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CAMÕES «NAS PARTES DA CHINA» Eduardo Alberto Correia Ribeiro GPTUI, RAEM-RPC [email protected] Resumo: Na sequência da publicação em Novembro de 2007, em Macau, do seu livro Camões em Macau - Uma certeza histórica [9 capítulos, 291 p., 3 gravuras, dois anexos - com a vida cronológica do Épico antes e depois da partida para o Oriente - e um terceiro, sobre o estabelecimento de Macau nos anos 1560, índice geral, índices remissivos e bibliografia], o presente trabalho apresenta uma súmula dos argumentos a favor da tese da presença do Poeta em Macau, numa antevisão do que o leitor ali poderá encontrar. Palavras-chave: Camões em Macau. Abstract: Forwarding the publication in Macau (November 2007) of his book Camões in Macau-A historic fact in Portuguese language [9 chapters, 291 pages, two annexed chronological tables with Poet‟s life before and after his trip of seventeen years to the Portuguese India and the Far East (China) and one about the origins of Macau in the years of 1560 - , general and remissive tables of contents and bibliography], the present essay introduce some of the reasons why people should believe, for sure, that Camões was in Macau. Keywords: Camões in Macau. 1. Partida do Reino - Camões partiu para o Oriente na nau S. Bento, capitaneada por Fernão de Álvares Cabral [a única da armada desse ano que completou a viagem da carreira (Loureiro, 2000, p. 577)], que larga do Tejo em 24 de Março de 1553. Se em 1550 havia tentado embarcar voluntariamente para a Índia, na peugada da jovem amada (Joana), mas disso impedido, em 1553 vai contra vontade: Eu não, mas o destino fero, irado,/.../Fez-me deixar o pátrio ninho amado/ Passando o longo mar... (R1, II, Canção X). Parte para um exílio de 17 anos, livrando-se dessa maneira dos «ferros» e dos «grilhões» do Tronco, para onde havia sido lançado em 1552 devido a uma cutilada num criado do Paço. Deixa para trás a grande musa da sua vida, Violante, a quem dirige, durante a viagem, ou logo após, a elegia O poeta Simónides (R1, IV, 4), em que, talvez pela primeira vez, menciona Dinamene na lírica, como uma das Nereidas que, como saudades, acompanham a

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CAMÕES «NAS PARTES DA CHINA»

Eduardo Alberto Correia Ribeiro

GPTUI, RAEM-RPC

[email protected]

Resumo: Na sequência da publicação em Novembro de 2007, em Macau, do seu livro Camões em

Macau - Uma certeza histórica [9 capítulos, 291 p., 3 gravuras, dois anexos - com a vida cronológica

do Épico antes e depois da partida para o Oriente - e um terceiro, sobre o estabelecimento de Macau

nos anos 1560, índice geral, índices remissivos e bibliografia], o presente trabalho apresenta uma

súmula dos argumentos a favor da tese da presença do Poeta em Macau, numa antevisão do que o

leitor ali poderá encontrar.

Palavras-chave: Camões em Macau.

Abstract: Forwarding the publication in Macau (November 2007) of his book Camões in Macau-A

historic fact in Portuguese language [9 chapters, 291 pages, two annexed chronological tables – with

Poet‟s life before and after his trip of seventeen years to the Portuguese India and the Far East

(China) – and one about the origins of Macau in the years of 1560 - , general and remissive tables of

contents and bibliography], the present essay introduce some of the reasons why people should believe,

for sure, that Camões was in Macau.

Keywords: Camões in Macau.

1. Partida do Reino - Camões partiu para o Oriente na nau S. Bento, capitaneada por

Fernão de Álvares Cabral [a única da armada desse ano que completou a viagem da carreira

(Loureiro, 2000, p. 577)], que larga do Tejo em 24 de Março de 1553. Se em 1550 havia

tentado embarcar voluntariamente para a Índia, na peugada da jovem amada (Joana), mas

disso impedido, em 1553 vai contra vontade: Eu não, mas o destino fero, irado,/.../Fez-me

deixar o pátrio ninho amado/ Passando o longo mar... (R1, II, Canção X). Parte para um

exílio de 17 anos, livrando-se dessa maneira dos «ferros» e dos «grilhões» do Tronco, para

onde havia sido lançado em 1552 devido a uma cutilada num criado do Paço.

Deixa para trás a grande musa da sua vida, Violante, a quem dirige, durante a viagem,

ou logo após, a elegia O poeta Simónides (R1, IV, 4), em que, talvez pela primeira vez,

menciona Dinamene na lírica, como uma das Nereidas que, como saudades, acompanham a

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nau onde viaja para a Índia. Dinamene, claro, criptónimo de D. Joana Meneses (D.I.na =

D.Ioana + Mene), filha de Violante: ainda minina, mas imagem e semelhança da mãe, por

quem Luís Vaz se apaixonou por ser A violeta mais bela que amanhece/.../por mais bela,

Violante, te obedece (R2, I, 112) e com quem fez projectos de casamento que, se foram

apoiados pela mãe, Violante, tiveram obviamente a mais firme oposição do pai, D. Francisco

Noronha, já nessa altura conde de Linhares, pertencente a uma das mais antigas e poderosas

casas fidalgas das duas coroas ibéricas. Por via desse sonho no qual depositou as suas mal

fundadas esperanças (Erros meus, má fortuna, amor ardente, R2, I, 140), devido a tão largas

promessas a que se entregou (canção Tomei a triste pena, R1, II, 8), Camões acabou por

acordar desse ilícito desejo numa prisão, rodeado do Tejo, na actual Constância, na

confluência de dois rios cantados pelo poeta, o Zêzere e o Tejo. Quanto a Joana, é embarcada

na armada que parte para a Índia em Abril de 1550, talvez para se encontrar lá com o homem

que lhe destinaram, ou apenas para viver na órbita do primo, o novo vice-rei. Viria contudo a

morrer na viagem e a ser sepultada nas águas: Faltou-te a ti na terra sepultura /Por que me

falte a mim consolação..., Soneto Cara minha inimiga (R1, I, 13) (SARAIVA, 1978a; 1978b).

Camões livrou-se do Tronco, a troco do exílio, mas parte para a Índia com o coração

traçado, alistado como soldado para a comissão militar habitual de três anos.

2. Chegada ao Oriente - Chega em Setembro desse ano de 1553 à Índia Portuguesa e

até 1556 «foi sempre muito estimado assim pelo valor da sua pessoa na guerra como pela

excelência do seu talento» (MARIZ, 1980).

Logo em Outubro-Novembro participa numa expedição à ilha de Porcá, no Malabar,

contra o reinola do Chembe, alcunhado de Rei da Pimenta, na armada capitaneada pelo

Vice-rei D. Afonso de Noronha (FERREIRA, 1960, p. 53). Que uma ilha que o rei de Porcá

tem,/ Que o rei da Pimenta lhe tomara,/ Fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem... (R1, IV, 4).

Entre Fevereiro e Novembro de 1554 participa na expedição ao Golfo Pérsico, na

armada capitaneada por D. Fernando de Meneses, constituída por 30 embarcações e mil

homens. É nesta expedição que, no Guardafui (o Arómata), o cabo com que a costa/ Africana,

que vem do Austro correndo/ limite faz, Arómata chamado (R1, II, 5), compõe, justamente,

essa Canção famosa Junto de um seco, fero e estéril monte....

3. Ocupação - É pouco provável que tenha feito mais do que a comissão trienal para

que foi alistado compulsivamente. Camões, mais do que soldado, foi sempre escritor, poeta,

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vendedor de sonhos e de versos. A partir de 1556, «a sua vida dividiu-se por três pólos de

atracção: cortejar as mulheres que lhe passavam ao alcance, conviver com alguns amigos mais

próximos (que com ele partilhavam uma vida de estúrdia) e escrever poesia»

(ALBUQUERQUE, 1987).

