candido antonio esquema de machado de assis in varios escritos

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Texto de Antônio Candido. Abordagem de um possível esquema sobre a produção literária machadiana.

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  • ESQUEMA DE MACHADO DE ASSIS

    I

    omo o nosso modo de ser ainda bastante romntico, temosuma tendncia quase invencvel para atribuir aos grandes es-cdtores uma quota pesada e ostensiva de soimento e de dra-

    ma, pois a vida normal parece incompatvel com o gnio. Dickens des-governado por uma pai{o de matuddade, aps ter sofrido em meni-no as humilhaes com a priso do pai; Dostoievski quase fuzilado,atirado na sordidez do presdio sibeiano, sacudido pela mostia ner-vosa,jogando na roleta o dinheiro das despesas de casa; Proust enjaula-do no seu quarto e no seu remorso, sufocado de asma, atolado nas pai-xes proibidas - so assim as imagens que prendem a nossa imaginao.

    Por isso, os crticos que estudaram Machado de Assis nunca dei- i 7 {oao--xaram de inventariar e realar as causas eventuais d. tor-.trto, so- | t1 , o,(af.cial e individual: cor escura, origem humilde, carreira dificit, humi- \ u{, 1{"*[*lhaes, doena nervosa. Mas depois dos estudos renovadores de llrr"_rc|ean-Michel Massa difcil manter este ponto de vista. J u.v^. --

    Com efeito, os seus sofrimentos no parecem ter excedido aos de I /_^ i f r f^toda gente, nem a sua vida foi particularmente rdua. Mestios deorigem humilde foram aguns homens representativos no nosso lm-prio liberal. Homens que, sendo da sua cor e tendo comeado po-bres, acabararn recebendo ttulos de nobreza e carregando pastas mi-nisteriais. No exageemos, portanto, o tema do gnio versrs destino,Antes, pelo contrrio, conviria assinalar a normalidade exterior e areativa facilidade da sua vida pblica. Tipgrafo, reprter, funcio-nrio modesto, finalmente alto funcionrio, a sua carreira foi plci-da. A cor parece no ter sido motivo de desprestgio, e talvez s tenhaservido de contratempo num momento brevemente superado, quan-do casou com uma senhora portuguesa. E a sua condio social nun-ca impediu que fosse ntimo desde moo dos filhos do ConselheiroNabuco, Sizenando e foaquim, rapazes fros e cheios de talento.

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    Se analisarmos a sua careira intelectual, verificaremos que foi ad-mirado c apoiado desde cedo, e que aos cinqenta anos era conside-rado o maior escritor do pas, objeto de uma reverncia e admiraogerais, que enhum outro romancista ou poeta brasieiro conheceuem vidir, antes e depois dee. Apenas Svio Romero emitiu uma notadissorarte, no compreendendo nem querendo compreender a suaobra, quc escapava orientao esquemtica e maciamente natura-lista do scu esprito. Quando se cogitou de fundar a Academia Bra-silcira cle l,etras, Machado de Assis foi escolhido para seu mentor eprcsidcrte, posto que ocupou at morrer. J ento era uma espciecle patriarca das etras, antes dos sessenta anos.

    Patriarca (seiamos francos) no bom e no mau sentido. Muito con-vL rcionn, muito apegado aos formalismos, ea capaz, sob este as-

    de ser to ridculo e mesmo to mesquinho quanto qualquerprcsidente de Academia. Talvez devido a certa timidez, foi desde mo-o incinado ao esprito de grupo e, sem descuidar as boas relaescom o grande nmero, paece que se encontrava melhor no crculofcchado dos happy few. A Acadernia surgiu, na ltima pae da suavida, como um desses grupos fechados onde a sua personalidade en-contrava apoioi e como dependia dele em grande parte o beneplci-to para os membos novos, ele atuou om uma singular mistura deconformismo social e sentimento de cli4ue, admitindo entre os fun-

