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/ / / 10 Relações sociais indiretas* I. Relações sociais mediatas: contemporâneos Relações derivadas São aquelas em que o eu do outro nunca se torna acessível ao parceiro enquanto uma unidade. O outro aparece somente como um eu parcial, como o originador desses ou daqueles atos, com quem eu não compartilho um presente VÍvido. O presente VÍvido partilhado da relação-do-Nós pressupõe a copresença dos parceiros. A cada tipo de relação social derivada corresponde um tipo de pers- pectiva temporal que é derivada desse presente vívido. Há um tipo particular de quase presente no qual eu interpreto apenas o resultado da comunicação do outro - a carta escrita, o livro impresso sem ter participado do processo em curso dos atos comunicativos. Há ou- tras dimensões temporais nas quais eu estou conectado a contem- porâneos que nunca conheci, ou a predecessores ou sucessores; uma outra é o tempo histórico no qual eu experiencio o presente atual como o resultado de eventos passados; e muitos outros. Todas essas perspectivas temporais podem ser referidas a um presente VÍ- vido: meu presente vívido atual ou passado ou o presente VÍvido atual ou passado de meu semelhante, a quem eu estou conectado em um presente vívido originário ou derivado e tudo isso nos dife- rentes modos de potencialidade ou quase atualidade, cada tipo ten- do suas próprias formas de diminuição ou aumento temporal e seu estilo peculiar de transitar por elas em um movimento direto ou como no "movimento do cavalo" do xadrez. Há ainda as diferentes formas de coincidência e interpenetração dessas diferentes perspec- * Transcrito a partir dos seguintes itens das Referências: 1945c, p. 544-545; 1967, p. 176-178, 180-181, 181-183, 183-184, 194-195,202-204,208_211,214. 236 '1111' Silo colocadas dentro ou fora de operação mediante uma 11",11 de uma para outra e uma transformação de uma na outra, lllercntes tipos de síntese e de combinação ou isolamento ou dl,lillllllelamento. Múltiplas como são, essas diferentes perspec- 1'1 u-ruporais e suas relações são originadas em uma intersecção 11111 "Lln~e e o tempo cósmico. 1'11\ nossa vida social e por ela, com nossa atitude natural, essas jil' I "IWClivastemporais são apreendidas como se fossem integradas l!l lima única dimensão temporal supostamente homogênea que '''''''l'U não apenas as perspectivas temporais individuais de cada um dr IH~S durante sua vida plenamente consciente, mas que é comum a 1111111$ nós. Nós chamaremos a isso de tempo cívico ou tempo padrão. Da experiência social direta para a indireta Na situação face a face o caráter direto da experiência é essencial, II despeito da apreensão do outro ser central ou periférica e a despei- 10 do quão adequada é essa apreensão. Eu sou "orientado-pelo-Tu" mesmo em relação ao homem que está parado perto de mim no me- 11'0. Quando falamos de uma "orientação-pelo- Tu" pura ou de uma "relação-do-Nós" pura, estamos utilizando essas expressões como .onceitos limitadores que se referem simplesmente ao outro como dado, abstraindo-se qualquer especificação sobre o grau de concre- tude envolvido. Mas também podemos usar esses termos para os li- mites mais baixos da experiência que podem ser obtidos na relação face a face, ou seja, para um tipo de conhecimento mais periférico e superficial da outra pessoa. Fazemos a transição da experiência social direta para a indireta apenas seguindo esse espectro de vivacidade decrescente. Os primei- ros passos além do domínio da imediatez são marcados por uma di- minuição no número de percepções que eu tenho da outra pessoa e um estreitamento das perspectivas a partir das quais eu a percebo. Em um dado momento eu estou trocando sorrisos com meu amigo, apertando as mãos e acenando em despedida. No momento seguinte ele está indo embora. Então, já com alguma distância, eu ouço um "até logo" já bastante fraco, um pouco depois eu vislumbro o último traço de sua figura que desaparece, dando um último aceno, e en tão ele desaparece. É quase impossível fixar o instante exato no qual ~;1I

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10Relações sociais indiretas*

I. Relações sociais mediatas: contemporâneos

Relações derivadas

São aquelas em que o eu do outro nunca se torna acessível aoparceiro enquanto uma unidade. O outro aparece somente comoum eu parcial, como o originador desses ou daqueles atos, comquem eu não compartilho um presente VÍvido. O presente VÍvidopartilhado da relação-do-Nós pressupõe a copresença dos parceiros.A cada tipo de relação social derivada corresponde um tipo de pers-pectiva temporal que é derivada desse presente vívido. Há um tipoparticular de quase presente no qual eu interpreto apenas o resultadoda comunicação do outro - a carta escrita, o livro impresso sem terparticipado do processo em curso dos atos comunicativos. Há ou-tras dimensões temporais nas quais eu estou conectado a contem-porâneos que nunca conheci, ou a predecessores ou sucessores;uma outra é o tempo histórico no qual eu experiencio o presenteatual como o resultado de eventos passados; e muitos outros. Todasessas perspectivas temporais podem ser referidas a um presente VÍ-vido: meu presente vívido atual ou passado ou o presente VÍvidoatual ou passado de meu semelhante, a quem eu estou conectadoem um presente vívido originário ou derivado e tudo isso nos dife-rentes modos de potencialidade ou quase atualidade, cada tipo ten-do suas próprias formas de diminuição ou aumento temporal e seuestilo peculiar de transitar por elas em um movimento direto oucomo no "movimento do cavalo" do xadrez. Há ainda as diferentesformas de coincidência e interpenetração dessas diferentes perspec-

* Transcrito a partir dos seguintes itens das Referências: 1945c, p. 544-545; 1967,p. 176-178, 180-181, 181-183, 183-184, 194-195,202-204,208_211,214.

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'1111' Silo colocadas dentro ou fora de operação mediante uma11",11 de uma para outra e uma transformação de uma na outra,lllercntes tipos de síntese e de combinação ou isolamento ou

dl,lillllllelamento. Múltiplas como são, essas diferentes perspec-1'1 u-ruporais e suas relações são originadas em uma intersecção

11111 "Lln~e e o tempo cósmico.1'11\ nossa vida social e por ela, com nossa atitude natural, essas

jil' I "IWClivastemporais são apreendidas como se fossem integradasl!l lima única dimensão temporal supostamente homogênea que

'''''''l'U não apenas as perspectivas temporais individuais de cada umdr IH~Sdurante sua vida plenamente consciente, mas que é comum a1111111$nós. Nós chamaremos a isso de tempo cívico ou tempo padrão.

Da experiência social direta para a indiretaNa situação face a face o caráter direto da experiência é essencial,

II despeito da apreensão do outro ser central ou periférica e a despei-10 do quão adequada é essa apreensão. Eu sou "orientado-pelo-Tu"mesmo em relação ao homem que está parado perto de mim no me-11'0. Quando falamos de uma "orientação-pelo- Tu" pura ou de uma"relação-do-Nós" pura, estamos utilizando essas expressões como.onceitos limitadores que se referem simplesmente ao outro comodado, abstraindo-se qualquer especificação sobre o grau de concre-tude envolvido. Mas também podemos usar esses termos para os li-mites mais baixos da experiência que podem ser obtidos na relaçãoface a face, ou seja, para um tipo de conhecimento mais periférico esuperficial da outra pessoa.

