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CAMINHOS DO AMOR EM ROMA

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por Carlos Ascenso André

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Page 1: Caminhos do Amor

CAMINHOS DO AMOR EM ROMA

Page 2: Caminhos do Amor

obra publicada com o apoio de

Centros de Estudos Clássicos e HumanísticosFundação para a Ciência e Tecnologia — POCTI

Título: Caminhos do amor em Roma

© Carlos Ascenso Andrée Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006

ISBN 972-795-155-4

Page 3: Caminhos do Amor

Carlos Ascenso André

Caminhos do amor em Roma

sexo, amor e paixãona poesia latina do séc. I a. C.

Cotovia

Page 4: Caminhos do Amor
Page 5: Caminhos do Amor

ÍNDICE

pág.PREFÁCIO .................................................................................. 9

INTRODUÇÃO............................................................................ 13

Cap. I — Casamento: o contrato e a infracção ......................... 271. Amar sem sobressaltos ........................................... 272. O contrato conjugal ............................................... 323. À margem do contrato: a infidelidade .................. 38

Cap. II — O corpo, o sexo, o prazer .......................................... 571. Sensualidade e erotismo......................................... 572. Cantar os prazeres do corpo.................................. 663. Ovídio, precursor da igualdade entre sexos? ....... 704. O sexo e o poema .................................................. 745. O amante é um guerreiro....................................... 816. Poetas do obsceno.................................................. 90

Cap. III — Amor e sedução.......................................................... 971. Virgílio, poeta misógino......................................... 972. A arte da sedução................................................... 1003. Ousadia e persistência............................................ 1174. O amante, o rival, o marido e os amores furtivos.... 1265. Uma questão de atitude ......................................... 1346. O ciúme e o medo, ao serviço da sedução............ 1397. Elegância: estética e cosmética .............................. 1468. Monotonia e ausências........................................... 170

Cap. IV — O canto do amor homossexual.................................. 1751. Uma questão fora de tempo .................................. 1752. O amor entre guerreiros: um código épico........... 1803. O poeta-amante e os seus amados......................... 1874. A sátira da homossexualidade ............................... 200

Cap. V — Escravos do amor: a poesia e a paixão...................... 2051. Tempo de paixão e desvario .................................. 2052. Também o quotidiano se pode cantar................... 213

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3. A fidelidade do amante........................................ 2184. Paixão e desvario: o canto do irracional ............. 2275. Ao serviço da mulher: humilhação e submissão... 2506. Amor e morte ....................................................... 2797. Uma espécie de prisão ......................................... 2858. Da paixão ao ciúme.............................................. 2899. As sementes da revolta: amantes despeitados..... 303

10. Crises de fúria....................................................... 30611. Em busca da liberdade ........................................ 31112. Do amor ao ódio .................................................. 334

Conclusão....................................................................................... 347

Bibliografia..................................................................................... 355

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PREFÁCIO

Salões deslumbrantes, recamados a mármore. Uma luzimensa, um brilho sem fim, um cenário de mil cores.Enche-se o espaço de melodias de encanto, que marcam oritmo da dança e dão som aos festins. Recobrem-se asmesas de preciosos tecidos, onde sobressai a púrpura e oouro e, sobre eles, requintadas iguarias e manjares exóti-cos. Mulheres de rara beleza volteiam na sala os seus cor-pos elegantes e a exuberância dos trajos ou reclinam-se,sensualmente, nos leitos dispostos em torno das mesas.O prazer dos sentidos é rei e senhor. Sente-se, nos corposque se revolvem e se entregam, na festa ou no segredo daalcova.

É o festim romano; a mais de vinte séculos de distân-cia, é o quadro mais divulgado de Roma, capital do luxo,sede da degradação, cidade dos prazeres, mãe da luxúria.

Esta imagem, que alguma literatura e, sobretudo, ocinema tornaram um lugar comum, precisa, no entanto,de ser datada. É uma imagem da Roma imperial, dequando a ostentação e a riqueza trazidas das terras subju-gadas invadiram a capital do Império e começaram a lan-çar as sementes da degradação e da ruína.