  • III

    passou co'vencionalmente pela vida, respeitando para ser respeita-.r, fun.ionuua ,rm escritor poderoso e atormentado' que recobria os

    seus l ivros com a cuticula do respeilo humano e das boas maneiras

    para podcr, debaixo dela. desmascarar, invesliSar' exPerimer'tar' des-

    cob.ii o mundo da ama, rir da sociedade, exPor algumas das com-ponertes mais esquisitas da personalidade Na rdzo inversa da sua

    prosa elegante e discreta, do seu tom humorstico e ao mesmo tempo

    acadn.rico, avultam para o leitor atento as mais desmedidas surpre-

    sas. A sua atualidace vem do encanto quase intemPora do seu estilo

    e dessc universo oculto que sugere os abismos prezados pea literatu-ra do secttlo XX. E a este proPdsito interessante dar um repasso nas

    tl ifercttte* etapas da sua glria no Brasil ' para avaliar as suas muitas

    f.rces e o rilmo com que foram descobertas'

    Nirs obras dos grandes escritores mais visivel a polivalncia do

    vcrlro l i lerario. Elas so grands Porque so extremamnle ricas de

    signilca

  • props uma teoria engenhosa do movimento cruzado de Nabuco,descendo da aristocracia ao povor e de Machado de Assis, subindodo Dovo s atitudes aristocrticas.

    2I ESQUEM^ DE MCHDO DE SSISa * l ,ot't t7 3i

    zar a obra para esclarecer a vida e a personalidade. Mas no h" dri ?^I;da de que foi desses estudos e alguns outros, geralmente pre cedendo o ,+" J.-ou sucedendo de pouco as comemoraes do centenrio do nasci fc ..r^^_mento em 1939, que comeou a compor-se a nossa viso moderna. u- v^l

    i J no era mais o ronista ameno, o elegante burilador de sentenas, | 1 *-J . ^ Ii da convenao acadmica; era o criador de um mundo paradoxal, o {I experimentador, o desolado cronista do absurdo.

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    Uma nova maneira de interpretar s apareceria no decnio de

    \1lo' 1930, com a biografia de Lcia Miguel Pereira, as anlises de Augus-, ?

    -to Mcyer. r* hbeis fi l iaes biogrficas de Mrio Mdlos. t a erapa

    , ,1,r.Y:t o* poderamos chamar de propriamente psicolgica, quando os

    . ' ' . .S '* t 'cr r jLosprocuravamestabelecerumacorrenterecprocadecompre-Y\* L clrsio entre a vida e a obra, focalizando-as de acordo com as disci.,,,1^.t plinas em moda, sobretudo a psicanlise, a somatologia, a neurolo-

    cLv e gia. Abro um parntese para dizer que no levarei em conta os as-pectos extremos dessa tendncia, representados pelos mdicos quesc apossaram de Machado de Assis como de um indefeso clientepstumo, multiplicando diagnsticos e querendo tirar da sua obra etlos poucos elementos conhecidos de sua vida interpretaes cu.jovalor cientfico deve ser pequeno. Antes e depois, mas sobretudonesses anos de 1930, a sombra obsoleta de Lombroso e Max Nordaupairou com roupa nova sobre o grande escritor.

    Disso tudo resulta algo positivo para a crtica: a noo de que erapreciso ler Machado, no com olhos convencionais, no com arg-cia acadmica, mas com o senso do desproporcionado e mesmo oanormal; daquilo que parce raro em ns luz da psicologia de su-perficie, e no entanto compe as camadas profundas de que brota ocomportamento de cada um. Nessa nova maneira de ler avulta semdvida Augusto Meyer, que, inspirado na obra de Dostoievski e nadc Pirandeo, foi alm da viso humoristca e filosofante, mostrandoqe na sua obra havia muito do homem subterrneo, do primeiro, erlo scr mltiplo, impalpvel, do segundo. Ele e Lcia Miguel Pereirachlmlram a ateno para os fenmenos de ambigtiidade que pulu-lunr rra sua fico, obrigando a uma leitura mais egente, graas ,1rral a norrralidade e o senso das convenincias constituem apenaso rlislirr'c rlc um universo mais complicado e por vezes turvo. O quest, ;'rxlc rcparar cle negativo, neles e em Mrio Matos, a aludida re-vclsilrilitlirLlc rlc interpretao, a preocupao excessiva de buscar navitla rLr arrlol irpoio para o que aparece na obra ou, vice-versa, uti l i-

