres na função docente,

sobretudo a primária. O desprestígio e a baixa remuneração destinam essas atividades

ao segmento feminino, também desvalorizado profissionalmente na sociedade sexista.

A expressão “sacerdócio” nos faz lembrar abnegação, total dedicação a uma

atividade vilmente remunerada, levando à convicção de que a “grandeza espiritual” do

empreendimento de educar estaria na razão inversa da exigência de um salário justo.

51 ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Idem ibidem.

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49

Aliás, é sempre interessante observar como são tratadas em todos os tempos

as “obras de pensamento”. As pessoas tendem a considerar que, para os intelectuais, dar

uma aula, fazer uma conferência, escrever um artigo ou livro, dispondo, para isso, de

suas idéias, não lhes custa nada e que poderiam oferecer seus préstimos como dádivas.

A mesma atitude seria impensável nas situações em que precisamos de um técnico para

consertar a torneira ou um médico para nos extrair a vesícula...

O professor é um profissional e, como tal, além de uma boa formação, deve

buscar garantir condições mínimas para um trabalho decente: condições materiais

adequadas, reuniões pedagógicas, reciclagem para atualização permanente, plano de

carreira, além de salários mais dignos.

Essas modificações não dependem dos indivíduos isolados, só serão

possíveis caso os professores tomem consciência política da sua situação e estejam

dispostos a se mobilizar sempre que necessário. Para tanto, é preciso que eles estejam

engajados em associações representativas de classe que defendam seus interesses.52

52 ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Idem ibidem.

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50

CONCLUSÃO

Após termos explicitado, ainda que de modo sucinto, o pensamento de

Platão sobre a educação, nos parece conveniente fazermos algumas considerações,

identificando possíveis aproximações e divergências com o filósofo.

A educação é bem diversa das flores do “jardim de Adônis”, metáfora usada

por Platão no Fedro, que florescem de oito em oito dias, e assim como tão rapidamente

florescem também murcham. Educar um homem é semelhante à arte do verdadeiro

camponês. Consiste num trabalho sério, incansável e paciencioso. Exige valas

profundas, preparar a terra, escolher as sementes, intensificar o trabalho após a

semeadura. Leva-se muito tempo para educar um homem. Platão já o sabia muito bem,

quando na República escreve que “são necessários cinqüenta anos para formar um

homem”. O homem bem formado é aquele que se inclina à luz radiosa da alma e

contempla o verdadeiro Ser, que dá a luz a todas as coisas. Esse é o filósofo que

alcançou o cume da paideía platônica. Aquele que, após ter visto o bem em si, usa-o

como paradigma, para ordenar a si mesmo e a cidade. O filósofo é aquele que mais

perto chegou da síntese entre individualidade e coletividade. Ele conseguiu aproximar a

tensão existente entre indivíduo e coletivo, pois sabe que a sua perfeição individual

chama-o para servir na polis.

Platão tem presente que educação é uma atividade da alma. A partir dessa

perspectiva espiritual, a educação é troca e partilha, dar e receber. Educação é,

sobretudo, comunicação; deve estar fundamentada no diálogo. Porém, não podemos dar

e partilhar daquilo que não temos ou que ainda não somos. Só damos o que possuímos.

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A realidade nos tem mostrado que a educação, cada vez mais unilateral, não

está dando conta de resolver a complexidade do homem e suas relações, tampouco está

tornando o ser humano mais feliz. E o Estado tem-se manifestado ineficiente na

educação de todos e do cidadão em particular.

Nossa tradição cultural se caracteriza por buscar saídas individuais e

isoladas para os problemas educacionais. Em geral, queremos “boas escolas para os

nossos filhos” sem maiores preocupações com o todo.

