camponeses brasileiros vol 1 nead

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em especial o papel histrico do campesinato. O contexto imediato deste debate dado pela efervescncia das Ligas Camponesas. Na segunda h os textos de Otvio Guilherme Velho, Octvio Ianni, Ciro Flamarion, Guillermo Palcios, Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, todos buscando compreender teoricamente o campesinato. Para isso, constroem conceitos e categorias analticas, o que resulta em uma viso mais clara das particularidades que envolvem trabalho e trabalhador rural, um sujeito social situado nos limites da escravido e da concentrao fundiria. Na terceira, Kalervo Oberg, Antonio Candido, Moacir Palmeira e Klaas Woortmann do seguimento a tal incurso terica, mas enfocando situaes concretas distintas de reproduo do campesinato brasileiro. E, por fim, fechando este volume, dois lderes das lutas camponesas, Thomas Davatz e Francisco Julio, do seu testemunho.

Desafiando uma tradio historiogrfica ao colocar as formas de vida camponesas como elemento novo na paisagem brasileira, este livro rene textos clssicos sobre a realidade do mundo rural. Trabalho de autores j clssicos que pensam a realidade do trabalhador do campo de modo plural e estimulam o leitor a aprofundar seu conhecimento dos debates conceituais sobre a natureza do campesinato nacional.

Camponeses brasileiros

A coletnea Histria Social do Campesinato foi pensada para oferecer uma compreenso mais ampla do mundo cultural, poltico, econmico e social em que o campons produz e se reproduz. Neste volume, esto reunidos catorze autores que mostraram ao pas ser possvel pensar no trabalhador do campo de modo plural, refutando a imagem de atraso que era (e ainda ) geralmente associada ao campons. Trata-se de textos fundamentais da Sociologia, Geografia, Histria e Antropologia, campos disciplinares diversos que aqui se integram na anlise das mltiplas caractersticas e experincias do campesinato brasileiro. Textos clssicos, e muitas vezes inacessveis, que aqui formam um panorama abrangente das temticas trabalhadas nos anos 60 e 70, momento importante de redescoberta dos camponeses em todo o mundo. Na primeira parte esto os trabalhos de Alberto Passos Guimares, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Manuel Correia de Andrade, autores que colocaram no centro de suas reflexes sobre a natureza e as perspectivas da sociedade brasileira a configurao das classes sociais,

Camponeses brasileiros vol. I Welch, Malagodi, Cavalcanti e Wanderley (Orgs.) Camponeses brasileiros vol. I Welch, Malagodi, Cavalcanti e Wanderley (Orgs.) Camponeses brasileiros vol. I Welch, Malagodi, Cavalcanti e Wanderley (Orgs.) Camponeses brasileiros vol. I Welch, Malagodi, Cavalcanti e Wanderley (Orgs.) Camponeses brasileiros vol. I Welch, Malagodi, Cavalcanti e Wanderley (Orgs.) Camponeses brasileiros vol. I Welch, Malagodi, Cavalcanti e Wanderley (Orgs.)

vol. ILeituras e interpretaes clssicasClifford A. Welch, Edgard Malagodi, Josefa S. B. Cavalcanti, Maria de Nazareth B. Wanderley (Orgs.)

Coleo Histria Social do Campesinato no Brasil

NEAD

UNESP

Camponeses brasileiros

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FUNDAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Voorwald Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jzio Hernani Bomm Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreira Conselho Editorial Acadmico Cludio Antonio Rabello Coelho Jos Roberto Ernandes Luiz Gonzaga Marchezan Maria do Rosrio Longo Mortatti Maria Encarnao Beltro Sposito Mario Fernando Bolognesi Paulo Csar Corra Borges Roberto Andr Kraenkel Srgio Vicente Motta Editores-Assistentes Anderson Nobara Arlete Zebber Christiane Gradvohl Colas

LUIZ INCIO LULA DA SILVA Presidente da Repblica GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio DANIEL MAIA Secretrio-executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ADONIRAM SANCHES PERACI Secretrio de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretrio de Reordenamento Agrrio JOS HUMBERTO OLIVEIRA Secretrio de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Coordenador-geral do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACRIO Coordenador-executivo do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA) www.mda.gov.br NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifcio Sarkis Bloco D loja 10 sala S2 CEP: 70.040-910 Braslia/DF Tel.: (61) 2020-0189 www.nead.org.br PCT MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel

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CLIFFORD ANDREW WELCH EDGARD MALAGODI JOSEFA SALETE BARBOSA CAVALCANTI MARIA DE NAZARETH B. WANDERLEY (Orgs.)

Camponeses brasileirosLeituras e interpretaes clssicasvolume 1

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2009 Editora UNESP Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU) Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C198 v.1 Camponeses brasileiros: leituras e interpretaes clssicas, v.1/ organizao Clifford Andrew Welch... [et al.]. So Paulo: Editora UNESP; Braslia, DF: Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural, 2009. 336p. (Histria social do campesinato brasileiro) ISBN 978-85-7139-954-9 (Editora UNESP) ISBN 978-85-60548-51-4 (NEAD) 1. Camponeses Brasil Histria. 2. Camponeses Brasil Condies sociais. 3. Camponeses Brasil Atividades polticas. 4. Brasil Condies rurais. 5. Posse da terra Brasil. 6. Movimentos sociais rurais Brasil Histria. I. Welch, Clifford Andrew. II. Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural. III. Srie. 09-3675. CDD: 305.5633 CDU: 316.343

Editora aliada:

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Histria Social do Campesinato no Brasil Conselho Editorial NacionalMembros efetivos Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Universidade de So Paulo) Bernardo Manano Fernandes (UNESP, campus de Presidente Prudente) Clifford Andrew Welch (GVSU & UNESP, campus de Presidente Prudente) Delma Pessanha Neves (Universidade Federal Fluminense) Edgard Malagodi (Universidade Federal de Campina Grande) Emilia Pietrafesa de Godoi (Universidade Estadual de Campinas) Jean Hebette (Universidade Federal do Par) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco) Leonilde Servolo de Medeiros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA) Mrcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP, campus de Araraquara) Maria Ignez Paulilo (Universidade Federal de Santa Catarina) Marilda Menezes (Universidade Federal de Campina Grande) Miguel Carter (American University, Washington DC) Paulo Zarth (Uniju) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Par) Sueli Pereira Castro (Universidade Federal de Mato Grosso) Wendy Wolford (Yale University) Coordenao Horcio Martins de Carvalho Mrcia Motta Paulo Zarth

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SUMRIO

APRESENTAO COLEO 9 PREFCIO 19 INTRODUO ESTUDOS CLSSICOS BRASILEIROS SOBRE O CAMPESINATO 23Clifford Andrew Welch Edgard Malagodi Josefa Salete Barbosa Cavalcanti Maria de Nazareth Baudel Wanderley

PARTE I O DEBATE NOS ANOS 1960 1 Formao da pequena propriedade: intrusos e posseiros (1963) 45Alberto Passos Guimares

2 Uma categoria rural esquecida (1963) 57Maria Isaura Pereira de Queiroz

3 As tentativas de organizao das massas rurais As Ligas Camponesas e a sindicalizao dos trabalhadores do campo (1963) 73Manuel Correia de Andrade

PARTE II OLHARES TERICOS 4 O conceito de campons e sua aplicao anlise do meio rural brasileiro (1969) 89Otvio Guilherme A. C. Velho

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Sumrio

5 A brecha camponesa no sistema escravista (1979) 97Ciro Flamarion S. Cardoso

6 A questo da agricultura de subsistncia (1981) 117 Maria Yedda Linhares & Francisco Carlos Teixeira da Silva 7 A utopia camponesa (1986) 135Octvio Ianni

8 Campesinato e escravido: uma proposta de periodizao para a histria dos cultivadores pobres livres no Nordeste oriental do Brasil: 1700-1875 (1987) 145Guillermo Palacios

PARTE III MODOS DE VIDA E REPRODUO 9 O campnio marginal no Brasil rural (1957) 181Kalervo Oberg

10 As formas de solidariedade (1964) 193Antonio Candido

11 Casa e trabalho: nota sobre as relaes sociais na plantation tradicional (1977) 203Moacir Palmeira

12 Migrao, famlia e campesinato (1990) 217Klaas Woortmann

PARTE IV LUTAS CAMPONESAS 13 O levante dos colonos contra seus opressores (1858) 241Thomas Davatz

14 Que so as Ligas Camponesas? (1962) 271Francisco Julio

Sobre os autores 299

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APRESENTAO COLEO

Por uma recorrente viso linear e evolutiva dos processos histricos, as formas de vida social tendem a ser pensadas se sucedendo no tempo. Em cada etapa consecutiva, apenas so exaltados seus principais protagonistas, isto , os protagonistas diretos de suas contradies principais. Os demais atores sociais seriam, em concluso, os que, por alguma razo, se atrasaram para sair de cena. O campesinato foi freqentemente visto dessa forma, como um resduo. No caso particular do Brasil, a esta concepo se acrescenta outra que, tendo como modelo as formas camponesas europias medievais, aqui no reconhece a presena histrica do campesinato. A sociedade brasileira seria ento congurada pela polarizada relao senhorescravo e, posteriormente, capitaltrabalho. Ora, nos atuais embates no campo de construo de projetos concorrentes de reordenao social, a condio camponesa vem sendo socialmente reconhecida como uma forma ecaz e legtima de se apropriar de recursos produtivos. O que entendemos por campesinato? So diversas as possibilidades de denio conceitual do termo. Cada disciplina tende a acentuar perspectivas especcas e a destacar um ou outro de seus aspectos constitutivos. Da mesma forma, so diversos os contextos histricos nos quais o campesinato est presente nas sociedades. Todavia, h reconhecimento de princpios mnimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadmico quanto no poltico, dialogar em torno de reexes capazes de demonstrar a presena da forma ou condio camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivao ou de situaes sociais. Em termos gerais, podemos armar que o campesinato, como categoria analtica e histrica, constitudo por poliprodutores, integrados ao jogo de foras sociais do mundo contemporneo. Para a construo da histria social do campesinato no Brasil, a categoria ser reconhecida pela produo, em modo e grau variveis, para o mercado, termo que abrange, guardadas as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados9