Sabemos, por exemplo, que fez, por encomenda do governador Francisco Barreto

(1555-58), a auto-comédia conhecida por Auto de Filodemo, provavelmente paga ou como

oferecimento para conseguir o favor ou a protecção dos grandes senhores da época, como era

costume entre os homens de letras (GONZÁLEZ, 2003, p.31). O tema desta auto-comédia é o

dos amores de um criado (Filodemo) pela filha (Dionisa) do fidalgo em casa de quem serve,

com laivos autobiográficos que, como em muitos, muitos outros passos da obra, dá razão a

Manuel Severim de Faria que, na biografia que do Épico escreveu em 1624, já dizia dever

aproveitar-se o que Luís de Camões de si refere em seus versos, onde ordinariamente os

poetas deixam escritas suas vidas...

Entreteve-se também a escrever sátiras, com forte e negativo impacto social na época,

susceptível de pena de prisão (Ordenações Manuelinas, Livro V, Título LXXIX, “O mal-dizer

em trovas”), como a Sátira do Torneio, uma zombaria a que se refere Faria e Sousa e que, ao

contrário da Os Disbarates da Índia, «não temos notícia de uma contestação erudita da autoria

camoniana» (FRANCO, 2003, p. 256-58). Obviamente que também o célebre poema épico Os

Lusíadas nunca deixou de ser trabalhado desde que aportou à Índia, só vindo a acabá-lo já no

Reino em 1571.

4. Reclusões em Goa - Sabe-se que o Poeta esteve preso em Goa umas duas ou três

vezes. A primeira em 1556, talvez por uma qualquer sátira ou mesmo pela visão política que

transparece da Sátira do Torneio (FRANCO, 2003, p. 246) ou, quem sabe, por dívidas (de

jogo) ou outra rixa idêntica à que o levou ao Tronco de Lisboa em 1552. Certo é que esteve

preso nesse ano de 1556 e de novo em 1561.

1556 é a data que consegue ser lida no cartel de um retrato de Camões, encontrado no

início dos anos 1970 por Maria Antonieta de AZEVEDO (1972, p. 96-103), com o auxílio de

lâmpada ultravioleta, designando o ano de reclusão e da consequente feitura do retrato (ap.

FRANCO, 2003, p. 250-1).

Em 1561, entre Janeiro e Setembro, dirige umas oitavas ao Vice-rei D. Constantino de

Bragança, fazendo-lhe, em vão, um hábil pedido de emprego (SARAIVA, 1978b, p. 300).

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Nessas oitavas

o Poeta fala do seu “baixo e triste estado” e manifestava a sua revolta

“contra a miséria injusta que padeço”, usando e abusando do tom de

adulação, que estava em moda mas nesse poema atinge grande ressonância.

O seu “triste estado” era, é claro, o de encarcerado. Aí solicita ao vice-rei

que dê ordem para o soltarem, pois se não era nesse tempo desculpável era

pelo menos vulgar a falta pela qual o castigavam, embora decerto com uma

detenção bastante benévola. (ALBUQUERQUE, 1987).

O Poeta estava preso ou «por o mexericarem com o Vice-rei da Índia», D. Constantino

de Bragança (1558- Setembro de 1561), que o mandou prender, como o próprio Camões terá

dito a Manuel Correia (FERREIRA, 1960, p. 219), ou «por dívida a Fios Secos, que o terá

denunciado?» (FRANCO, 2003, p. 250).

A verdade é que ainda estava preso no início do vice-reinado do conde de Redondo, D.

Francisco Coutinho (Outubro de 1561- Fevereiro de 1564), que o liberta depois de o Poeta lhe

ter dirigido umas trovas a pedir-lhe que o tire da cadeia: ‘’Que diabo há tão danado/ Que não

tema a cutilada/ Dos dias secos da espada/ Do fero Miguel armado/[...] Portanto, Senhor,

proveja,/ Pois me tem a remo atado,/ Que, antes que seja embarcado,/ Eu desembargado

seja’’. (HUE, 2006; CIDADE, 1985, I, p. 152).

Estas trovas parecem indicar que a razão da prisão foi mesmo por estar em dívida para

com Fios Secos, a alcunha de Miguel Roiz.

D. Francisco Coutinho tinha todas as condições para ser o único a ajudar Camões:

além de ser Vice-rei, claro, o que lhe conferia o poder, tinha pergaminhos para se atrever a

defrontar a ilustre e poderosa casa rival dos Noronhas, que haviam banido o Poeta do seu

serviço e o haviam levado à prisão, ao exílio e ao ostracismo. Não só o liberta, como lhe dá

emprego.

5. Protector de Camões - Em 1563 já Camões está a agradecer ao 2º conde de

Redondo por se ter dignado a conceder-lhe finalmente uma ocupação, contra o que parecia ser

uma maldição do destino. Que dizem as redondilhas? - :

Conde, cujo ilustre peito/ merece nome de Rei, /do qual muito certo sei /que

lhe fica sendo estreito /o cargo de Vizo-Rei; /Servides de me ocupar /Tanto

contra meu praneta.../Não foi senão asas dar-me /Com que irei a

queimar-me /Como faz a borboleta.

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Os últimos versos tão proféticos são que bem podem representar um

acrescentamento tardio, porventura da mão do próprio Camões, como sugere J. H.

Saraiva.(1978b, p. 302). Parece, na verdade, uma alusão aos duros trabalhos que lhe

inventaram relacionados com o injusto mando executado naquele cuja lira sonorosa será mais

afamada que ditosa, a que se refere no Canto X, estância 128: ordem iníqua que, na sequência

do naufrágio do Mecom e da perda dos bens orfanológicos das partes, o levaram à prisão, à

capitulação por peculato e ao duro estado em que ficou.

O texto poético termina assim: Bem basta, Senhor, que agora/ vos sirvais de me

ocupar,/ que assi fareis aparar/ a pena com que algüa hora/ vos vereis ao Céu voar. Assi vos

irei louvando,/ vós a mim do chão erguendo,/ ambos o mundo espantando:/ vós, co a espada

cortando,/ eu, co a pena escrevendo.

Não é apenas um emprego que se agradece, é uma relação mais profunda de proveito

mútuo que se firma e enaltece e que constituía, para Camões, a protecção de que necessitava.

Como Márcia Arruda Franco (2003) notou, uma relação de mecenato com o vice-rei

claramente enunciada. Como já Aquilino Ribeiro havia referido, um autêntico comércio

poético que daqui decorria, estabelecido entre os dois (1974, II, p.74).

Não há dúvida, o conde de Redondo, D. Francisco Coutinho, é uma peça fundamental

no girar da roda da Fortuna a favor do Poeta. Deveu-lhe a liberdade, fica-lhe a dever a

ocupação.

E a relação é tão boa que ousa interceder junto dele, do «grande Aquiles», por outros,

como fez por Heitor da Silveira, a quem «agora a fome mata». E vêmo-lo ainda nos

Colóquios de Garcia de Orta, a pedir para o autor, numa ode a ele dedicada (Aquele único

exemplo, R1, III, 2), «favor e ajuda» para o «grão volume» «que dará na Medicina novo

lume».

6. Provedor de defuntos na China (Macau) - Mas que ocupação terá sido essa? É

Diogo do Couto quem nos dá a resposta mais fidedigna. Tendo chegado à Índia Portuguesa

em 1559 com cerca de 18 anos, não pode ter deixado de conhecer Camões. Na Década VIII,

versão extensa, é ele que nos conta que, em Abril de 1569, quando chega à ilha de

Moçambique na nau Chagas, onde vinha embarcado com o ex-Vice-rei D. Antão de Noronha

de regresso ao Reino, recebe uma missiva de Luís Vaz em forma de soneto, onde Camões lhe

dá conta de ali estar em miserável estado depois de um tão furioso golpe que a fortaleza e

braço tão forçoso não se teve e jaz por terra espedaçado: «E sabendo estarmos na barra de

Moçambique me mandou este soneto que trago aqui pera testemunha do miseravel estado em

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que estava» (segue-se depois o soneto Amado Couto o largo e poderoso) (CRUZ, 1993-4, I, p.