    No decnio de 1940 notamos uma inflexo para o lado da filosofia(sobretudo crist) e da sociologia. A primeira quis focalizar em Ma-chado de Assis, sem impurezas biogficas, mormente o que se po-deria chamar de angstia existencial. E o caso de um dos seus me-lhores crticos, Barreto Filho, cujo livro uma das interpretaesmais maduras que possumos de sua obra. Estes cdticos resistiram aopsicologismo e ao biografismo, ao mesmo tempo em que pocura-vam esclarecer de um ngulo metafsico. Numa situao nem psico-lgica nem biogrfica situou-se tambm Astrojildo Pereira, preocu-pado com os aspectos sociais da obra, mas pecando na medida emque fazia deste lado o que faziam os biogafistas de outro, isto , con-siderando a obra na medida em que descrevia a sociedade e, portan-to, dissolvendo-a no doumento eventual. Mas a essa alturaj se percebia uma mudana que levou a pensar na obra, no no homem. o caso pecoce de Aftnio Coutinho, autor de um livro sobre as in-fluncias filosfias, e o caso de Lcia Miguel Pereira em seu novoenfoque da fico machadiana, na qual a natureza do tempo seria,em seguida, objeto de um estudo de Dirce Cortes Riedel. o casoainda de Roger Bastide, que, contrariando uma velha afirmao, se-gundo a qual Machado no sentiu a natureza do seu pas, mostrouque, ao contrrio, ee a percebe com penetrao e constncia; masem lugar de representa pelos mtodos do descritivismo romnti-co, incorpora-a filigrana da narrativa, como elemento funcional dacomposio literria. Era com o mesmo esprito que costumava di-zer aos seus alunos na Universidade de So Paulo que o "mais bra-sileiro" no era Euclides da Cunha- ornamental, para ingls ver; masMachado de Assis, que dava universalidade ao seu pas pela explorao, em no5so contexto, dos temas essenciais.

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  • O que primeiro chama a ateno do crtico na fico de Machadode Assis a despreocupao com as modas dominantes e o aparentearcasmo da tcnica. Num momento em que Flaubert sistematizaraa teoria do "romance que narra a si prprio", apagando o narradoratrs da otrjetividade da narrativa; num momento em que Zola pre-conizava o inventrio macio da realidade, observada nos menoresdetalhes, ele cultivou livremente o elptico, o incompleto, o frag-nentiiio, inlervindo na nanativa com bisbilhotice saborosa, lem-brando ao leitor que atrs dela estaya a sua voz convencional. Eraluma forDra de manter, na segunda metade do sculo XlX, o tom ca-lprichoso do Sterne, que ele prezava; de efetuar os seus saltos tempo

    ]rais e brincar com o eitor. Era tambm um eco do conte phlosophi-[ae, maneira de Voltaire, e era sobretudo o seu modo prprio de[eixar as coisas meio no ar, inclusive criando certas perpledadesho resolvidas.

    Curiosamente, este arcasmo parece bruscamente moderno, de-pois das tendncias de vanguarda do nosso sculo, que tambm pro-curarn sugerir o todo pelo fragmento, a estrutura pela elipse, a emoo pea ironia e a grandeza pela banalidade, Muitos dos seus contose alguns dos seus romances parecem abertosr sem concluso neces-sria, ou permitindo uma dupla leitura, como ocore entre os nos-sos contemporneos. E o mais picante o estilo guindado e algo pre-cioso com que trabaha e que se de um lado pode parecer academis-mo, de outro sem dvida parece uma forma sutil de negaceio, comose o narridor estivesse rindo um pouco do leitor. Estilo que mantmuma espcie de imparcialidade, que a marca pessoal de Machado,fazendo parecer duplamente intensos os casos estranhos que apre-senta com moderao despreocupada. No nos apai,(onados natu-ralistas do seu tempo, tericos da objetividade, que encontramos odistanciamento esttico que refora a vibrao da realidade, mas simna sua tcnica de esDectador.