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Apresentao coleo

em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relao com o mercado caracterstica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condies dessa produo guardam especicidades que se fundamentam na alocao ou no recrutamento de mo-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condio de existncia desses trabalhadores e de seu patrimnio material, produtivo e sociocultural, varivel segundo sua capacidade produtiva (composio e tamanho da famlia, ciclo de vida do grupo domstico, relao entre composio de unidade de produo e unidade de consumo). Por esses termos, a forma de alocao dos trabalhadores tambm incorpora referncias de gesto produtiva, segundo valores sociais reconhecidos como orientadores das alternativas de reproduo familiar, condio da qual decorrem modos de gerir a herana, a sucesso, a socializao dos lhos, a construo de diferenciados projetos de insero das geraes. O campesinato emerge associadamente ao processo de seu reconhecimento poltico, ora negativo, ora positivo. Por tais circunstncias, a questo poltica, constituda para o reconhecimento social, enquadrou tal segmento de produtores sob a perspectiva de sua capacidade adaptativa a diferentes formas econmicas dominantes, ora pensadas pela permanncia, ora por seu imediato ou gradual desaparecimento. Como em muitos outros casos de enquadramento social e poltico, uma categoria de auto-identicao, portanto contextual, produto de investimentos de grupos especficos, desloca-se, sob emprstimo e (re)semantizao, para os campos poltico e acadmico e, nesses universos sociais, sob o carter de signo de comportamentos especialmente htero-atribudos ou sob o carter de conceito, apresenta-se como generalizvel. Vrios autores, retratando a coexistncia do campesinato em formaes socioeconmicas diversas, j destacaram que o reconhecimento dessa nominao, atribuda para efeitos de investimentos polticos ou para reconhecimento de caractersticas comuns, s pode ser compreendido como conceito, cujos signicados denem princpios gerais abstratos, motivo pelo qual podem iluminar a compreenso de tantos casos particulares. Para que a forma camponesa seja reconhecida, no basta considerar a especicidade da organizao interna unidade de produo e famlia trabalhadora e gestora dos meios de produo alocados. Todavia, essa distino analiticamente fundamental para diferenciar os modos de existncia dos camponeses dos de outros trabalhadores (urbanos e rurais), que no operam produtivamente sob tais princpios. Percebendo-se por essa distino de modos de existncia, muitos deles se encontram mobilizados politicamente para lutar pela objetivao daquela condio de vida e produo (camponesa). Em quaisquer das alternativas, impe-se a compreenso mais ampla do mundo cultural, poltico, econmico e social em que o campons produz e se reproduz. Da coexistncia com outros agentes sociais, o campons se10

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constitui como categoria poltica, reconhecendo-se pela possibilidade de referncia identitria e de organizao social, isto , em luta por objetivos comuns ou, mediante a luta, tornados comuns e projetivos. A esse respeito, a construo da histria social do campesinato, como de outras categorias socioeconmicas, deve romper com a primazia do econmico e privilegiar os aspectos ligados cultura. Ao incorporar as mltiplas dimenses da prtica dos agentes, destacamos o papel da experincia na compreenso e explicitao poltica das contradies do processo histrico. Essas contradies revelam conitos entre normas e regras que referenciam modos distintos de viver, em plano local ou ocupacional, colocando em questo os meios que institucionalizam formas de dominao da sociedade inclusiva. Tais postulados sero demonstrados nos diversos artigos desta coletnea, voltada para registros da histria social do campesinato brasileiro. A prtica faz aparecer uma innidade de possibilidades e arranjos, vividos at mesmo por um mesmo grupo. Quanto mais se avana na pesquisa e no reconhecimento da organizao poltica dos que objetivam a condio camponesa, mais se consolidam a importncia e a amplitude do nmero de agricultores, coletores, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros, nessa posio social ou que investem para essa conquista. A diversidade da condio camponesa por ns considerada inclui os proprietrios e os posseiros de terras pblicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das orestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrcola, castanheiros, quebradeiras de coco-babau, aaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto at os pequenos arrendatrios nocapitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cesso; quilombolas e parcelas dos povos indgenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do pas; os agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrria. No caso da formao da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantm relaes de interdependncia, fundamentais reproduo social nas condies hierrquicas dominantes. Assim, a ttulo de exemplo, ao lado ou no interior das grandes fazendas de produo de cana-de-acar, algodo e caf, havia a incorporao de formas de imobilizao de fora de trabalho ou de atrao de trabalho livre e relativamente autnomo, fundamentadas na imposio tcnica do uso de trabalho basicamente manual e de trabalhadores familiares, isto , membros da famlia do trabalhador alocado como responsvel pela equipe. Esses fundamentais agentes camponeses agricultores apareciam sob designao de colonos, arrendatrios, parceiros, agregados, moradores e at sitiantes, termos que no podem ser compreendidos sem a articulao11

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Apresentao coleo

com a grande produo agroindustrial e pastoril. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que, ao lado de donatrios e sesmeiros, apareciam os foreiros, os posseiros ou designando a condio de coadjuvante menos valorizada nesse sistema de posies hierrquicas os intrusos ou invasores, os posseiros criminosos etc. Os textos da histria geral do Brasil, nos captulos que exaltam os feitos dos agentes envolvidos nos reconhecidos movimentos de entradas e bandeiras, trazem tona a formao de pequenos povoados de agricultores relativamente autrquicos. Posteriormente, tais agentes produtivos sero celebrados pelo papel no abastecimento dos tropeiros que deslocavam metais e pedras preciosas, mas tambm outros produtos passveis de exportao e de abastecimento da populao das cidades ou das vilas porturias. Desse modo, o campesinato, forma poltica e acadmica de reconhecimento conceitual de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da histria do Brasil. Em todas as expresses de suas lutas sociais, seja de conquista de espao e reconhecimento, seja de resistncia s ameaas de destruio, ao longo do tempo e em espaos diferenciados, prevalece um trao comum que as dene como lutas pela condio de protagonistas dos processos sociais. Para escrever sobre essa histria preciso, portanto, antes de tudo, reetir sobre a impositiva produo dessa amnsia social ou dessa perspectiva unidimensional e essencializada, que apaga a presena do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando com tradio inventada a noo do carter cordato e pacco do homem do campo. Ou fazendo emergir a construo de uma caricatura esgarada do pobre coitado, isolado em grande solido e distanciamento da cultura ocial, analfabeto, mal-alimentado. Ora, tais traos aviltantes, para olhares que os tomassem como expressivos da condio de vida e no do sujeito social, revelavam as bases da explorao e da submisso em que viviam, seja como agentes fundamentais ou complementares do processo produtivo da atividade agroindustrial e exportadora. Estimulados a coexistirem internamente, ao lado ou ao largo da grande produo, os agentes constitudos na condio camponesa no tinham reconhecidas suas formas de apropriao dos recursos produtivos. Assim sendo, so recorrentemente questionados e obrigados a se deslocar para se reconstituir, sob as mesmas condies, em reas novamente perifricas. Da mesma forma, em outras circunstncias, so submetidos a regras de coexistncia consentidas e por vezes imediatamente questionadas, dada a exacerbao das posies hierarquizadas ou das desigualdades inerentes s condies de coexistncia. A presena dos camponeses , pois, postulada pela ambigidade e desqualicao, quando os recursos por eles apropriados se tornavam objeto de cobia. Entendemos, no entanto, que, sob processos relativamente12

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equivalentes, esses agentes elaboraram, como trao comum de sua presena social, projetos de existncia fundamentados em regras legtimas e legais, princpios fundamentais para a construo de um thos e de regras ticas, orientadores de seu modo de existncia e coexistncia. Sob tais circunstncias, a constituio da condio camponesa torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepo de justia, entendida aqui no como uma abstrao terica sobre o direito aos recursos produtivos, e sim como uma experincia baseada em modos de coexistncia: sob formas de comunidade camponesa; na labuta diria pela sobrevivncia; na relao com a natureza; e nas prticas costumeiras para a manuteno e a reproduo de um modo de vida compatvel com a ordem social, institucionalizada por aqueles que se colocam socialmente como seus opressores. Levando em considerao o conjunto de fatores que vimos destacando, podemos caracterizar alguns elementos constitutivos de certa tradio do campesinato brasileiro, isto , como expresso da existncia permitida sob determinadas constries e provisoriedades e sob certos modos de negociao poltica. Essa negociao no exclui resistncias, imposies contratuais, legais ou consuetudinrias, ou questionamentos jurdicos, que revelam e rearmam a capacidade de adaptao s condies da produo econmica dominante. Menos do que um campesinato de constituio tradicional, no sentido da profundidade temporal da construo de um patrimnio material e familiar, vemos se institucionalizar, como elemento distintivo, um patrimnio cultural inscrito nas estratgias do aprendizado da mobilidade social e espacial. Estratgias que visam, entre outros objetivos, busca do acesso aos recursos produtivos para a reproduo familiar e a explorao de alternativas, oferecidas pelas experincias particulares ou ociais de incorporao de reas improdutivas ou fracamente integradas aos mercados. Os camponeses instauraram, na formao social brasileira, em situaes diversas e singulares e mediante resistncias de intensidades variadas, uma forma de acesso livre e autnomo aos recursos da terra, da oresta e das guas, cuja legitimidade por eles rearmada no tempo. Eles investiram na legitimidade desses mecanismos de acesso e apropriao, pela demonstrao do valor de modos de vida decorrentes da forma de existncia em vida familiar, vicinal e comunitria. A produo estrito senso se encontra, assim, articulada aos valores da sociabilidade e da reproduo da famlia, do parentesco, da vizinhana e da construo poltica de um ns que se contrape ou se rearma por projetos comuns de existncia e coexistncia sociais. O modo de vida, assim estilizado para valorizar formas de apropriao, redistribuio e consumo de bens materiais e sociais, se apresenta, de fato, como um valor de referncia, moralidade que se contrape aos modos de explorao e de desqualicao, que tambm foram sendo reproduzidos no decorrer da existncia da posio camponesa na sociedade brasileira.13

