caminhos da liberdade

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Reitor: Roberto Sousa Salles

    Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello

    Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao: Antnio Claudio Lucas de NbregaAssessora de Comunicao e eventos: Ana Paula Campos

    Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Histria:

    Maria Fernanda B. Bicalho e Carlos Gabriel Guimares

    Reviso: Sheila Louzada

    Diagramao: Gabriel Brasil Nepomuceno

    Produo: Carolina Vianna Dantas

    Capa: Andr Castro

    C183 Caminhos da liberdade : histrias da abolio e do ps-abolio no Brasil / MarthaAbreu e Matheus Serva Pereira (orgs.) . Niteri : PPGHistria- UFF, 2011.

    528 p.

    ISBN 978-85-63735-0271. Escravido.2. Abolio da escravatura. 3. Liberdade. 4. Brasil. I. Abreu,Martha. II. Pereira, Matheus Serva.

    CDD 981.0435

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    Organizadores

    MARTHA ABREUMATHEUS SERVA PEREIRA

    CAMINHOS DA LIBERDADE:

    HISTRIAS DA ABOLIO E DO PSABOLIONO BRASIL

    1 Edio

    Niteri - RJ

    PPGHISTRIA-UFF2011

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    SUMRIO

    APRESENTAO - Martha Abreu e Matheus Serva Pereira 6

    ABERTURA 9

    Os abolicionistas brasileiros e a Guerra de Secesso - Maria HelenaPereira Toledo Machado

    10

    Domingo, dia 13: O underground abolicionista, a tecnologia de pontae a conquista da liberdade - Eduardo Silva

    29

    CAPTULO I - O FIM DO TRFICO E A EXPERINCIA ESCRAVA 38

    Outras dimenses do Infame Comrcio: As perspecvas de liberdadeno contexto da ilegalizao do trco de africanos - Thiago CamposPessoa Loureno (UFF)

    39

    A lei de 1831: debates e representaes dos escravos africanos- Flvia Campany do Amaral (UFF) 57

    Os africanos livres na Casa de Correo: trabalho e escravidocomo eixo de pesquisa - Gustavo Pinto de Sousa (UERJ)

    67

    Conitos e estratgias sociais em torno da liberdade: famlias escravasem Mangaraba no sculo XIX - Manoel Basta do Prado Junior (UFF) 76

    A economia margem do Vale do Paraba: o papel da cachaa nolitoral sul uminense sculo XIX - Camila Moraes Marques (UFF)

    95

    Os usos sociais das leis de 1761 e 1773: Negociao e resistnciana segunda metade do sculo XVIII Brasil colonial -Ana Carolina

    Teixeira Crispin (UFF)

    107

    CAPTULO II - PROJETOS DE LIBERDADE 127

    Famlias negras: Santa Maria, sculo XIX - Lecia Bastella SilveiraGuterres (UFRJ)

    128

    Paternalismo e Liberdade no norte de Minas Gerais Oitocensta- Rodrigo Castro Rezende (UFF)

    143

    Gesto populacional e conito no oitocentos: o recenseamentofrustrado em 1852 - Renata Franco Saavedra (UNIRIO) 164

    Entre a escravido e a liberdade: casos da fronteira sul do Brasile seu impacto nas relaes diplomcas com o Estado Oriental

    (1842-1858) - Rachel da Silveira Ca (UNIRIO)

    178

    Remeto para a Corte os pretos por achar perigosa a conservaodeles na Provncia: A Trajetrias de libertos pela Guerra (RevoluoFarroupilha, sc. XIX) - Daniela Vallandro de Carvalho (UFRJ)

    193

    Liberdades em movimento. As disputas em torno da liberdade(So Paulo, 1886-1889) - Matheus Serva Pereira (UFF) 210

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    CAPTULO III - PROJETOS ABOLICIONISTAS 236

    A abolio da escravido sob outro prisma: os projetos de reforma naimprensa esprita da Corte, 1881-1888 - Daniel Simes do Valle (UFF)

    237

    Intelectuais, escravido e liberdade em So Joo del-Rei no nal do

    sculo XIX - Denlson de Cssio Silva (UFF) 257Entre amantes da ordem e candidatos a revolucionrios:escravido, liberdade e abolicionismos na imprensa mineira dalma dcada da escravido - Luiz Gustavo Santos Cota (UFF)

    281

    Aqui abro-lhe os braos da liberdade: os rumos abolicionistas noAmazonas Imperial- Provino Pozza Neto (UFA)

    302

    Condenado pela cor: o preconceito racial no Brasil de Jos doPatrocnio - Rita de Cssia Azevedo Ferreira de Vasconcelos (UFF) 321

    CAPTULO IV - PS-ABOLIO: A LIBERDADE EM JOGO 338

    Uma necessidade imposta pela Abolio: algumas reexessobre as tentavas de regulamentao do trabalho domscona cidade do Rio de Janeiro - Flavia Fernandes de Souza (UERJ)

    339

    Precisa-se de um pequeno: negociao, conito e estratgiade vida da mo-de-obra infal negra no ps-abolio no Rio deJaneiro (1888-1927) -Aline Mendes Soares (UFRRJ)

    362

    A PECURIA LEITEIRA NO PS-ABOLIO - As transformaeseconmicas em Resende - RJ (1888-1940) - Maria Fernanda deOliveira Counho Rodrigues (UFRJ)

    376

    Folia de Reis, a Metfora da Migrao: Folia de Reis e a migraode pretos e pardos no ps-abolio -Vale do Paraba e Baixada

    Fluminense (1888-1940) - Carlos Eduardo C. da Costa (UFRRJ)