Fazemos a transição da experiência social direta para a indiretaapenas seguindo esse espectro de vivacidade decrescente. Os primei-ros passos além do domínio da imediatez são marcados por uma di-minuição no número de percepções que eu tenho da outra pessoa eum estreitamento das perspectivas a partir das quais eu a percebo.Em um dado momento eu estou trocando sorrisos com meu amigo,apertando as mãos e acenando em despedida. No momento seguinteele está indo embora. Então, já com alguma distância, eu ouço um"até logo" já bastante fraco, um pouco depois eu vislumbro o últimotraço de sua figura que desaparece, dando um último aceno, e en tãoele desaparece. É quase impossível fixar o instante exato no qual

~;1I

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meu amigo deixou de fazer parte da minha experiência diretaadentra no domínio sombreado daqueles que são meus meros con-temporâneos. Como um outro exemplo, imaginemos uma conversaface a face, seguida por uma ligação telefônica, seguida por uma tro-ca de cartas, e, finalmente, mensagens trocadas com a mediação deuma terceira parte. Aqui também temos uma progressão gradual deum mundo da realidade social imediatamente experienciada para omundo dos contemporâneos. Em ambos os exemplos o número to-tal das reações da outra pessoa que são dados à minha observaçãovai diminuindo progressivament~, até atingir um ponto mínimo.Está claro, portanto, que o mundo dos contemporâneos é em si mes-mo uma variação da situação face a face. Eles podem ser considera-dos como dois polos em relação aos quais se situa uma série contí-nua de experiências.

Na vida cotidiana parece não ser um problema prático determi-nar quando uma situação começa e a outra termina. Isso porque in-terpretamos tanto nosso comportamento quanto o dos outros a par-tir de contextos significativos que transcendem o aqui e o agoraimediatos. Por essa razão, a questão de determinar se uma relaçãosocial da qual participamos ou que observamos é direta ou indiretaparece ter importância meramente acadêmica. Mas há ainda uma ra-zão ainda mais profunda para nossa costumeira indiferença em rela-ção a essa questão. Mesmo depois que uma relação face a face tor-nou-se passado e é presente apenas em nossa memória, ela aindamantém suas características essenciais, sendo modificada apenaspor uma aura de passado. Normalmente nós não percebemos quenosso amigo que acabou de partir, com que estávamos interagindohá alguns instantes, talvez afetuosamente, talvez de modo perturba-dor, agora aparece a nós a partir de uma perspectiva diferente. Lon-ge de parecer óbvio, parece na verdade absurdo que uma pessoa tãopróxima a nós tenha se tornado "diferente" agora que está longe denossa vista, exceto no sentido mais trivial de nossas experiências emrelação a ela agora trazem a marca do passado. Entretanto, precisa-mos distinguir com maior precisão tais memórias das situações facea face, de um lado, e um Ato intencional dirigido a um mero con-temporâneo, de outro. As lembranças que temos do outro trazemtodas as marcas da experiência direta. Quando eu tenho uma recor-

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1,IUlIi de você, por exemplo, eu me lembro de você tal COIUO V(

1,1 IIlI relação-do-Nós concreta comigo. Eu me lembro de v111110 urna pessoa em uma situação concreta, como alguém que in-

" IIlgiu comigo no modo de "espelhamento mútuo" descrito maiII I,"U, Eu me lembro de você como uma pessoa vividamente pre-I rue para mim com um máximo de sintomas da vida interna, com

11p;llém cujas experiências eu testemunhei durante o próprio pro-11,.,:-,0 de formação. Eu me lembro de você como alguém a quempude conhecer cada vez melhor. Eu me lembro de você como al-

uérn cuja vida consciente flui junto com a minha. Eu me lembro devocê como alguém cuja vida consciente estava mudando constante-mente em seu conteúdo. Não obstante, agora que está fora de minharxperiência direta, você não é nada mais do que meu contemporâ-uco, alguém que apenas habita o mesmo planeta que eu. Eu não es-tou mais em contato com aquele você vivo, mas com aquele você deontem. É claro que você não deixou de ser um eu vivo, mas agoravocê possui um "novo eu"; e, embora eu seja contemporâneo desse

'U novo eu, eu fui apartado desse contato vital com ele. Desde omomento em que estivemos juntos, você viveu novas experiências eolhou para elas a partir de novos pontos de vista. Com cada mudan-a de experiência e de olhar você tornou-se uma pessoa ligeiramen-

te diferente. Mas de algum modo eu deixo de ter isso em mente en-quanto vivo minha vida cotidiana. Eu trago sua imagem comigo, eIa permanece a mesma. Mas então pode ser que eu fique sabendo

que você mudou. Então eu começo a olhar para você apenas comoum contemporâneo - não um contemporâneo qualquer, mas umque eu algum dia conheci intimamente.

Regiões de anonimatoAcabamos de descrever as zonas intermediárias entre a situação

face a face e a situação envolvendo meros contemporâneos. Vamoagora continuar nossa jornada. Na medida em que nos aproxima-mos dos contemporâneos muito mais distantes, nossa experiênciatorna-se cada vez mais remota e anônima. Quando entramos nomundo dos contemporâneos, passamos por uma região após a ou-tra: (1) a região daqueles que eu alguma vez encontrei face a lace ('que poderia encontrar novamente (por exemplo, meu a 111 igo qur

til!

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agora está ausente); então vem (2) a região daqueles que foram en-contrados pela pessoa com quem agora estou falando (por exemplo,seu amigo, que agora você promete que irá me apresentar); depois(3) a região daqueles que agora são puramente contemporâneos,mas que eu irei encontrar em breve (como aquele colega cujos livroseu peguei emprestados e que agora estou indo visitar); depois (4)aqueles contemporâneos cuja existência eu conheço, mas não en-quanto indivíduos concretos, mas como pontos no espaço social de-finidos por certas funções (por exemplo, o funcionário do serviçopostal que irá encaminhar minha carta); e então (5) aquelas entida-des coletivas cuja função e organização eu conheço, mas cujos mem-

, bros não sou capaz de nomear, tais como o Parlamento canadense;depois (6) as entidades coletivas que são anônimas em virtude de suaprópria natureza e das quais eu não terei nenhuma experiência dire-ta, ao menos em princípio, tais como o "estado" e a "nação"; então(7) as configurações de significado objetivas que foram instituídasno mundo dos meus contemporâneos e que vivem um tipo de vidaanônima, como as cláusulas comerciais e as regras da gramáticafrancesa; e, finalmente, (8) os artefatos de todo tipo que carregam otestemunho do contexto de significado subjetivo de alguma pessoadesconhecida. Quanto mais longe vamos no mundo dos contempo-râneos, tanto mais anônimos tornam-se seus habitantes, começan-do pela região mais interna, onde eles quase podem ser vistos, ter-minando naquela região na qual eles são, por definição, sempre ina-cessíveis a nossa experiências.

Experiência mediata dos contemporâneos

Meu mero contemporâneo (ou "contemporâneo") é alguém queeu sei que coexiste comigo no tempo, mas a quem eu não experien-cio imediatamente. Esse tipo de conhecimento é sempre indireto eimpessoal. Eu não posso chamar meu contemporâneo de "Tu" nomesmo sentido rico que esse termo possui em uma relação-da-Nós.É claro que meu contemporâneo pode já ter sido meu consácio, oupode vir a sê-Ia, mas isso de modo algum altera seu status atual.

Vamos examinar agora os modos pelos quais o mundo dos con-temporâneos é constituído e as modificações sofridas pelos concei-tos de "orientação-pelo-Outro" e de "relação social" nesse mundo.

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lissas modificações ocorrem pelo mero fato de que o conrcmpmII(~Oé acessível apenas indiretamente e isso significa que suas t'xpt'rlências subjetivas podem ser conhecidas apenas como tipos geral.,de experiência subjetiva.