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As formas exacerbadas de existncia sob desigualdades socioeconmicas se expressam, sobretudo, na explorao da fora de trabalho coletiva dos membros da famlia e na submisso aos intermedirios da comercializao, que se associam a outros agentes dominantes para produzir um endividamento antecipado e expropriador. Essas formas de subordinao, que pem em questo as possibilidades de reproduo da condio camponesa, contrapem-se avaliao de perenizadas experincias positivas de construo da condio camponesa. Um exemplo de experincias positivas a institucionalizada pelos sitiantes, dotados de autonomia para se agregarem por vida coletiva em bairros rurais. No contexto de lutas sociais, os trabalhadores foram construindo um sistema de crenas partilhadas e inscritas em seu cotidiano de lutas pela sobrevivncia e reproduo social. Essas lutas so orientadas pela denio do acesso aos recursos produtivos, de forma legal e autnoma, como fator fundamental para sua constituio como agente produtivo imediato, isto , contraposto ao cativo ou subjugado no interior das fazendas e, por tal razo, dispondo de relativa autonomia. Nos termos dessa tradio, a liberdade um valor para expandir uma potencialidade, ou seja, capacidade para projetar o futuro para os lhos e para socialmente se valorizar como portador de dignidade social. Na construo da formao social brasileira, o modo de existir reconhecido pela forma camponesa, menos que um peso da tradio da estabilidade e de longas genealogias, como ocorre, por exemplo, em formaes sociais europias, uma idia-valor, orientadora de condutas e de modos de agregao familiar ou grupal. Na qualidade de valor, um legado transmitido entre geraes, reatualizado e contextualizado a cada nova gerao que investe nessa adeso poltica. O peso desse legado, quando no compreendido, leva aos estranhamentos muito comuns em relao persistncia da luta pelo acesso aos recursos produtivos e mesmo em relao ao deslocamento de trabalhadores denidos como urbanos, que engrossam movimentos de sua conquista. As possibilidades de existncia que a condio camponesa permite vo se contrapor, em parte por equivalncia comparativa, s condies de explorao de trabalhadores da indstria, do comrcio e de servios. Esses traos, sempre presentes porque realimentados como um legado de memrias familiares e coletivas, vo atribuir sentido s constantes mobilidades de trabalhadores. Os deslocamentos justicam-se pela busca de espaos onde haja oportunidade de pr em prtica modos de produzir e de existncia, desde que fundamentados pela gesto autnoma dos fatores produtivos, das condies e produtos do trabalho e da orientao produtiva. Levando em conta tais elementos, denidos como constitutivos de uma tradio e alargando a compreenso da diversidade de situaes, rearmamos a presena do campesinato como constitutiva de toda a histria do Brasil. Tais produtores estiveram vinculados explorao colonial,14

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integrando-se a mercados locais ou a distncia; rearmaram-se como posio desejada no decorrer da transio do trabalho escravo para o trabalho livre; abasteceram os processos de agroindustrializao de produtos destinados exportao; e, entre outras tantas situaes, por mais de um sculo, vm ocupando a Amaznia. Atualmente, apresentam-se como um dos principais atores da cena poltica, constituda para tornar possvel a construo de sociedade erguida sobre bases mais igualitrias, capazes, ento, de fundamentar os princpios democrticos de coexistncia social e poltica. Portanto, as negociaes em torno das alternativas de ocupao do espao fsico e social marcaram e impregnaram a proposio de modos de vida orientados por valores cuja elaborao tornou possvel a legitimidade da coexistncia poltica e cultural. Modos de vida que tambm rearmam o direito luta pela autonomia, emblematizada pela clebre referncia vida na fartura. Ora, tudo isso, relembramos, fora construdo no contexto de imposio de formas de dominao objetivadas com base na grande produo. Por esse motivo, a vida segundo a lgica expropriatria objetivada na grande propriedade foi concebida como destruidora da dignidade social. A honra estava (assim e inclusive) pautada pela defesa do acesso alimentao, todavia em condies socialmente concebidas como adequadas reproduo saudvel do trabalhador e dos membros de sua famlia. Dessa forma, no Brasil, os produtores agregados pela forma de organizao camponesa esto presentes como atores sociais que participaram e participam da construo da sociedade nacional. Esse reconhecimento no se funda to-somente em uma dimenso politizada de defesa dessa visibilidade social. Ele tambm se explica pelos princpios de constituio das formas hegemnicas de organizao da produo social. Destacaremos trs dimenses desse protagonismo. Em primeiro lugar, o campesinato representa um plo de uma das mais importantes contradies do capital no Brasil, que consiste em sua incapacidade de se libertar da propriedade fundiria. O signicado que a propriedade da terra tem at hoje, como um elemento que ao mesmo tempo torna vivel e fragiliza a reproduo do capital, gera uma polarizao (de classe) entre o proprietrio concentrador de terras (terras improdutivas) e aquele que no tem terras sucientes. Desse fato decorrem duas conseqncias principais. Por um lado, essa contradio no residual na sociedade brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro, a principal luta dos camponeses pela construo de seu patrimnio, condio sine qua non de sua existncia. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos momentos e sob as mais variadas formas. Ela tem um carter eminentemente poltico e corresponde ao que se costuma chamar o movimento campons. Assim, a luta pela terra e pelo acesso a outros recursos produtivos no assume apenas a dimenso mais visvel das lutas camponesas. Ela se processa igualmente em um nvel menos perceptvel, por outras formas de resistncia15

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Apresentao coleo

que dizem respeito s estratgias implementadas pelos camponeses para trabalhar, mesmo em condies to adversas, e assegurar a reproduo da famlia. Essa dimenso tem, de fato, menor reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia. Ao se armar historicamente essa dimenso, importante ressaltar a capacidade dos camponeses de formular um projeto de vida, de resistir s circunstncias nas quais esto inseridos e de construir uma forma de integrao sociedade. Essas so prticas que tm um carter inovador ou que revelam grande capacidade de adaptao e de conquistas de espaos sociais que lhes so historicamente inacessveis. Consideramos necessrio registrar e reconhecer as vitrias, por mais invisveis que sejam. Por ltimo, h uma terceira dimenso, tambm pouco reconhecida, at mesmo entre os acadmicos, que consiste na valorizao da forma de produzir do campons. Esta se traduz pela adoo de prticas produtivas (diversicao, intensicao etc.), formas de uso da terra, relaes com os recursos naturais etc. Formam-se, assim, os contornos de um saber especco que se produz e se reproduz contextualmente. claro que o campesinato no se esgota na dimenso de um mtier prossional, nem a ela corresponde um modelo imutvel, incapaz de assimilar mudanas, mas imprescindvel para que se possa compreender seu lugar nas sociedades modernas. Sua competncia, na melhor das hipteses, um trunfo para o desenvolvimento de uma outra agricultura ou para a perseguio da sustentabilidade ambiental e social como valor. E, na pior das hipteses (para no idealizar a realidade), um potencial que poderia ser estimulado na mesma direo. No sem conseqncia que sua existncia seja hoje to exaltada como um dos pilares da luta pela reconstituio dos inerentes princpios de reproduo da natureza, to subsumidos que estiveram e continuam estando a uma racionalidade tcnica, em certos casos exagerada pela crena em uma articializao dos recursos naturais reproduzidos em laboratrios e empresas industriais. Ora, os princpios de constituio e expanso do capitalismo desconhecem e desqualicam essa competncia. Do ponto de vista poltico, a negao dessa dimenso, tanto direita (que defende a grande propriedade como a nica forma moderna ou modernizvel) quanto esquerda (que terminou enfatizando apenas a dimenso poltica da luta pela terra), tem como conseqncia a negao do campons como agricultor. As polticas agrcolas chamadas compensatrias s reforam a viso discriminadora. Em concluso, reiteramos, por um lado, a universalidade da presena do campesinato, que abarca os diversos espaos e os diferenciados tempos. E tambm, por outro, a variedade de existncias contextuais, visto que essa variedade s indica a valorizada adaptabilidade dos agentes e dos princpios abrangentes de constituio da forma camponesa. Portanto, mesmo que corresponda revalorizao de uma tradio (patrimnio de valores institucionalizados nas memrias e na projeo social), a reproduo do campesinato nas sociedades contemporneas um fato social do mundo16

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moderno, e no resqucio do passado. Por essa perspectiva, ultrapassa-se a velha e surrada concepo unilinear da inexorvel decomposio do campesinato. Como os processos histricos tm demonstrado, ela no tendncia geral ou lei inevitvel. Em vez dessa concepo, que, rearmando a substituio das classes fundamentais, augura (e at vaticina) o m do campesinato, escolhemos pensar e registrar as mltiplas alternativas, resultado de conquistas e resistncias de atores sociais que se referenciam a um modo de produzir e viver coexistente com um mundo moderno. Entrementes, nesse mesmo mundo, cujos analistas vm acenando (e, por que no, tambm vaticinando) com o desemprego em massa como princpio de constituio econmica, em que a diversidade cultural rearmada para fazer frente a uma vangloriada homogeneizao poltica e cultural, que os camponeses se reorganizam em luta. Por essa conduta clamam exatamente pela manuteno da autonomia relativa, condio que o controle dos fatores de produo e da gesto do trabalho pode oferecer. Conselho Editorial

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PREFCIO

Apresentamos aos leitores especialmente aos militantes camponeses, aos interessados e aos estudiosos da questo camponesa no Brasil uma obra que o resultado de um fantstico esforo intelectual e coletivo. A elaborao da Histria Social do Campesinato no Brasil envolveu grande nmero de estudiosos e pesquisadores dos mais variados pontos do pas, num esforo conjunto, planejado e articulado, que resulta agora na publicao de dez volumes retratando parte da histria, resistncias, lutas, expresses, diversidades, utopias, teorias explicativas, enm, as vrias faces e a trajetria histrica do campesinato brasileiro. A idia de organizar uma Histria Social do Campesinato no Brasil aorou no m de 2003, durante os estudos e os debates para a elaborao de estratgias de desenvolvimento do campesinato no Brasil que vinham sendo realizados desde meados desse ano por iniciativa do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), com envolvimento, em seguida, da Via Campesina Brasil, composta, alm de pelo prprio MPA, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), pela Comisso Pastoral da Terra (CPT), pela Pastoral da Juventude Rural (PJR), pelo Conselho Indigenista Missionrio (Cimi) e pela Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab). Essa idia foi ganhando corpo quando se envolveram, primeiro, o pesquisador Horcio Martins de Carvalho e os pesquisadores Delma Pessanha Neves, Mrcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonalvez, que decidiram, em reunio nas dependncias da Universidade Federal Fluminense (UFF), no incio de 2004, com dirigentes da Via Campesina, lanar o desao a outros tantos que se dedicam ao tema no Brasil. O resultado foi o engajamento de grande nmero de pesquisadores, todos contribuindo de maneira voluntria. Foram consultadas cerca de duas centenas de pesquisadores, professores e tcnicos para vericar se a pretenso de elaborar uma Histria Social do19