471 e vol. II, p. 199).

Por Pedro de Mariz ficamos a saber que, depois de o ter encontrado, Couto e outros

portugueses se fintaram para pagar ao capitão Pero Barreto os duzentos cruzados que este

emprestara ao Poeta na Índia para pagar a «sua matalotagem» (O embargo de Pero Barreto

por dívida de matalotagem é explicado pelas Ordenações, no Tít. CX, „‟Da maneira que se

terá com os presos que nom poderem pagar às partes as quantias em que forem condenados‟‟

(FRANCO, 2003, p. 252). «Ser matalote de alguém corresponde a ser sustentado no navio à

custa exclusiva desse alguém. A matalotagem era a alimentação recebida gratuitamente no

curso através do mar» (FERREIRA, 1960, p. 304). Sucintamente, «companheiro de bordo»

(RIBEIRO, 1974, II, p, 240).

Mas esse embarque só se vem a concretizar em Novembro desse ano de 1569 e a

viagem decorre até Abril de 1570, mês em que aportam a Cascais. Ora, está visto que de Abril

de 1569 a Abril de 1570, Diogo do Couto «conviveu intimamente com Camões em

Moçambique e na viagem para a metrópole» (FERREIRA, 1960, p. 301).

O que nos conta Diogo do Couto desse período? Tudo o que interessa a Camões e à

sua presença em Macau: que ali, na ilha de Moçambique, o encontrou pobre, porque, «da

viagem que fez à China por provedor dos defuntos [...], vindo de là se foi perder na costa do

Sião, onde se salvarão todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas Lusíadas

como ele diz nellas e aly se lhe afogou hũa moça china que trazia muito fermosa...»

Como se vê, Couto diz o que Camões fez e onde: na China. Mas disse muito mais,

como adiante se fará menção. Para já, o que interessa reter é que quando o cronista-mor da

Ásia escreve que Camões foi provedor de defuntos, na China, e que se perdeu num naufrágio

quando de lá vinha, não está senão a dizer a verdade, ouvida em primeira mão do próprio

Poeta. Conhecimento antigo, amizade genuína, respeito intelectual mútuo. A relação de

confiança era tão grande que: «Diogo do Couto conheceu bem a celebrada epopeia, já que

recebeu do respectivo autor a encomenda de um Comentário histórico» (LOUREIRO, 1998, p.

89) e é ainda por ele que sabemos ter escrito o Poeta o Parnaso de Luís de Camões «que lhe

desapareceu, e nunca pude em Portugal saber dele», até hoje.

Couto é sem dúvida o mais credível. Mas outras fontes, também credíveis, indicam o

desempenho da função na China: na biografia de Camões de 1613 escrita por Pedro de Mariz

e comentada por Manuel Correia, este amigo do Poeta, o primeiro dizendo que foi nas «partes

da China», o segundo que «foy à China».

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Ora, a partir de 1560, já Macau era o único estabelecimento a ser utilizado pelos

portugueses nas costas chinesas (RIBEIRO, 2007, cap. V).

«Em 1624, o ilustre Manuel Severim de Faria, amigo e correspondente do autor das

Décadas da Ásia» (LOUREIRO, 1998, p. 55), diz mesmo que a provedoria foi exercida «em

Macau». Ora, «Chantre de Évora, amigo pessoal de Couto» (MONIZ, 2004, p. 33),

Severim, como historiador, não desconhecia que, antes de os portugueses se

estabelecerem em Macau, tiveram de passar pelas fases da desconfiança, da

hostilidade e, finalmente, da aceitação e tolerância por parte da China Ming.

Não desconheceria que a estada de Camões em Macau coincidiu com esse

período fluido em que o estabelecimento luso na costa chinesa foi Liampó,

Chincheo, Sanchoão, Lampacau, consolidando-se, finalmente, em Macau.

Por isso, quando o afirma dessa forma assertiva «Macau», é porque teve

acesso a informação genuína, ou de manuscrito que lhe passou pelas mãos,

ou de informe dado por quem sabia do que falava: Couto». Às voltas com a

biografia do Poeta, em 1624, «havia algo que não satisfazia um homem

como Severim: partes da China? que partes? onde? Um pormenor que

Severim tinha de esclarecer, e fê-lo (RIBEIRO, 2007, p. 42-3).

7. Camões na China (em que anos) – Em que período terá estado Camões em Macau?

Transcrevo o que defendo em Camões em Macau – Uma Certeza Histórica, p. 218-220:

Luís Vaz de Camões, após um apelo seu ao Vice-rei (Que diabo há tão

danado), sendo libertado por D. Francisco Coutinho (Setembro de

1561-Fevereiro de 1564) da prisão, onde estaria a cumprir pena por dívidas,

deve ter sido logo nomeado, ainda em 1562, pois tem tempo de agradecer ao

Vice-rei a nomeação, em ode que lhe dedica e onde explicita muito mais do

que um mero agradecimento.

Por outro lado, a publicação da ode em louvor de Garcia de Orta em Abril de

1563 não é elemento decisivo como baliza a quo, pois pode tê-la composto

muito antes, já que a impressão dos Colóquios vinha sendo preparada desde

1562; bem como não é factor decisivo como baliza a quo a elegia por morte

do fidalgo D. Tello de Meneses, ocorrida segundo J. H. Saraiva em 1563, por

dois motivos: primeiro, porque segundo alguns autores, não é certo que a

autoria dessa elegia seja de Camões (JÚNIOR, 1963); segundo, porque D.

Miguel de Meneses [é assim que é tratado na elegia (R2, IV, 10, p. 591)]

parece ter falecido em 1562 e não em 1563 (é isso que a Micrologia

Camoniana de João Barreto diz sob o nome de D. Tello, p. 739); mas pode,

isso sim, ter embarcado em Julho desse ano com os jesuítas que nessa data se

vieram instalar definitivamente em Macau.

A morte inesperada de D. Francisco Coutinho em 28 de Fevereiro de 1564

veio interferir, mais uma vez, na vida do Épico.

Durante o período de seis meses em que esteve interinamente no Governo da

Índia, até à chegada do novo Vice-rei [D. Antão de Noronha (1564-68)], o

governador João de Mendonça (28 de Fevereiro-2 de Setembro de 1564)

passa uma provisão a nomear D. João Pereira, antigo capitão de Malaca

entre 1556 e 1557, a conceder-lhe o governo de Macau (como era habitual

aos capitães da viagem do Japão), aí devendo exercer ainda, «nos ditos

portos de Macau na China e Japão», o «cargo de provedor dos defuntos».

Não faz senão dar seguimento ao alvará régio da mercê da viagem, passado

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em Lisboa a 6 de Março de 1563 (BARRETO, 2006).

Poderá D. João Pereira ter mantido a delegação da incumbência em

Camões? Fidalgo e cunhado de D. Antão de Noronha, é pouco provável: a

lealdade à família não lho permitiria. E D. João Pereira, chegado ao porto de

Macau em meados de Agosto de 1564, vem com uma missão: «acabar com o

período de Diogo Pereira como capitão-mor dos portugueses em Macau»,

que desde 1553-54 tinha vindo a seguir a «estratégia vitoriosa de contornar o

capitão de Malaca, não o deixando deitar a mão ao comércio privado

português nas ilhas de Cantão» (BARRETO, 2006).

