cantos cerimoniais sefarditas
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TRAÇOS DA IDENTIDADE CULTURAL PORTUGUESA EM
CANTOS CERIMONIAIS SEFARDITAS
Alexandre Branco WeffortInvestigação realizada junto da Cátedra de Estudos Sefarditas da Universidade de Lisboa, Faculdade deLetras, no âmbito do curso de mestrado em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona deHumanidades e Tecnologias.
Introdução
Um cidadão português, jornalista de profissão, oriundo o Alentejo e residente na
cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, autor de um <blog> em
língua portuguesa sobre o judaísmo (intitulado “A Rua da Judiaria”1), fez-se
recentemente eco de uma petição pública onde se defende o propósito da “Restituição
da Nacionalidade Portuguesa aos Judeus Sefarditas Portugueses”. No espaço do
mesmo <blog>, o seu autor havia publicado anteriormente um texto acerca das
semelhanças por ele detectadas entre o canto cerimonial judaico (com que contacta
desde que o próprio assume judaísmo como religião) e os cantos populares da sua
terra natal, o Alentejo, fornecendo, inclusivamente, alguns exemplos sonoros para
suporte dessa impressão partilhada com os eventuais frequentadores do <blog>2.
Estes dois gestos servem como pretexto a esta investigação: perscrutar o
reconhecimento de um traço identitário comum entre exemplos da música tradicional
portuguesa e a música cerimonial Sefardita, tendo em presença a petição para a
restituição da nacionalidade portuguesa aos descendentes dessa comunidade que, em
meados do milénio passado, foi sistematicamente perseguida e obrigada à diáspora.
1. A música no antigo ritual judaico
As informações mais antigas sobre a música no ritual judaico encontram-se nostextos bíblicos, oferecendo um panorama alargado do papel da música tanto na vida
religiosa como na da sociedade em geral. Encontram-se referências aos instrumentos
em uso nos tempos antigos, tais como a lira, vários instrumentos de sopro e de
percussão, bem como a rudimentar trompa em “corno de carneiro – o <shofar> –
1 Acedido em http://ruadajudiaria.com/.2
Acedido em http://ruadajudiaria.com/?p=574. Os exemplos sonoros dos cantos Sefarditas referidosconstam do suporte sonoro que acompanha este trabalho. A “moda” Alentejana indicada pelo autor dotexto em apreço, intitula-se “Meu Querido Alentejo” e está reproduzida no CD anexo (exemplo nº 13).
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único sobrevivente da panóplia de instrumentos ainda hoje utilizado no rito
sinagogal” (Shiloah 2005, pp 360).
“A actividade musical desapareceu definitivamente após a destruição do
Segundo Templo de Jerusalém pelos Romanos no ano 70 AEC e a dispersão ulterior do povo de Israel pelos quatro cantos do Mundo” (Shiloah, 2005, pp 362). Com a
assunção da sinagoga no centro de referência do culto, surgem novas concepções e
normas para a regulação da liturgia e da música no culto, renunciando à arte
instrumental e assumindo a oração vocal e o canto como elementos que sublinham a
devoção e a participação da comunidade de fieis.
Algumas formas praticadas no culto do Templo, como a recitação da <shema> e
os cânticos responsoriais com a participação dos leigos que assistiam aos sacrifícios, poderão ter servido de fonte para a nova liturgia.
A evolução da música ritual passa por uma transformação com a introdução da
poesia cantada, o <Piyyut>, que dá origem a um novo género poético-musical. O
<Piyyut> desenvolve-se em todos os centros judaicos atingindo, no início do segundo
milénio da era comum, a sua mais elevada expressão na Espanha muçulmana,
revelando grande influência da poesia árabe.
Mas a prática musical é alvo de oposição, nomeadamente no âmbito do
judaísmo rabínico. O papel da música no culto bem como em outras esferas da vida é
questionado, debatendo-se posições radicalmente antagónicas, que vão da sua
aprovação ao banimento total. Num processo (de oposição e contra-oposição) que se
mantém vivo nos tempos actuais, um dos aspectos em que radicava a oposição à
música no culto era o da introdução de canções exógenas na música utilizada na
sinagoga pelos cantores (os <hazzân>).