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Campesinato no Brasil tinha sentido e pertinncia. A idia foi generosamente aceita, um Conselho Editorial foi constitudo, muitas reunies foram realizadas, os textos foram redigidos e o resultado a publicao destes dez volumes da Coleo Histria Social do Campesinato no Brasil. Nesta Coleo apresentamos diversas leituras sobre a histria social do campesinato no Brasil. Nossa preocupao com os estudos sobre o campesinato se explica pelo fato de, na ltima dcada, ter havido um avano dos trabalhos que promoveram os mtodos do ajuste estrutural do campo s polticas neoliberais. Nessa perspectiva, a realidade do campo foi parcializada de acordo com os interesses das polticas das agncias multilaterais que passaram a nanciar fortemente a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura. Esses interesses pautaram, em grande medida, as pesquisas das universidades e determinaram os mtodos e as metodologias de pesquisa com base em um referencial terico de consenso para o desenvolvimento da agricultura capitalista. Desse ponto de vista, o campesinato tornou-se um objeto que necessita se adequar ao ajuste estrutural para que uma pequena parte possa sobreviver ao intenso processo de explorao e expropriao do capitalismo. Poucos foram os grupos de pesquisa que mantiveram uma conduta autnoma e crtica a essa viso de mundo em que o capitalismo compreendido como totalidade e m de todas as coisas. Nesse princpio de sculo, o conhecimento ainda mais relevante como condio de resistncia, interpretao e explicao dos processos socioterritoriais. Portanto, control-lo, determin-lo, limit-lo, ajust-lo e regul-lo so condies de dominao. Para criar um espao em que se possa pensar o campesinato na histria a partir de sua diversidade de experincias e lutas, a Via Campesina estendeu o convite a pesquisadores de vrias reas do conhecimento. Quase uma centena de cientistas responderam positivamente nossa proposta de criar uma coleo sobre a histria do campesinato brasileiro. Igualmente importante foi a resposta positiva da maior parte dos estudiosos convidada para publicar seus artigos, contribuindo com uma leitura do campesinato como sujeito histrico. O campesinato um dos principais protagonistas da histria da humanidade. Todavia, por numerosas vezes, em diversas situaes, foram empreendidos esforos para apag-lo da histria. Esses apagamentos ocorrem de tempos em tempos e de duas maneiras: pela execuo de polticas para expropri-lo de seus territrios e pela formulao de teorias para exclu-lo da histria, atribuindo-lhe outros nomes a m de regular sua rebeldia. Por tudo isso, ao publicar esta importante obra, em nosso entender, de flego e profundidade, queremos fazer quatro singelos convites.20

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Convite Leitura Esta obra merece ser lida pela riqueza de informaes, pela abrangncia com que aborda o tema e pela importncia da histria social do campesinato para compreender o Brasil. Convite ao Estudo Alm da mera leitura, uma obra que deve ser estudada. preciso que sobre ela nos debrucemos e reitamos para conhecer esse tema em profundidade, quer em escolas, seminrios, grupos de estudo, quer individualmente. Esta Coleo um desao, pois retrata uma realidade que, aqueles que estiverem comprometidos em entender o Brasil para transform-lo, precisam conhecer profundamente. Convite Pesquisa Esta obra, composta de dez volumes, fruto e resultado de muita disciplinada e dedicada pesquisa. , portanto, desao a mais investigaes e a que outros mais se dediquem a esses temas. Embora uma obra vasta, com certeza mais abre do que encerra perspectivas de novos estudos, sob novos ngulos, sobre aspectos insucientemente abordados, sobre realidades e histrias no visibilizadas, com enfoques diferenciados. H muito que desentranhar da rica e variada histria social do campesinato brasileiro, e os autores desta obra sentir-se-o imensamente realizados se muitas, rigorosas, profundas e novas pesquisas surgirem estimuladas por essa sua importante iniciativa. Convite ao Debate Esta no uma obra de doutrina. E mesmo as doutrinas devem ser expostas ao debate e ao contraditrio. Quanto mais uma obra sobre a histria. Convidamos ao debate dos textos, mas, alm disso, ao debate sobre o sujeito social do qual a Coleo se ocupa: o campesinato e sua trajetria ao longo da histria do Brasil. E que esse no seja um debate estril ou esterilizante que se perde nos meandros da polmica pela polmica, mas que gere aes na sociedade, nas academias, nos centros de pesquisas e nas polticas de Estado em relao aos camponeses e ao mundo que os circunda e no qual se fazem sujeitos histricos. A Via Campesina do Brasil reconhece e agradece profundamente o trabalho rduo e voluntrio dos membros do Conselho Editorial e de todos os envolvidos no projeto. Sem o desprendimento e o zelo desses professores, sem essa esperana renovada a cada dia pelas mais distintas formas e motivos, sem a acuidade acadmica, o cuidado poltico e a generosidade21

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de todos os envolvidos no teramos alcanado os resultados previstos. De modo especial nosso reconhecimento ao professor Horcio Martins de Carvalho. Agradecemos tambm ao Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (Nead), do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. Ao promover estudos e pesquisas sobre o universo rural brasileiro o Nead viabilizou, com a Editora da UNESP, a publicao desta Coleo. A Via Campesina experimenta a satisfao do dever cumprido por ter participado desta importante iniciativa, desejando que se reproduza, se multiplique e gere frutos de conscincia, organizao e lutas nas bases camponesas em todo o territrio nacional. Via Campesina do Brasil agosto de 2008.

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INTRODUOESTUDOS CLSSICOSBRASILEIROS SOBRE O CAMPESINATO

Este volume da Coletnea Histria Social do Campesinato tem como objetivo apresentar alguns dos autores que, no Brasil, produziram obras relevantes sobre o campons. Ele visa a estimular o leitor a aprofundar seu conhecimento acerca dos debates conceituais sobre a natureza do campesinato brasileiro. As leituras selecionadas do conta das temticas que surgiram, principalmente a partir dos anos 1960 e 1970, num cenrio nacional e internacional, que registrava um movimento de redescoberta de camponeses. Esses camponeses, como cultivadores comprometidos com uma forma particular de tratar o solo, produzir alimentos e garantir o sustento de suas famlias e a reproduo de trabalhadores, segundo uma cultura tpica dos pequenos grupos e modos de vida, vieram a ser resignicados, em seu conjunto, como uma classe. A situao e a condio do campesinato, no entanto, estiveram quase sempre em contestao, porque o modelo de desenvolvimento no qual se inspiraram reformistas da poca parecia no contemplar a presena de uma classe portadora dessas caractersticas. A polarizao entre proletariado e burguesia, decorrente do modelo, deixava pouca margem a outras interpretaes, de contedo mais emprico, que revelassem a presena de classe ou modos de produo camponeses. O campesinato, uma categoria esquecida, espria, em processo de diferenciao social, em direo a uma das classes polares do capitalismo, era o sinnimo do atraso, da fragilidade poltica e da dependncia; acrescia-se a essas fragilidades a noo da inecincia econmica, tcnica, resultante do seu tradicionalismo e averso ao risco. Esse quadro amplo do lugar dos camponeses na sociedade de classes parecia denir a sorte desses habitantes do campo: a pouca visibilidade, uma morte constantemente anunciada, embora adiada, a condio de ameaados, economicamente, socialmente, politicamente. No entanto, os acontecimentos polticos e as vrias guerras camponesas do sculo XX, como demonstra o antroplogo Eric Wolf (1984), tornaram claros os meandros da luta e das possibilidades dos camponeses nos novos cenrios23

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Introduo

mundiais. As vrias contestaes e formas de resistncia desenvolvidas por grupos particulares elevaram os camponeses de vrios cantos do planeta condio de protagonistas que se rmaram por suas qualidades de lidar com as demandas da subsistncia, da justia e da nao. No caso brasileiro, a situao dos camponeses parece ser ainda mais crtica. At as ltimas dcadas do perodo colonial, um campesinato composto de uma mistura de portugueses pobres, povos indgenas e africanos conseguiu fazer parte da formao social nas regies do Centro-Sul e Nordeste. Contudo, as presses do sistema mundial capitalista, entrando em sua primeira fase de industrializao, estimularam polticas e aes que acabaram por acirrar a precria situao de sobrevivncia dos cultivadores pobres livres no perodo imperial. Um processo de expanso das monoculturas das fazendas, bem como os privilgios concedidos aos grandes latifndios na virada do sculo XVIII, reduziu ainda mais as terras camponesas. No sculo XIX, intensicou-se o processo de exteriorizao da produo, visando a abastecer os mercados europeus, deixando limitado espao para a produo de alimentos. Por outro lado, os usos de trabalho forado, numa estrutura social marcada pelos poderes dos senhores da terra sobre escravos e, por extenso, sobre os bens e pessoas das vizinhanas da casa-grande, constituram as bases para o fortalecimento do poder local e de constrangimentos a outros personagens do campo. Tais condies de dominao foram consolidadas com a Lei de Terras de 1850, que privatizou a posse, e com o Regulamento das Terras de 1913, que passou o controle das terras devolutas do governo federal para os governadores provinciais. assim que os historiadores Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva (1999) explicam as condies adversas de desenvolvimento dos camponeses do Brasil. A discusso dos autores aqui considerados revela a preocupao em situar as bases para compreender esse carter de ameaados dos camponeses no Brasil. Para a organizao do tomo, os textos escolhidos foram agrupados em quatro partes. I. A primeira parte inclui aqueles textos cujos autores estavam envolvidos no debate poltico, nos anos 1950 e 1960, sobre a natureza da sociedade brasileira e as perspectivas para o seu futuro. No centro dessas reexes estava a congurao das classes sociais e, de modo especial, a natureza e o papel histrico do campesinato. O contexto imediato desse debate dado pela efervescncia das Ligas Camponesas e pela elaborao no Congresso Nacional do Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963.GUIMARES, A. P. Formao da pequena propriedade: intrusos e posseiros. In: . Quatro sculos de latifndio. So Paulo: Fulgor, 1963.