E como seria no tempo que o antecedeu, nos anosfinais da República?

Muito do que se diz do amor em Roma, sensual, arre-batado, obsceno, chegou-nos da observação ou da leitura

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do que se construiu, pintou, escreveu, nos primeiros sécu-los da era cristã.

Mas… como viram o amor, como o cantaram os poe-tas daquele outro tempo, imediatamente antes deste?

Porque, regra geral, é fornecida às pessoas uma ima-gem deslocada: a Roma que mais se conhece tem umséculo de diferença em relação à Roma que é a da épocade ouro da Literatura Latina. E essa é que foi a mãe daRoma imperial.

A verdade é que a literatura latina nunca deixou decelebrar o amor ou sobre ele reflectir. Ele é tema centralde várias comédias de Plauto ou de Terêncio. Cícero, emmais do que uma obra filosófica, dedicou-lhe especialatenção. Virgílio, cujas relações com o amor serão sempreenvolvidas por um certo mistério, coloca-o em lugar degrande destaque, nas Geórgicas, nas Bucólicas e, mesmo,na Eneida. Horácio canta-o das mais variadas formas, comserenidade. Catulo, Propércio, Tibulo vivem prisioneirosdele e é em função dele que cantam e da irracionalidadecom que se manifesta. Ovídio faz dele centro, tema etítulo de quatro das suas obras, em jeito de quem com elese diverte.

São modos múltiplos e muito diferentes de celebrar oamor e que, na sua variedade, deram origem a um corpusrico, merecedor, por isso, de especial atenção.

Foi isso que me levou a escolher o tema e a época paracentro de provas académicas. A ideia fascinou-me. Porisso, decidi ir mais longe na leitura e nas reflexões e parti-lhá-las com os leitores.

Que leitores? Roma, nos seus meandros, mormente noque ao amor diz respeito, é demasiado fascinante para

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permanecer desconhecida do grande público. Nãodevem, pois, as reflexões sobre a Antiguidade ficar reser-vadas a uma elite de letrados.

Daí a feição que este livro assume, numa espécie decompromisso entre o trabalho académico e o ensaio. Tem,do primeiro, desde logo, o aparato bibliográfico, comalgum peso (se bem que não exaustivo, tão grande é oacervo de bibliografia sobre o assunto) e as inúmerasremissões para vários estudos.

Mas foi a pensar em um outro público, menos eruditono que à Literatura Latina diz respeito, que foram feitasalgumas opções:

Do ponto de vista do vocabulário, que se pretendeuacessível.

No que toca à apresentação dos textos, sempre citadosem tradução portuguesa e sem a presença do originallatino; mesmo quando se trata de uma só palavra, cujacitação em latim se revela imprescindível, é facultada, deimediato, a sua tradução portuguesa.

Enfim, sem prejudicar as características e exigênciasde um trabalho nascido em contexto universitário, pre-tendeu-se que outro público, menos académico, mas nãomenos interessado, a ele pudesse ter acesso.

Assim assumo a crença de que a actividade científica eacadémica não tem necessariamente que evoluir divor-ciada do cidadão comum nem é incompatível com ele,desde que um e outro tenham, a uni-los um patamar indis-pensável chamado cultura.

PREFÁCIO 11

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Uma palavra de gratidão

Este livro teve como ponto de partida a lição apresen-tada no âmbito das provas para obtenção do título deagregado na Universidade de Coimbra. Agradeço ao Pro-fessor Doutor José António Segurado e Campos, a quemcoube arguir essa lição, as suas pertinentes observações.Durante três anos, muitos dos temas foram sendo pormim discutidos nos diversos seminários por que fui res-ponsável, na Faculdade de Letras de Coimbra, seja noRamo de Formação Educacional, para licenciados emLínguas e Literaturas Clássicas que realizavam o seu está-gio pedagógico, seja nos Mestrados em Cultura Clássicaou em Poética e Hermenêutica. Fico grato aos meus alu-nos, cujas dúvidas me levaram, não raro, a novas e fecun-das reflexões.