    391

    A herana de Manoel Incio: sobre a lgica da sucessocamponesa no ps-abolio - Rodrigo de Azevedo Weimer (UFF)

    414

    CAPTULO V - FESTAS DA LIBERDADE E MEMRIAS DA ESCRAVIDO 430

    Os registros iconogrcos das festas da abolio - RenataFigueiredo Moraes (PUC-Rio)

    431

    Diabos Atlncos: abolio, crioulizao e racializao emcarnavais da dcada de 1880 - Eric Brasil Nepomuceno (UFF)

    450

    Um confronto literrio: abolio e cidadania negra na cobaiana da Primeira Repblica. - Marcelo Souza Oliveira (UFBA) 469

    Quilombos & quilombolas, hoje: sobre a reconstruo de conceitospara o ensino da histria -Ana Maria Reis de Faria (PUC-Rio) 489

    Os pretos dos Breves permaneceram nas fazendas A Ilha daMarambaia no ps-abolio - Daniela Yabeta (UFF) 501

    Polcas Patrimoniais e o Jongo no Sudeste: a memria daescravido em lutas contemporneas - Luana da Silva Oliveira (UFF) 510

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    :: Caminhos da Liberdade: Histrias da Abolio e do Ps-Abolio no Brasil ::

    Apresentao

    Era uma vez uma turma do Programa de Ps-Graduao em Histria da Uni-versidade Federal Fluminense. Seus alunos entravam nessa aventura no ano de2009 e comeavam suas pesquisas. No possuam muita experincia, mas sobravaentusiasmo para levar adiante suas ideias. Nem todos se conheciam. O encontroocorreu quando o professor Humberto Fernandes Machado decidiu retornar s sa-las de aula com um curso sobre a imprensa e as elites intelectuais no nal do sculoXIX brasileiro, ulizando como estudo de caso a campanha abolicionista.

    Era uma vez uma disciplina. Seus encontros eram todas as sextas-feiras naparte da tarde. Os alunos inscritos se depararam com uma agradvel surpresa:

    mais da metade da turma, cada um com um vis diferenciado, estudava temasreferentes Abolio e ao Ps-Abolio no Brasil. Dessa constatao surgiu umaideia simples: iniciar um grupo de estudos.

    Apesar de parecer simples, o grupo de estudos nunca conseguiu sair do pla-no das ideias. Porm, a histria no se encerrou com o insucesso inicial. Com o in-cenvo do professor Humberto Machado e das professoras Hebe Maos e MarthaAbreu, mais o apoio do PPGHistria-UFF, do Laboratrio Cidade e Poder (LCP), doNcleo de Pesquisas em Histria Cultural (NUPEHC) e do Laboratrio de HistriaOral e Imagem (LABHOI), o que era para ser apenas um grupo de estudos transfor-mou-se num seminrio.

    Era uma vez um seminrio. Organizado por ps-graduandos da UFF CamilaMendona, Flvia Campany do Amaral, Rita Vasconcelos, Denlson Silva, Eric Brasil,Matheus Serva e Luis Gustavo Cota e intulado Caminhos da Abolio e do Ps--Abolio I Seminrio de Ps-Graduandos em Histria do Processo de Abolioe do Ps-Abolio no Brasil, foi realizado, com grande sucesso, entre os dias 11e 13 de maio de 2010.1 Certamente, o brilhansmo das conferncias de EduardoSilva e de Maria Helena P. T. Machado e as questes colocadas pelos professoresCarlos Gabriel, Marilene Rosa Nogueira da Silva e Keila Grimberg, ao coordenaremalgumas das mesas, contriburam diretamente para isso. Tivemos ainda a inscrio

    de diversos trabalhos de mestrandos e doutorandos de diferentes programas deps-graduao do Brasil e a presena de um pblico muito maior que o esperado.Tornava-se evidente que havia uma nova demanda do meio acadmico de Histriapor encontros de discusso sobre a Abolio e o Ps-Abolio.

    Mantendo-nos atentos aos conselhos de Bourdieu de que quanto mais a

    1 O site do evento: hp://www.historia.u.br/nupehc/caminhosdaabolicao/

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    gente se expe, mais possibilidades existem de rar proveito da discusso e [...]mais benevolentes sero as crcas ou os conselhos,2 o evento seguiu uma linhareexiva a respeito das pesquisas apresentadas. A parr de dilogos francos en-tre os ps-graduandos, pesquisadores-aprendizes e reconhecidos pesquisadores,

    comparlhamos incertezas, frustraes, alegrias e experincias de jovens historia-dores no trato das fontes e com a elaborao dos textos nais.

    Com a apresentao dos trabalhos, muitos deles resultados parciais depesquisa, as anidades pessoais e acadmicas cresceram e percebemos que erapossvel construir um livro com foco central na discusso sobre os Caminhos daLiberdade. A oportunidade surgiu com o apoio do PPGH/PROEX aos encontros epublicaes dos ps-graduandos por meio de um edital especco no nal de 2009.

    No podemos deixar de mencionar o incenvo recebido de Eduardo Silvaque, em meio a sua impactante e indita conferncia, mobilizou todos os expecta-dores a reerem sobre a importncia do registro daquele momento. Seguindo emgrande parte as palavras do historiador, agora publicadas em nosso livro, os textosde Caminhos da Liberdade parlham da ideia de que foi fundamental a parcipa-o do povo negro na obra da abolio da escravido.