2. Registos da música no cerimonial Sefardita
Ao referirmo-nos à música no cerimonial Sefardita, temos em vista o que foi
praticado pelas comunidades judaicas que partiram de Portugal após a sua expulsão
em 1496, nomeadamente, para Marrocos, Grécia, Inglaterra e Holanda, dos quais
alcançamos documentação seja em suporte escrito, seja por registos sonoros.
No que refere à música propriamente dita, encontrámos elementos que nos
permitem estabelecer comparações (tendo sempre em vista a questão inicial descritana introdução) ao nível da percepção auditiva, considerando as semelhanças
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encontradas entre espécimes da música tradicional portuguesa e alguns cantos
registados junto de comunidades Sefarditas em Marrocos e Grécia. Por outro lado,
pudemos ainda comparar esses registos, de âmbito etnográfico, como outros,
nomeadamente, os realizados por cantores profissionais (<hazzân>) e que sedebruçam sobre o repertório de cantos cerimonias judaicos.
Por outro lado, no que respeita às descrições sobre a música portuguesa e a sua
influência no rito sinagogal, alcançamos registos sonoros de eventos surpreendidos na
sua expressão natural (de carácter etnográfico), como registos que resultam de uma
intenção já elaborada, no sentido de uma prática erudita.
2.1. Registos etnográficos de comunidades judaicas de Marrocos e Grécia
No caso dos registos realizados na Grécia3, deles seccionamos dois exemplos.
<Yom Shabbaton> (exemplo nº 1), cantado em voz masculina, a solo, onde ressalta o
timbre nasal característico de diversos cantos populares encontrados na orla do
mediterrâneo (e também em Portugal). Algumas inflexões melódicas bem como o
modo como é estabelecido o ritmo, sugerem também analogias com alguma música
tradicional portuguesa. O registo <Adonay Malakh> (exemplo nº 2) é realizado por
um coro, geralmente em uníssono, com momentos de harmonização à terceira
superior (nas conclusões de frase).
Dos registos oriundos de Marrocos seleccionamos <Treq In Hijaz El Kabir>
(exemplo nº 3), que evidencia a forma responsorial, com o canto iniciado por um
solista (ocasionalmente dobrado por outros cantores), ao qual se junta a intervenção
(também ocasional) de uma voz superior que, em jeito de interjeição, desencadeia
momentaneamente a resposta coral (com breves episódios de polifonia paralela).
Outro registo de âmbito etnográfico, um <Piyyut> (exemplo nº 4) registado em
Tânger, cantado por uma voz masculina solista, apresenta no seu início momentos que
sugerem o tipo de vocalização solista no canto tradicional alentejano (no seu carácter
de improviso e nalgumas formulas de ornamentação em que os melismas são
claramente diatónicos); há, todavia, momentos em que a melodia é desenhada
recorrendo a alterações da escala diatónica, através do recurso a intervalos
característicos dos <maqamat> árabes.
3 Editados em CD pela Folkways Records, com o título “Greek-Jewish Musica Tradition”, FE 4205,1978, NY USA.
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2.2. Registos de proveniência não determinada
Através da internet4, obtivemos acesso a dois registo de um canto cerimonial
Sefardita (<Nishmat Kol Hai>) em duas formas de execução, uma extraída da
tradição oral (em Marrocos) e outra elaborada sob a forma coral (exemplo nº 5). Esteúltimo, efectuado junto da Sinagoga Espanhola e Portuguesa de Nova Iorque, revela o
processo de transformação operado no século XIX na Europa, onde as Sinagogas
Sefarditas se esforçavam por acompanhar o modelo das suas congéneres de orientação
Ashkenasi5.
O registo da tradição oral daquele cântico interpretado segundo a tradição
marroquina (exemplo nº 6), permite estabelecer uma comparação directa tanto com o
registo anterior, como com o registo realizado em 1960 na Europa, na Sinagoga de
Londres (exemplo nº 7), onde o mesmo <Nishmat>, desta feita cantado em coro em
uníssono, é apresentado com absoluta coincidência seja a nível rítmico, melódico ou
vocal.