A publicação, enfim, não teria sido possível sem opronto acolhimento das Edições Cotovia, uma editoraque é um exemplo de persistência no livro de qualidade.Exprimo, por isso, o meu reconhecimento ao SenhorAndré Jorge, pela forma como acolheu esta proposta, aomeu colega Professor Doutor Frederico Lourenço, quelhe sugeriu a publicação, e ao Centro de Estudos Clássi-cos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, na pes-soa da sua coordenadora e minha colega, a ProfessoraDoutora Maria do Céu Fialho, que aceitou apoiá-la.

A minha gratidão, enfim, a quantos nas Edições Coto-via deram o melhor de si para se atingir este “produtofinal”.

Carlos Ascenso André

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INTRODUÇÃO

Aparentemente, Virgílio, o poeta maior da literaturalatina, o poeta que celebrou Roma, nas suas grandezas enas suas frustrações, nas suas glórias e nos seus desencan-tos, Virgílio, o autor do canto épico dos Romanos e deuma das maiores epopeias de sempre, não gostava demulheres.

Ou por outra: o poeta que nos deixou alguns dos maisnotáveis retratos femininos da história da literatura, comoDido ou Amata, como Camila ou Eurídice, não gostariadaquilo que, no seu tempo (e no nosso), costumava andarassociado à imagem da mulher: o amor, a sensualidade, odeslumbramento dos sentidos, a paixão.

Não pode dizer-se, é certo, que fugisse de cantar amulher, que lhe recusasse a presença nos seus versos; asimples menção de Dido ou Eurídice é prova bastante deque assim não era.

Como se não pode afirmar que não apreciava a beleza,a beleza feminina que cativa, enleia, seduz. Lembremos oporte deslumbrante de Helena, em meio da noite troiana,a candura poderosa de Camila, a virgem guerreira, o silên-cio sedutor de Lavínia.

Esses, porém, são retratos esporádicos, arrastados,dir-se-ia, pela força da narração, pequenos fragmentos emuniverso povoado de homens. Mesmo assim, ao lado daimensa multidão de rostos masculinos, as mulheres de

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Virgílio não constituem meros acontecimentos episódi-cos; por escassos que sejam os exemplos, eles desempe-nham uma função nuclear na poesia virgiliana, nomeada-mente na epopeia. Lavínia é um exemplo significativo:não se lhe ouve uma palavra, não se lhe conhece umareacção, não se lhe assiste a um trejeito que seja, um esgarde repulsa ou um aceno de aprovação; um leve rubor naface é tudo quanto o poeta quer que nela vislumbremos,e apenas por uma vez, uma só. E, no entanto, é por causade Lavínia que a guerra se desencadeia na segunda parteda Eneida, é por Lavínia que se gera um combate demorte; Lavínia é, digamos assim, o futuro; e é o futuroque Eneias e Turno disputam até ao verso derradeiro,aquele que conduz a alma de Turno para o reino das som-bras e que deixa a princesa latina e o herói troiano às por-tas de uma nova era.

Virgílio, aparentemente, não gostava de mulheres.Conduziam à fulguração ilusória dos sentidos, à ameaçaperigosa do êxtase, numa palavra, traziam consigo o amore a paixão que arrebatam os corações e toldam a mente.E o amor virgiliano não sabe ser semente de felicidade,antes é, inevitavelmente, fonte de desgraça.

Os anos finais da República, porém, como os do iníciodo Império, justamente a época em que Virgílio viveu, sãotempos em que a mulher vinha a adquirir já um lugar maisrelevante, ou, pelo menos, não tão secundário, por com-paração com os séculos que os antecederam. Na vida, nasociedade, na política, o estatuto da mulher tinha vindo aconhecer algumas modificações.