    Era uma vez um livro, ou melhor, um e-book. Este e-book que chega at atela de vocs leitores o resultado de toda essa histria que acabamos de regis-trar. Aps um longo ano de preparo, que contou com a reviso de Sheila Louzadae Matheus Serva, com os comentrios de Martha Abreu, a diagramao de GabrielBrasil e o apoio internuco de Hayde Oliveira e Carolina Viana Dantas, o livro Ca-

    minhos da liberdade: histrias da Abolio e do Ps-Abolio no Brasilnalmenteest pronto.

    H mais de vinte anos, em 1988, em torno das comemoraes pelos 100anos da Abolio diversos seminrios abriram uma nova pauta de pesquisa e re-exo sobre a escravido e a Abolio no Brasil. Desde ento, tem sido impressio-nante acompanhar a renovao historiogrca em todo o pas, especialmente nocampo dos estudos de escravido. Como destacou Eduardo Silva na conferncia deabertura, o tema da Abolio e do Ps-Abolio no recebe desde ento as mes-mas atenes. No seminrio que realizamos em 2010, a presena de tantos jovense qualicados pesquisadores, de diversos programas de ps-graduao do Brasil,interessados nas temcas da liberdade certamente indica que estamos diante deoutro momento de renovao, agora mais centrado nos desaos colocados pelodesmonte da escravido e pelas lutas sociais posteriores a 1888. A variedade detemcas, fontes e discusses, permite-nos, alm de demonstrar a riqueza do se-

    2 BOURDIEU, Pierre. Introduo a uma sociologia reexiva,in O poder simblico.Lisboa:Difel; Brasil: Bertrand. 1989. P. 17.

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    minrio, vislumbrar promissores desdobramentos futuros, quando esses jovenshistoriadores divulgarem seus trabalhos nais e tornarem-se formadores de outros

    jovens, pesquisadores, professores e historiadores.

    O livro est dividido em cinco partes. Mesmo que a maior parte dos traba-lhos se rera ao Sudeste, encontram-se tambm textos sobre Rio Grande do Sul,Bahia e Amazonas. As duas primeiras partes, com trabalhos sobre as possibilidadesde liberdade antes de 1888, abordam as tenses legais pelo m do trco, a ex-perincia de africanos livres e das famlias escravas, assim como o recenseamentopopulacional, a Revoluo Farroupilha e as disputas em reas da fronteira sul. Aterceira parte apresenta, por meio da discusso sobre os projetos abolicionistas, opapel de intelectuais, jornalistas, espritas e lideranas negras nas lutas pela abo-lio. A quarta parte centra a ateno nos limites da liberdade aps o m da es-cravido, discundo sobre trabalho infanl, economia leiteira, festas populares e

    aes camponesas. Por m, a quinta parte apresenta reexes sobre as festas daliberdade e as memrias da escravido a parr de imagens da Abolio e dos car-navais, da literatura, dos quilombos e das polcas patrimoniais.

    O livro Caminhos da liberdade apresenta ainda - na parte que denominamosAbertura as contribuies originais de Eduardo Silva e Maria Helena Machado.A presena desses dois consagrados historiadores confere ao livro maior visibilida-de e incenvo trajetria de tantos novos pesquisadores.

    Os organizadores do livro e todo o PPGH-UFF - esto orgulhosos de trazerao pblico este trabalho. Boa leitura!

    Matheus Serva Pereira

    Martha Abreu

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    ABERTURA

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    Os abolicionistas brasileiros e a Guerra de Secesso1Maria Helena Pereira Toledo Machado*

    Nesta comunicao vamos abordar uma questo que, embora tenha sidopercebida pelos homens de seu tempo como fundamental, tem recebido poucaateno dos historiadores do presente. Trata-se aqui de procurar enfocar as inte-raes entre os EUA e o Brasil do sculo XIX em torno da escravido. O objevo avaliar o impacto do contexto norte-americano, sobretudo das dcadas que ante-cederam e sucederam a guerra civil, nos desnos da escravido e no desenvolvi-mento do pensamento abolicionista no Brasil. O tema obviamente estratgico,uma vez que Brasil e Estados Unidos (juntamente com Cuba) surgiam como as prin-cipais potncias escravistas do connente entre os anos de 1830 e 1860, estandoligadas por uma srie de conexes nmas, seja em termos do trco de escravos,

    seja em relao circulao de ideais e projetos, tanto de senhores de escravos eseus idelogos a respeito de como preservar a escravido no connente, como deabolicionistas, que se conectavam em torno de discusses a respeito da abolio.Nesse sendo, procuraremos mostrar aqui como no decorrer do sculo XIX os doispases estavam unidos e separados pelo problema da escravido e pelas opes aserem adotadas para sua superao.

    Com vistas a delinearmos tais conexes, trs perspecvas sero aqui enfoca-das de maneira sintca. Nosso objevo no , de forma alguma, esgotar um as -sunto to complexo, mas apenas propor algumas linhas de raciocnio que nos per-

    miro esboar horizontes de indagao. Uma primeira linha de anlise enfocaras ligaes desenvolvidas entre as dcadas de 1830 e 1860, as quais uniram, de ma-neira nma, as potncias escravistas, isto , Brasil e EUA, em torno de projetos depreservao da escravido. Uma segunda linha de conexes colocar em pauta asinteraes desenvolvidas entre os EUA e o Brasil em termos da circulao de ideiasa respeito das raas e das possibilidades de integrao dos afro-americanos s so-ciedades ps-emancipao e da superao do legado da escravido por meio da

    * Professora Titular. Departamento de Histria da Universidade de So Paulo. Pesquisa-dora CNPq.