Diogo Pereira pertencia à poderosa família dos Pereiras, ligada aos

primórdios de Macau, em associação estreita com os jesuítas. «O choque

pessoal entre o muito rico nobre mercador da mais baixa nobreza, Diogo

Pereira, e o rico nobre mercador, da mais alta nobreza, D. João Pereira, é

apenas mais um episódio das contradições e conflitos sociais internos do

mundo português na Ásia».

Capitão-mor provê, capitão-mor desprovê: e Camões, apanhado no

meio destas lutas de interesses, não terá exercido o cargo por muito tempo e,

nesse ano de 1564, outra «volta deu a fatal roda», essa «Fortuna inquieta»

(Lusíadas, III, 17). Se já estava nomeado desde 1562, pode perfeitamente ter

estado provido, no insignificante cargo, os dois anos que a historiografia

macaense do Poeta tradicionalmente lhe atribui. O que não quer dizer que

tenha estanciado em Macau esses dois anos: longa é a rota entre Goa e

Macau, sujeita às cadências da navegação marítima, as da monção

inclemente e as do fluxo mercantil.

Por isso, defendo o período de 1563-64 como o mais plausível do estanciamento do

Poeta em Macau: nomeado em 1562, para lá parte em 1563 e de lá terá partido em 1564

(eventualmente 1565).

8. Camões na China (o que diz ele disso) – Se Camões esteve na China, alguma coisa

deve ter dito disso, para além do que pode ter consultado em «obras como a Década III de

João de Barros, já publicada em 1563, que dedica vários capítulos à China, ou o Livro IV da

História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses de Fernão Lopes de

Castanheda, impresso em Coimbra em 1553, que incluía igualmente vários capítulos sobre a

China», «para já não falar do Tratado das Coisas da China, publicado em Évora em 1570»,

«com a mais vasta e exaustiva síntese sobre a China até então publicada na Europa», de Frei

Gaspar da Cruz, e que podia ter utilizado no poema épico. (Loureiro, 2003, p. 121).

Mas não o fez. A verdade é mais singela e tem a resposta na embocadura do Mecom,

onde terá perdido tudo no regresso de Macau. Um pouco como aconteceu com o espólio de

Eça que foi para o fundo do mar no naufrágio do navio St. André diante de Lisboa, a 24 de

Janeiro de 1901; nele vinha não só a quase totalidade dos papéis privados de Eça, como

quadros de Carlos Reis, de Malhoa e de Veloso Salgado e uma pequena tela, de Columbano,

onde Eça era retratado (MÓNICA, 2001, p. 361).

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Mesmo assim, podemos vislumbrar n´Os Lusíadas menções evidentes da sua presença

na China (Macau). E ele, do que fala no poema épico, é do que sabe, do que viu, donde esteve.

Ele não tem «conhecimento vivencial do Celeste Império», de que fala Rui Manuel Loureiro

(2003, p.121), certíssimo, porque não penetrou no Império do Meio; quedou-se na periferia

desse Império; aliás, na periferia de dois Impérios, o do Meio e o do Português do Oriente.

Macau era essa periferia, esse porto, na fronteira de dois Impérios. E o que diz ele? A menção

mais importante é a do Canto X, est. 131. Vejamos os versos 1-2: Inda outra muita terra se te

esconde /Até que venha o tempo de mostrar-se;

Que terra é esta que se esconde? China não é, pois após o estabelecimento definitivo

em Macau, a partir de 1560, os lusíadas estantes naquelas paragens tinham finalmente achado

o poiso de que andavam em demanda desde que, após as primeiras viagens exploratórias de

Jorge Álvares em 1513 e Rafael Perestrelo em 1515 (Loureiro, 2000, p. 151ss.), ali tinham

chegado aos mares do Sul da China e estabelecido, com a expedição de Fernão Peres de

Andrade em 1517 os primeiros contactos «de iniciativa régia» com os chins (idem, p. 203ss.).

É uma terra aonde Camões não chegou: É Japão, onde nace a prata fina (verso 8),

esclarece-nos ele, uma terra meio escondida, que responde de longe à China...

Vejamos o resto da estância 131 (X), versos 3 a 8:

Mas não deixes no mar as Ilhas onde /A Natureza quis mais afamar-se: /Esta,

meia escondida, que responde /De longe à China, donde vem buscar-se, /É

Japão, onde nace a prata fina, /Que ilustrada será co a Lei divina.

Essa terra (o Japão) que «se esconde» e «responde de longe à China», esconde-se de

quê e responde a quem? Da China, obviamente, ele o diz, porque daí, é donde vem buscar-se

(alguma coisa) para se levar para lá (Japão) e de lá trazer a prata fina.

Que responde de longe à China... À China, repare-se: é onde ele está, é donde ele fala:

do varandim macaense.

A descrição da Ásia que Camões faz no Canto X do poema épico sugere fortemente

que o Poeta evoca um caminho percorrido até chegar à China (OLIVEIRA, 1975, p. 86-8;

SARAIVA, 1978b). E daí, Camões fala de um lugar a que se vai (o Japão), do ponto onde se

está (Macau). Transcrevo o que expus na obra que tenho vindo a citar (2007, p. 169ss.):

Estes versos da épica demonstram que Camões tinha um conhecimento

muito preciso deste negócio da prata, principal exportação do Japão, sendo

certo que os altos e baixos do seu comércio estiveram inseparavelmente

ligados às vicissitudes da Missão Jesuíta no Japão, até ao seu fim trágico. A

prata destinava-se ao tesouro imperial, cujas reservas monetárias em prata

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estavam exauridas desde a década de 1530. O sistema monetário assentava

desde 1430-1450 num padrão-prata, sendo a prata, amoedada ou não,

cronicamente insuficiente (BARRETO, 2006, pp. 15-6). «Se foi a procura de

Cristãos e Especiarias que trouxe os portugueses à Ásia em primeiro lugar,

pode-se dizer que foram os Cristãos e prata as duas estrelas condutoras que

em conjunto os guiaram nas suas viagens ao Japão por quase um século»

(BOXER, 1989), desde a chegada a Tanegashima em 1543. A prova disso

está no facto de, ao longo dos primeiros 66 anos de vida da cidade portuária,

ter sido o capitão-mor da viagem do Japão o governador interino de Macau

(BARRETO, 2006, p. 107) [...]

Camões era efectivamente conhecedor de uma realidade que ele conhecia em

primeira mão, por ter visto partir de Macau a Nau do Trato, em direcção ao

Japão, e assistir depois à chegada. Pôde testemunhar o carregamento no cais

de Patane das sedas, em cru e tecido (de melhor qualidade que a do Japão,

por isso a preferiam) e do ouro chinês, com destino ao Japão, e à chegada do

Navio na estação seguinte, e ao seu descarregamento de prata em barra,

destinada aos chineses, sendo estes os principais produtos que

caracterizavam a fase inicial do comércio português com a China. (BOXER,

1989, p. 6).

Mas outros versos há, que demonstram que Camões esteve na China. Os do naufrágio,

por exemplo.

9. O naufrágio de Camões – É num desses anos, no regresso de Macau, que teve lugar

o naufrágio, na latitude do Mecom. Foi no regaço deste, plácido e brando, que os Cantos do

Poeta foram recebidos, vindos do naufrágio triste e miserando (Canto X, 128).

O Mecom, sabemo-lo hoje, esparrama-se em delta no então denominado «golfão» da

China (mar da China). Mas não era isso o que se sabia no tempo de Camões.

Diogo do Couto diz que o Poeta, «da viagem que fez à China por provedor dos

defuntos [...], vindo de là se foi perder na costa do Sião, onde se salvarão todos despidos e o

Camões por dita escapou com as suas Lusíadas como ele diz nellas e aly se lhe afogou hũa

moça china que trazia muito fermosa...».

Mecom na «costa do Sião»? Na verdade, conforme já demonstrei (RIBEIRO, 2007, pp.