    A partir dessa matriz formal, que se poderia chama o toffi machediano, que podemos compreender a profundeza e a complexi-

    ESQUEM DE MACHADO DE ASSIS

    dade duma obra lcida e desencantada, que esconde as suas rique-zas mais prolndas. Como Kaka ..--o id.. no .ontrrio de os-toievski, Proust ou Faulkner, os tormentos do homem e as iniqida-des do mundo aparecem nele sob um aspecto nu e sem retrica,agravados pela imparcialidade estilstica referida acima.

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    ESQUEM DE MCHDO DE SSIS

    fazendo que os escravos o chamem a cada instante "Senhor Alferes'De tal modo que este trao social acaba sendo uma segunda alma,indispensvel para a integridade psicolgica do personagem.

    Dali a dias a tia precisa viajar com urgncia e deixa a fazenda a seucargo. Os escravos aproveitam para fugir, ele fica na solido maiscompeta e chega s bordas da dissoluo espiritual, desde que no ti-nha mais o coro laudatrio que evocava o seu posto a cada instante.A tal ponto, que olhando certo dia no espeho v que a sua imagemaparece quase dissovida, borrada e irreconhecvel, Ocorrelhe entoa idia de vestir a farda e passar algum tempo todos os dias diante doespelho, o que o tranqiliza e the restabelece o equilbdo, pois a sua fi-gura se projeta de novo claramente, devidamente revestida pelo sm-bolo socia do uniforme. Quer dizer que a integridade pessoal estavasobretudo na opinio e manifestaes dos outros; na sociedade que ouniforne representa e naquela parte do ser que projeo na e dasociedade. A farda do Alferes era tambm a alma do Alferes. uma dasduas que todo homem possui, segundo o narrador, porque manifesta o se\r ser atrays dos oatrot sem o que nada somos. caro que afora do conto no yem desta concluso banal, alis enunciadaexpressamerte pelo autor, conforme seu hbito em tais casos. Vemda utilizao adrdrvel da farda simblica e do espelho monumentalno deserto da fazenda abandonada, construindo uma espcie de ale-goria moderna das divises da personalidade e da relatividade do ser

    Quanto ao problema da loucura, podemos citar o onto O ALrE-rrsre, elaborado segundo uma estrutura que Forster chamaria "deampulheta' Um mdico funda um hospcio para os oucos da cidadee vai diagnosticando todas as manifestaes de anormalidade mentalque observa. Aos poucos o hospicio se enche; dali a tempos j tem ametade da populao; depois quase toda ela, at que o alienista senteque a verdade, em conseqncia, est no contio da sua teoia. Manda ento sotar os internados e recoher a pequena minoria de pessoasequilibradas, porque, sendo exceo, esta que reamente anormal.A minoria submetida a um tratamento de segunda alma, para usaros termos do conto precedente: cada um tentado por uma fraque-za, acaba cedendo e se equipam deste modo maioria, sendo liber-

    tado, at que o hospcio se esvazia de novo. O alienista percebe entoque os germes de desequilbrio prosperaram to facilmente porque iestavam latentes em todos; portanto, o mrito no da sua terapia.No haveria um s homem normal, imune s solicitaes dasmanias, das vaidades, da falta de ponderao? Analisando-se bem, vque o seu caso; e resolve internar-se, s no casaro vazio do hosp-cio, onde morre meses depois. E ns perguntamos: quem era louco?Ou seriam todos loucos, caso em que ningum o ? Notemos queeste conto e o anterior manifestam, no fim do sculo XIX, o que fariaa voga de Pirandello a partir do decnio de 1920.