    1

    Esta palestra foi apresentada na Universidade de Columbia (Nova York, EUA), no congres-so Nabuco e o Novo Brasil, organizado pelo The Brazilian Endowments for the Arts, em outubrode 2010. Ao receber o convite de Martha Abreu e Matheus Seva Pereira para publicar no simpsioCaminhos da Liberdade: Histrias da Abolio e do Ps-Abolio no Brasil, optei por enviar estetexto por considerar esta uma oportunidade valiosa para apresentar aos pesquisadores e alunosde ps-graduao brasileiros, especialmente os da UFF, algumas ideias a respeito de um temaprovocavo e ainda pouco explorado, das inter-relaes entre Brasil e Estados Unidos em tornoda abolio da escravido no Brasil.

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    mesagem. O Brasil, enquanto um imprio que gozava de certa estabilidade pol-ca e que possua uma grande concentrao de afrodescendentes e de populaomesa, atraiu a ateno de viajantes norte-americanos, como a de Louis Agassiz,legendrio ciensta de origem sua e professor da Universidade de Harvard, o

    qual, por seu turno, foi um dos importantes idelogos da segregao que se esta-beleceu nos EUA ps-guerra civil. Esses idelogos como Agassiz se ulizaram desuas estadas no Brasil para recolher provas a respeito dos males da miscigenao edos perigos da degenerao das raas. Finalmente, uma terceira linha de conexesprocurar ilustrar como os abolicionistas brasileiros se ulizaram do exemplo daguerra civil para propugnar uma sada pacca e organizada da escravido no Brasil.

    O Golfo do Mxico, o Lago Amaznico e o expansionismo sulista

    Ao escrever O abolicionismo, Nabuco por diversas vezes lanou mo do exemploda escravido e de sua abolio nos EUA para ilustrar ideias bastante variadas. Em umadessas passagens, Nabuco se refere a uma realidade que est hoje entre ns quaseesquecida: a da ligao intentada entre grupos sulistas norte-americanos expansionis-tas em direo ao Brasil, com o objevo de ocupar terras brasileiras, estabelecendoum amplo arco polco e econmico escravista, capaz de fortalecer a representaopolca de grupos sulistas escravistas. Enfocando tal tema, Nabuco citou a seguintepassagem, rerada originalmente do jornal sulista de Tennessee Southern Standard:

    A nossa verdadeira polca olhar para o Brasil como a segunda

    grande potncia escravocrata. Um tratado de comrcio e alian-

    a com o Brasil conferir-nos- o domnio sobre o Golfo do Mxi-

    co e os estados que ele banha, juntamente com as ilhas; e a con-sequncia disto colocar a escravido africana, fora do alcance

    do fanasmo no interior ou no exterior. Esses dois grandes pa-

    ses de escravos devem proteger e forcar seus interesses co-

    muns... Ns podemos no s preservar a escravido domsca,

    mas tambm desaar o poder do mundo...2

    Para compreendermos o que esta passagem quer dizer temos de enfocar asrelaes entre EUA e Brasil nas dcadas que precederam a guerra civil norte-ame-ricana. Um livro que saiu em 2007, de autoria de Gerald Horne, pode nos ajudar a

    recuperar certos temas e problemas que estavam esquecidos: The Deepest South:the United States, Brazil, and the African Slave Trade. Nele, o autor estabelece comoquesto decisiva para as dcadas que imediatamente antecederam e sucederama guerra civil norte-americana as complexas relaes que sulistas e norstas en -treveram com o Imprio Brasileiro, que aparecia na poca como o grande reduto

    2 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Petrpolis: Vozes, 1988. P. 162.

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    escravista do hemisfrio.3 Mostrando como o Brasil se tornou tanto o sonhadoparaso dos interesses expansionistas sulistas que, enlevados pelo Desno Mani-festo, buscavam novos territrios escravistas quanto a meca dos armadores, ba-leeiros e negociantes norstas, sediados na Nova Inglaterra que, disfarados sob

    a bandeira do comrcio internacional com a frica ou da pesca da baleia, se encar-regaram da parte do leo do abastecimento de escravos dos mercados brasileirosnas dcadas de 1830 e 1840, e mesmo depois , Gerald Horne arma cabalmenteque, na verdade, para alm do Alabama ou do Mississippi, o Brasil era o verdadeirodeepest South sul mais profundo dos EUA. Ora reservatrio dos negcios einteresses norte-americanos ligados ao trco e vinculados aos portos da NovaInglaterra, ora espao preferencial para a expanso territorial sulista, baseada naescravido ou em formas de subordinao provisria como a aprendizagem e ocolonato em direo a um Sul hemisfrico, e visto como militarmente mal defen-dido e pessimamente administrado porm senhor de vastas reas tropicais frteis,

    adequadas como nenhuma outra ocupao e submisso dos africanos e afro-descendentes, o Brasil Imperial aparece como centro de arculao e, como bemarmou Mahew Fontaine Maury um dos principais personagens abordados nolivro , vlvula de escape dos EUA.