187-192), à época era essa a representação cartográfica que se fazia do delta do Mecom: a

esparralhar-se na costa do Sião; e que essa deficiente representação gráfica do delta do

Mecom foi constante durante mais de um século, de meados do séc. XVI a meados do séc.

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XVII. Vejamos o que aí defendo:

Se os cartógrafos, e até Fernão Vaz Dourado, contemporâneo e muito

provavelmente amigo de Camões, ainda representaram o delta do Mecom

balanceado para o golfo do Sião, é claro que o próprio Poeta pode ter

mencionado a Couto ter sido acolhido no plácido e manso delta de um

«Sião» imaginário, porque imaginado por todos, desde os cartógrafos,

passando pelo Poeta e até o cronista, de que o Mecom desaguava no Sião.

De resto, tudo em conformidade com a geral ignorância da época sobre esta

matéria, e outras. (p. 192).

[...]

O braço mais a sul do delta do Mecom está a 200 Km do cabo Ca Mau, na

extremidade da península com o mesmo nome, que separa em cunha o golfo

do Sião e o mar da China, e dobrado o qual, para Sul, só então se poderá

considerar estarmos no golfo do Sião. O naufrágio só pode ter sido na

latitude do Mecom, em pleno «golfão da China». A referência a Sião que se

lê em Couto, a não ser lapso, resultará provavelmente de os náufragos, o

Poeta incluído, terem sido recolhidos e levados a salvo para Patane, reino

islâmico malaio, tributário de Sião (Ayuthia); ou de Couto ter como

referência, desdobrada à sua frente, na altura em que escreve, uma carta da

época, em que os topónimos ainda eram indevidamente desenhados] (p. 172,

n. 284).

Para o presente trabalho, o que importa é isto: a referência ao Mecom por Camões e as

referências feitas por todos os testemunhos à China (mar da China) faz entrever o óbvio: se

foi no Mecom, ou nas cercanias, o destino era, ou tinha sido, «as partes da China», nessa

altura, já obviamente, Macau. Se, como diz o investigador Rui Manuel Loureiro (2003, p.

115), a rota normal que ligava Malaca ao litoral chinês era Patane - ilha de Pulo Condor - ilha

de Pulo Catão e, finalmente, a província chinesa de Guangdong, então, se se admite a

autenticidade do naufrágio (idem) - e parece não haver quem a recuse - ele não poderá ter

ocorrido no golfo do Sião mas no mar da China.

10. O naufrágio e as redondilhas Sôbolos rios que vão

10.1. Ponto de ruptura e de projecto - As redondilhas que começam com este verso

são, nas palavras de António Sérgio, a coluna vertebral da lírica camoniana (JÚNIOR, 1963,

p. XCII).

Talvez porque estejam presentes em muitos dos testemunhos até nós chegados sobre

Camões e a China. Vamos passá-los em revista:

a) Na edição de 1584 d´Os Lusíadas um comentador anónimo associa o

Canto VII, est. 80, v. 5, ao naufrágio do Poeta (Agora às costas escapando a vida), num

comentário marginal impresso na pág. 187 do poema épico.(RIBEIRO, 2007, pp. 34, 69ss. e

247). E, logo a seguir, a mesma anónima nota impressa acrescentava que havia sido por

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ocasião do naufrágio que o Poeta compusera «aquelle cancioneiro, que diz: Sobre os rios que

vão per Babylonia». Fez bem o nosso comentarista anónimo associar o naufrágio ao Canto

VII e às redondilhas Sobre os rios que vão, porque, na verdade, quer o Canto VII quer as

redondilhas estão associadas, justamente, ao ponto de ruptura na vida do Poeta causadas pelas

consequências, não só psicológicas, na vida do Poeta e à alteração do seu projecto, assinaladas

pela Professora Maria Vitalina Leal de MATOS, da Universidade de Lisboa, quando ele,

«perplexo e hesitante», «volta a enfrentar o projecto, reformula-o e o corrige», rematando:

«Camões terá alterado o seu projecto – e essa alteração situa-se, ou detecta-se, no Canto VII,

est. 78-87». (2003, p. 364; RIBEIRO, 2007, p. 72). Também Diogo do Couto se refere a esta

alteração de projecto, como iremos ver um pouco mais à frente, quando fala da reforma das

suas Lusíadas. A estância 80 (e não só) do Canto VII e as redondilhas Sôbolos rios foram,

seguramente, feitos depois do naufrágio.

b) O Cancioneiro de Madrid (Cancioneiro da Real Academia de la Historia de Madrid)

associa também ao naufrágio do Poeta na China as mesmas redondilhas, dizendo também que

terão sido compostas por ocasião daquele.

Este cancioneiro é provavelmente posterior à morte de Camões (contém poemas sobre o

desastre de Alcácer Quibir) e por isso o valor do informe não era definitivo. Contudo, com a

publicação do Cancioneiro de Cristóvão Borges, fica corroborado o que a epígrafe quer dizer:

um naufrágio, relacionado com uma viagem à China. «O testemunho destes cancioneiros

manuscritos (o de Madrid e o de Cristóvão Borges), coligidos ainda durante a vida de Camões,

contribui para dar alguma credibilidade à tese do naufrágio camoniano». (LOUREIRO, 2003, p.

115).

c) O Cancioneiro de Cristóvão Borges, com o nome do seu autor, um alto funcionário

régio, era até há pouco desconhecido, mas foi publicado em 1979 por Arthur Lee-Francis

Askins. O conselheiro trasladou à mão a 1ª parte (poema de amor profano, constituída por 190

versos) das redondilhas Sobre os rios que vão encimadas da seguinte epígrafe: „De L. de C. a

sua perdição na China‟. E tem data precisa do terminus ad quem da colectânea: 24 de

Dezembro de 1578. Ou seja, ainda em vida do Vate.

É o próprio autor do manuscrito que o declara logo no início. Diz ser o proprietário

daquele «catarpácio de trovas», diz de onde é natural, indica o local onde morava e deu por

encerrada a recolha (Palácio de Xabregas), regista a data em que concluiu o cancioneiro e

assina a declaração de autoria e posse.

O Cancioneiro só transcreve a 1ª parte (o poema de amor profano) das redondilhas

(200 versos), escritas por ocasião do naufrágio, que ocorreu seguramente antes de 1568,

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omitindo a segunda parte, a mais emocionante, comovida e original, e à qual o poema veio a

dever a justa celebridade. Essa omissão significa que o coleccionador ainda não conhecia a 2ª

parte do poema, ou porque ainda não tinha sido escrita, ou fora-o há muito pouco tempo. Com

um intervalo de, pelo menos, dez anos entre as duas partes (uma de c. 1568, outra de c. 1578),

houve um elemento puramente formal para as fundir: ambas parafraseiam o mesmo salmo 137,

mas unidos formalmente pelo mesmo tema bíblico, são composições diferentes, no espírito (um

profano, o outro religioso) e no tempo (SARAIVA, 1978b, p. 444 ss).

d) Também Diogo do Couto se refere a estas redondilhas. Na sua Ásia-Década VIII,

após se referir à moça china e ao naufrágio, depois deste e já em terra (...), Aly fez tambem

aquella grave e docta canção que começa Sobre os rios que vão (...) (CRUZ, I, p. 470).

Associa-as, portanto, ao naufrágio (1564? 1565?) e não devem ter sido compostas após

1568 (é da primeira parte que falamos). Camões, com os demais náufragos, deve ter sido

socorrido muitos meses depois e levado para Malaca, onde lhe foi dada voz de prisão pela

perda dos bens orfanológicos. Sujeito à cadência da circulação marítima no Pacífico e Índico

oriental, dependente dos ventos, correntes e marés e dos fluxos mercantis, subordinado às

ordens das autoridades, pode ter demorado dois anos até chegar a Goa. Por exemplo, «a

viagem de Goa - Molucas (Ternate) – Goa demorava, no mínimo, 23 meses» (Cruz, 1994, II,

p. 287).