    2. Outro problema que surge com freqncia na obra de Machadode Assis o da relao entre o fato real e o fato imaginado, que serum dos eixos do grande romance de Marcel Proust, e que ambos ana-lisam principalmente com relao ao cime. A mesma reversibilidadeentre a razo e a loucura, que torna impossvel demarcar as fron-teiras e, portanto, definilas de modo satisfatrio, existe entre o queaconteceu e o que pensamos que aconteceu. Um dos seus romances,Dom Casmurro, conta a histria de Bento Santiago, que, depois damorte de seu maior e mais fiel amigo Escobar, se convence de que eefora amante de sua mulher, Capitu, o personagem feminino maisfamoso do romancista. A mulher nega, mas Bento junta uma porode indcios para elaborar a sua convico, o mais importante dosquais a prpria semelhana de seu filho com o amigo morto. Umaestudiosa norte-americana, Helen Caldwell, no livro The BrazilianOthello of Machado de ssis, levantou a hiptese vivel, porque bemmachadiana, de que na verdade Capitu no traiu o marido. Como olivro narrado por este, na primeira pessoa, preciso convir que sconhecemos a sua viso das coisas, e que parc a ftiosa tistalizanonegativa de um ciumento, possvel at encontrar semelhanas ine-xistentes, ou que so produtos do acaso (como a de Capitu com ame de Sancha, mulher de Escobar, assinalada por Lcia MiguelPereira). Mas o fato que, dentro do universo machadiano, no im- |porta muito que a convico de Bento seja falsa ou verdadeira, por- |que a conseqncia exatamente a mesma nos dois casos: imagin- \ria ou real, ela destri a sua casa e a sua vida. E conclumos que neste I

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  • Machado, que, no ousando pr em cena uma mulher casada, des-creve a situao de tipo conjugal de uma antiga e discreta "moa decostumes fceis", que vive com um advogado e se comporta comoesposa respeitvel e fiel. No entanto, certo dia ela se entrega sem ra-zo aparente a um vagabundo de rua, depois de o haver provocado.O fato descoberto casualmente pelo advogado, segue-se uma rup-tura violenta que suscita na moa um desespero to sincero e pro-fundo, que as relaes se reatam, com a mesma dignidade de senti-mentos e atitudes de antes. O advogado morre e ela se conserya fiel sua memria, como viva saudosa de um grande e nico amor.

    Por que ento aquele ato inexplicvel? Impossvel saber. E qual ocomportamento que a exprime melhor: a fidelidade ou a transgres-so? Impossve determinar. Os atos e os sentimentos esto cercadospor um hao de absurdo, de gratuidade, que toma diffceis no ape-nas s avaliaes morais, mas as interpretaes psicolgicas. Algunsdecnios mais tarde, Freud mostraria a irnportncia fundamental doapso e dos comportamentos considerados ocasionais. Eles ocorremcom freqncia na obra de Machado de Assis, revelando ao leitoratento o senso proflrndo das contradies da alma.

    6, Pessoalmente, o que mais me atrai nos seus liraros um outro te-ma, diferente destes: a transformao do homem em objeto do ho-mem, que uma das madies ligadas falta de liberdade verdadeira,ecoumica e espiritual, Este tema e um dos demnios familiares da suaobra, desde as formas atenuadas do simples egosmo at os extremosdo sadismo e da pilhagern monetrria. A ele se iga a famosa teoria doHumanitismo, elaborada por um dos seus personagens, o filsofo )oa-quim Borba dos Santos, doido epor isso mesmo machadianamente l-cido, figurante secundrio em dois romances, um dos quais traz o seuapelido: Memrias pstumas de Brs Cubas e Quincas Borba.

    Os crticos, sobretudo Barreto Fiho, que melhor estudou o caso,interpretam o Humanitismo como stira ao Positivismo e em geralao Naturalismo filosfico do sculo XX, pincipalmente sob o aspec-to da teoria darwiniana da uta pela vida com sobrevivncia do maisapto. Mas, alm disso, notria uma conotao mais ampla, quetranscende a stira e v o homem como um ser devorador em cuja

    ESQUEM DE MACADO DE ASSIS

    dinmica a sobrevivncia do mais forte um episdio e um casoparticular. Essa devorao gera e surda tende a tansformar o homemem instrumento do homem, e sob este aspecto a obra de Machadose articula, muito mais do que poderia parecer primeira vista, comos conceitos de alienao e decorrente reificao da personalidade,dominantes no pensamento e na ctica marxista de nossos dias e jilustrados pela obra dos grandes realistas, homens to diferentesdele quanto Balzac e Zola.