Não que possa dizer-se que a mulher se havia libertadoda tutela do homem e da secundarização e menorização

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que, desde sempre, a caracterizaram, numa sociedadedirigida por homens, pensada em função do homem,regida por valores e ideais masculinos. Não. Estamos bemlonge de qualquer arremedo de emancipação feminina.

Basta lembrar dois ou três aspectos:A onomástica, desde logo, é significativa. Ao homem

era concedido que tivesse tria nomina, três nomes, isto é,o nome próprio, em segundo lugar o nome gentílico, desua gens ou família, e, por fim, um terceiro, que podiadefinir uma característica pessoal ou também associada àfamília (são os casos de Marcus Tullius Cicero, Gaius IuliusCaesar); à mulher, todavia, só era dado possuir um nome,que jamais era próprio, mas o de seu pai; assim, Tulliaseria filha de Tullius, Liuia filha de Liuius, Hortensia filhade Hortensius e assim por diante.

Sugestiva é igualmente a fórmula que designava ocasamento. A expressão transitiva ducere uxorem (“tomarcomo esposa”) ou ducere in matrimonium (“conduzir aomatrimónio”) só podia ser utilizada se o sujeito fosse ohomem. Em relação à mulher, usar-se-ia o mesmo verbo,mas na voz passiva, ou, em alternativa, o verbo nubere, oqual não era transitivo (regia dativo). A razão é simples: àmulher não cabia nunca um papel activo no casamento;ela era, tão-somente, parte passiva de um contrato. Dir-se--ia, em português, que à mulher não era consentido “des-posar” alguém, mas apenas “ser desposada”; ou, para usara tradução quase literal da expressão latina, só o homempodia “conduzir a mulher ao casamento”, ao passo que amulher tinha de resignar-se a “ser conduzida”.

Outros exemplos poderiam ser aqui citados, quase atéà exaustão, mas não é este o lugar para isso.

INTRODUÇÃO 15

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Em todo o caso, forçoso é admitir que os últimosséculos da República, bem como os primeiros tempos doImpério vieram reflectindo um diferente reconheci-mento do papel da mulher e um crescente respeito poralgumas mulheres. Cornélia, Fúlvia, Hortênsia, Octávia,Lívia são alguns dos nomes femininos, entre tantosoutros, que a sociedade romana se habituou a respeitar ea distinguir.

Isto para não falar, já sob outra perspectiva, em Júlia,a filha de Augusto, ou na filha desta, com o mesmo nome,cujos costumes licenciosos, não obstante a repressão doImperador, documentam um sentido de independência eafirmação pessoal pouco usuais.

Não são poucas, aliás, as mulheres que ficaram céle-bres na história de Roma deste tempo pela sua conduta“duvidosa”; a prática do amor, o culto do prazer e oshábitos menos conformes à moral tradicional que lhesestão associados celebrizaram bem mais que as duasJúlias. O célebre retrato de Semprónia, que a narrativa deSalústio coloca entre os cúmplices de Catilina, é elucida-tivo.

O Império, com o correr dos anos, virá a dar-nos mui-tos outros exemplos, tanto por boas, como por másrazões.1

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1 Existe, hoje, abundante bibliografia sobre as mulheres na Antiguidade, biblio-grafia essa que, de resto, tem vindo a crescer à medida que se vai desenvolvendo, umpouco por todo o mundo, aquilo a que se convencionou já chamar “Women’s studies”.J. P. V. D. BALSDON, Roman women, London, 1962, é já um clássico. Veja-se, maisrecentemente: G. CLARK, “Roman women”: Greece & Rome 28.2 (1981) 193-212;E. CANTARELLA, Pandora’s daughters: the role and status of women in Greek andRoman Antiquity, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 4.ª ed.,

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Não deve, pois, ser motivo de espanto que assim seja,também, na literatura. A mulher e o amor têm presençarelevante na obra dos principais poetas deste tempo,Catulo, Propércio, Tibulo, Horácio, Virgílio, Ovídio, paracitar apenas os mais destacados.