O texto, com o qual Alberto Passos Guimares comparece neste tomo, foi tirado de seu livro clssico Quatro sculos de latifndio, no qual ele analisa24

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no somente a gnese da estrutura agrria brasileira, mas tambm seus efeitos sobre os camponeses e sobre o conjunto da sociedade brasileira, da poca colonial at meados do sculo passado. O autor faz um levantamento dos mecanismos que foram sistematicamente postos em ao para impedir que os pequenos agricultores e trabalhadores livres sem terra pudessem ter acesso propriedade da terra e contribussem dessa forma para a construo de uma economia forte e democrtica. Alberto Passos Guimares traz as nuances do debate sobre o carter histrico da agricultura brasileira, debate que na poca colocou, em lados opostos, os defensores da tese da existncia do capitalismo no nosso meio rural contra aqueles que entendiam que o campo brasileiro estava dominado por relaes feudais. Alberto Passos gurava entre aqueles que defendiam o carter feudal de nossa estrutura agrria. Assim, para ele, a propriedade fundiria representava ainda um monoplio colonial e feudal da terra. E o tipo de feudalismo criado pela colnia portuguesa do Brasil evidenciava uma situao ainda mais grave do que havia sido o feudalismo clssico, na evoluo histrica europia. Ele introduz argutamente uma diferena entre o monoplio feudal da terra propriamente dito, ou seja, a forma prpria de feudalismo europeu, e o monoplio colonial, feudal e escravista da terra, a forma tpica da formao brasileira. Se o primeiro feudalismo acabaria permitindo, ao longo dos sculos, a incluso progressiva da populao como camponeses parcelrios, o segundo tipo, o nosso feudalismo, moldado pelo sistema da monocultura, pelo sistema da plantao, teria produzido na populao livre a repugnncia pelo trabalho, afastando-a, ou mesmo excluindo-a do processo produtivo. Ele ento analisa as condies de vida da massa de homens livres, escravos forros e fugidos ou ndios, reduzidos todos situao de uma populao completamente marginalizada, uma vez que no podiam ingressar na fora de trabalho ocial, constituda essencialmente por escravos, nem ter acesso, pelo esforo prprio, aos meios naturais de produo, particularmente terra. Nesse contexto, discute o efeito diferenciado, no Brasil, da teoria do economista ingls Wakeeld, defensor da tese da colonizao sistemtica. Wakeeld defendia a criao de um preo articial para a terra e a sua venda a preos bem elevados para impedir que os imigrantes, que estavam deixando a Europa para a Austrlia ou outras colnias da Inglaterra, se apropriassem das terras livres das colnias. O objetivo era fazer surgir um exrcito industrial de reserva de trabalhadores nas colnias, para garantir suprimento de fora de trabalho para os investimentos dos grandes proprietrios e comerciantes de alm-mar. Alberto Passos faz uma discusso do signicado da legislao social na nossa histria agrria, mostrando o efeito da luta de classes dos senhores contra os homens livres pobres, ou seja, do permanente cerceamento, por25

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Introduo

parte da aristocracia rural, de que os homens livres pudessem ter acesso posse legal de terra. Trata-se visivelmente de uma situao que no recente, mas que perdura at hoje, e que para Alberto Passos tinha uma razo terica precisa: o atraso das relaes sociais no campo. Uma situao que explica tambm o signicado social da grilagem de terras e sua tolerncia pelo Estado: tratase de um mecanismo permanente de turbao da posse dos camponeses, como um meio para impedir que esses trabalhadores rurais (posseiros) consigam legitimar suas posses e consolidar a propriedade de terra, muitas vezes obtida pelo prprio trabalho de desbravamento. So, portanto, questes colocadas na prpria gnese da formao histrica do Brasil, mas que permanecem existindo amplamente na atualidade, enquanto a estrutura agrria continua at hoje a representar um ponto de tenso nas relaes de classe no campo. Por tudo isso, o texto de Alberto Passos Guimares nesta coleo torna-se uma presena indispensvel.QUEIROZ, M. I. P. de. Uma categoria rural esquecida. Revista Brasiliense (So Paulo), n.45, p.83-97, 1963.

O artigo da sociloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, apresentado neste tomo, foi publicado em janeiro de 1963, como uma contribuio da autora ao debate da sociedade a respeito da regulamentao do trabalho na agricultura. nesse momento, com efeito, que o Congresso Nacional est elaborando o Estatuto do Trabalhador Rural, lei que, promulgada em maro desse mesmo ano, normalizou, pela primeira vez, todos os regulamentos que deviam reger a contratao de trabalhadores para as atividades agrcolas e as atividades de pequenos agricultores, especialmente em relaes de dependncia como arrendatrios e parceiros. A interveno de Maria Isaura Pereira de Queiroz introduz uma nova dimenso ao debate, ao chamar ateno para a existncia, no Brasil, de uma ampla categoria de trabalhadores do campo que no vivenciam diretamente a relao polarizada entre o capital/propriedade da terra e o trabalho. Tratase dos pequenos agricultores sitiantes, presentes em todas as regies, que constituem a parcela mais importante da populao ligada terra, em nosso pas. Eles se caracterizam por um gnero de vida particular, cujas bases so constitudas pela agricultura de subsistncia, ento pouco vinculada ao mercado, e pela sociabilidade dos pequenos grupos de vizinhana, nos termos em que Antonio Candido j havia analisado. Apesar de sua importncia numrica, a fragilidade da produo de excedentes e a distncia geogrca dos bairros freqentemente impediam o reconhecimento social dos sitiantes, ora claramente desconhecidos, nas estatsticas e nas polticas pblicas, ora vistos apenas de forma negativa, como os no-produtores e no-consumidores, excludos portanto dos processos de desenvolvimento da sociedade. A autora aponta para a existncia26

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de trs tipos de sitiantes, que se distinguem em funo do modo de acesso terra: o proprietrio, o posseiro e o agregado. Ameaados pelo que ela chama a penetrao da civilizao moderna no interior dos Estados, os sitiantes sofrem as conseqncias da dupla degradao, econmica e social. As propostas em debate na sociedade desconsideravam essa situao, para a qual nenhuma referncia concreta fora feita. A soluo preconizada pela autora a reforma agrria que, sem destruir o modo de funcionamento que lhes prprio, assegure o acesso dos sitiantes propriedade da terra, ao mercado, a uma educao de qualidade e lhes ajude na gesto do seu estabelecimento familiar.ANDRADE, M. C. de. As tentativas de organizao das massas rurais As Ligas Camponesas e a sindicalizao dos trabalhadores do campo. In: . A terra e o homem no Nordeste. So Paulo: Editora Brasiliense, 1963.

Gegrafo de formao e estudioso dos processos polticos e econmicos do desenvolvimento regional, Manuel Correia de Andrade vem abordar signicativas questes sobre os passos desse desenvolvimento. Em A terra e o homem no Nordeste (1963), o autor procura analisar facetas vrias da relao entre os elementos formadores da regio, pelo exame dos aspectos histricos, geogrcos e polticos que marcam os processos nos quais esto imbricados aqueles que tiram o sustento da agricultura e da pecuria. O texto escolhido para este tomo focaliza um aspecto pouco comum nesses tipos de anlise, o das lutas dirias de populaes submetidas busca pela sobrevivncia. O autor aborda no ltimo captulo da obra, que lhe deu reconhecimento entre os melhores livros do sculo XX, a questo das Ligas Camponesas. Em assim fazendo, comprou, evidentemente, uma briga com setores do governo central, o que lhe valeu a deciso de arranc-lo do volume, j na edio seguinte. Na ltima edio pstuma, a obra foi impressa segundo o formato original. O autor adentrou no campo do debate sobre as possibilidades de organizao do que denominou de massas rurais, focalizando processos de formao das Ligas Camponesas e a sindicalizao dos trabalhadores rurais. Delineou as formas usuais de resistncia dos trabalhadores s miserveis condies de subsistncia, sugerindo que as polticas de colonizao decantadas pelo governo central, embora oferecessem sadas individualizadas, via migrao, seriam pouco efetivas para a soluo dos problemas da maioria. Por outro lado, o autor chega a pontuar que essas massas so, em geral, despossudas de direitos e frgeis nas suas relaes com os poderes polticos e econmicos nacionais e locais. O autor examina as condies de expanso das usinas, os desmontes das reas de produo de alimentos, observando tambm como as pesadas cobranas feitas aos foreiros determinaram uma situao insustentvel que levou ao desenrolar do movimento das Ligas Camponesas.27

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Introduo

Os registros feitos pelo autor chamam ateno pelos aspectos da dominao e da explorao dos camponeses, nas suas acepes de trabalhadores da cana e foreiros como tambm para o fenmeno das formas cotidianas de resistncia (Scott, 2002), que expem os controles sobre os trabalhadores, bem como o potencial das lutas em situaes em que os direitos da subsistncia e da justia estejam ameaados. Manuel Correia de Andrade faz assim um texto construdo empiricamente para virar um problema de pesquisa, no qual so apresentadas hipteses valiosas sobre a questo da mobilizao das massas em situaes de extremo constrangimento fsico, socioeconmico, moral e poltico. Sendo assim, a atualidade da contribuio desse autor est reconhecida no apenas no seu contedo histrico, mas pelos novos tipos de explorao que tm lugar nos novos e velhos espaos da produo da cana no pas. II. Na segunda parte, abrimos o leque para a incluso de cinco textos. Eles tm em comum o esforo de compreenso terica do campesinato, por meio da construo de conceitos e de categorias analticas para explicar as particularidades desse ator social na sociedade brasileira, constitudo, como j foi dito, nos limites da escravido e da concentrao fundiria. VELHO, O. G. A. C. O conceito de campons e sua aplicao anlise do meio rural brasileiro. Amrica Latina (Rio de Janeiro), v.12, n.1, p.96-104, 1969. Considerando as limitaes do modelo de desenvolvimento do pas, Otvio Guilherme Velho parece encontrar, na anlise de situaes empricas particulares, um ponto de partida para compreender a possibilidade de desenvolvimento de um campesinato, numa situao de fronteira e, por extenso, no pas. Por meio de um modelo que contempla situaes-limite fronteira amaznica e Nordeste brasileiro , o autor estabelece indicadores para demonstrar os eixos centrais do seu estudo. No seu entendimento, as situaes camponesas no pas poderiam ser entendidas num continuum campons-proletrio, expresso entre dois plos denidos por um mximo de campesinidade e um mximo de proletarizao. Considerando as condies de acesso terra no Nordeste, determinadas segundo as demandas da monocultura, menos terra, mais mo-de-obra, maior integrao ao sistema nacional, teramos, conseqentemente, conforme o autor, menos camponeses e mais proletrios. O outro plo, avaliando a abertura da fronteira amaznica pela pavimentao dos caminhos em direo ao Norte do pas e a disponibilidade de terras, apostaria numa hiptese de fortalecimento de um campesinato na fronteira (mais terra, menos mo-de-obra, menor integrao ao sistema nacional), mais camponeses com menor proletarizao. O plo oposto, a zona da mata em Pernambuco, emerge como o exemplo de situaes denidas pelo mximo de proletarizao e, por conseguinte, com reduzido potencial para experincias camponesas.28