    No romance Quircas Bor&c, um modesto professor primrio, Ru-biao, herda do filsofo Quincas Borba uma fortuna, com a condiode cuidar de seu cachorro, ao qual dera o prprio nome. Mas com odinheiro, que uma espcie de ouro maldito, como na lenda dos Ni-beungos, Rubio herda igualmente a loucura do amigo. A sua for-tuna se dissolve em ostentao e no sustento de parasitas; mas servesobretudo como capital para as especulaes comerciais de um arri-vista hbi, Cristiano Paha, por cuja mulher, "a bela Sofia", Rubiaose apaixona. O mor e a loucura surgem aqui, romanticamente, demos dadas; mas o tertius gaudens a ambio econmica, baixo-contnuo do romance, de que Rubio se tona um instrumento. Nofim, pobre e louco, ele morre abandonado; mas em compensao,como queria a filosofia do Humanitismo, Palha e Sofia esto ricos econsiderados, dentro da mais perfeita normalidade social, Os fracose os puros foram sutilmente manipulados como coisas e em seguidaso postos de lado pelo prprio mecanismo da narrativa, que oscospe de certo modo e se concentra nos triunfadores, acabando pordeixar no eitor uma dvida sarcstica e cheia de subentendidos: onome do livro designa o filsofo ou o cachorro, o homem ou o ani-mal, que condicionaram ambos o destino de Rubio? Este comeacomo simples homem, chega na sua loucura a julgar-se imperador eacaba como um pobre bicho, fustigado pela fome e a chuva, no mes-mo nvel que o seu cachorro.

    H um conto, A cAuse srcnrre, onde a relao devoradora de ho-mem a homem assume um cater de paadigma. Fortunato umsenhor frio e rico, que demonstra interesse pelo softimento, socor-rendo feridos, velando doentes com uma dedicao excepcional.

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  • ESQUEM DE MCHDO DE 55IS

    Casado,.j de meia-idade, bom para a mulher, mas ea manifestadiante dee um constrangimento que parece medo,

    O casal amigo de um jovem mdico, a quem Fortunato coDvencea fundar, de sociedade com ele, uma casa de sade, cujos capitais for-nece. Neli, presta assistncia constante aos doentes, com um interesseabsorvete que o leva a estudar anatomia pela vivisseco de gatos ecachorros. O barulho de dor que ests fazem abala os nervos delica-dos da mulher, que pede ao mdico para obter do marido a cessaodas experincias. J ento o convvio tinha despertado no rapaz umapaixero calada, pura, certamente correspondida, pela esposa do ami-go. O lnomento cruciante do conto a cena onde o mdico encontraa senhora de Fortunato apavorada e, numa outra sala, v este tortu-rar]do um rato de maneira espantosa e abjeta. Com uma das mos,segura um cordo atado ao rabo do animal, bairando-o a um pratocheio de lcoo inflamado, erguendo-o repetidamente para no ma-t-lo depressa; com a outra, vai cottando as patas a tesoura. A des-crio longa e terrvel, fora dos hbitos discretos e sintticos de Ma-chado de Assis, O mdico percebe ento o tipo de homem que tempor amigo: algum que encontra o maior prazer na dor alheia,

    Pouco depois a esposa piora e afinal morre. O marido demonstrauma dedicao extrema, como sempre, mas na fase final da agonia oque predomina o seu prazer com o espetculo. Na viglia fnebre,surpreende o mdico beiiando a testa do cadver e compreende tudo rnum relmpago de clera; mas o amigo rompe num pranto deses-perado e Fortunato, obseryando sem ser visto, "saboreou tranqiloessa exploso de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosa-mente longa".

    No difcil ver que, alm de tudo o que vem no plano ostensivo,este sdico transformou virtualmente a mulher e o amigo num paramoroso inibido pelo escrpulo, e com isto sofrendo constant-mente; e que ambos se tornam o instrumento supremo do seu prazernonstruoso, da sua atitude de manipuao de que o rato o sm-bolo, Of mce and men, poderamos dizer com um pouco de humornegro, para indicar que o homem, transfomado em instrumento dohomem, cai praticamente no nvel do animal violentado.