Virgílio, sim, o poeta aparentemente misógino eavesso ao amor. Por isso mesmo, merece aqui uma espe-cial menção.

A obra virgiliana é, de alguma forma, a matriz, oarquétipo da literatura latina do seu tempo (quem sabe sede todos os tempos). Em semente, em vestígio ou, até, emsimples alusão, nos seus versos encontramos uma espéciede repositório de quanto foi acolhido pelos demais poetasde então.

Por isso mesmo, tem sido objecto, ao longo dos sécu-los, de tantas e tão variadas leituras, por vezes, mesmo,controversas, não raro surpreendentes. Ele é, por assimdizer, a síntese quase paradoxal do que o precedeu e doque veio depois.

Estão lá, por isso, as mulheres. Como está, igualmente,o amor. Também nesse aspecto o autor da Eneida soube“dar voz ao seu tempo”. Daí que tantas vezes seja apeli-dado de poeta da condição humana.

INTRODUÇÃO 17

1993 (título original L’ambiguo malano, 1981), em especial pp. 99-170; P. S. PANTEL(ed.), História das mulheres, vol. I, A Antiguidade, Lisboa, Edições Afrontamento, 1993(título original Storia delle Donne, 1990), sobretudo pp. 127-199 e 351-407; E. FAN-THAM et aliae, Women in classical world: image and text, New York and Oxford,Oxford University Press, 1995, especialmente pp. 207-329; D. M. ENGEL, “Women’srole in the home and the state: stoic theory reconsidered”: Harvard Studies in ClassicalPhilology 101 (2003) 267-288; R. ANCONA and E. GREEN (eds.), Gendered dynamicsin Latin love poetry, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 2005.

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Virgílio, bem entendido, não está antes de todos osnomes referidos nem é, igualmente, o último deles. Nãopode, pois, dizer-se que a todos influenciou ou que portodos terá sido influenciado. Esta não é, no entanto, umaabordagem que visa o estabelecimento de fontes ouinfluências. O que importa, aqui, é estudar um tema e asua presença na literatura latina de menos de um século.Ora, nesse enorme texto que é a literatura produzida emRoma no século I a. C., Virgílio ocupa um lugar privile-giado, o de uma espécie de paradigma de quase tudo; elepode bem ser, em certa medida, esse mesmo paradigmaou o arqui-texto, também do amor e da mulher. Na suaobra, como se diria em gíria simplista, “está lá tudo”,como se fora a teia imaginária de uma imensa intertextua-lidade.

Por isso se parte aqui da obra virgiliana para estudar,de uma forma transversal, o tema do amor na poesia latinadessa época tão conturbada quanto fascinante que foi aque assistiu ao colapso da República e ao nascimento doImpério.

Uma leitura atenta de Virgílio permite identificar umconjunto de perspectivas na sua celebração poética doamor:

— O amor sereno, sem fulgurações, como é própriode um poeta formado nas escolas epicuristas:

É a formulação mais corrente nas Bucólicas, como é aque caracteriza a relação de Eneias com Lavínia; é, ainda,a que define as situações que podemos designar por con-trato conjugal e que são, na Eneida, a que une Dido e o seuantigo marido, Siqueu, a de Amata e Latino e, porventura,o primeiro casamento do herói, Eneias, com Creúsa.

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— O amor sexual:Embora raro (o que permite dizer que o poeta teria

dificuldade em lidar com o corpo como espaço de prazer),é o que melhor caracteriza a ligação entre Vénus e Vul-cano, na Eneida. Como, também, entre Eneias e Dido,pese embora a visível dificuldade do poeta, como adiantese verá, em assim o retratar.

— O amor homossexual:Apesar de não explicitamente assumido, é sugerido

nos dois episódios da Eneida de que são protagonistasNiso e Euríalo, como a seu tempo se demonstrará; é, tam-bém, o que parece estar subjacente ao canto dos pastores,nas Bucólicas, todos eles homens e muitos deles ligadosentre si por especiais laços de ternura e afecto, de amor,para utilizar a palavra ali tantas vezes repetida.