    Como mostrei em meu livro Brazil Through the Eyes of William James, no qualabordei o tema dos viajantes norte-americanos no Brasil, desde ns da dcada de1840 o tenente Mahew Fontaine Maury comeou a divulgar suas ideias em re-lao ao Vale Amaznico.4 Foi este um grande estudioso das correntes marmas,inventor do telgrafo submarino e futuro inventor do torpedo uvial, que seria

    ulizado com grandes vantagens pelos confederados durante a Secesso.5

    Atentoaos interesses de um Sul escravista, Maury, ao estudar as correntes e ventos doAtlnco, se convenceu de que o cenrio privilegiado para a expanso dos interes-ses sulistas encontrava-se na Amaznia. Esses interesses diziam tanto respeito expanso comercial do Sul, cada vez mais pressionado pelos grupos comerciantesde Nova York, se quanto conectava ao problema territorial.6

    3 HORNE, Gerald. The Deepest South. Nova York: New York University Press, 2007.4 MACHADO, Maria Helena P. T. Brazil Through the Eyes of William James. Leers, Dia-

    ries, and Drawings, 1865-1866. Cambridge: David Rockefeller Center for Lan American Studies/

    Harvard University Press, 2006. Em 2010, foi lanada a verso brasileira do livro, sob o tulo de OBrasil no olhar de William James. So Paulo: Edusp, 2010. Para uma discusso mais aprofundadada temca discuda ver tambm: MACHADO, Maria Helena P. T. Brasil a vapor. Raa, cincia eviagem no XIX. Tese de livre-docncia, FFLCH/Departamento de Histria, 2005, parte I.

    5 COHEN, Howard. Mahew Fontaine Maury: Pathnder of the Sea. Bethesda, MD: NIMA, 2003.6 HARRISON, John P. Science and Polics: Origins and Objecves of Mid-Nineteenth Cen-

    tury Government Expedions to Lan America, in Hispanic American Historical Review, vol. 35, n.2 (maio de 1955), pp. 175-202.

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    De fato, as questes primordiais para a sobrevivncia da idendade regionale dos interesses do Sul norte-americano a parr de meados do XIX relacionavam-seno apenas questo da manuteno da escravido, mas tambm sua expanso.Em termos territoriais, o problema ca bastante bvio: as lutas polcas que cerca-

    ram a denio dos territrios, estabelecida pelo Missouri Compromise de 1820,que traou uma linha sanitria entre o Norte e o Sul escravista, s se agudizaram aolongo do perodo.7 No se tratava apenas de promover a expanso territorial sica,que possibilitasse o crescimento da agricultura escravista; havia tambm o crucialproblema da representao polca do Sul na unio.

    Desde a Constuio de 1787, o Sul havia adquirido um suplemento de re-presentao polca pela regra dos trs quintos, isto , cada cinco escravos con-tavam como trs pessoas livres, o que havia propiciado uma hiper-representaoaos estados escravistas. Como os escravos no votavam, o voto dos homens livres

    sulistas recebia um suplemento representavo, o que permiu ao Sul manter seupoderio polco. Porm, medida que novos estados eram incorporados e que apopulao nos estados no escravistas crescia demogracamente por meio da imi-grao e da naturalizao, o Sul via-se ameaado de perder sua representavidade.Como estratgia de manuteno de seu poder de voto, uma das plataformas foi di-cultar e mesmo proibir a alforria, garanndo assim a manuteno do agregado devotos.8 Outra foi a expanso e a anexao territorial, com esperanas de acrescen-tar novos estados escravistas e hiper-representados em termos eleitorais. nessecontexto que as aventuras anexacionistas do Sul norte-americano na AmricaCentral e em Cuba ganham sendo, assim como se compreendem os interesses

    que jaziam por traz da proposta expansionista de Maury em direo Amaznia.9

    Ulizando-se de uma roupagem cienca, bem ao gosto da poca, Mauryformulou uma teoria geopolca da Amrica Lana que beneciava amplamenteas veleidades do Sul em expanso. Segundo o estudioso das cartas de ventos ecorrentes, uma acha de lenha lanada no rio Amazonas boiaria em direo ao mar,seria carregada pelas correntes marmas em direo ao Caribe (o nosso mar,no dizer de Maury) e chegaria embocadura do rio Mississippi, passando pelo Ca-nal da Flrida e pelo Golfo do Mxico.10 Em carta dirigida a seu cunhado e amigo

    7 LADER, Lawrence. The Bold Brahmins. New Englands War Against Slavery (1831-1863).

    Nova York: E. P. Duon, 1961. Pp. 30-36.8 Sobre o tema, ver: LADER, L. Bold Brahmins, pp. 31-37 e TENZER, Lawrence. The For-goen Causes of the Civil War:a New Look at the Slavery Issue. New Jersey: Scholars PublishingHouse, 1997, pp. 44-60.

    9 MARTIN, Percy Alvin. The Inuence of the United States on the Opening of the Amazon tothe Worlds Commerce, in Hispanic American Historical Review, vol. 1, n. 2 (maio de 1918), p. 153.

    10 Carta de M.F. Maury para W.G. Sims, maio de 1849, apud HARRISON, John P. Scienceand Polics: Origins and Objecves of Mid-Nineteenth Century Government Expedions to Lan

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    William Herndon, cuja expedio ao Amazonas respondia ao projeto de Maury,ento encampado pela Marinha norte-americana, encontramos outra observaodo mesmo naipe. Segundo Maury, a Amaznia se localizava mais perto da Flrida edo Mississipi do que do Rio de Janeiro, devendo estar, portanto, sob controle dos

    estados sulistas.11 Este conjunto de argumentos delinearia o que Maury denomi-nou de nosso lago interior, que iria do Golfo do Mxico Amaznia, regio quenaturalmente pertenceria ao Sul, cabendo, portanto, aos sulistas colonizar, revo-lucionar, republicanizar e anglicizar este vale.12

    A ideia de que o futuro dos interesses do Sul se encontrava na Amaznia foipublicada pela primeira vez em 1842 no Hunts Merchants Magazine and Commer-ce Review e republicada, sob diversas roupagens, em uma srie de argos em jor-nais e revistas do Sul, sobretudo no DeBows Review, perdico mais representavodos interesses escravistas-racistas da regio.13 J em 1849, num argo do DeBows