Que este seja realmente o caso é fácil de compreender se considc-rumos a diferença entre os dois modos de experiência social. Quando'U encontro você face a face, eu conheço-lhe enquanto uma pessoaem um momento único da experiência. Enquanto essa rela-;ão-do-Nós permanece intacta, estamos abertos e acessíveis aosAtos intencionais do outro. Durante certo tempo nós envelhecemosjuntos, experienciando reciprocamente o fluxo da consciência UI11

do outro em uma espécie de posse mútua íntima. I

É muito diferente quando eu o experiencio como meu contem-porâneo. Aqui você não me é dado de modo pré-predicativo, demodo algum. Eu sequer apreendo diretamente a sua existência (Da-sein). Todo meu conhecimento em relação a você é mediato e des-ritivo. Nesse tipo de conhecimento as suas "características" são es-

labelecidas por mim por inferência. De tal conhecimento resulta arelação-do-N ás indireta.

Para esclarecer esse conceito de "mediatidade", vamos exami-nar dois diferentes modos mediante os quais eu posso conhecer umontemporâneo. O primeiro modo eu já mencionei: meu conheci-

mento é derivado de um encontro face a face anterior com a pessoaem questão. Mas esse conhecimento, desde então, tornou-se media-to ou indireto porque ele se deslocou para fora do alcance de minhaobservação direta. Por isso eu posso fazer inferências sobre o queestá se passando em sua mente, pressupondo que aquela pessoa per-maneceu a mesma desde que a vi pela última vez, mas, por outrolado, eu sei muito bem que ela deve ter mudado porque absorveunovas experiências, ou simplesmente em virtude do fato de ter en-velhecido. Mas, no que se refere ao quanto ela mudou, meu conhc-cimento é ou indireto ou inexistente.

Um segundo modo pelo qual eu posso conhecer um contcmporâneo é construindo uma imagem dele a partir de uma experiõuciapassada direta de alguém com quem estou falando agora (por CXCIII

plo, quando meu amigo descreve seu irmão, a quem eu não couhrço). Essa é uma variante do primeiro caso. Aqui também eu ;1111'1'1'11

~/t I

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do o contemporâneo mediante um conceito fixo, ou um tipo, der!vado em última instância de uma experiência direta que agora setornou invariante. Mas há diferenças. Primeiramente, eu não tenhouma imagem vívida formada por mim que possa me servir comoponto de partida: eu preciso depender daquilo que meu amigo mediz. Em segundo lugar, eu preciso depender da pressuposição demeu amigo, e não de minha própria pressuposição, de que o con-temporâneo que ele está descrevendo não mudou.

Esses são modos de constituição de-todo conhecimento que te-mos de nossos contemporâneos, derivados de nossa experiênciapassada, direta ou indireta, e de todo conhecimento que adquirimoscom outros, seja em uma conversação ou a partir de uma leitura.Está claro, portanto, que as experiências sociais indiretas derivamsua validade original do modo de apreensão direta. Mas as instân-cias citadas acima não esgotam todos os modos pelos quais possoconhecer meus contemporâneos. Há todo o universo de objetos cul-turais, por exemplo, que inclui tudo, desde artefatos até instituiçõese modos convencionais de fazer as coisas. Esses modos tambémcontêm referências implícitas a meus contemporâneos. Eu posso"ler" nesses objetos culturais as experiências subjetivas de outros aquem eu não conheço. Mesmo aqui, contudo, estou fazendo infe-rências com base em minhas experiências prévias dos outros. Diga-mos que o objeto diante de mim é um produto acabado. Certa vez,por exemplo, eu estive ao lado de um homem que estava manufatu-rando justamente um objeto igual a este. Enquanto eu observava-otrabalhando, sabia exatamente o que estava se passando em suamente. Se não fosse por essa experiência eu não saberia nada sobrecomo foi feito esse objeto já acabado que agora está diante de mim.Eu poderia até deixar de reconhecê-lo como um artefato, podendotratá-Ia como um objeto natural, como uma pedra ou uma árvore.Isso porque aquilo a que chamamos de tese do alter ego, isto é, que oTu coexiste comigo e envelhece comigo, só pode ser descoberta emuma relação-do-Nós. Mesmo nessa instância, portanto, eu tenhoapenas uma experiência indireta do outro eu, baseada em uma ex-periência passada de um Tu como tal ou de um Tu particular. Meusencontros face a face com outros deram a mim um profundo conhe-cimento pré-predicatívo do Tu como um eu. Mas o Tu que é mera-

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'1IIII(t'meu contemporâneo nunca é experienciado pessoalmcnt,111110 um eu, e nunca pré-predicativamente. pelo contrário, toda

1H'l'iência(Erfahrung) dos contemporâneos é predicativa por na-t1!lI'ZU.Ela é formada mediante juízos interpretativos que envolvem",do meu conhecimento do mundo social, embora com graus variá-

rio; de explicitação.Mas essa é uma orientação-pelo-Outro real, não importa o quão

IlIdlreta possa ser.

Orientação-pelo-Elesob essa categoria da orientação-pelo-Eles indireta vamos en-

Illntrar as formas usuais da orientação-pelo-Outro mais simples, do1 nmportamento social e da interação social. Vamos chamar taisvtos intencionais orientados segundo nossos contemporâneos de,'lISOS de "orientação-pela-Eles", em contraste com a "orientação-pelo-Tu" dos Atos intencionais da experiência social direta.

O termo "orientação-pelo-Eles" serve para chamar a atenção aomodo peculiar com o qual eu apreendo as experiências conscientesde meus contemporâneos. Isso porque eu as apreendo como umprocesso anônimo. Consideremos o contraste com a orientação-pelo-Tu. Quando estou orientado-pelo-Tu eu apreendo as expe-riências da outra pessoa no contexto geral do fluxo de sua consciên-.ia. Eu apreendo-as como algo que existe em um contexto significa-tivo subjetivo, como sendo experiências únicas de uma pessoa par-ticular. Tudo isso está ausente na experiência social indireta da ori-ntação-pelo-Eles. Aqui eu não estou consciente do fluxo em curso

da consciência do outro. Minha orientação não é para a existência(Dasein) de um Tu individual concreto. Não é para quaisquer expe-riências subjetivas que agora estão sendo constituídas em sua singu-laridade na mente do outro, nem para a configuração de significadosubjetiva na qual elas estão acontecendo. Em vez disso, o objeto daminha orientação-pelo- Tu é minha própria experiência CErfahrung)da realidade social em geral, dos seres humanos e de seus processosconscientes enquanto tais, abstraindo de qualquer padrão individu-al no qual possam ocorrer. Meu conhecimento de meus contempo-râneos é, portanto, inferencial e discursivo. Em virtude de sua pró-pria natureza essencial ele subsiste apenas enquanto um contexto

~~t

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de significado objetivo. Ele não possui nenhuma referência intrínseca a pessoas nem a matrizes subjetivas no âmbito das quais as eperiências em questâo foram constituídas. No entanto, devido àprópria abstraçâo do contexto significativo subjetivo, elas exibemuma propriedade que temos chamado de caráter "repetitivo". Elasão tratadas como experiências conscientes típicas de "alguém" e,como tais, são basicamente homogêneas e repetíveis. A unidade docontemporâneo não é constituída originalmente no fluxo de suaprópria consciência. Ao contrário, a,unidade do contemporâneo éconstituída no fluxo da minha consciência, sendo construída a par-tir de uma síntese das minhas interpretações e experiências. Essasíntese é uma síntese de reconhecimento na qual eu trago monoteti-camente dentro de uma visão as minhas próprias experiências cons-cientes em relação à outra pessoa. De fato, essas minhas experiênciassão experiências de mais de uma pessoa. E elas podem ser experiênci-as de indivíduos específicos ou de "pessoas" anônimas. É nessa sín-tese de reconhecimento que o tipo ideal pessoal é constituído.