Platão enfatiza uma educação integral, que forme o indivíduo em todas as

suas potencialidades e capacidades, uma educação que não separe o indivíduo e o

compromisso com o coletivo. Em que consiste essa educação integral? Ajudar o ser

humano a desenvolver-se plena e sadiamente, aprimorando todas as suas

potencialidades e capacidades: capacidades físicas ou biológicas que dizem respeito à

saúde do corpo. Capacidades intelectuais, que dizem respeito aos valores noéticos,

ligados à inteligência, tão importantes para o desenvolvimento espiritual e a busca da

verdade. Formar o homem moral capaz de agir segundo o dever-ser de sua consciência,

educando para a liberdade e para a responsabilidade, que leva a fazer aquilo que deve

ser feito, e não ao que é mais conveniente. Uma educação integral, a partir de Platão,

deve também educar o homem social e sociável, que não somente vive rodeado de

outros, mas também é convidado a promover a justiça, a conviver em harmonia e

respeito com os de sua raça, como semelhantes, e com toda a natureza e todo o cosmo,

como parte integrante de sua vida.

No sentido platônico, a educação é a arte do desejo do bem; a realização do

bem implica a prática das virtudes. O homem bom é virtuoso e, porque é virtuoso, é

bom. O ideal máximo de perfeição e de humanidade a ser buscado pela educação deverá

ser a assemelhação com Deus. Tornar o homem tão pleno na sua humanidade capaz de

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comparar-se à medida do absoluto. O desafio é uma educação que forme o homem

humano. Quanto mais humanos, mais semelhantes seremos a Deus.

Platão constrói uma filosofia do Estado. Teoriza um Estado ideal que deverá

ser comandado por guardiães, filósofos capazes de legislar com justiça e,

conseqüentemente, garantir a felicidade à polis.

Para Platão, a família é dispensável.

Apesar de Platão ter dado à educação um acento demasiado estatal e

estatizante, tornado o homem vítima de um zelo contraproducente, pôs em evidência

que a educação é tarefa de toda a vida. Popper admite que certo grau de controle do

Estado é necessário na educação, a fim de que os jovens sejam protegidos de uma

negligência que os tornaria incapazes de defender sua liberdade, e o Estado deve cuidar

que todas as facilidades educacionais estejam ao alcance de todos. A crítica de Popper a

Platão consiste justamente no fato de que um demasiado controle do Estado em

questões educacionais é um perigo fatal para a liberdade, pois deve levar à doutrinação.

Nos últimos anos, tem-se acentuado que o nível ou pobreza das nações está

cada vez mais ligado ao grau de conhecimentos e de informações. Basta ver o progresso

científico-tecnológico, que, nos últimos cinqüenta anos, cresceu surpreendentemente na

história da humanidade. Novos conhecimentos são gerados com tal volume e rapidez,

que se torna impensável sua assimilação por um ser humano.

Hoje fala-se muito em globalização, como uma tendência inexorável. Torna-

se cada vez mais importante uma ação educacional que forme o cidadão do mundo, sem

que este perca suas raízes culturais. Aceitar a mundialização da cultura, sem renunciar à

própria cultura. A globalização pode ser uma alavanca para a paz e crescimento dos

povos, se esta estiver fundamentada no diálogo, na solidariedade e na participação de

todos os segmentos da sociedade, acentuando, sobretudo, não o que nos separa, mas o

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que nos une. Em contrapartida, pode conduzir à mais brutal exclusão e marginalização,

se norteada simplesmente pelo critério do neoliberalismo e da competitividade.

Talvez a maior contribuição de Platão para nosso tempo, que influenciou

grandemente a história do Ocidente, seja justamente esta: construir mais justiça, tentar

em todas as partes impor a harmonia sobre o caos, quer dizer, mudar o mal em bem,

porque todo o conhecimento e toda a educação são, efetivamente, bondade. E, caso isso

não seja possível, resta ainda para o educador platônico, representado na figura do

filósofo, o refúgio na solidão do ser, onde, com toda a dignidade, segundo Sócrates,

citado por Platão no Fédon, o filósofo aprenderá a arte última, pois aprendeu, com a

sophia, que a Filosofia, como possibilidade de educação do homem, é a arte de aprender

a morrer.

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