    Review dedicado ao comrcio via Golfo do Mxico, Maury sublinhava a importn-cia do Vale Amaznico. O mesmo argo foi enviado ao secretrio naval, WilliamBallard Preston, em 1850, que aprovou a demanda e a favoreceu, apoiando a orga-nizao de uma expedio de reconhecimento da navegabilidade e das condiesclimcas da Amaznia. As propostas de Maury, publicadas numa srie de cartasem um jornal de Washington, sob o pseudnimo de Inca, e republicadas sob otulo The Amazon and the Atlanc Slopes of South America em 1853, obveramenorme popularidade.14 Alm disso, a questo se tornou candente com a viagemde Herndon Amaznia, tendo ele pardo em 1851 e retornado em 1852. Nestemesmo ano, ainda antes do retorno da Expedio Herndon aos EUA, j diversos

    senhores sulistas comearam a requerer passaporte para emigrar para o Brasil. OAmerica..., pp. 187-88.

    11 Carta de M. F. Maury para W. L. Herndon, 20 de abril de 1850, transcrita na ntegra emDOZER, Donald Marquand. Mahew Fontaine Maurys Leer of Instrucon to William Lewis Hern-don, in Hispanic American Historical Review, vol. 28, n. 2 (maio de 1948), passagem citada na p. 217.

    12 to sele and to revoluonize and republicanize and Anglo Saxonize that Valley. Cartade M. F. Maury para W. L. Herndon, 20 de abril de 1850, transcrita na ntegra em DOZER, MahewFontaine Maurys Leer of Instrucon to William Lewis Herndon..., passagem citada na p. 217.

    13 BELL JR., Whiield J. The Relaon of Herndon and Gibbons Exploraon of the Am-azon to North American Slavery, in Hispanic American Historical Review, vol. 19, n. 4 (nov.de 1939), nota 1, p. 494. A DeBows Review foi uma revista publicada no Sul norte-americano

    entre os anos de 1846 e 1880, com alguns lapsos durante a Guerra Civil. O peridico conhe-cido pelo nome de seu editor comeou em Nova Orleans sob o tulo de Commercial Re-view of South and West e mudou-se para Washington (capital) em 1853. A DeBows Reviewfoi o peridico que mais consistentemente advogou os interesses sulistas, inclusive a seces-so, nas dcadas pr-guerra, tendo circulado extensivamente entre os setores interessados.(hp://en.wikipedia.org/wiki/DeBow's_Review#Publicaon_history) .

    14 MAURY, Mahew Fontaine. The Amazon and the Atlanc Slopes of South America. Wa-shington: F. Taylor, 1853.

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    resultado foi que os EUA passaram a pressionar fortemente o Brasil, que respon-deu resisndo s agressivas solicitaes da diplomacia americana.15

    Em 1853, dois eventos colaboraram para elevar o interesse pela Amaznia

    importncia de questo de segurana nacional norte-americana. O primeiro foia convocao da Conveno de Memphis, Tennessee, ocorrida em junho de 1853,na qual o assunto foi objeto de debates acalorados.16 A resoluo da Convenoresultou num memorial, redigido por Maury e endereado ao Congresso, que oapreciou em maro de 1854, subscrevendo-o. No arrazoado de Maury enviado aoCongresso, a Amaznia aparece descrita como o novo den, e a abertura de suanavegao, avaliada como essencial para o progresso norte-americano. Neste do-cumento a Amaznia especialmente importante porque, segundo Maury, seriacapaz de sustentar uma populao de pelo menos 600 milhes de pessoas! O se-gundo evento foi o fato de o prprio presidente Pierce mencionar a questo da

    abertura da Amaznia em sua mensagem anual de 1853, sublinhando sua esperan-a na rpida obteno da livre navegao do rio.17 Entretanto, a despeito de todoo alarde, a questo comeou a perder a relevncia em 1854, medida que o Sullanava seus tentculos expansionistas para o Oeste norte-americano.

    Embora todo o episdio do interesse norte-americano pela Amaznia aindaseja pouco conhecido tanto nos EUA quanto no Brasil apesar do denivo livrode Ncia Vilela Luz18 , alguns aspectos da questo connuam mais do que nebu-losos. Ao analisarmos a sequncia de argos publicados nas revistas sulistas pr--guerra sobretudo na DeBows , nota-se a existncia de diferentes nfases. Duasgrandes questes animavam esses argos; a primeira, j mencionada, referia-se

    questo da abertura do Amazonas para a navegao internacional. Os argumentosrelavos a este aspecto aparecem costurados em torno da livre navegao dos riose seus precedentes (navegao do So Loureno e do Prata), do liberalismo e doaumento do comrcio interamericano. No entanto, a questo do livre comrcio,embora mais conhecida, no encerrava o problema. O que Maury e seus simpa-zantes passaram a advogar sob a capa da livre navegao era a efeva imigraoem massa dos plantadores de algodo sulistas e seus escravos para o Vale Amaz-

    15 Sobre o tema, ver livro clssico de LUZ, Ncia Vilela. A Amaznia para os negros america-nos: as origens de uma controvrsia internacional. Rio de Janeiro: Saga, 1968. Ver tambm ANGE-

    LIS, M. de. De La Navegacin del Amazonas. Respuesta a Una Memoria de M. Maury, Ocial de laMaria de los Estados Unidos.Caracas: Reimpreso T. Antero, 1857, cujo opsculo foi escrito sob osauspcios de Pedro II, com vistas a confrontar os argumentos norte-americanos.

    16Transcrio das atas deste encontro em The Memphis Convenon, DeBows Review, n.XV, setembro de 1853, pp. 255-74, especialmente pp. 263-64 e 268.