Tipos ideais pessoais

Precisamos ter bastante claro aquilo que acontece aqui. O con-texto significativo subjetivo foi abandonado como um instrumentode interpretação. Ele foi substituído por uma série de contextos sig-nificativos objetivos altamente complexos e inter-relacionados deforma sistemática. O resultado disso é que o contemporâneo é tor-nado anônimo na proporção direta ao número e à complexidadedesses contextos significativos. Além disso, a síntese de reconheci-mento não apreende a pessoa singular tal qual ela existe em seu pre-sente atual. Em vez disso, ela apresenta-a sempre como sendo amesma, homogênea, deixando de fora todas as mudanças e peculia-ridades que constituem sua individualidade. Portanto, não importaquantas pessoas são subsumidas a um tipo ideal, nenhuma delascorresponde plenamente a ele. É somente esse fato que justifica queWeber tenha chamado a esse tipo de "ideal".

Vamos oferecer alguns exemplos para esclarecer esse ponto.Quando eu envio uma carta, eu assumo que alguns de meus con-temporâneos, mais especificamente os funcionários do serviço pos-tal, irão ler o endereço de destino e irão encaminhar a carta. Eu não

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lilll pensando nesses funcionários como indivíduos. Eu não os co-"ItI'l,'O pessoalmente e não espero conhecê-los. Mais uma vez, tal1111110 destacou Max Weber, sempre que eu aceito algum dinheiro111 u-nho a expectativa de que os outros, que permanecem anõni-1I111H, também irão aceitá-lo de mim. Para utilizar outro exemplo we-hl'I lano, se eu me comporto de tal modo a evitar a chegada repenti-1111 de certos senhores usando uniformes e distintivos, ou seja, se eu1111' oriento segundo as leis do aparato que garante a vigência dessas1.01'1, também nesse caso eu estou relacionando-me socialmente comIIU'US contemporâneos concebidos sob tipos ideais.

Em ocasiões como essas eu sempre espero dos outros que seIomportem de um modo definido, seja o funcionário do serviçopostal, seja alguém que está me pagando, seja a polícia. Minha rela-

social com eles diz respeito ao fato de que eu interajo com eles,nu talvez meramente que, ao planejar minhas ações, eu tenho suaI'xistência em consideração. Mas eles, por sua vez, nunca aparecem\ mim como pessoas reais, são meramente entidades anônimas defi-

11Idas de forma exaustiva por suas funções. Apenas enquanto encar-regados dessas funções é que essas pessoas possuem alguma rele-

ncia para meu comportamento social. Como elas se sentem en-quanto enviam minha carta, processam meu cheque ou examinam arestituição do meu imposto de renda, são considerações que sim-plesmente não me passam pela cabeça. Eu apenas assumo que são"pessoas" que "fazem coisas". Seu comportamento na realização de'eu dever, do meu ponto de vista, é definido somente mediante umontexto significativo objetivo. Em outros termos, quando sou ori-ntado-pelo-Eles, eu tenho "tipos" como parceiros.

Anonimato dos contemporâneosA orientação-pelo-Eles é a forma pura de compreensão dos con-

temporâneos de um modo predicativo, isto é, em termos de suas ca-racterísticas típicas. Os Atos de orientação-pela-Eles são, portanto,intencionalmente dirigidos à outra pessoa imaginada como existin-do ao mesmo tempo em que eu existo, mas concebidas em termosde um tipo ideal. E tal como nos casos da orientação-pela-Tu e darelação-do-Nós, também podemos dizer que a orientação-pelo-Elespassa por diferentes estágios de concretização e de atualização.

~411

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De modo a ser possível distinguir os vários estágios de concrçt]zação da relação-do-Nós, estabelecemos como nosso critério o graude proximidade à experiência direta. Nós não podemos usar esscritério no caso da orientação-pelo-Eles. A razão disso é que estpossui, por definição, um elevado grau de distanciamento da expcriência direta, e o outro eu que é seu objeto possui um elevado graude anonimato correspondente.

É precisamente esse grau de anonimato que agora oferecemocomo critério para a distinção entre os qiferentes níveis de concret~.zação e de atualização em que ocorre a orientação-pelo-Eles. Quan-to mais anônimo é o tipo ideal pessoal aplicado à orientação-pelo-Eles, tanto maior será a utilização de contextos significativosobjetivos em vez de subjetivos e, do mesmo modo, como veremos,maiores serão os pressupostos atribuídos aos tipos ideais e aos con-textos significativos objetivos preestabelecidos. (Estes, por sua vez,foram derivados de outros estágios da concretização da orienta-ção- pelo- Eles.)

Vamos esclarecer aquilo que entendemos por anonimato dotipo ideal no mundo dos contemporâneos. A orientação-pelo_ Tupura consiste na mera consciência quanto à existência da outra pes-soa, deixando de lado as questões que se referem às característicasdaquela pessoa. Por outro lado, a orientação-pelo-Eles pura é basea-da na pressuposição de tais características sob a forma de um tipo.Dado que essas características são genuinamente típicas, elas po-dem, em princípio, ser pressupostas de novo e de novo. Certamente,sempre que eu atribuo tais características típicas, eu assumo queelas existem agora ou existiram em algum momento. No entanto,isso não significa que eu estou pensando nelas como existentes emuma pessoa particular em um momento e em um lugar específicos.O alter ego contemporâneo é anônimo no sentido de que sua exis-tência é somente a individuação de um tipo, uma individuação queé apenas suposta como possíveL Dado que a própria existência demeu contemporâneo é sempre menos do que certa, qualquer tenta-tiva de minha parte de alcançá-Io ou influenciá-Io pode falhar, e éevidente que eu estou consciente disso.

O conceito que acabamos de realizar é o conceito de anonimatode um parceiro no mundo dos contemporâneos. Ele é cruciaI paracompreender a natureza da relação social indireta.

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I{t"lações entre contemporâneosl'llquanto as relações sociais em uma situação face a face são bn-

I.ulus na pura orientação a você, as relações sociais entre contem-11t11'11I1COS são baseadas na pura orientação-pelo-Eles. Mas a situação

11I'll mudou. Na situação face a face os parceiros olham um para o11111'0 C são mutuamente sensíveis às respostas de cada um. Esse não

I1 caso das relações entre contemporâneos. Aqui cada parceirotll'VI'contentar-se com a probabilidade de que o outro, a quem ele é.uleruado por meio de um tipo anônimo, irá responder com o mes-11111tipo de orientação, Assim, há um elemento de dúvida que entra1'111 toda relação desse tipo.

uando eu embarco em um trem, por exemplo, eu me oriento('gundo o fato de que o operador encarregado é confiavel, e que o

11\'111 me levará a meu destino. Minha relação com ele nesse momen-10 é uma "relação-pelo-Eles", meramente porque meu tipo ideal de"operador de trem" significa por definição "alguém que conduz pas-igeiros como eu até o seu destino". É, portanto, característico de

minha relação social com meus contemporâneos que a orientaçãopor meio de tipos ideais seja mútua. Correspondente a meu tipoIdeal "operador de trem" existe o tipo ideal que o operador tem do"passageiro". Em termos de orientações-pelo-Eles mútuas, nós pen-amos um a respeito do outro como sendo "um deles".

Portanto, eu não sou apreendido por meu parceiro na rela-ção-pelo-Eles como uma pessoa real. Disso se segue que eu possoesperar dele somente uma compreensão típica de meu comporta-mento.

Uma relação social entre contemporâneos, portanto, consisteno seguinte: cada um dos parceiros apreende o outro por meio deum tipo ideal; cada um dos parceiros tern'consciência dessa apreen-são mútua; e cada um espera que o esquema interpretativo do outroserá congruente com o seu. A relação-pelo-Eles aqui aparece em umprofundo contraste com a situação face a face. Na situação facc :tface meu parceiro e eu somos sensivelmente conscientes das nuan-ces das experiências subjetivas do outro. Mas na relação-pelo-Elesisso é substituído pelo pressuposto de que há um esquema inicrprctativo compartilhado, Mas embora eu, de minha parte, faça essa SI!

posição, eu não tenho como verificá-Ia. No entanto, eu tenho 1:111111

J/II

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mais razão para esperar uma resposta adequada de meu parcviuquanto mais padronizado for o esquema que eu imputo a ele. E!->

o caso de esquemas derivados do direito, do estado, da tradição ('sistemas de ordem de todo tipo, e especialmente com esquemas Iseados em uma relação meios/fim, em suma, naqueles esquemas 11terpretativos a que Weber chamou de "racionais".