A possibilidade de comparação destes registo afigura-se de particular relevância
para este questionamento pois são demonstrativos da estabilidade dos elementos
essências do canto sefardita e da sua conservação nos locais de culto que as
comunidades sefarditas edificaram, nomeadamente, em cidades europeias como
Amsterdão e Londres, e, cruzando o Oceano Atlântico, nos Estados Unidos da
América.
Na história Sinagoga Bevis Mark estabelece-se, em inícios do século XVIII, um
elo directo entre os Sefarditas portugueses em Londres e o cripto-judaísmo no Baixo
Alentejo. O médico Jacob Castro Sarmento (nascido em Bragança, com o nome
Henrique), numa família de cristãos-novos. Residente em Mértola, no Alentejo, na
sua infância, vê a sua família ser atingida pela Inquisição (seu pai foi preso em 1708,
4No site da “Hebrew Union College — Jewish Institute of Religion”, em http://huc.edu/sephardic.
5Diz o autor do texto que acompanha os registos aqui referidos: The Western Sephardic singing of
Nishmat Kol Chai is taken from the choir singing in the Spanish and Portuguese Synagogue in New
York City. The choral singing is hymn-like in that the melody is harmonized; this is the only Sephardic
tradition that has a choir. Since Spanish and Portuguese synagogues were located in Western
European and American cities (like Vienna, Hamburg, London, Amsterdam, New York) they were in
proximity in the late 19th century to Ashkenazi synagogues that used choirs. In an effort to remain up-
to-date, Spanish and Portuguese synagogues used choirs so their congregants would not seek out other
synagogues for worship. In this rendition of ‘Nishmat Kol Chai’ the scale is Western, the rhythm is a steady and regular pulse and the melodic range is moderate (em Mark KLIGMAN. Introduction toSephardic and Mizrachi Liturgical Music. S.d., acedido em http://huc.edu/sephardic/media/Intro.pdf
).
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saindo em um Auto de Fé em 1710), Henrique de Castro Sarmento (vem a adoptar o
nome Jacob apenas quando se fixa em Londres) estuda Artes na Universidade de
Évora, indo depois para a Universidade de Coimbra, onde se forma em Medicina em
1717, actividade que pratica em Beja e em Lisboa. Sai de Lisboa em 1721
6
,escapando à Inquisição, com destino a Londres.
Com Jacob de Castro Sarmento fica demonstrada a sobrevivência de práticas
cripto-judáicas no Baixo Alentejo ainda no primeiro quartel do século XVIII. A sua
ida para Londres, passando a integrar a comunidade sefardita congregada na Sinagoga
Bevis Mark, pelos laços identitários que revela, permite supor haver uma relação
entre os cânticos praticados naquela Sinagoga e as formas de canto praticadas pelos
cristãos-novos em Portugal, nomeadamente no Alentejo.Outro aspecto relevante que ressalta da história da Sinagoga de Londres é
revelado pelas crispações noticiadas entre a comunidade constituída pelos primeiros
grupos de sefarditas que chegam a Londres vindos de Amsterdão (e que fundam a
Sinagoga Bevis Mark), e os judeus sefarditas que aportam a Londres vindo de
Marrocos. A informação provém do relato do Rabi Moses Caster, extraído de
“History Ancient of the Spanish and Portuguese Jews”, onde descreve a vida da
comunidade Sefardita de Londres organizada na Sinagoga Bevis Mark (na longacitação em rodapé são referidos os processos de adaptação da comunidade Sefardita,
até então desenvolvendo-se em relativo isolamento, às transformações impostas pela
história moderna, bem como a chegada de novos elementos provenientes de
Marrocos)7.
6 Cf. José Pedro Sousa DIAS. Jacob de Castro Sarmento e a sua fuga para Londres em 1721. Em
Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, 2005, pp. 53-61. 7Moses CASTER, History Ancient of the Spanish and Portuguese Jews, Londres, 1901 (tem aposta na
capa a indicação “Not Published. For Presentation only”): Diz o autor: “Two hundred years separateme from H. Nieto, who opened this Synagogue. He begins and I close”. E, descrevendo a vida dessacomunidade, refere as tensões a que aludimos: To the members of the Community, although living here
in a state of isolation, there came new ideas, new notions which stirred the congregation to its depths.