    17MARTIN, Percy Alvin. The Inuence of the United States on the Opening of the Amazonto the Worlds Commerce, pp. 150-53.

    18 LUZ, Ncia Vilela.A Amaznia para os negros americanos....

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    nico ou, mais ainda, a imigrao forada dos escravos, tornando-se a Amaznia avlvula de segurana dos EUA. Isto , prevendo a possibilidade de confronto entreo Norte e o Sul e as ameaas de perda do controle da situao que poderia advircom uma guerra de raas, Maury propunha, entre o nal da dcada de 1940 e o

    incio da de 1950, a transferncia organizada (pelos sulistas, claro) dos negros doSul dos EUA para a Amaznia. Essa imigrao aparece ora capitaneada por empre-sas e companhias de terras, ora implicada em engenhosos projetos que forariamo Brasil a comprar os escravos do Sul norte-americano em troca da manuteno docaf duty free. Outra sugesto de Maury era atacar a costa da frica para impediro reabastecimento brasileiro de escravos.

    Outro aspecto a ser considerado o tema do trco de escravos entre osanos de 1830 e 1840, incluindo os movos que levaram sua proibio em 1850.Estudando minuciosamente a atuao de Henry Wise um dos principais polcos

    sulistas do perodo, defensor convicto da escravido e governador da Virgnia res-ponsvel pela execuo de John Brown aps o ataque de Harpers Ferry como ple-nipotencirio norte-americano no Brasil dos anos 1840, Horne mostra a abrangn-cia do controle norte-americano sobre o trco em nosso pas, ao mesmo tempoque documenta a luta que sulistas e norstas dos EUA entreveram com relaoao Brasil. Wise, escravista virulento, em sua estadia no Brasil, combateu o trcoilegal com todas as suas foras, sem nunca atacar a escravido em si. Surgiu entoo j citado Maury, companheiro de Wise que militou em prol da implementao deprojetos de anexao da Amaznia ao Sul norte-americano.

    Apesar do fato de o projeto de abertura-ocupao da Amaznia ter se esva-

    ziado a parr de 1854, a ideia de que o Brasil e especicamente a Amaznia eraa terra promeda dos sulistas, reapareceu mais de uma vez ao longo da dcada de1860, tanto nas consideraes geopolcas de um sul omista pr-secesso, quantocomo desno imigratrio dos confederados derrotados. O mais incrvel que, a par-r de 1862, em plena Guerra Civil, a questo da emigrao de negros para Amazniavoltou tona.19 Como j se mencionou, James Watson Webb, plenipotencirio norteamericano no Brasil no decorrer da Guerra Civil, efevamente deu os primeiros pas-sos no sendo de organizar um empreendimento voltado para a compra de terras naAmaznia, que seriam ocupadas por negros libertos norte-americanos. Segundo seuautor, neste caso, Os Estados Unidos sero abenoados pela ausncia (dos negros),

    19 Sobre o tema ver a Dissertao de Mestrado de Maria Clara Carneiro Sampaio, Fron-

    teiras Negras ao Sul: A Proposta dos Estados Unidos de Colonizar a Amaznia Brasileira com

    Afro-descendentes Norte-Americanos na Dcada de 1860, indita, FFLCH-USP, 2008 e artigo

    da mesma autora: Emancipao, Expulso e Excluso: Vises do Negro no Brasil e nos Estados

    Unidos nos Anos de 1860.Revista Sankofa, n.3, junho/2009 (hp://sites.google.com/site/revista-sankofa/sankofa3/emancipacao).

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    livrando da maldio que por bem pouco no o levou destruio; o Brasil ir receberexatamente o po de trabalhador e cidado melhor preparado para desenvolver seusrecursos ...20Como das outras vezes, o projeto naufragou, colocando Webb sob ata-que do Imprio brasileiro, que o processou por fraudes nanceiras.21

    O Brasil como laboratrio de observao: raa, miscigenao edegenerao

    Neste segundo item enfocarei a circulao de ideias a respeito da raa e dodesno dos afroamericanos em sociedades ps-emancipao, sublinhando, princi-palemnte, as interaes entre EUA e Brasil.

    As signicavas batalhas esgrimidas nas dcadas de 1830 a 1860 por natura-listas idealistas, defensores da interpretao bblica da idade da terra, do dilvioou da glaciao, da monogenia ou da poligenia por militantes abolicionistas, pelosidelogos da escravido ou da tutela, veram como laboratrio as regies tropicaisda Amrica do Sul, tendo se tornado o Imprio brasileiro o mais signicavo cam-po de batalha no qual se defrontaram as diferentes teorias naturalistas com suassolues para o problema da raa.22 O Brasil, tornado independente em 1822 pormeio da manuteno da monarquia braganna, estratgia que havia colocado o

    jovem imprio na contra-corrente das instabilidades das repblicas hispano-ame-ricanas, assegurando a connuidade da escravido e o controle de sua majoritriapopulao livre mesa, transformou-se no paraso tropical sonhado por todos osnaturalistas amadores e prossionais. O jovem Darwin, que embarcado no Beaglerealizou, entre 1831 e 1836 uma volta ao mundo, esteve no Brasil por duas vezes,

    ocasies aproveitadas tanto para observar a riqueza da natureza tropical quan-to para reer sobre os terrveis males da escravido. Permanecendo no Brasilexatamente no perodo em que a Inglaterra passava a patrulhar a costa brasileiracom objevo de reprimir o desembarque de africanos ilegalmente tracados, cujaproibio passava a vigorar a parr de 1830, como rezava o tratado o qual o Brasilteimava em desconhecer, fazendo uma vigilncia pro-forma e interesseira nos cres-centes negcios do trco ( a expresso Para ingls ver foi cunhada nesta poca

    20 The United States will be blessed by his (the negros) absence, and the riddance of a cursewhich has well nigh destroyed her; Brazil will receive precisely the species of laborers and cizens

    best calculated to develop her resources ....Hill, Lawrence F., Diplomac Relaons Between theUnited States and Brazil, pp. 161-162.