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, pois, verdade que esse entendimento de situaes camponesas ameaadas parece inuenciar as anlises que o grupo de pesquisa acima indicado desenvolve. O autor constri o seu olhar sobre as realidades empricas, com base nos estudos sobre o lugar das fronteiras no desenvolvimento nacional e avana pelo esforo comparativo para entender o movimento dos atores localizados, poderamos aventar, segundo um linguajar contemporneo, entre situaes que favorecem a expanso e construo de condies camponesas e outras que as inibem. Em descompasso com o que observa Foster sobre a imagem do bem limitado, o autor vem examinar o fato de que, em condies de amplo acesso terra, haveria a possibilidade de expanso de situaes camponesas; ao contrrio, onde houvesse menor acesso terra, maior integrao ao sistema nacional e mo-de-obra abundante, a tendncia seria o mximo de proletarizao. Passados trinta anos dessa contribuio do autor, torna-se instigante avaliar de que maneira os recentes desenvolvimentos da monocultura, que vem a se estabelecer no Norte, e os novos usos do solo no Nordeste do pas poderiam sugerir outras tendncias. Igualmente interessante seria examinar os casos das novas mercadorias que, movidas pelos mecanismos de qualidade denidos pelos mercados globais, esto a exigir outros tipos de relao com a terra, o trabalho e o meio ambiente, vindo, provavelmente, a conuir na expanso de experincias camponesas.CARDOSO, C. F. S. A brecha camponesa no sistema escravista. In: Agricultura, escravido e capitalismo. Petrpolis: Vozes, 1979. .

O texto de Ciro Flamarion Cardoso coloca o tema da gnese do campesinato, no Brasil e nas Amricas, de um modo geral, em uma perspectiva terica e histrica bem ampla. Ele discute a formao do escravo-campons, a formao de um protocampesinato no interior da prpria plantation escravista colonial. Trata-se, na verdade, de um tema ainda pouco visualizado nos debates sobre o campesinato e sobre a formao social brasileira. Isso porque o sistema da plantation foi visto prioritariamente como um empreendimento mercantil, e o debate se manteve, sobretudo, centrado nos aspectos gerais desse sistema, ou seja, no seu eventual carter feudal ou capitalista. O autor, seguindo a trilha aberta pelo historiador polons Tadeusz Lepkowski, percorre a larga produo historiogrca que permite fundamentar a sua tese da formao de um campesinato dentro do sistema escravista nas Amricas. E no se trata de identicar o surgimento do campesinato apenas nos quilombos, ou seja, no aglomerado de escravos fugidos do sistema, portanto fora do grande empreendimento mercantilista. Ainda que os quilombolas tambm representem uma forma de camponeses no perodo colonial, o autor examina aqui prioritariamente as atividades agrcolas realizadas por escravos nas parcelas e no tempo para trabalh-las, concedidos para esse m no interior das fazendas. Trata-se das atividades que os escravos desenvolviam no pouco tempo livre, em pequenos lotes de terra concedidos29

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Introduo

em usufruto pelas fazendas, que deram origem a uma espcie de mosaico social, de atividades em que a gura do escravo se assemelhava bastante gura de um campons semi-autnomo. A cesso de terras aos escravos para implantarem cultivos de subsistncia visava diminuio do custo de manuteno da fora de trabalho, nas conjunturas de arrefecimento do comrcio do acar. por isso que, nos diversos perodos e situaes coloniais, h uma presso, seja partindo do escravo, no sentido de obteno de parcelas onde pudesse autonomamente desenvolver sua prpria lavoura, seja partindo dos senhores ou da prpria autoridade colonial, em sentido contrrio, visando a limitar ao mnimo essa prtica. interessante observar que a mesma problemtica tem lugar na disputa entre o morador e o senhor de engenho, em poca bem recente, sendo essa reivindicao presente tanto na plataforma das Ligas Camponesas como na xada em lei no Estatuto da Lavoura Canavieira. O texto chama ateno para o carter generalizado dessa prtica nas colnias e nos estados americanos (sul dos Estados Unidos), com destaque para as colnias inglesas e francesas do Caribe. A prtica chegou a ter tal amplitude que levou o antroplogo estadunidense Sidney Mintz a duvidar da existncia de um verdadeiro sistema escravista nas Amricas. Mas no foi menos importante no Brasil, ainda que seja um aspecto pouco estudado de nossa histria. Da o interesse em incluirmos este texto neste tomo.LINHARES, M. Y.; TEIXEIRA DA SILVA, F. C. A questo da agricultura de subsistncia. In: . Histria da agricultura brasileira: combate e controvrsias. So Paulo: Brasiliense, 1981.

O ensaio selecionado parte de um breve livro dos historiadores Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, ambos do mundo intelectual e universitrio do Rio de Janeiro. O livro nasceu a partir de um trabalho que Linhares apresentou em 1976. Ofereceu um balano da literatura multidisciplinar sobre a histria da agricultura no Brasil e sinalizou a necessidade de pesquisar a histria no da grande lavoura de exportao, mas a do campesinato, que produz o sustento do povo brasileiro desde 1530, uma histria do abastecimento da colnia e do imprio. A iniciativa nasceu de uma proposta da Fundao Getlio Vargas, recebeu amparo ironicamente da ditadura, por meio do Ministrio da Agricultura (Linhares tinha sido cassada pelo mesmo regime em 1968) e acabou dando origem ao Centro de Ps-Graduao de Desenvolvimento Agrrio (CPDA) e ao Programa de Mestrado em Histria Agrria na Universidade Federal Fluminense (UFF). Alm do livro selecionado, foram produzidos vrios outros estudos por exemplo, dois volumes da Histria do abastecimento (1979) e Terra prometida (1999) , mas a histria agrria ganhou poucos aderentes entre os historiadores brasileiros, a grande maioria preocupada com temas urbanos, literrios e paradigmas alheios terra brasileira.30

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Como uma das frentes a ser retomadas com o m da ditadura, a questo agrria foi bastante debatida no m dos anos 1970 e incio dos anos 1980. Partindo da realidade, os cientistas e fundaes de amparo pesquisa foram mobilizados a partir dos problemas expostos no campo pelo movimento sindical dos trabalhadores rurais e das mobilizaes dos camponeses e sem-terra. Os estudiosos se dividiram em funo do objeto e do mtodo de abord-lo. Dois grandes grupos se formaram, reetindo os debates da poca pr-golpe: um grupo insistiu que a etapa capitalista tivesse chegado ao campo, fazendo o proletariado rural seu objeto de estudo, e outro grupo, inclusive Linhares e Teixeira da Silva, enfatizou a persistncia de formas econmicas no capitalistas, instigando pesquisas sobre o campesinato. Foi esse o principal objetivo da seleo feita. Os autores queriam estimular seus colegas a examinar o lado social do abastecimento da colnia, mostrando como a evidncia emprica ento disponvel apoiava suas asseres sobre a histria antiga da gnese das formas camponesas. Questionaram vrias teses, inclusive a tese de feudalismo que anima a obra de Alberto Passos Guimares, a hiptese do atraso do desenvolvimento capitalista da escola paulista do historiador Caio Prado Jnior e at o argumento da brecha camponesa de seu parceiro Ciro Cardoso. No caso, acertam Linhares e Teixeira da Silva, a brecha camponesa no era a nica forma de produo de alimentos na colnia. margem do latifndio, existia todo um segmento de produtores profundamente vinculados a este, e que deveriam atender suas necessidades [...para no falar...] dos pequenos produtores do agreste e do serto, alm, claro, da pecuria. Com vrias citaes de documentos histricos, os autores desaaram toda uma tradio historiogrca brasileira que procura ver as formas de vida camponesas como um elemento novo na paisagem brasileira e apontaram um novo caminho para a realizao de um sem-nmero de vericaes empricas.IANNI, O. A utopia camponesa. In: Cincias Sociais hoje. So Paulo: Cortez Editora e ANPOCS, 1986.