Em Goa terá sofrido os enxovalhos de quem é socialmente irrelevante e perdeu

protectores. Esteve preso? Não esteve preso? Mariz refere que sim. Camões aponta que sim:

Canta o prêso docemente, /Os duros grilhões tocando, é o que ele diz, muito expressivamente,

nas redondilhas. Tudo parece indicar que as compôs quando, mais uma vez, esteve no cárcere

em Goa. Camões não fala por acaso e quase tudo o que diz ou do que fala é autobiográfico,

como desde cedo os biógrafos assinalaram.

Em Dezembro de 1567 ou Janeiro de 1568 o nosso Poeta embarcou na nau de Pêro

Barreto, tendo desembarcado na ilha de Moçambique. Se as redondilhas terão sido compostas

no cárcere em Goa, já a «reforma» do poema épico de que fala Diogo do Couto, se pensadas

imediatamente após o naufrágio et pour cause, só aqui deve ter sido feita, pois foi onde

passou cerca de dois anos (desde que chegou em princípios de 1568 até que embarcou para o

Reino em Novembro de 1569) e onde Couto o veio encontrar no «estado miserável» de que

fala na Década VIII em Abril de 1569. Em Moçambique terá, pois, escrito estas linhas:

trabalhos nunca usados me inventaram, /com que em tão duro estado me deitaram (Canto VII,

est. 81, vv. 7-8).

É disso que fala o cronista-mor da Ásia ao narrar na Década VIII (versão extensa) o

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seu encontro com o Poeta em Moçambique: «Esse Inverno reformou o Camões suas Lusiadas

e me pedio lhas comentasse, o que eu comecei a fazer e tendo quatro cantos findos que me

embeberão mais de cinco mãos de papel por ser o comento muito copioso...» (idem, p.472). E

quando teve de a redigir de novo, na versão resumida, cada vez mais doente, não deixa de

anotar: «e aquelle inverno que esteve em Moçambique, acabou de aperfeiçoar as suas

Lusiadas pera as imprimir» (CRUZ, 1993-4, II, p. 199).

Esta «reforma» ou «aperfeiçoamento», de que fala Couto, «detecta-se no Canto VII,

est. 78-87», como dissemos ter assinalado a investigadora Maria Vitalina Leal de Matos.

10. 2. Um preso tocando grilhões e vertendo lágrimas de sangue - Muita gente, como

se vê, a dar testemunho da importância destas redondilhas na lírica camoniana.

Contemporâneos do Poeta e modernos pensadores atentos, como os já citados António Sérgio e

Maria Vitalina Leal de Matos. Mas outros há, como o Prof. António Salgado Júnior (1963, p.

860), o Prof. José Hermano Saraiva (1978b), Fernando Gil (2005, p. 255 ss ), Aquilino Ribeiro

(1974) e outros. Este vê mesmo aqui tortura e lágrimas de sangue: «não o faz em obediência

apenas à palavra de passe petrarquista; mais do que floreio poético subjectivo, há ali tortura

verdadeira»...«Sente-se que pôs de parte o artifício quando fala (...) nos seus danos, ou quando

chora lágrimas de sangue sobolos rios que vão por Babilónia...» (1974, I, p. 49).

O desalento e a desesperança de Luís Vaz na primeira parte da

composição nasceram, pois, do naufrágio, dos duros trabalhos que lhe inventaram, da prisão e

acusação de peculato dos bens orfanológicos.

Luís Vaz confessa que chorou, que já só se contenta com morrer, que já

não tem prazer nenhum em cantar (em Babilónia, isto é, na Índia Portuguesa) como fazia no

Reino (Sião), e di-lo claramente: que o canto ao som do qual canta são os grilhões a que se

encontra preso. É já outro canto, é já com desencanto. Depois do naufrágio, por causa de um

«injusto mando» e do papel iníquo, a «capitulação» pela perda dos bens «das partes», cá está

um dos «duros trabalhos» que «lhe inventaram» e um dos «duros estados» em que o lançaram:

a prisão na Babilónia: prêso, tocando duros grilhões, cantando docemente sobre os rios de

Babilónia...

Mas lembranças da afeição

Que ali cativo me tinha... (v. 121 e 122)

Canta o prêso docemente,

Os duros grilhões tocando; (v. 136 e 137)

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Eis na obra do Poeta aquilo que o biógrafo Pedro de Mariz também

regista: «ser preso na Índia pelo governador Francisco Barreto e de vir capitulado a este

reino» (vd. nota 1). Manuel Correia diz quase o mesmo: «fora preso por mandado do

Governador Francisco Barreto, pela fazenda dos defunctos, que elle trazia a seu cargo, porque

foy à China por Prouedor mor dos defuntos».

Esteve sem dúvida preso, «pela fazenda dos defuntos» na China, ou seja, por causa

d´«o das partes», isto é, os bens orfanológicos por que era responsável e tinha de prestar

contas. Mas só a sanha persecutória de uma poderosa casa fidalga pode ter justificado os

«duros trabalhos» que o Poeta teve decorrentes de um acontecimento da Natureza.

11. Dinamene e a moça china – É Diogo do Couto quem fala na moça china e mais

ninguém. Que no naufrágio se afogou...e que era muito formosa. E que em terra fez sonetos à

sua morte, como aquele que diz: Alma minha gentil que te partiste /tão cedo desta vida

descontente /repousa tu no Céu eternamente /e viva eu cá terra sempre triste. E que, à moça

china, chama Camões em suas obras Dinamente (sic).

Há três motivos para rejeitar esta lenda da moça chinesa chamada

Dinamene:

a) A palavra Dinamene aparece na lírica de Camões em poemas escritos

muito antes do naufrágio na foz do Mecom. Aparece apenas: 1. numa elegia (O poeta

Simónides, R1, IV, 4), em que Dinamene é apenas uma das Nereidas que, como saudades,

acompanham a nau na qual Camões viaja para a Índia, toda ela dirigida a Violante (SARAIVA,

1978b, p. 215); 2. em duas éclogas [As doces cantilenas que cantavam (R1, VI, 5) e A rústica

contenda desusada (R1, VI, 4)] onde fala de uma jovem que em vão perseguiu (SARAIVA,

1978b, p. 214-15); 3. em dois sonetos, onde não há referência a qualquer naufrágio, mas sim à

morte no mar (Ah! minha Dinamene assim deixaste e Quando de minhas mágoas a comprida)

(LURDES SARAIVA, 1990, p. 185 e 188).

A mesma ideia de morte no mar e da falta de sepultura ocorrem nos

sonetos Cara minha inimiga, em cuja mão e O Céu, a terra, o vento sossegado, onde a jovem

morta é Aónia (Joana) (LURDES SARAIVA, 1990, p. 189 e 187).

Mas no soneto citado na Década VIII (Alma minha gentil, que te

partiste, p. 184), sendo certo que é uma homenagem à jovem amada que acaba de morrer,

nenhuma daquelas ideias é aflorada. E não se cita o nome da amada. A associação a Dinamene

feita na Década VIII é artificialmente induzida.