The revolution in France, the Napoleonic wars, the peace of Frankfort, the emancipation of the Jews
on the Continent, the new spirit manifested therein, the desire to identify the political emancipation
with religious changes, had created a state of unrest and dissatisfaction in the ranks of Jewry, and had
brought about great troubles in the religious life.
The cry for reform grew ever louder and louder and became more and more reckless when it passed
from men of learning to men of ambition, who joined with it a false note of assimilation with their non-
Jewish neighbours. This cry was taken up, though faintly at the beginning, by that section of the
Community which had lived so long in London, as to feel themselves entirely English, and whotherefore could be in sympathy with that movement on the Continent and were stimulated and encouraged by it.
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No acervo desta sinagoga consta uma colecção de cânticos dos Sefarditas
portugueses8, editado juntamente com uma introdução da autoria de D. A. De Sola,
onde são identificadas 46 cânticos, segundo o autor, compostos em Espanha e
introduzidos em vários países pelos judeus Sefarditas.Dos cantos noticiados como anteriores à influência ibérica, consta <Az Yashir
Moshe> (exemplo 8)9. Este canto hebraico10 está também na base do cântico Sefardita
<Bendigamos a el Altísimo> (exemplo nº 9), oração que se encontra espalhada pelos
quatro cantos da Diáspora Sefardita11.
Thus to the jealousy which was growing up between the two sections of the Community, the one which
had lived longer in England, and which had come directly from Spain and Portugal, and those who,
although of Spanish and Portuguese descent, were comparatively new comers, was now added adifference of religious conception the one was less strict and the other very strict in the obedience to
the Law; the one demanded changes and the other resisted all manner of change whatsoever; the one
took the law into their own hands and the other refused to allow strange hands to meddle with old and
sacred traditions.
A small incident gave occasion for the latent animosity to break out in an acute form. Some of the new
members, especially those who had come from Gibraltar and North Africa, had brought with them
customs and traditions, which were not well known or not practised here. Thus in accordance with
their tradition a certain number of them, among whom were the Benoliels, Abecasis, Guedallas, Aloofs,
Pintos, &c., gathered together in order to read on the eve of the feast of Shebuoth a certain portion of
the Bible and of the Zohar, at the close of which, after they had formed a Minyan, they read prayers, at the dawn of the clay, without for a moment thinking that by so doing they were transgressing one of the
most jealously guarded laws of the Community.8 Emanuel AGUILAR . The Ancient Melodies of The Liturgy of The Spanish and Portuguese Jews .Londres, 1857, Wessel and CO. 9
Retirada da internet em http://www.archive.org/details/PsalmsOfDavidInHebrew. Disponibilizadasem informação sobre data, condições de registo ou identificação dos informantes. 10
Cuja letra reporta à travessia do Mar Vermelho, conforme o livro do Êxodo. 11 Cf. Edwin SEROUSSI. Livorno: A Crossroad in the History of Sephardic Religious Music, em “TheMediterranean and the Jews: Society, Culture and Economy in Early Modern Times", editado por ElliottHOROWITZ and Moises ORFALI, 2002, Ramat-Gan: Bar Ilan University Press; Jonathan COHEN. Bendigamos (Draft 0.5 Dec. 2004), documento on-line acedido em http://sites.google.com /site/londonsephardimusic/home, queinforma: Claims that Bendigamos is an old Marrano song may be wishful thinking, as the song is not in Ladino,
but (I am reliably informed) comparatively modern Spanish. However, according to Rev. Cardozo, Hazan of
Shearith Israel, NYC1: "Bendigamos was first discovered in Bordeaux, France where a Marrano community [had]
existed in the 17th century". It was imported from there to the USA via Curacao and Jamaica. I know the hymn
from the S&P Community of London in the 1970s, to where it had presumably been imported from the US, as I am
told that it was unknown in London in the 50s. E, por último, Cássia SCHEINBEIN, Línguas em Extinsão: O
hakitia em Belém do Pará, 2006, Belo Horizonte, onde o conhecimento dessa oração é documentado no Brasil.