Essas propriedades das relações sociais entre contemporãncpossuem importantes consequências.

Primeiro de tudo, em virtude do elimento de probabilidade questá sempre presente, eu não posso sequer ter certeza de que essa rlação existe até que ela tenha sido tentada, por assim dizer. Somentretrospectivamente eu posso saber se meu tipo ideal atribuído a meuparceiro era adequado a ele, seja no sentido de uma adequação de sigonificado, seja de uma adequação causal. Isso novamente difere da si·tuação face a face, na qual eu posso constantemente corrigir as mionhas respostas a meu parceiro. Outra consequência disso é que osúnicos motivos porque e com-a-finalidade-de do meu parceiro queeu posso levar em consideração para fazer meus próprios planos deação são aqueles que eu já postulei como sendo seus motivos ao cons-truir meu tipo ideal. Certamente, tanto na orientação-pelo-Eles quan-to na situação face a face eu estabeleço meu plano de ação de tal modoque os motivos porque de meu parceiro são incluídos em meus moti-vos com-a-finalidade-de; e eu procedo com a expectativa de que seuesquema interpretativo sobre mim enquanto tipo ideal será adequadoao meu esquema dele como tipo ideal. Se o parceiro em questão é umfuncionário do correio, por exemplo, o mero fato de que minha cartaselada estar à sua frente já irá constituir um genuíno motivo porquepara o seu procedimento de encaminhá-Ia. Ainda assim, eu não possoter certeza disso. Pode ser que tenha havido algum engano, que elecoloque a carta em outro compartimento, fazendo com que ela sejaperdida; com isso ele irá falhar enquanto meu tipo ideal de funcioná-rio do correio. E é claro que isso pode ter ocorrido porque ele inter-pretou incorretamente o endereço que eu coloquei na carta. Tudoisso resulta do fato de que não estamos em contato direto um com ooutro, como ocorreria em uma situação face a face.

Na situação face a face os parceiros estão constantemente revi-sando e ampliando seu conhecimento em relação ao outro. Isso não

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pllnl no mesmo sentido em uma relação-com-o-Eles. Certamente~111i\tlc que meu conhecimento do mundo dos mesmos contempo-li' 11'1 ~ constantemente ampliado a cada nova experiência que te-

1\11 di' qualquer parte do mundo social. Além disso, meus esquemas1''' 1 \ Ideais estarão sempre mudando de acordo com cada mudança

lIill1hasituação. Mas todas essas modificações acontecem dentroli, II1IIleque bastante estreito, na medida em que minha situação ori-lllid C meus interesses nela permanecem basicamente inalterados.

Na relação-do-Nós eu assumo que o seu meio é idêntico ao meuIIlludas as suas variações. Se eu tenho qualquer dúvida a esse respeí-

li I, ,'U posso facilmente verificar meu pressuposto simplesmente índi-, undo a dúvida a você e perguntando se é isso mesmo que você querdl:t'r, Tal tipo de identificação está fora de questão em uma rela-

1!!Iocom-o-Eles. Não obstante, se você é meu contemporâneo, eu assu-

IIU\que o seu ambiente pode ser compreendido a partir de princípios.1" compreensão estabelecidos por mim, mas mesmo aqui o pressu-pllsto é muito menos provável do que se estivéssemos face a face.

No entanto, o meu ambiente também inclui sistemas de signos,I' na relação-com-o-Eles eu também os utilizo como esquema ex-pt'essivo e interpretativo. Aqui também o grau de anonimato é daInaior importância. Quanto mais anônimo é meu parceiro, mais""bjetivamente" eu preciso usar os signos. Eu não posso assumir,por exemplo, que meu parceiro em uma relação-com-o-Eles irá ne-:cssariamente apreender o significado particular que eu estou atri-buindo às minhas palavras, ou o sentido mais amplo do contextodaquilo que eu estou dizendo, a não ser que eu lhe dê indicações ex-plícitas. Como resultado disso, durante o processo de escolha dasminhas palavras, eu não sei se estou sendo compreendido ou não.Isso explica porque eu não posso ser imediatamente questionadosobre o que eu quero dizer, e assim corrigir qualquer mal-en-tendido. Na experiência social indireta há somente um modo de"perguntar a um parceiro aquilo que ele quer dizer", qual seja, a uti-lização de um dicionário - a menos, é claro, que eu decida ir até eleou telefonar; mas nesse caso eu deixo pra trás a relação-com-o-Elese i.nicio uma situação face a face. De fato, qualquer relação-com-o-Eles caracterizada por um grau relativamente baixo de anonimatopode ser transformada em uma relação face a face passando por di-versos estágios intermediários.

~~Il

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11.Predecessores e sucessores

O mundo dos predecessores

Eu posso definir um predecessor como uma pessoa no passadcujas experiências não coincidiram no tempo com as minhas prprias experiências. O mundo puro dos predecessores pode ser definido como sendo constituído inteiramente por pessoas desse tipo.O mundo dos predecessores é o que existiu antes de eu nascer. Éisso o que determina sua própria nat4reza. O mundo dos predeces-sores é, por definição, um mundo já pronto e acabado. Ele não temqualquer horizonte aberto para o futuro. Não há nada no comporta-mento dos meus predecessores que ainda não esteja decidido, quseja incerto ou que esteja à espera de uma conclusão. Eu não tenhoexpectativas em relação ao comportamento de um predecessor. Seucomportamento é essencialmente destituído de qualquer dimensãode liberdade e, assim, está em contraste Com o comportamento da-quele Com quem estou em Contato imediato e mesmo, em certa me-dida, Com o comportamento daqueles que são meramente meuscontemporâneos. As relações entre predecessores, dado que já acon-teceram e já estão fixadas, não requerem qualquer tipo de postula-ção de tipos ideais fixos para serem compreendidas 10. Eu posso, por-tanto, adotar qualquer tipo de orientação em relação a meus prede-cessores, exceto uma: eu nunca posso influenciá-Io. Até mesmo apalavra "orientaçâo" possui um significado diferente aqui: ela ésempre passiva. Dizer que uma ação minha é orientada segundo aação de um de meus predecessores é dizer que minha ação é influen-ciada por ela. Ou, dizendo de outro modo, Sua açâo concebida nopassado mais que perfeito é o meu "motivo porque" genuíno. Eununca influencio meus predecessores, apenas eles é que me influen-ciam. É claro que essas observações se aplicam também ao conceitode ação tradicional de Weber.

Portanto, no mundo dos predecessores, a distinção entre rela-ção social e observação social simplesmente não se aplica. Aquilo

10. Na realidade, o mundo dos predecessores, em virtude de sua própria natureza,só pode ser conhecido a partir de tipos ideais, mas dado que eventos passados já es-tão completamente fixados, os tipos históricos em termos dos quais eles são com-preendidos não demandam qualquer outro ato de fixação

250

1\11} num primeiro momento parece ser uma relação sociaL entreH!III' um de meus predecessores acaba por se revelar um caso uni-1f'1,1I de orientação-pelo-Outro, que acontece de minha parte.lillll de adoração aos ancestrais é um bom exemplo de tal orienta-111 pelo mundo dos predecessores. Essa é a situação na qual o pre-

Irl essor age sobre mim e eu respondo comportando-me de modol,tI que minha conduta pode ser explicada somente enquanto orien-Illdo a seu ato, tendo este como seu "motivo porque". Esse seria oII(~(), por exemplo, se ele tivesse me legado alguma propriedade.