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Quer as éclogas, quer a elegia, que falam em Dinamene, aparecem já publicadas na edição

das Rimas de 1595, o que denota, no mínimo, que o inventor da lenda chinesa «não lia Camões,

pois só se preocupou em encontrar resposta para os sonetos, que por serem mais belos e muito

breves, eram mais repetidos» (SARAIVA, 1978b, p. 214). Na verdade, Alma minha gentil, que

te partiste «é dos mais belos sonetos de Camões», devendo talvez ao seu «carácter de prece» a

larga aceitação que tem tido, no dizer de Agostinho de Campos (ap. Maria de LOURDES

SARAIVA, 1990, p. 184).

b) Num informe manuscrito de 1672, de João Franco Barreto, inédito até há uns anos, sub

verba «Dinamene», faz ele constar que era o nome de uma dama, o que de todo não se coaduna

com a lenda da moça chinesa. No mínimo revela que Franco Barreto, em 1672, não conhecia a

versão da jovem chinesa e que a lenda da atribuição do nome Dinamene à moça chinesa se não

é bem mais tardia, como alegam os defensores da apocrificidade da versão extensa (integral) da

Década VIII, então surgiu desde muito cedo, como veremos já adiante. A versão extensa da

Década VIII de Couto, manuscrita, nunca impressa, que é a única que fala disso, foi,

efectivamente, encontrada apenas no séc. XVIII...

c) O prof. José Hermano Saraiva é um dos que defende que a Década VIII (versão

integral) furtada em 1615, foi objecto de falsificação, em Portugal, a partir do texto impresso

do Resumo, inserida na estratégia, detectada noutros casos, de ocultação da identificação quer

de Violante de Andrade, quer da jovem amada, filha da primeira (D. Iona Meneses) e teriam

todas a mesma origem: Diogo Paiva de Andrade, sobrinho de D. Violante e primo direito da

filha desta. (SARAIVA, 1978b, p. 197-211). Mestre Aquilino Ribeiro também não duvida da

falsificação (1974, II, p. 240ss.) O Prof. Rui Manuel Loureiro, depois das conclusões da

investigadora Maria Augusta Lima Cruz (1993-94), que considera definitivas (2003, p

117-18), pronuncia-se pela autenticidade da versão extensa da Década VIII, onde vem referida

uma moça china Dinamene. Os argumentos desta investigadora são, na verdade, impressivos

(II, 1994, p. 32ss.). Mas, segundo investigação da autora, os «códices Porto/Madrid»

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(descobertos em 1917 na Biblioteca Municipal do Porto) que constituem a chamada versão

extensa (ou integral) da 8ª, não terão sido mais do que „‟depositários‟‟ do que seria o conteúdo

de uma pasta em que o autor ia organizando os materiais seleccionados com vista à

composição final da Década 8ª na sua versão integral» (Cruz, 1994, II, p. 37), ou seja,

«depositários daquilo que poderíamos designar por um estado de futura versão integral da

Década 8ª» (idem, p. 41).

A versão conhecida por extensa (ou integral), sendo embora autêntica, não foi afinal

senão um «borrão» da que, tendo sido, essa sim, definitiva, veio por fim a ser furtada e nunca

apareceu!... A que conhecemos, então, não é a verdadeira Década VIII, pronta em finais de

1614 (idem, p.273-74), «roubada» em 1615 como escreveu Couto na carta de 28 de Janeiro de

1616 que precede a versão resumida (CRUZ, II, p. 37 e 45). Não, o que temos como Década

VIII (versão extensa) são os «códices depositários» do que terá sido a verdadeira (idem, p. 37);

assim, a versão Porto/Madrid, conhecida por versão extensa (ou integral), «que tem mais as

características de um rascunho, que de um trabalho acabado» (CRUZ, 1994, II, p. 275), é

afinal o «borrão» da verdadeira (idem, p. 39).

A considerarmos acertadas estas considerações de M. A. Lima Cruz e verdadeira a

conclusão de R.M. Loureiro, faço vénia aos dois reputados investigadores e peço licença para

as seguintes reflexões, que já tinha latentes aquando da publicação da obra ora lançada

(2007):

Couto, em 1615, já nos seus 73 anos, rabugento e com a atrite a apoquentá-lo (MONIZ,

2004, p. 35), servia-se de um secretário como mediador no trabalho de escrita, que alternava

com ele nos ortógrafos dos manuscritos (CRUZ, 1993-94).

Ora, o que a Década VIII (versão extensa) menciona não é o nome Dinamene, mas

Dinamente (aliás, dina mente) e «no modelo que copiavam, provavelmente o próprio original,

a grafia da palavra não era muito clara, talvez porque abreviada» (CRUZ, II, p. 33).

E é nessa que lemos «dina mente». Couto, ou mais provavelmente o secretário, um deles

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grafou dessa maneira. O que se terá passado na cabeça do secretário, a que pressões foi sujeito,

para fazer uma fraude destas?

Se a conexão à moça china do soneto Alma minha gentil, que te partiste era uma mentira

suave e subtil, porque, ao fim e ao cabo, não se mencionava o nome da amada mas deixava-se

ao inconsciente do leitor fazer a associação, já manuscrever o nome de Dinamene seria uma

refinada mentira. Daí que, para temperar a mentira encomendada, mas sem desobedecer ao

incumbente, o secretário, depois de ter hesitado, talvez num assomo de escrúpulo [grafou o

advérbio dignamente, mas riscou-o (idem, p. 33)], acabou por ser persuadido a grafá-lo como

lhe ordenavam e ortografou-o «dina mente»: por um lado, ali, fazia-se subliminarmente a

associação do soneto, «um dos mais belos e repetidos nos cancioneiros», a uma moça china; e

por outro lado, aqui, numa vénia à verdade, evitando-se grafar Dinamene e escrevendo-se

dina mente, tranquilizava o perpetrante material a sua própria consciência e dava, por outro

lado, satisfação ao perpetrante moral, fazendo um ortógrafo que induzia o leitor a ler

Dinamene, ligando-o indissociavelmente ao da moça chinesa. E era uma forma subreptícia de

lavar daí as mãos enquanto se dizia: ele mente! Ele, Couto? Não me parece. Ele, sem dúvida,

o perpetrante moral, quem tenha sido ele. Digno de Maquiavel. A leitura, errada, que veio a

fazer o seu caminho, foi a que os perpetrantes (moral e material) do embuste quiseram que se

fizesse: a da lenda de uma moça chinesa chamada Dinamene.

A decrepitude (idade, saúde) de Diogo do Couto e o seu afincado ritmo de trabalho («em

Fevereiro de 1615 foi-lhe atribuída», mesmo, «uma acrescida pensão») leva-o a solicitar mais

secretários e a partir de Fevereiro de 1615, «alvará régio autorizava-o a recorrer aos serviços

de mais “dous escreventes‟‟» (LOUREIRO, 1998, p. 69). Quando nesse ano de 1615 lhe

furtam de casa os volumosos manuscritos das Décadas 8ª e 9ª, Couto consegue produzir

versões renovadas, mas bastante resumidas, de ambas as Décadas desaparecidas, que logo

despachou para Portugal nos primeiros meses de 1616 (idem). Nessa versão resumida da

Década VIII, como se sabe, a moça china e outras referências a Camões desaparecem (cotejo

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das duas versões in M. A. L. CRUZ, 1993-94, II, pp.198-99). Que papel terão desempenhado

nisto tudo os três secretários, designadamente os dois «escreventes» suplementares, é mistério

que fica por apurar.

Mas quem tenham sido os autores desta farsa, no confronto com Couto ficamos sem

saber se ganharam ou perderam: no primeiro lance, obtiveram um ganho, na sugestão que

conseguiram fazer passar de uma moça china que se chamaria Dinamene, grafada na hoje

chamada versão extensa; perderam no segundo lance, no da versão definitiva (desaparecida),

onde Diogo do Couto não terá cedido às chantagens que se faziam sentir junto da sua equipa

redactorial e, bem pelo contrário, terá dito mais do que o „‟politicamente‟‟ conveniente

aconselharia (o que seria a razão mais do que provável de a versão ter sido furtada); tornaram

a ter um ganho com a consumada prática do «furto» da versão definitiva, tão bem sucedida

quanto, até hoje, nunca vista; mas voltaram a perder com a subsequente total omissão, na

chamada versão resumida, da ideia que tinham querido fazer passar de uma moça chinesa

cantada no Soneto Alma minha gentil que te partiste e que se chamaria Dinamene.