— E, finalmente, a paixão, lugar de fascínio e irracio-nalidade:

Essa é, claramente, a situação dos pares Orfeu e Eurí-dice, nas Geórgicas, Galo e Lícoris, nas Bucólicas, e, naEneida, Dido e Eneias.

Este último, o amor-paixão, é sempre, em Virgílio,fonte de desgraça, princípio de perturbação, factor dedesarmonia. O poeta, portanto, recusa-o, abomina-o. Porisso, cada um daqueles três casos tem desenlace trágico:Orfeu, tomado pelas Fúrias e contrariando o que os deu-ses lhe haviam ordenado, olha para trás, no momento emque trazia Eurídice dos Infernos para a vida, e perde-apara sempre; esse foi, depois, o começo da sua própriamorte. Galo abandonou a Arcádia em busca de Lícoris e,dessa forma, matou o ideal arcádico. Não é por acaso quea celebração desses amores corresponde à derradeira das

INTRODUÇÃO 19

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dez Bucólicas. Dido, incapaz de aceitar a partida deEneias, suicida-se.

Dificilmente compreenderíamos que fosse de outraforma. Os Romanos, tal como celebrados na Eneida, des-cendem de Eneias, mais do que da sua mãe divina, Vénus,a deusa da beleza e do amor. E Eneias, o herói, não cedeuao desejo, antes, segundo a descrição do poeta, prezou,acima dele, o dever e subordinou a este o amor.2

Das mulheres virgilianas, entretanto, algumas há quepodem situar-se como que à margem desta “arrumação”.São elas Amata, Lavínia e Camila.

Amata, para além da sua relação conjugal e, portanto,contratual, com Latino, parece manter um certo fascínio,jamais suficientemente clarificado pelo narrador, pelo seuprometido genro, Turno.

Lavínia virá a ter com Eneias, também, uma relaçãoassente nas leis do contrato conjugal. Foi-lhe prometida,desposá-lo-á. Tudo isso, porém, são factos que acontecemfora do poema e que, nele, apenas se antevêem. Nodecurso da narrativa, Lavínia é uma não-presença, comoacima se sugeriu. Além de um leve rubor na face, a dadomomento (e não é Eneias a causa dele, mas, sim, Turno),não se lhe conhece qualquer outra reacção.

Finalmente, Camila poderá ser a única mulher queverdadeiramente terá fascinado o poeta, a única, dir-se-ia,que ele amou. É único o retrato que dela é traçado, sur-preendente na afectividade que nele o narrador deposita.

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2 P. GRIMAL, L’amour à Rome, Paris, Éditions Payot & Rivages, 1995, pp. 14,17, 18.

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Mas Camila é uma amazona. Não vive o amor. Quasepode dizer-se que não tem sexo. Por isso, ela é protago-nista de uma aristeia, não obstante a sua condição demulher. Ora, a aristeia, como é sabido, é uma narração deproezas de combate cometidas por um guerreiro. Ou seja,o que em Camila se destaca é a sua “virilidade”. Certo éque tem um toque feminino, quando se deixa deslumbrarpor despojos de rara beleza, motivo por que persegue osacerdote que os envergava, para com eles se adornar. Masnão é menos verdade que são esses despojos a causa dasua morte, o mesmo é dizer, é o seu lado feminino que amata.3 Uma vez mais, é a dimensão trágica a marcar oolhar virgiliano sobre a mulher.