Há algumas peculiaridades correspondentes no modo pelo qualrvperíencíamos nossos predecessores. Eu conheço um predecessoromente se alguém me fala a seu respeito ou se alguém escreveu so-

hrc ele. É claro que esse intermediário pode ser um companheiromeu ou um contemporâneo. Por exemplo, meu pai pode contar-me

bre pessoas que já morreram há muito tempo, das quais ele se re-corda de sua juventude. A transição do presente imediato para omundo dos contemporâneos é, portanto, uma relação contínua.Porque meu pai está sentado diante de mim agora, enquanto ele serecorda. Suas experiências, mesmo que sejam coloridas pelas mar-as do passado, ainda assim são experiências de uma pessoa com

quem agora eu estou em uma situação face a face. Mas para mimaquelas experiências constituem um passado que eu não posso re-cordar, porque em nenhum momento eu fui contemporâneo daque-las pessoas; é isso que faz com que elas sejam verdadeiramente partedo mundo dos meus predecessores. Mesmo as experiências sociaispassadas, diretas ou indiretas, de outra pessoa são para mim partedo mundo dos predecessores, ainda que as apreenda como se fos-sem parte de minha própria experiência social passada. Porque euas apreendo como o contexto significativo subjetivo presente da-quela pessoa que agora está me falando sobre eles.

Em segundo lugar, eu posso conhecer o mundo dos meus pre-decessores a partir de registros e monumentos. Estes possuem o es-tatuto de signos, não importando se meus predecessores tiveram ounão a intenção de concebê-los como signos para a posteridade ouapenas para seus contemporâneos.

Não é necessário destacar que minha orientação em relação aomundo dos meus predecessores pode ser mais ou menos concreta,

Jlil

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mais ou menos real. Isso decorre da própria estrutura de minha ('periência CErfahrung) daquele mundo. Na medida em que ela derídaquilo que meus companheiros ou meus contemporâneos me cotararn, ela será determinada em primeira instância pelo grau de cocretude que teve sua experiência vivida original. Mas também scondicionada pelo grau de concretude de minha própria orientapara eles enquanto narradores.

Dado que meu conhecimento do mundo dos predecessores chga até mim por meio de signos, o sign'ificado desses signos é algo annimo e desvinculado de qualquer fluxo de consciência. Entretanto,eu sei que cada signo possui um amor, e que cada autor tem seus próprios pensamentos e experiências subjetivas, que ele expressa pormeio de signos. É portanto perfeitamente adequado que eu pergunta mim mesmo o que dado predecessor queria dizer ao expressar-se deuma ou outra maneira. É claro que, para que seja possível fazer isso,eu preciso projetar-me em um tempo passado e imaginar-me estandopresente enquanto ele falou ou escreveu. Mas a pesquisa históricanão toma como seu objeto primário as experiências subjetivas dosautores de tais fontes originais. Mesmo que essas fontes se refiram àexperiência social direta ou indireta de seus autores. Como resultadodisso, o conteúdo objetivo comunicado pelo signo tem um graumaior ou menor de concretude. O procedimento da pesquisa históri-ca é, nesse aspecto, o mesmo utilizado para interpretar as palavras dealguém que está falando comigo. No último caso eu adquiro, a partirda comunicação, uma experiência indireta daquilo que aquele quefala experienciou diretamente. Do mesmo modo, quando eu estoulendo um documento histórico, eu posso imaginar-me em uma rela-ção face a face com seu autor e aprender com ele algo sobre seus con-temporâneos; um a um, seus contemporâneos passam a ter um lugardentro no meu mundo dos predecessores.

Meu mundo dos predecessores é, portanto, um mundo de ou-tras pessoas, e não o meu próprio mundo. É claro que ele Contémem si muitos níveis de experiência social com graus variáveis deconcretude, e com relação a isso ele se assemelha ao mundo dosmeus contemporâneos. Ele também se assemelha ao mundo dosmeus contemporâneos no sentido de que as pessoas que estão pre-sentes nele são conhecidas por mim a partir de tipos ideais. Mas esseconhecimento é diferente em um aspecto importante.

252

~II'lIpredecessor viveu em um meio radicalmente diferente não1"111\"1 do meu, mas diferente também daquele que atribuo a meuuu mporãneos. Quando eu apreendo um companheiro ou umI!ltllllporâneo, eu posso sempre assumir a presença de um núcleoI unhecimento comum. Os tipos ideais das relações-do-Nós e das

111t,11cs-com-o-Elespressupõem esse núcleo de experiência com-ullhada. Aquele tipo ideal altamente anõnimo, "meu contempo-111'0", compartilha comigo, por definição, aquele outro tipo ideal

IlItlldmente anõnimo, a "civilização contemporânea". Naturalmen-11', I'iSO é algo que falta em relação a meu predecessor. A mesma ex-I'I'i1Cnciapareceria a ele muito diferente no contexto da cultura deru tcmpo. Estritamente falando, é até mesmo sem significado falar

IIh.,o como sendo "a mesma" experiência. Eu posso, no entanto,Idl'nlificá-Ia como a "experiência humana": qualquer experiênciadi' meu predecessor é aberta à minha interpretação em termos dasI .rracrerísricas da experiência humana em geral.

Os esquemas que utilizamos para interpretar o mundo de nos-os predecessores são necessariamente diferentes daqueles que

eles utilizaram para interpretar o mundo. Se eu desejo interpretarIi comportamento de um contemporâneo, eu posso confiar napressuposição de que suas experiências serão muito parecidas comIIS minhas. Mas quando se trata de compreender um predecessor,minhas chances de falhar aumentam significativamente. MinhasInterpretações não podem ser senão vagas e tentativas. Isso é vali-10 até mesmo no que se refere à linguagem e outros símbolos deuma época passada.

o mundo dos sucessoresPara completar o nosso quadro sobre o mundo social, vamos

nos deter por um momento sobre o mundo dos sucessores. Se omundo dos predecessores é completamente fixo e determinado, odos consócios é livre e o dos contemporâneos é provável, então omundo dos sucessores é completamente indeterminável. Nossa ori-entação para nossos sucessores não pode ir além disso: o fato de queteremos sucessores. Nenhuma chave pode abrir a porta desse mun-do, nem mesmo aquela dos tipos ideais. Isso porque esse métodobaseado em nossa experiência de nossos predecessores, consoclo- I'

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contemporâneos, e nâo há qualquer princípio que nos permítn ,tendê-Io ao mundo de nossos Sucessores. É claro que alguns de 1111

sos consócios e de nossos contemporâneos irão viver mais tempoque nós, e podemos assumir que eles continuarão a agir de modomelhante ao de agora. Desse modo, pode ser estabelecida uma zode transição entre os dois mundos. Mas quanto mais o mundo dsucessores for distanciado do Aqui e Agora, tanto menos confiserá esse tipo de interpretação.

Esse ponto mostra o quão errôneas são em princípio tudo aqu10 a que se chama de "leis" da história. Todo o mundo dos sucesres é por definição não histórico e absolutamente livre. Ele podeantecipado de modo abstrato, mas não pode ser apresentado em dtalhes específicos. Ele não pode ser projetado ou planejado, pois enão tenho controle sobre os fatores desconhecidos que irão atuaentre o momento de minha morte e a possível realização do plano.