Ironicamente e mal-pecado, viriam a ganhar o lance final, em pleno séc. XX, já a fraude

não aproveitava a ninguém, quando em 1917 é apresentado o «códice do Porto», hoje

conhecido por versão extensa (ou integral), afinal um mero «borrão» do que terá sido a

verdadeira 8ª. Foi um legado perverso de um homem «honrado, o seu tanto afogadiço de

génio, mas liso e verdadeiro» (RIBEIRO, 1974, II, p. 239) mas a condizer com a sua «longa

vida (cerca de 50 anos) passada num Estado em que eram muitas as intrigas internas, as

injustiças...» (CRUZ, 1994, II, p. 274).

Estas as reflexões que não posso deixar de registar sobre este assunto. Sinto que, nesta

matéria, ainda não bate a bota com a perdigota. Mas, para os propósitos deste trabalho, o que

releva é isto: se Luís Vaz trouxe uma moça china da China, só pode ter estado na China. E

China, ao tempo em que lá esteve, já só era Macau. O nosso Épico e lírico pode perfeitamente

ter tido uma moça china em Macau e tê-la trazido consigo a bordo no regresso da China,

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como teve a moça chamada Bárbara com quem andava de amores na Índia e, provavelmente,

uma moça macua enquanto estanciou na ilha de Moçambique. Que se chamasse Dinamene é

que é muito duvidoso:

Não temos dúvidas de que o amorudo Camões tivesse amado esbeltas

chinesas de Macau; mas não podemos garantir que alguma se mantivesse nas

suas recordações com o nome de Dinamene, e nada indica que viesse a morrer

afogada no naufrágio que ele sofreu. (ALBUQUERQUE, 1987, p. 156).

12. O regresso ao Reino - Conduzido sob prisão a Goa, indiciado como arguido em

processo de peculato, mantido encarcerado durante o tempo suficiente para que tenha vertido

«lágrimas de sangue», é embarcado para o Reino em finais de 1567 ou inícios de 1568.

Diogo do Couto não diz que ele esteve preso, mas que vindo da viagem que fez à China

por provedor dos defuntos (...), se foi perder na costa do Sião. Mas se a perdição a que se

refere é, evidentemente, o naufrágio, com as inevitáveis perdas pessoais (a morte por

afogamento da moça tanka, a perda de todos os seus bens, dos quais não menos importante,

certamente, da bibliografia de que andaria acompanhado) e as perdas patrimoniais alheias de

que era responsável (o das partes), destas não podemos dissociar os nefastos eventos que

delas resultaram: a prisão a que esteve sujeito na Índia, a capitulação com que vai para o

Reino (Pedro de Mariz e Manuel Correia) e o consequente processo judicial a que não pôde

deixar de estar sujeito. RIBEIRO, 2007, p. 59:

A curta duração que vai desde a chegada de Camões a Cascais (Abril de 1570)

e a data em que se sabe a obra já estar na impressão (23 de Setembro de 1571),

inculca a ideia de o caso ter subido ao Desembargo do Paço e ter deste obtido

o perdão, pois nesse interim a obra ainda teve de ser revista, de obter a

aprovação da Inquisição, de sofrer as emendas do episódio da ilha dos Amores

(pelo próprio autor, mas a isso obrigado pela censura inquisitorial) e de ser

submetida ao rei.

Ora a concessão de perdões era uma das mais importantes cartas de privilégio do

Desembargo do Paço, de que Cristóvão Borges era magistrado e, por inerência, conselheiro

régio (HESPANHA, 1982, p. 357).

Por outro lado, estando desde 1567 em Lisboa e vivendo, como todos os magistrados

superiores da capital, no Palácio de Xabregas, Cristóvão Borges, se não soube da história de

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Camões por dever de ofício, soube-o certamente pela rainha D. Catarina, que nesse Palácio

viveu até à sua morte em Fevereiro de 1578 (vd. nota 2) e que não terá deixado de contar ao

desembargador do Paço tudo o que sabia sobre o caso do envolvimento amoroso das duas

damas da casa dos Noronhas com o seu criado Luís Vaz de Camões. Não nos esqueçamos que a

rainha, mal D. João III morreu em 1557 e assumiu a regência do Reino, logo em 20 de Maio de

1558 revogou a decisão real do banimento da Corte do antigo embaixador de Portugal em

França e mandou renovar o título de conde sem qualquer das condições vexatórias impostas

pelo alvará de 1556, tendo-o nomeado ainda seu mordomo-mor, uma das mais altas funções do

Paço, que terá exercido até 1564 (morreu em 1573). D. Catarina era uma protectora de D.

Francisco de Noronha: como mulher, a sua severidade dirigia-se a Violante, não entendendo

que o marido devesse pagar as culpas da mulher.

Quando Cristóvão Borges anotou De L. de C. a sua perdição na China em epígrafe às

redondilhas Sôbolos rios que vão, no Cancioneiro com o seu nome que deu por concluído em

Dezembro de 1578, não podia deixar de estar bem por dentro do drama começado a viver pela

família dos Noronhas nos anos 50 e dos infortúnios subsequentes do nosso Poeta.

Por isso, a perdição a que se refere na epígrafe das redondilhas, não se refere apenas ao

naufrágio em si mesmo, mas à perda dos bens das partes no naufrágio, o qual foi a causa da sua

posterior perdição e é tema de fundo dessas trovas.

A perda de bens das partes no naufrágio triste e miserando foi a origem de mais uma das

suas desgraças (o duro estado em que ficou), e que só não se resolveu logo em Goa por

entretanto ter acedido ao cargo de Vice-rei mais um Noronha, cuja família continuava a

perseguir onde quer que fosse o Poeta.

A anotação do conselheiro régio é mais um elo entre o nosso Poeta e a China que, ao

tempo de Camões, já só era Macau.

Notas:

1) A referência ao governador Francisco Barreto é uma diversão. Pedro de Mariz, provedor

perpétuo do hospital da vila de Castanheira, vila propriedade de um Ataíde, conde da

Castanheira, casado com uma Noronha, não se podia alargar nas inconfidências: em 1613 já

Camões era um herói nacional e não convinha associar o verdadeiro autor do «injusto mando»,

D. Antão de Noronha (1564-1568), à iniquidade da perseguição ao Poeta. O que consta na

biografia de Mariz como tendo sido escrito por Manuel Correia, este do círculo de amigos do

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Poeta, esteve, obviamente, sujeito à censura de Mariz naquilo que pudesse ofender a honra

dos Noronhas, visto que Correia havia entretanto falecido. O Mor é um acrescento espúrio,

provavelmente vontade de elevar o Poeta, já que o simples provedor era proveniente de baixos

extractos da sociedade e exercido por indivíduos sem grandeza moral; mas pode ser um

simples erro, tão comum naquela época, como se demonstra abundantemente (sobre ambas as

hipóteses, vd. RIBEIRO (2007). Mas é de «provedor de defuntos» que Diogo do Couto fala e

este, o que diz, ouviu-o da boca do Poeta.

2) Infelizmente, na recente obra editada em Macau (RIBEIRO, 2007), a data da morte da

rainha D. Catarina passou o crivo da revisão e saiu errada (1579 por 1578), conduzindo a uma

conclusão anacrónica, de que aqui, urbi et orbi, se deixa nota e de que o autor se penitencia,

tirando partido da globalização cibernáutica.

3) A consulta dos textos poéticos de Camões é de António Salgado JÚNIOR (1963), sendo

R=Rimas, 1=1ª parte, 2=2ª parte, seguido da indicação do grupo e do número da composição.

Nos sonetos, a indicação da página é a da obra de Maria de Lourdes SARAIVA (1990).

5) O acesso conseguido ao volume I da obra de Maria Augusta Lima CRUZ foi muito

limitado, para não dizer nulo, dado não estar disponível nas livrarias nem ter sido achado nas

bibliotecas de Macau.

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