Dir-se-á, pois, que a visão virgiliana do amor (e damulher) é contraditória, quando não, mesmo, paradoxal.É verdade. Mas essa é a própria maneira de ser do poeta,que espelha, na sua obra, as contradições da sociedade doseu tempo e a complexidade de um universo que, situadonuma das fronteiras da história, busca, ainda, o seu cami-nho. Roma experimentou a tentativa de conciliar as exi-gências morais e sociais, com as quais o amor mantémeterno conflito; não o conseguiu, por certo. Como, por-ventura, nenhuma sociedade alguma vez logrou consegui--lo.4 Virgílio será, em larga medida, a síntese dessa busca,da incerteza que a envolve, das frustrações que acarreta,dos paradoxos que produz.

INTRODUÇÃO 21

3 Eneida, 11.778-782. Cf. A. M. KEITH, Engendering Rome: women in latin epic,Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp, 28-29.

4 P. GRIMAL, L’amour à Rome, cit., p. 201.

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Os poetas de finais da República e começos do Impériotratam, todos eles, embora de modo mais desenvolvido ecom bem maior empatia, estas manifestações de amor quevislumbramos na obra virgiliana. Sem tibiezas, é verdade,antes com o calor próprio de quem celebra o amor por o tervivido ardentemente e não, como era o caso do cantorépico, de quem como que o chora, porque o repudia.

Escolheram-se os poetas mais significativos destetempo, todos eles, como pode ver-se, contemporâneosuns dos outros: Catulo (87-57 a. C.); Propércio (54-16 a.C.); Tibulo (54-19 a. C.); Horácio (65-8 a. C.); Ovídio (43a. C.-18 d. C.); e, naturalmente, Virgílio (70-19 a. C.).

Não está em causa, sublinhe-se, se o amor cantado porestes poetas, nomeadamente os elegíacos, é real ou se ape-nas existe na sua imaginação, para dar origem a uma fic-ção poética, como desenvolvidamente sustenta, e comargumentos poderosos, Paul Veyne. Afirma, de facto, esteprofessor francês, autor de uma das principais obras dereferência sobre o assunto que nos ocupa nestas páginas5,que a elegia é somente um produto de ficção, o que justi-fica a irregularidade característica das mulheres nela cele-bradas. Daí que os textos onde muitos pretendem ler umretrato feito na primeira pessoa não passariam de umapseudo-autobiografia6. Ou, como diz em outro lugar, opoeta disfarça-se, mascara-se; a sinceridade não será,seguramente, uma das suas qualidades7, pelo que, em vez

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5 P. VEYNE, L’élégie érotique romaine: l’amour, la poésie et l’occident, Paris, Édi-tions du Seuil, 1983.

6 IDEM, p. 55.7 IDEM, p. 127.

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de uma ideologia da elegia, deveríamos, antes, falar emsemiótica da elegia8. Por isso, conclui a dado momento, acombinação entre o homem de amor e o poeta de amor éum produto de uma alquimia de ficção.9

Um outro estudioso, Trevor Fear, fala, por seu turno,a propósito dos poetas elegíacos do tempo de Augusto, osque mais celebraram o amor, por vezes com cores espan-tosamente realistas, numa espécie de conflito “metaficcio-nal” entre as aspirações eróticas do narrador interno e asambições poéticas do poeta externo. Assim põe em causa,com clareza, do mesmo modo que Veyne, se bem que poroutras palavras, a sinceridade intrínseca desta poesia edaqueles que a produziram10.

Este ponto de vista é partilhado por muitos dos auto-res que se têm dedicado à leitura dos poetas de amor lati-nos, assunto que tem vindo, nos últimos anos, a suscitarinteresse crescente entre os estudiosos, nomeadamente noâmbito dos Women studies. 11 Sublinhe-se, a esse respeito,a feliz expressão de Maria Wyke, a propósito da mulhercelebrada por um dos poetas, Propércio, a quem chamascripta puella. 12

INTRODUÇÃO 23

8 IDEM, p. 39.9 IDEM, p. 122.10 T. FEAR, “The poet as pimp: elegiac seduction in the time of Augustus”: Are-

thusa (Fallax opus: approaches to reading Roman elegy) 33.2 (2000)230.11 A crescente atenção ao tema por parte de estudiosos modernos é realçada por

M. WYKE, em recensão crítica que fez a três obras, todas elas notáveis, vindas a lumena penúltima década: “In pursuit of love, the poetic self and a process of reading:Augustan elegy in the 1980s”: The Journal of Roman Studies 79 (1989) 165-173. Asobras objecto de recensão são: P. VEYNE (vd. supra); H.-P. STAHL, Propertius, “loveand war”: individual and state under Augustus, Berkeley, University of California Press,1985; T. D. PAPANGHELIS, Propertius: a hellenistic poet on life and death, Cam-bridge, Cambridge University Press, 1987.