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Parte do cântico Az Yashir Moshe (exemplo retirado da colectânea editada por Emanuel AGUILAR , The
Ancient Melodies of The Liturgy of The Spanish and Portuguese Jews, editada em Londres, em 1857). Nas notas que servem de introdução a esta colectânea de antigas melodias sefarditas, este cântico éexpressamente indicado como sendo de proveniência anterior ao da constituição da comunidade sefarditaem Portugal e Espanha, não, naturalmente, na sua forma coral, mas apenas da melodia patente na vozsuperior.
Outro cântico, que utiliza em traços gerais a mesma configuração melódica de
<Bendigamos>, intitula-se <Barukh Habba>, e trata-se de um <hallel> (oração
judaica). Neste caso, através dos exemplos sonoros que alcançamos, são perceptíveis
algumas formas melódicas e cadenciais semelhantes às que ocorrem no canto
alentejano, que podemos observar. Os exemplos cobrem o desempenho solista
(exemplo nº 10), a coro em uníssono (exemplo nº 11)12
, desta feita num registo coralmoderno.
2.3. Registo da Sinagoga de Londres
Os registos da Sinagoga de Londres apresentam também carácter etnográfico13,
no sentido em que registam o canto realizado pela congregação, onde ressalta a
semelhança do timbre vocal com os registos oriundos de Marrocos (e mesmo da
Grécia). Dos registos da Sinagoga de Londres já referimos <Nishmat kol hai>, com
que realizámos a comparação com o registo marroquino do mesmo tema, e
<Quedusha> (exemplo nº 12), tema proposto no <blog> a que aludimos no início
deste trabalho. Como sugere o autor da proposta que nos serviu de pretexto a esta
investigação, o ambiente psicológico do canto cerimonial sefardita apresenta uma
12 Extraído do CD “Jewish Voices In The New World”, 2001, NAXOS, NY. 13
Embora não no sentido estrito, pois a atmosfera do canto congregacional foi reconstruída, comoinforma o editor do registo: “Normally, the choir sing in toup-part, Victorian harmony, but the recordist
persuaded the Elders of the Synagogue to allow him in this case to have the tunes as they wouldoriginally have been heard” (Texto do libreto que acompanha o CD “Music of the Spanish andPortuguese Synagogue”, Folkways Records FR 896, 1960, NY USA).
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dimensão de feição ritual que se pode apreciar de forma análoga no canto alentejano
(exemplo nº 13), além do modo responsorial e das características musicais
semelhantes.
2.4. Interpretações mais recentes de cânticos Sefarditas
A pesquisa em torno da questão colocada no início, da possível relação entre os
cânticos cerimoniais Sefarditas e formas de canto conservadas na tradição portuguesa
(nomeadamente, do Alentejo), conduziu ao contacto com os produtos discográficos de
cantores profissionais especializados (<Hazzânut>).
Do CD intitulado Hazzanut , interpretado por Mordechai Bouzaldo e Yossef
Shriki, escolhemos duas faixas respeitantes a exemplos de cantos referenciados à
tradição marroquina: <Nichmat Kol Hai Tibarekh, Chimkha> (exemplo nº 14) e <Et
Cha Ari Ratson Li-hipattiah> (exemplo nº 15). É notória, na comparação entre os dois
exemplos, a diferença entre uma expressão mais próxima à música envolvente à
comunidade judaica residente em Marrocos (vulgarmente designada por “música
árabe”) patente no primeiro exemplo e o traço mais próximo às tradições ibéricas
observável no segundo exemplo, resultante da proveniência dessa comunidade. Dois
aspectos devem ser especialmente retidos na observação deste exemplo: a sua
regularidade rítmica e a escala utilizada.
3. Os Sefarditas portugueses e a música sinagogal
A presença de traços da música portuguesa na música sinagogal (na tradição
Sefardita) é reconhecia desde finais do século XIX.