254

1 1Distribuição do conheciment

'"'"2:.ou-'6 ~\

r rllll1ecimento incompleto e fragmentário11M mAçO MARCANTE na vida de um homem no mundo mo der-

,,' "11111 convicção de que seu mundo da vida como um todo não éh',lillllente compreensível por ele nem por qualquer um de seus se-1·1I'llnl.es.Há um estoque de conhecimento teoricamente disponí-1,1todos, construído pela experiência prática, pela ciência e pelaI uolcgia e que são apresentados como ideias garantidas. Mas esseItlque de conhecimento não é integrado. Ele consiste na mera jus-

hlllllslção de sistemas de conhecimento mais ou menos coerentesIJIII' não são nem coerentes nem compatíveis uns com os outros. Ao1 uutrãrio, os abismos entre as várias atitudes envolvidas na aborda-\1'111 dos sistemas especializados são uma condição do sucesso da in-\'I'~Iigação especializada.

e isso se aplica aos vários campos de investigação científica, évulldo por razões ainda melhores aos vários campos de atividadesp"l\ticas. Onde predominam nossos interesses práticos, contenta-IIIO-noscom nosso conhecimento de que certos meios e procedi-mentes promovem certos resultados desejados ou indesejados. Oluto de que não compreendemos "Por que" e "Como" isso acontece(' que não sabemos nada sobre sua origem não nos impede de lidarsem qualquer incômodo com situações, coisas e pessoas. Nós utili-zamos os aparelhos mais complicados produzidos por uma tecnolo-ia muito avançada, sem ter a menor ideia daquilo que está por trásle seu funcionamento. Nenhum motorista de carro precisa estar fa-

miliarizado com as leis da mecânica, nem o ouvinte de rádio precisa

'k Transcrito a partir dos seguintes itens das Referências: 1946, p. '1(> ~ '!r,-I,471-472,472-473,465-467,473-475.

J lil,

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conhecer as leis da eletrônica. Alguém pode até ser um CllIl'"

de sucesso sem saber como opera o mercado, ou um banquehuser especialista em teoria monetária. O mesmo é válido para \I ,

do social no qual nós vivemos. Nós temos confiança de qUI' 1\

semelhantes irão reagir tal como antecipamos se agirmos em n"a eles de um modo específico, que as instituições tais comovemos, as escolas, os tribunais ou os serviços públicos irão 1\1\

nar, que uma ordem de leis e costumes, de crenças religiosas ("ticas irão governar o comportame?to de nossos semelhantes II

como governam o nosso.Está claro que nem todos os membros de um grupo interno

tam o mesmo setor do mundo como evidente e inquestionável "cada um deles seleciona diferentes elementos desse mundo coobjeto de investigação mais pormenorizada. O conhecimentocialmente distribuído.

o mundo ao alcance de todosNosso esquema das várias zonas de relevância revelou o mun

ao meu alcance como sendo o núcleo da relevância primária. Emundo ao meu alcance é primariamente todo aquele setor do mundo que está ao meu alcance real; depois, há aquele mundo que estpotencialmente ao meu alcance, porque pode ser novamente trazi-do ao meu alcance real; finalmente, constitui parte do mundo aomeu alcance aquilo que está realmente ao seu alcance, de meu seme-lhante, e que estaria ao meu alcance real se eu não estivesse aquionde estou agora, mas onde você está - ou seja, se eu estivesse emseu lugar. Portanto, realmente ou potencialmente, um setor domundo está ao meu alcance e de meu semelhante; ele está ao nossoalcance, desde que - e essa restrição é importante - meu semelhanteocupe um lugar definido no mundo ao meu alcance assim como euocupo. Temos, portanto, um meio comum a ser definido por nossosinteresses comuns, seus e meus. Certamente, eu e ele temos diferen-tes sistemas de relevâncias e um conhecimento diferente do meiocomum, se não for por qualquer outra razão, ao menos pelo fato deque ele vê tudo a partir "dali" e eu vejo tudo "daqui". Não obstante,dentro desse meio comum e dessa zona de interesses comuns euposso estabelecer relações sociais individualizadas com o outro;

256

il 1"11

11' l\gi.r sobre o outro e reagir à sua ação. Em suma, o ou-1,.1" hdrnente dentro da esfera do meu controle assim com

11 1111 •.•IIUesfera de controle, e eu e ele não apenas conhecemoli' 111111'1 sabemos que nosso conhecimento mútuo do outro é"I II,' exercer controle. Voltamo-nos espontaneamente para o

I•.,pontaneamente nos afinamos com o outro, pois remos aoIII,I\II/"nas relevâncias intrínsecas em comum.

,Ipcnas algumas. Em cada interação social sempre há uma11\ dI' relevâncias intrínsecas de cada parceiro que não é com-

IIhHllI pelo outro. Isso tem duas consequências importantes.1IIIIcirolugar, vamos considerar que Pedro e Paulo são parcei-111 urna interação de um tipo qualquer. Na medida em que Pe-I'llbjeto da ação de Paulo e deve levar em consideração os ob-

m específicos de Paulo que ele, Pedro, não compartilha, as rele-I,ISintrínsecas de Paulo aparecem para Pedro como relevâncias

I",,,las, e vice-versa. (O conceito de relevâncias impostas aplica-relações sociais não possui qualquer referência ao problema

delerminar se essa imposição é ou não aceita pelo parceiro. Pare-quc o grau de prontidão em aceitá-Ia ou não aceitá-Ia, em deixar\1'1vir ou resistir à imposição das relevâncias intrínsecas do outro"de ser usado de maneira proveitosa para a classificação das várias

1I'\.lçõessociais.) Em segundo lugar, Pedro tem um pleno conheci-1I11'l1l0somente de seu próprio sistema de relevâncias intrínsecas. Ohlema de relevãncias intrínsecas de Paulo, como um todo, não é

plenamente acessível a Pedro. Na medida em que Pedro tem um co-IIhccimento parcial a esse respeito - ele sabe ao menos o que PauloImpõe a ele _ esse conhecimento nunca terá o grau de precisãO que

ria suficiente se aquilo que é meramente relevante para Pedro porImposição fosse um elemento de seu próprio sistema de relevânciasintrínsecas. As relevâncias impostas permanecem antecipações va-

zias e não realizadas.Tal é a distribuição do conhecimento na relação social entre

indivíduos se cada um possui seu lugar definido no mundo do ou-tro, se cada um está sob o controle do outro. Em certa medida omesmo se aplica às relações entre os grupOS internos e os grupOSexternos, se cada um conhece o outro em suas especificidades.Mas quanto mais o outro se torna anõnimo, tanto menos seu lugar

11117

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no cosmos social é cognoscível por seu parceiro, tanto mais dimínui a zona de relevâncias intrínsecas comuns, e aumenta aquela drelevâncias impostas.

Distribuição social do conhecimento

O crescente anonimato recíproco dos parceiros é característicode nossa Civilização moderna. Nossa situação social é cada vez me-nos determinada pelas nossas relações com parceiros individuaidentro de nosso alcance media to ou imediato, e cada vez mais portipos altamente anônimos que não possuem um lugar fixo em nossocosmos social. Somos cada vez menos capazes de escolher nossoparceiro no mundo social e partilhar com ele nossa vida social. Nóssomos, por assim dizer, cada vez mais potencialmente sujeitos a umcontrole remoto por parte de todo mundo. Nenhum lugar do globoé mais distante do ponto em que estarnos do que seis horas em umavião; ondas elétricas transportam mensagens em frações de segun-dos de um ponto ao outro na Terra; e muito em breve cada lugardesse mundo será o alvo potencial de armas de destruição lançadasem qualquer outro lugar. Nosso próprio meio social está ao alcancede todos, por todo lado; um outro anônimo, cujos objetivos são des-conhecidos por nós em virtude de seu anonimato, pode colo-car-nos, com nossos sistemas de interesses e de relevâncias, sob seucontrole. Nós temos cada vez menos direito de definir o que é rele-vante para nós. Relevâncias impostas politicamente, economica-mente e socialmente que estão além de nosso controle devem ser le-vadas em consideração por nós tais como elas são. Portanto, preci-samos conhecê-Ias. Mas em que extensão?

o especialista, o homem comum, o cidadão bem-informado

Para o propósito de nosso estudo, vamos construir três tiposideais que chamaremos de o especialista, o homem comum e o cida-dão bem-informado.