12 M. WYKE, “Written women: Propertius’ scripta puella”: The Journal of RomanStudies 77 (1987) 47-61. Veja-se, também: D. F. KENNEDY, The arts of love: five

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Exactamente porque assim é, será discutível um certoradicalismo feminino, para não dizer feminista, que animaalguns desses estudiosos, quando pretendem ler tais poe-tas de acordo com padrões que a sociedade e a culturaromanas desconheciam e que lhes seriam totalmenteestranhos; o radicalismo, chamemos-lhe assim, vai a umponto tal que chegam a pôr em causa a capacidade mas-culina para proceder a uma leitura isenta e objectiva dospoetas de amor latinos, como se a subjectividade não fosseelemento essencial do processo literário, em todos os seusníveis e patamares.13

Tais pontos de vista conduzem-nos, inevitavelmente, auma perspectiva errada na leitura do texto poético; a ver-dade é que a questão da sinceridade, no que respeita aestes autores, é um falso problema; porque tem de haver,necessariamente, uma distinção entre poesia e autobio-grafia.14

Além do mais, todos estes textos, de que se tratará naspáginas seguintes, têm de ser entendidos, não apenas doponto de vista do homem, que neles se constitui como

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studies in the discourse of Roman love elegy, Cambridge, Cambridge University Press,1993, em especial os caps. 3 (“Love’s figures and tropes”, pp. 46-63) e 4 (“A lover’s dis-course”, pp. 64-82); P. LEE-STECUM, “Poet/reader, autobiography deferred: re-rea-ding Tibullan elegy”: Arethusa 33.2 (2000) 177-215; C. A. PERKINS, “Ovid’s eroticuates”: Helios 27.1 (2000) 53-61; A. SHARROCK, “Constructing characters in Pro-pertius”: Arethusa (Fallax opus: approaches to reading Roman elegy) 33.2 (2000) 263--284.

13 Veja-se, por exemplo, L. CAHOON, “Let the muse sing on: poetry, criticism,feminism, and the case of Ovid”: Helios 17.2 (1990) 197-211; menos radical seráE. KEULS, “The feminist view of the past: a comment on the ‘decentering’ of thepoems of Ovid”: Helios 17.2 (1990) 221-224.

14 S. LAIGNEAU, La femme et l’amour chez Catulle et les Élégiaques augustéens,Bruxelles, Latomus, 1999, pp. 12-13.

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sujeito da expressão poética, mas, também, na perspectivada mulher, cujo retrato deles se desprende.15

O que está aqui em causa, repita-se, é a leitura da obrade alguns poetas, no que diz respeito ao tratamento dotema do amor e a imagem que em seus versos deixaram,por idealizada que fosse, da mulher ou, se se preferir, dosdiversos participantes no amor. Pouco relevante é se oamor que celebraram, sob as mais diversas perspectivas,foi ou não por eles vivido. Teve lugar destacado nos seuspoemas, é isso que importa. Porque é esse lugar proemi-nente que nos permite considerá-lo como algo de essen-cial, não apenas no pensamento dos poetas que assim ocantaram, como, também, na cultura da sociedade romanade que esse mesmo canto emerge.

INTRODUÇÃO 25

15 Cf. S. L. JAMES, Learned girls and male persuasion: gender and reading inRoman love elegy, Berkeley — Los Angeles — London, University of California Press,2003, p. ix.