Em Paris, no ano de 1874, o compositor de origem bávara Samuel Naumbourg,
refere, na introdução à colecção de cantos religiosos e populares hebraicos ‘Aguddat
Shirim’: Jews of the Oriental rite (Sephardim and Portuguese) have (…) a cantillation different
which is very different (…) This way of chanting is slower and more rhythmic than the
Ashkenazic. (…)
In contact for fifteen centuries with the Moors and Christians, the Jews necessarily had
to accept their arts, models of which were constantly before their eyes. This influence
(...) must certainly have extended to religious poetry. This is observed in the songs of
the Sephardic Jews, which often have Arabic melodies.
Later, thousand of Spanish Jews had to adopt Christianity (at least in appearance) in
order to escape the tortures of the Inquisition. These converts, know as Marranos,
undoubtedly brought melodies and songs to the secret gatherings they held to celebratete Jewish religion. That is why the music of the Sephardic Jews often recalls plainsong
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with its somber gravity. Even in the ancient rituals of the Portuguese Jews, there are
chants and psamls which, following accompanying instructions, were to be sung to
popular and Spanish melodies.14
O mesmo é colocado modernamente pelo musicólogo Mark Kligman15, ao
analisar os cantos rituais das comunidades Sefardita e ‘Mizrachi’16
:Music from Jewish communities in this region of the world mainly exists in the form of
the oral tradition, and mainly the Western Sephardic traditions appear in written
versions. There are significant limitations in determining the exact history of the music
of Sephardic and Mizrachi Communities.
The 10th-12th Centuries are referred to as the ‘Golden Age of Spain’. Under Muslim
rule, the Jews interacted with Christians and Muslims in free exchange, often referred
to as convivencia. With Muslim culture developing new forms of philosophy, logic,
organization, grammar, and poetry Jewish cultured flourished with significant
achievements in exegesis (Nachmonidies for example), philosophical works (such as
those by Maimonidies) and poetry (Ibn Ezra, Halevi, Ibn Gabriol). These
accomplishments forever influenced Jewry.17
Os dois autores referidos afiguram-se concordantes, nas suas afirmações, com
os aspectos essenciais das conclusões que extraímos da audição comparada dos
exemplos sonoros referidos neste ensaio, nomeadamente:
- haver traços musicais comuns em registos sonoros do canto cerimonial
Sefardita, observáveis através da análise auditiva;
- poderem, esses traços, ser assumidos como demonstrativos da relação de
identidade cultural transportada pelos Sefarditas portugueses para os
diversos locais da Diáspora.
Por outro lado, os elementos de ordem musical considerados, apontam para a
possibilidade de alguns desses traços se terem conservado também em práticas da
tradição popular portuguesa.
14 Apud Harvey SPITZER. 1988-89. "Samuel Naumbourg's Introduction to his Agudath Schirim (Paris,1874)." Journal of Jewish Music & Liturgy, 11: 17-34. 15 A quem devemos a disponibilização na internet dos exemplos nº 5 e 6. 16
O termo ‘Mizrachi’ é utilizado para designar os descendentes das comunidades judaicas do norte deÁfrica e do Médio Oriente.17 Mark KLIGMAN. Introduction to Sephardic and Mizrachi Liturgical Music. S.d., Emhttp://huc.edu/sephardic/media/Intro.pdf. Do exposto, relativamente à permeabilidade do canto
Sefardita à influência dos seus vizinhos árabes e cristãos, podemos ainda extrair outra ilação: terem os judeus Sefarditas conservado traços das tradições musicais árabes no decurso dos cerca de dois séculose meio que medeiam entre o final da dominação árabe em território português e a expulsão dos judeus.
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Conclusão
A comparação entre dados de universos culturais diversos coloca questões
metodológicas específicas. Joseph Jordani analisa o diálogo entre estudos de âmbito
regional e estudos comparativos. Enquanto o primeiro se baseia num paradigma de
aprofundamento “vertical” do conhecimento, no seu todo, do sistema de interacções
sociais e musicais, o segundo caracteriza-se por um método de cruzamento
“horizontal”, onde são estudadas diversas regiões, embora sem o aprofundamento que
se alcança nos estudos regionais (Jordani 2006, pp 178).