    Neste nvel que encontramos o Machado de Assis mais terrvel e l^ a jmais lcido, estendendo para a oganizao das relaes a sua mira-da desmistificadora. Se tivesse ficado no plano dos aforismos desen-cantados que fascinavam as pimeias geraes de cdticos; ou mes-mo no das situaes psicolgicas ambguasr que depois se tornaramo seu atrativo principal, talvez no tivesse sido mais do que um dos"heris da decadncia", de que fala Viana Moog. Mas, alm disso, hna sua obr um interesse mais largo, proyeniente do fato de haverincludo discretamente um estranho fio social na tela do seu relati-vismo. Pela sua obra toda h um senso profundo, nada document-rio, do sratus, do duelo dos sales, do movimento das camadas, dapotncia do dinheiro. O ganho, o lucro, o prestgio, a soberania dointeresse so molas dos seus personagens, aparecendo em Memriaspstumos de Brs Crbcq avultando em Esa e Jac, predominandoem Quincas Borba, sempre transformado em modos de ser e de fa-zer. E os mais desagradveis, os mais terrveis dos seus personagens,so homens de corte burgus impecvel, perfeitamente entrosadosnos rrores da sua classe. Sob este aspecto, interessante comparar aanormalidade essencial de Fortunato d'A causa sEcRT com a suaperfeita normalidade socia de proprietrio abastado e sbrio, quevive de rendas e do respeito coletivo. O senso machadiano dos sigi-los da alma se articula em muitos casos com uma compreenso igual-mente plofunda das estruturas sociais, que funcionam em sua obracom a mesma imanncia poderosa que Roger Bastide demonstrouhaver no caso da paisagem. E aos seus alienados no sentido psi-quitrico correspondem certas alienaes no sentido social e moral.

    Este escrito deveria chamar-se Eseus..ra DE uM cERTo MAcHDo DEAssrs, porque descreve sobretudo o escritor subterrneo (que Augus-to Meyer locaizou melhor do que ningum), visto em diversos planose referido a tendncias posteriores da literatura. H outros, inclusiveum Machado de Assis bastante anedtico e mesmo trivial, autor denumerosos contos cicunstanciais que no ultrapassam o nvel dacrnica nem o carter de passatempo. E ele que s vezes chega bemperto de um certo ar pelintra e uma ceta afetao constrangedora.

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    Mas este, graas a Deus, menos fieqente do que um outro aparen-tado com ele, engraado e engenhoso, movido por uma espcie deprazer narrativo que o leva a engendrar ocorrncias e tece compli-ces facilmente solveis. Este Machado de Assis despretensioso e debom humor constitui porventura o ponto de referncia dos demais,porque dele vem o tom, ocasional e reticente, digresivo e coloquial,da maioria dos seus contos e romances. Nele se manifesta o amor dafico pela fico, a percia em tecer histrias, que se aproxima da gra-tuidade determinativa do jogo. Deste autor habilidoso e divertidobrota o Machado de Assis focalizado aqui - numa pasagem insensivel que vai levando da quase-melancolia da Norrr or elurnarle dubiedade de DoN P^uL^, da indeciso perturbadora de DoraBENEDTTA, que sobe surpresa contundente d'^ sENHoR Do C^Lvo,j no portal de um mundo estranho, mostrando as transies quaseimperceptveis que unificam a diversidade do escritor.

    Isso dito para justificar um conselho final: no procuremos nasua obra uma coleo de aplogos nem uma galeria de tipos singu-lares. Procuremos sobretudo as situa@es fccionais que ele inventou.Tnto aquelas onde os destinos e os acontecimentos se organizm se-gundo uma espcie de encantamento gratuito, quanto as outras, ri-cas de significado em sua aparente simplicidade, manifestando, comuma enganadora neutralidade de tom, os conflitos essenciais do ho-mem consigo mesmo, com os outros homens, com as classes e os gru-pos. A viso resultante poderosa, como esta palestra no seria capazsequer de sugerir. O melhor que posso fazer aconselhar a cada umque esquea o que eu disse, compendiando os crticos, e abra direta-mente os livros de Machado de Assis.

    (r98)