O tema do campesinato no aparece entre os temas mais freqentes da produo do socilogo Octvio Ianni. Esse autor dedicou sua vida intelectual a muitos temas, com destaque para a questo racial seu tema inicial e para as questes da mudana social e desenvolvimento econmico do Brasil. Mas a preocupao com a poltica essencial em produo intelectual. Nesse sentido, na anlise da problemtica social do campo, chama ateno particularmente seu texto A utopia camponesa, originalmente apresentado em 1986, na reunio anual da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (ANPOCS), no qual destaca a importncia do campesinato nas grandes revolues sociais da era ps-revoluo industrial. Como ponto de partida contextualizador, Ianni alinha as concepes predominantes na tradio marxista. Faz preliminarmente um apanhado31

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das situaes que deram margem a uma compreenso no revolucionria do campons. E tenta colocar, em face de uma tradio marcada pela insensibilidade das conjunturas histricas, uma nova compreenso. Seu esforo inicial pr em destaque fatos marcantes da histria contempornea. Ianni est consciente de que o campesinato est presente nas lutas democrticas dos sculos XIX e XX, e mantm isso com energia. Ele sabe que esse o perodo de luta do proletariado contra o capital, aps a revoluo liberaldemocrtica, promovida sob a liderana da burguesia. Mas percebe, com clareza, o desencontro entre o modo de vida campons e as formas burguesas de dominao. As revolues burguesas seriam mal explicadas se no se leva em conta a maior ou menor presena do campesinato. Feita a ponderao inicial, Ianni caminha em uma direo crtica do marxismo doutrinrio. No entanto, sua percepo vai muito alm do que uma simples releitura dos clssicos. O fato de o campons no poder ser enquadrado no modelo-padro de uma classe revolucionria no o impede de recolocar o signicado das lutas camponesas. H uma anlise dos enfrentamentos dos posseiros que muito diferente da dos autores em voga at os anos 80. Os enfrentamentos revelam um lado poltico eis o que percebe Ianni. Eles no esto fora da histria. Eles no realizam uma histria ultrapassada nem uma histria marginal. Eles se enfrentam com o capital, que a fora hegemnica da atualidade. Logo, no esto fora da atualidade: pois no se enfrentam contra uma realidade passada, mas moderna, ps-moderna, absolutamente atual. Assim, Ianni resgata vrios elementos da sociabilidade camponesa, e resgata um elemento pouco visvel e pouco presente nas anlises feitas at ento: a importncia e a fora da comunidade camponesa. Alis, no foi por acaso que Marx embatucou quando Vera Zasulitch lhe perguntou, em 1881, se havia possibilidade de que a comuna rural russa se desenvolvesse na via socialista; ou se, ao contrrio, estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capitalismo na Rssia. E assim, esta retomada tardia da questo camponesa serve tambm para Ianni descobrir um novo Marx, escondido atrs da eloqente resposta a Vera Zasulitch. E Ianni registra entusiasmado: Esse um dos momentos mais intrigantes e bonitos da biograa intelectual de Marx. interessante que Ianni sentiu a fora desses textos, mantidos durante dcadas em silncio, talvez pelo seu poder de detonar o doutrinarismo, presente na corrente dominante do marxismo at ento. Mas, ainda em 1986, poucos escutaram a voz de Octvio Ianni. Esse tambm o motivo pelo qual o inclumos neste tomo.PALACIOS, G. Campesinato e escravido: uma proposta de periodizao para a histria dos cultivadores pobres livres no Nordeste Oriental do Brasil: 17001875. Dados (Rio de Janeiro), v.30, n.3, p.325-356, 1987.

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Como Linhares e Teixeira da Silva, o historiador Guillermo Palacios encontrou em sua pesquisa amplo motivo para falar do campesinato brasileiro nos sculos anteriores ao sculo XIX. O artigo includo neste volume trata no s do campesinato no Nordeste nos anos 1800, mas tambm no perodo colonial em geral. Diferentemente de Caio Prado Jnior, muito citado por ser o primeiro analista a reconhecer em seu formidvel estudo Formao do Brasil contemporneo, de 1942 a existncia de pequenos agricultores no perodo colonial, Palacios revela um conhecimento profundo de evidncias, inclusive o comentrio do governador de Pernambuco feito em 1759, segundo o qual existia uma alternativa camponesa ao escravismo, sistema geralmente destacado como predominante, seno nico da poca colonial. justamente essa questo a natureza da relao entre os mundos da grande plantation, de produo para exportao, e do pequeno agricultor, de produo domstica que divide muitos estudiosos, inclusive alguns autores clssicos presentes neste volume. Extensivamente apoiado com mais de sessenta longas notas de rodap, o artigo de Palacios d privilgio ao desao de periodizao, ou seja, o mapeamento cronolgico da histria dos camponeses do Nordeste, sem perder oportunidades para entrar nos debates. A partir de uma pesquisa pontual, a investigao de uma revolta de gente pobre em 1851-1852, Palacios foi inspirado a voltar atrs na busca das origens da rebelio e no parou de acompanhar seu objeto at chegar aos anos 1700. o perodo de 1700 a 1760 que demarca como formativo do campesinato em Pernambuco, Alagoas, Paraba, Rio Grande do Norte e Cear. Para Palacios, a brecha camponesa na ordem escravocrata no est dentro da plantation, mas fora dela, onde a crise do sistema de exportao de acar criou condies para milhares de pobres trabalhadores construrem sua liberdade no campo como agricultores autnomos. Uma vez emancipados de sua dependncia do sistema aucareiro, vo passar geraes produzindo para sustentar suas famlias e para o mercado de algodo e de mandioca, bem como de outros produtos destinados alimentao da populao escravizada e urbana. O segundo perodo, que Palacios comea em 1760 e termina em 1810, demarcado pelo auge dessa formao e pelo incio de seu declnio, a partir de 1790, quando o Brasil comea a recuperar sua posio no mercado mundial de acar na ocasio da revoluo dos escravos no Haiti. Como foi comum em outras partes da Amrica Latina, tais como no Peru e no Mxico, a independncia no foi vista com bons olhos pelos camponeses. O terceiro perodo indicado por Palacios (1810 a 1848) trata dos ataques perpetrados pela oligarquia rural e autoridades contra o campesinato. O projeto nacional no incio da fase liberal do capitalismo global contava com a formao agressiva da classe dominante. O Estado empregou seus poderes para organizar os bens do pas, inclusive as terras e braos dos camponeses. Palacios documenta vrias campanhas para cercear o campesinato em favor33

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Introduo

da expanso das fazendas de cana-de-acar com seus escravos. A Lei de Terras de 1850, normalmente associada com esse processo, comentada na discusso do quarto perodo, 1850-1875, mas o autor d um peso maior Lei Eusbio de Queiroz, tambm de 1850, ao Regulamento do Registro de Nascimento e bitos e ao Regulamento do Censo Geral do Imprio, de 1851. Foi a implementao desses dois regulamentos, no contexto do m efetivo do comrcio de cativos africanos, que inspirou as revoltas que foram o objetivo original do pesquisador. Por meio da anlise dessas revoltas, Palacios nos demonstra como os pobres cultivadores livres expressaram sua identidade de classe camponesa ao perceber, em seus manifestos de resistncia contra o projeto burgus, como compreenderam bem a inteno dos decretos de dar um m sua liberdade campestre e consolidar sua reduo a commodities para o mercado de trabalho livre. Nunca mais, argumenta Palacios em 1987, haveria no Brasil um campesinato to verdadeiro em termos estruturais e mentais. III. A terceira parte rene autores de importncia terica comparvel dos reunidos na segunda parte, com a particularidade de que suas pesquisas e suas construes conceituais enfocavam situaes concretas distintas de reproduo do campesinato brasileiro.OBERG, K. O campnio marginal no Brasil rural. Sociologia (So Paulo), v.19, n.2, p.118-132, 1957.

A presena de Kalervo Oberg neste tomo, reservado para autores nacionais, exige explicaes. Nascido no Canad e lho de pais nlandeses, Kalervo um renomado antroplogo, que trabalhou em vrias partes do mundo, inclusive no Brasil, onde lecionou alguns anos na Escola Livre de Sociologia e Poltica de So Paulo, em meados dos anos 50, ocasio em que foi instigado a se posicionar sobre os problemas agrrios brasileiros. Seu texto, publicado na revista da escola, teve grande repercusso no pas e marcou, naquele momento, os debates sobre a questo agrria e o campesinato. Envolvido pelo clima da poca de entender a estrutura social do campo, aliado ao funcionamento da economia agrcola, Kalervo se prope a examinar a origem de um grupo social ao qual chama de campnio marginal e analisar as condies pelas quais esse agrupamento se reproduz no contexto socioeconmico do campo brasileiro. Seu primeiro esforo mostrar como est organizado o setor agrrio no Brasil, no qual distingue quatro grupos: a plantao monocultora, as fazendas de gado, as granjas de gado leiteiro, que combinam agricultura com pequena criao, e, um quarto segmento, a agricultura familiar, resultante da imigrao europia ou asitica. Alm desses segmentos, o autor identica um quinto grupo entre os que cultivam pequenos tratos de terra na propriedade de outros, estando sujeitos a um conjunto espantoso de regulamentos de posse. Kalervo o descreve como34

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um pequeno produtor de subsistncia ou roceiro, que produz culturas alimentcias primrias. Alm de no possuir a propriedade e ter apenas a posse este autor identica outro tipo de instabilidade: a tcnica de cultivo instvel, itinerante, dependendo da queima das matas e capoeiras. Sempre dependendo do grande proprietrio, de quem um agregado, rendeiro, meeiro ou mesmo trabalhador assalariado. Sua anlise inicial focaliza a diferena desse pequeno em relao ao campons europeu ou asitico. H trs aspectos relevantes no texto desse autor. Primeiro, a importncia que adquirem em sua anlise as tcnicas produtivas dos diversos segmentos. H no texto toda uma avaliao das tcnicas empregadas pelos caboclos e pelos camponeses, de tradio europia. Em segundo lugar, a classicao do campons como marginal, seguindo uma tendncia da poca. Kalervo entende esse campons como marginal, porque parte da idia de que ele no produto da histria econmica, mas um resultado da mistura das raas, particularmente a negra e a amerndia. Um terceiro e ltimo aspecto destacado pelo autor, mas no menos importante e em certo sentido em confronto com armaes anteriores , o surgimento, no Sul do pas, de uma classe de camponeses completos, porque estes sim eram simultaneamente donos da propriedade da terra, do capital e do trabalho. Seria este grupo o grmen de uma nova classe de lavradores? a questo que permanece.CANDIDO, A. As formas de solidariedade. In: . Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformao dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1964. (Edies posteriores pelas editoras: Livraria Duas Cidades e Editora 34).