No caso, procuramos surpreender correlações entre universos que têm em
comum a movimentação das comunidades que lhes dão suporte. O deslocamento dos
judeus Sefarditas de Portugal para o norte de África ou para outras paragens da
Europa e os vestígios deixados permitem, interpretando o significado dos elementos
constantes, estabelecer uma linha de continuidade e, em função dela, de identidade.
Todavia, a correlação encontrada entre alguns exemplos do canto cerimonial
Sefardita e da música tradicional portuguesa, não permite ainda concluir sobre a
hipótese inicialmente aventada. Diz o autor do <blog> citado:
Sempre ouvi dizer que as raízes dos cantares tradicionais alentejanos eram árabes,e que remontavam aos séculos de domínio muçulmano do Sul de Portugal mas,
confesso, e apesar de conhecer bastante música árabe, nunca encontrara entre
elas qualquer analogia. Inclusive, algumas tentativas de aproximação entre as
duas empreendidas por músicos contemporâneos, apesar de agradáveis, tinham
sempre um sabor a casamento forçado. Curiosamente, foi nas sinagogas sefarditas
que encontrei melodias que me faziam de imediato lembrar as “modas”
alentejanas das terras dos meus pais. As semelhanças encontram-se no todo, mas
elas notam-se principalmente em pontos de contacto muito específico – o maior
dos quais a sua forma “responsiva”, pois tanto na oração judaica como no cantar
tradicional alentejano há um “líder” e um coro que responde. Mas é a forma como
essa relação, esse diálogo melódico, se desenrola que parece deixar pouca
margem para dúvidas acerca da evidente afinidade.18
Os dados que apuramos (tanto neste trabalho como em pesquisas mais amplas
que desenvolvemos em torno da questão19) corroboram algumas das propostas
patentes no texto citado, nomeadamente, da importância da forma responsorial do
canto colectivo do Alentejo, forma essa muitas vezes presente no canto cerimonial
18
Nuno Guerreiro JOSUÉ (2007). Raiz Judaica do Cantar Alentejano... Em http://ruadajudiaria.com/. 19Realizadas no âmbito do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias.
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judaico. Por outro lado, algumas melodias estudadas revelam fortes similitudes entre
as ‘modas’ alentejanas e os cânticos Sefarditas.
Mas, da mesma forma que o canto Sefardita não tem um único matiz (há
também elementos musicais de origem árabe que se conservam na música Sefardita),o cantar alentejano também observa diversidades que devem ser consideradas antes de
se poder tirar uma ilação mais conclusiva20.
Uma correlação observada não estabelece necessariamente uma relação causal.
Afigura-se neste momento mais pertinente outra explicação: nos caminhos trilhados
na Diáspora, os judeus transportaram traços da música existente em Portugal aquando
da sua partida; os dados apurados apontam para a existência de uma raiz comum ao
canto alentejano hodierno e ao canto cerimonial sefardita.
Lisboa, 30 de Setembro de 2010
20Pode haver ainda espaço para o reconhecimento de vestígios da presença cultural “árabe” no canto
alentejano, nomeadamente, ao nível da escala ou gama (com a eventual manifestação de uma afinaçãoespecífica derivada das escalas ‘maquamat’).
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Conteúdo do CD anexo:
Exemplo nº 1 ‘Yom Shabbaton’Exemplo nº 2 ‘Adonay Malakh’Exemplo nº 3 ‘Treq In Hijaz El Kabir’
Exemplo nº 4 ‘Piyyut’Exemplo nº 5 ‘Nishmat’ (versão coral)Exemplo nº 6 ‘Nishmat kol hai’ (Sinagoga de Londres)
Exemplo nº 7 ‘Nishmat’ (versão de Marrocos)Exemplo nº 8 ‘Az Yashir Moshe’
Exemplo nº 9 ‘Bendigamos al Altíssimo’Exemplo nº 10 ‘Baruch Aba’ (solo)Exemplo nº 11 ‘Barukh Habba’ (coro)
Exemplo nº 12 ‘Quedusha’Exemplo nº 13 ‘Meu querido Alentejo’ (‘moda’ alentejana)Exemplo nº 14 ‘Nichmat Kol Hai Tibarekh, Chimka
Exemplo nº 15 ‘Et Cha Ari Ratson Li-hipattiah