O conhecimento do especialista é restrito a um campo limitado,mas nesse campo seu conhecimento é claro e preciso. Suas opiniõessão baseadas sobre asserções garantidas; seus juízos não são merasexpressôes do que ele acha, ou suposições sem fundamento.

258

n homem comum possui um conhecimento funcional sobre dl-I ',I I.., campos, mas que não são necessariamente coerentes entre si,

1,II.I·hC de um conhecimento de receitas que indicam como agir emtípicas promovendo resultados típicos pelos meios típi-

seguir as prescrições como se fosse um ritual, o resultadoli'h"ludo pode ser obtido sem que tenha que perguntar por que de-unlnada etapa do procedimento é necessária, seguindo exatamen-

U' II scquência prescrita. Esse conhecimento, mesmo com todo esse\I .ucr vago, é suficientemente preciso para os propósitos práticos

111 questão. Em todos os assuntos que não são conectados com taisI'lIlPÓSitOSpráticos que são objeto de sua preocupação imediata, o[uuncm comum aceita seus sentimentos e suas paixões como guias.IIh sua influência, ele estabelece um conjunto de convicções e de

Idl'las pouco claras nas quais ele simplesmente confia, desde quelus não interfiram em sua busca por felicidade.

tipo ideal que nós propomos chamar de cidadão bem-infor-m.ido (que é uma versão abreviada da expressão mais correta, quer-ria: o cidadão que almeja ser bem informado) situa-se entre o tipo

Ideal do especialista e do homem comum. Por um lado, ele não pos-til nem almeja possuir o conhecimento do especialista; por outro,

de não se conforma em simplesmente aceitar o caráter vago de umconhecimento que lhe é apresentado como uma receita, tampouco anacionalidade de suas paixões e sentimentos não esclarecidos. Serbem-informado significa para ele chegar a uma opinião razoavel-mente bem fundamentada em áreas que ele sabe que são ao menosle seu interesse mediato, ainda que não constituam seu propósitomais direto no momento.

Todos os tipos que acabamos de delinear de forma um tantogrosseira são, é claro, meros construtos. Na realidade, cada um denós em sua vida cotidiana pode ser simultaneamente um especialis-ta, um cidadão bem-informado e um homem comum, mas semprconforme as diferentes províncias do conhecimento. Mais do quisso, cada um de nós sabe que o mesmo se aplica a cada um de nos-sos semelhantes, e esse fato já determina o tipo específico de conhc-cimento empregado. Por exemplo, para o homem comum é sulicicn-te saber quais os especialistas que ele tem à disposição para consultarquando almeja algum propósito prático particular. Suas receitas di

"1111

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zem a ele se deve procurar um médico ou um advogado, com osquais ele pode obter informações mais precisas. O especialista, poroutro lado, sabe muito bem que apenas outro colega especialista irácompreender as dimensões técnicas e as implicações de um proble-ma em sua área, e nunca irá aceitar um leigo ou um diletante comoum juiz competente de suas ações. Mas é o cidadão bem-informadoc;.'_'.econsidera a si mesmo perfeitamente qualificado para decidirquem é o especialista competente, e até mesmo capaz de formaruma ideia própria depois de ter ouvido' opiniões opostas de diferen-tes especialistas.

Muitos fenõmenos da vida social podem ser plenamente com-preendidos somente quando são referidos à estrutura geral subja-cente à distribuição social do conhecimento que acabou de ser apre-sentada. Esse recurso sozinho já torna possível uma teoria socioló-gica das profissões, do prestígio e da competência, do carisma e daautoridade, e leva à compreensão de relações complicadas comoaqueles que existem entre o artista que faz uma performance, seupúblico e seus críticos, ou entre o fabricante, o varejista, o agente depublicidade e o consumidor, ou entre o chefe do governo, seu asses-sor técnico e a opinião pública.

O homem comum vive, por assim dizer, ingenuamente no âm-bito das suas próprias relevâncias intrínsecas e daquelas de seu gru-po. Ele considera as relevâncias impostas somente como elementosda situação que devem ser definidos como dados ou condições parao curso de sua ação. Elas são simplesmente dadas, e ele não tenta en-tender sua origem e sua estrutura. Porque algumas coisas são maisrelevantes do que outras, porque zonas de aparente irrelevância po-dem conter elementos que amanhã podem ser impostos a ele comoquestões da mais alta relevância é algo com o qual ele não se preocu-pa; essas questões não influenciam sua ação e seu pensamento. Elenão irá atravessar a ponte até que tenha chegado até ela e ele assumecomo algo evidente que ele irá encontrar a ponte quando precisardela, e que ela será forte o bastante para aguentá-lo. Essa é uma dasrazões pelas quais ao formar suas opiniões ele é muito mais gover-nado pelo sentimento do que pela informação, porque ele prefere,tal como as estatísticas mostram muito bem, ler as páginas de hu-mor do jornal às notícias internacionais, ou os concursos de per-gunta e resposta do rádio aos comentários sobre as notícias.

260

O especialista, no sentido que atribuímos a esse termo, sente-Ionlortável somente no âmbito de um sistema de relevâncias Im-postas - ou seja, impostas pelos problemas preestabelecidos em seul'Llmpo.Ou, para ser mais preciso, em virtude de sua decisão dlornar um especialista, ele aceitou as relevâncias impostas por seu'ompo como se fossem intrínsecas, aliás, como as únicas relevânciaI'calmente intrínsecas de seu pensar e de seu agir. Mas esse campo'l'igidamente delimitado. Certamente, há problemas marginais e atmesmo problemas fora de seu campo específico que o especialistatende a delegar a outro especialista, com os quais este deveria seocupar. O especialista parte do pressuposto de que não apenasnquele sistema de problemas estabelecido em seu campo é relevan-te, mas que é o único sistema relevante. Todo seu conhecimento éreferido a esse quadro referencial que já foi estabelecido. Aquele quenão aceita isso como o sistema monopolizado de suas relevânciasintrínsecas não partilha com o especialista um mesmo universo dis-ursivo. Ele pode esperar do especialista apenas um conselho a res-

peito do meio mais adequado para a obtenção de determinado fim.mas não a determinação dos próprios fins. A famosa afirmação d

lemenceau de que a guerra é um assunto muito importante parar deixada somente nas mãos dos generais ilustra bem de que

modo um homem orientado para fins mais compreensivos reage aoonselho do especialista.

O cidadão bem-informado encontra-se em um domínio quepertence a um número infinito de quadros referenciais possíveis.Não há fins já estabelecidos, não há limites fixos das fronteiras nasquais ele pode buscar abrigo. Ele escolhe o quadro referencial ao es-olher seu interesse; ele deve investigar as zonas de relevância cor-

relatas; e ele deve reunir tanto conhecimento quanto for possível so-bre a origem e as fontes das relevâncias realmente ou potencialmen-te impostas a ele. Em termos da classificação utilizada anteriormen-te, o cidadão bem informado irá restringir tanto quanto possível azona das irrelevâncias, ciente de que aquilo que é irrelevante hojepode amanhã vir a ser imposto como uma relevância primária, c qa província daquilo que é chamado de absolutamente irrelevarucpode se revelar como o domínio próprio daqueles poderes anõumos passíveis de impor-se a eles. Portanto, a sua atitude é (.11ft'I'('1 111'

111

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tanto daquela do especialista cujo conhecimento é delimitado plum único sistema de relevâncias quanto daquela do homem cmum, que é indiferente à própria estrutura de relevância. Por e.razão ele precisa formar uma opinião razoável e buscar informaçã

VReinos da

• I\. •

expenenCla

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