O livro de Antonio Candido uma anlise profunda e multifacetria do modo de vida de grupos sociais existentes no Sudeste do pas, especialmente em regies dos estados de Minas Gerais e So Paulo, cujo trao comum a cultura rstica caipira. Suas caractersticas tnicas e culturais, suas trajetrias sociais e as transformaes de seu modo de vida so o objeto mesmo da pesquisa realizada pelo autor. Antonio Candido encontrou os caipiras numa situao de parceiros em uma fazenda de proprietrio absentesta. Sobre as runas do latifndio improdutivo, essas famlias caipiras assumiram a organizao da produo a seu modo e com os recursos de que dispunham. Foi assim que a cultura tradicional se refez como cicatriz. O autor dene esses grupos sociais como camponeses. Porm, os elementos denidores do campesinato, no sentido clssico, encontram-se, nesse caso, em nveis mnimos vitais e sociais. De fato, produzindo para garantir a dieta mnima, falta a esses camponeses, como demonstra, o equilbrio resultante do sistema da policultura-pecuria. O mecanismo das roas itinerantes garante a mobilidade espacial, pela qual procuram compensar a precariedade dos recursos produtivos. Os nveis35

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mnimos so igualmente observados na vida social, cuja expresso o bairro rural, modo de sociabilidade prpria dos caipiras, recriado na fazenda quase bairro. A esse mnimo social corresponde uma base territorial e um sentimento de localidade; nele que os camponeses encontram o complemento eventual, mas indispensvel, ao trabalho da famlia; nele que se manifesta a vida ldico-religiosa do grupo vicinal. Ao adotar o enfoque das transformaes dos meios de vida, Antonio Candido superou os limites da abordagem ento predominante dos estudos de comunidade. Assumindo o mtodo dialtico, preocupou-se em no descrever simplesmente os fatos ou consider-los como a expresso da ordem natural das coisas, mas de apresent-los como um problema social, atinente sociedade brasileira. O resultado da pesquisa revelou um ngulo da histria de So Paulo do qual foi possvel perceber outro personagem, o caipira campons, desconhecido ou relegado em algumas leituras histricas. Finalmente, considerando que, a um ajustamento total, sucede uma pluralidade de ajustamentos, o autor arma a resistncia do sitiante caipira de forma heterognea, sem dvida s transformaes ocorridas na sociedade paulista. O texto escolhido aquele em que Antonio Candido analisa a sociabilidade camponesa.PALMEIRA, M. Casa e trabalho: nota sobre as relaes sociais na plantation tradicional. Contraponto (Rio de Janeiro), v.2, n.2, p.103-114, 1977.

Nos anos 1970, uma equipe de antroplogos do Museu Nacional, sob a coordenao geral de Roberto Cardoso de Oliveira, realizou uma pesquisa em duas grandes regies do pas com o intuito de compreender as formas e os processos de funcionamento e de reproduo do campesinato subordinado, no interior do sistema da plantation (Nordeste) e no contexto de expanso ocupacional de fronteiras (Norte). A primeira parte, coordenada pelo antroplogo Moacir Palmeira, estendeu seu campo de observao a diversas reas da regio aucareira de Pernambuco e da Paraba, privilegiando como objeto de estudo a diversidade de categorias de sujeitos e de relaes que pudesse expressar a condio de campons subordinado s plantaes dominantes. O antroplogo Otvio Guilherme Velho foi o coordenador da pesquisa nas fronteiras, da qual resultou, igualmente, uma obra considerada clssica. O artigo de Palmeira, que inclumos neste tomo, tornou-se uma referncia geral para o conjunto das pesquisas, ento em curso, a respeito da condio do morador dos engenhos. A natureza do trabalho nos engenhos e nas usinas de acar do Nordeste sempre esteve no corao do debate sobre as relaes de trabalho na agricultura brasileira e mesmo sobre a natureza do prprio capitalismo brasileiro. O carter ambivalente dessas relaes resultante do fato de que a condio de assalariado, vendedor da fora de trabalho, se realiza de forma associada concesso de moradia no engenho e possibilidade de36

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uso de um pequeno stio, no qual o morador poderia organizar, de forma extremamente precria e com uma autonomia mnima, uma produo de alimentos, complementar ao salrio. Caio Prado Jnior j chamara ateno para essa situao particular, ao enfatizar que o morador era um trabalhador adequado e necessrio acumulao do capitalismo que se reproduzia na economia canavieira do Nordeste. Para ele, a dimenso dominante no sistema de morada era dada pela condio de trabalhador da cana, fora de trabalho principal dos engenhos e usinas, apenas disfarada pela forma da moradia e pelo acesso ao stio. Em seu artigo, Moacir Palmeira dirige o seu olhar para o outro lado dessa relao, ao analisar as diversas categorias de trabalhadores engajados nas plantaes de cana e as distintas modalidades de morada. Mais do que um disfarce, o acesso ao stio cria para o morador a oportunidade de tomar decises, organizar a produo, coordenar o trabalho da famlia e vender o excedente, oportunidades que o aproximam da experincia do campesinato e que se apresentam como um ideal a ser buscado por outros trabalhadores no moradores. Tradicionalmente, a morada se inscrevia como um elemento das relaes paternalistas entre proprietrio e empregado, fundadas em noes de dependncia e de lealdade e outorgadas segundo critrios pessoais e particularistas. A legislao brasileira, no entanto, a incorporou, reconhecendo o acesso ao stio como um direito dos trabalhadores. Embora mais uma promessa do que uma realidade, exatamente no momento da expulso em massa dos moradores, a lei do stio se tornou uma arma poderosa nas negociaes classistas entre senhores de engenho e canavieiros.WOORTMANN, K. Migrao, famlia e campesinato. Revista Brasileira de Estudos de Populao (Campinas), v.7, n.1, p.35-53, 1990.

Os estudos clssicos sobre o campesinato tradicional fazem sempre referncia ao profundo enraizamento das comunidades camponesas a um lugar, visto como a terra ancestral, conquistada pelos seus antepassados e depositria do trabalho e do afeto de seus membros. Essa construo do pertencimento a um territrio, no entanto, longe de isolar os camponeses no mundo fechado do parentesco, supe a abertura para a sociedade mais ampla. A migrao se inscreve no mundo campons como um dos caminhos dessa abertura. Klaas Woortmann, um dos antroplogos brasileiros h muitos anos dedicado ao estudo do campesinato, entende a experincia da migrao como parte integrante (das) prprias prticas de reproduo do campesinato. Para o autor, migrar no signica abandonar a comunidade de origem, o que ele ilustra com a distino, proposta pelos prprios sitiantes por ele pesquisados, entre viagem e sada. viagem correspondem as formas de migrao dos jovens migrao pr-matrimonial e a migrao circular37

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dos chefes de famlia. A sada ocorre l onde se esgota o acesso terra, visto como um dos componentes centrais da reproduo do campesinato. No entanto, mesmo nesses casos, a migrao denitiva no signica necessariamente uma ruptura em relao famlia e comunidade local, com as quais os que saram guardam fortes vnculos afetivos e compromissos de solidariedade. Na intrincada rede de espaos sociais construdos e que se articulam por meio da circulao e da mobilidade dos camponeses, o stio familiar permanece como o espao fundamental para a reproduo social. As experincias de migrao so vivenciadas de forma distinta por sitiantes fracos e fortes. Essa constatao permite a Klaas Woortmann perceber que a migrao no est associada apenas s necessidades econmicas do campons, isto , fragilidade de sua base produtiva, que o obrigaria a buscar em outros lugares a complementao de renda necessria sua sobrevivncia local. A migrao tem um sentido simblico-ritual, para alm de sua dimenso prtica, e a compreenso desse sentido , precisamente, o objeto de seu artigo. IV. Finalmente, integram a quarta parte deste livro duas contribuies de atores sociais envolvidos nas lutas, em momentos distintos, que, assim, aparecem como lderes e do voz aos camponeses.DAVATZ, T. O levante dos colonos contra seus opressores. In: . Memrias de um colono no Brasil (1850). Traduo, prefcio e notas de Srgio Buarque de Holanda. So Paulo: EDUSP/Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1980 [1858].

A prpria condio do campesinato como classe pobre, afastada dos centros e freqentemente brutalizada pela classe dominante, dificulta substancialmente a recuperao de sua histria social. Um produto dessa excluso perversa uma alta taxa de analfabetismo entre os camponeses. Por isso, a histria distante tem sido reconstruda com bastante criatividade, utilizando fontes documentais produzidas pelo opressor, como processos criminais e relatos de militares enviados para reprimir suas ocasionais rebelies. Foi justamente esse trgico apago da memria coletiva da maioria da populao do mundo que fez o memorial de Thomas Davatz, um educador suo que emigrou para o Brasil na condio de colono do caf no ano de 1855, to precioso quando traduzido pelo inspirado historiador Srgio Buarque de Holanda, em 1941. Ele nos explica, por exemplo, como foi que esses trabalhadores do campo passaram a se chamar colonos e no camponeses. As primeiras levas da Confederao Germnica da Sua e de outras naes da Europa ocidental foram, na maior parte, de origem urbana e se identicaram no como homens do campo (Bauer) e sim como colonos (Kolonist), buscando no Novo Mundo a liberdade para reconstruir sua vida. Davatz e o grupo que o acompanhou para participar na formao38

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das grandes fazendas paulistas de caf foram extremamente infelizes nessa busca, mas por isso, ironicamente, temos no memorial dele a expresso prpria desses imigrantes esperanosos. Contratados pela Vergueiro & Cia, os colonos precisavam lidar com um homem poderoso, o senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, latifundirio ainda atpico no Brasil por estar disposto a experimentar formas de trabalho livre, numa ordem dominada pela escravido. Foi um dos inovadores que moldaram a integrao do Brasil no sistema capitalista mundial como produtor de recursos naturais caf, cacau, borracha etc. para a industrializao dos Estados Unidos e da Europa, com uma seletiva adaptao de liberalismo, que manteve a base autoritria do controle dos donos de terra. Enquanto Davatz e outros colonos sonhavam em conquistar nas terras brasileiras a liberdade que lhes faltara no Velho Mundo, Vergueiro e seus colaboradores zeram tudo para aproximar o sonho de um mundo novo com o pesadelo da escravido. Vergueiro foi do grupo que advogou a Lei de Terras e os regulamentos de registro e recenseamento que inspiraram a rebelio dos camponeses em 1851. Para muitos analistas, naquele momento que o Estado comea a construir o aparato hegemnico de controle da populao camponesa. justamente a resistncia contra esse processo que nos orientou na seleo do texto tirado do livro Memrias de um colono no Brasil, em que Davatz vai descrever e justicar o levante dos colonos contra seus opressores. Lembrando a violncia to presente na questo agrria hoje em dia, o conito dos parceiros articulado pelo mestre-escola Davatz em 1857 parece extremamente calmo. Em sua essncia, os colonos reclamaram condies de trabalho e cobrana de valores que no foram apresentados na propaganda que atraiu os imigrantes para sair de suas casas na Sua. Acharam que iriam encontrar as condies para melhorar sua vida tornando-se camponesesproprietrios, por meio da eventual apropriao de terras no Brasil. Somente a experincia vivida lhes daria a oportunidade de aprender, na prtica de trabalho na Fazenda Ibicaba, qu