    21 Noto que todo o episdio Webb ainda no foi pesquisado sob o ponto de vista do Im-prio brasileiro. Apenas, Hill, L. Diplomac Relaons Between the United States and Brazil..., pp.146-176, tratou do tema.

    22Este trecho est baseado em meu argo: Travels and Science in Brazil: Charles Darwin,Louis Agassiz, and William James, ReVista. Harvard Review of Lan America. Cambridge: DavidRockefeller Center for Lan American Studies, vol. VIII, 2009, pp. 34-37.

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    para exprimir esta situao), Darwin acabou por conhecer na inmidade as pioresfaces da escravido: trco ilegal realizado em condies abjetas, afogamento dostransportados para evitar a apreenso do navio ou para para poupar os custos daviagem de volta a frica no caso dos retornados.23

    O oponente de Darwin, Louis Agassiz, liderando a Expedio Thayer, tambmesteve no Brasil, na dcada de 1860, momento no qual, embora o trco inter-nacional de escravos esvesse denivamente fechado, a escravido connuavaorescente, viabilizando a expanso das reas cafeeiras ao sudeste do imprio. Ocasal Agassiz assim como Darwin se estabeleceu no Rio de Janeiro, visitou tantoos arredores do Rio de Janeiro quanto fazendas cafeeiras umineneses, dirigiu-seigualmente para o nordeste, hospedando-se nas principais cidades escravistas bra-sileiras. Alm disso, o casal Agassiz viajou pela Amaznia, tendo sido esta a etapaprincipal da viagem. O dirio desta viagem, Viagem ao Brasil, emboraredigido por

    Elizabeth Agassiz, segue claramente a orientao de Louis Agassiz.24

    Ao longo desuas 500 e tantas pginas se encontram muitos comentrios sobre a escravido nopas, todos visivelmente amenos: a escravido, segundo o casal, corrompe mais ossenhores do que os escravos, j os trabalhos pesados e desumanos, realizados porescravos nas cidades, vinham desaparecendo na mesma medida em que a certezade que a escravido estaria com seus dias contados (portanto, bastava esperar porseu desno nal), o Imperador, por seus senmentos humanistas, acabaria com ainstuio de uma s penada, se assim pudesse. Em meio a estas muitas jusca-vas envergonhadas que amparavam a manuteno, ainda que temporria da es-cravido, muito comuns ao perodo, encontram-se passagens da pena dos Agassiz

    que vo direto ao ponto: os negros, por sua inferioridade racial ou status servil,no devem conviver com os brancos, a amalgamao ou miscigenao (termo queembora tenha surgido em 1864, no paneto Miscegenaon: The theory of the blen-ding of the races, applied to the American white and negro, em defesa da misturadas raas, foi logo apropriado por seus detratores) so extremamente nefastas,podendo seus resultados serem observados no carter nacional brasileiro:

    Outra parcularidade que impressiona o estrangeiro o aspec-

    to de depauperamento e fraqueza da populao . . . J no

    que se trate apenas do fato de se verem crianas de todas as

    cores . . . Mas que no Brasil essa mistura parece ter do sobre

    o desenvolvimento sico uma inuncia muito mais desfavor-vel do que nos Estados Unidos. como se toda a pureza do po

    23 Keynes, R. D. (org.), Charles Darwins Beagle Diary. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 2001 (hp://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F1925&viewtype=text&pageseq=1) e Rookmaaker, Kees (org.), Darwins Beagle Diary (1831-1836). (hp://darwin-online.org.uk)

    24 Professor and Mrs. Louis Agassiz,A Journey in Brazil. Boston: Ticknor and Fields, 1868.

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    houvesse sido destruda e resultasse um composto vago, sem ca-

    rter e sem expresso. Essa classe hbrida, ainda mais marcada

    na Amaznia por causa do elemento ndio, numerosssima nos

    povoados e nas grandes plantaes . . .25

    Segundo o casal Agassiz, por tolerar a mistura de raas, o Brasil havia produ-zido um espetculo inigualvel observao do naturalista, no qual este poderiafacilmente vislumbrar os horrores de uma longa e inextricvel mesagem, quehavia borrado qualquer limite entre as raas puras fossem elas a branca, a negraou a indgena gerando uma situao nas quais seres repulsivos como cachorrosvira-latas eram encontrados em todas as partes. Em passagem de A Viagem aoBrasil, o problema da amalgamao as entre as diferentes espcies da famlia hu-mana claramente abordado:

    A consequncia natural de ininterruptas alianas entre pessoasde sangue misturado uma classe de indivduos em que o po

    puro desaparece completamente assim como todas as qualida-

    des sicas e morais das raas primivas, produzindo mesos

    to repulsivos como cachorros vira-latas, os quais esto aptos

    para ser a companhia destes e entre os quais no se descobre um

    nico indivduo que tenha conservado a inteligncia, a nobreza

    e afeio natural que fazem do co de pura raa o companheiro

    predileto do homem civilizado.26

    Inspirado em tais certezas, Agassiz, em Manaus (capital da ento provnciado Amazonas), estabeleceu o discuvel Bureau dAnthropologie que nha comoobjevo documentar as diferenas entre as raas puras e mistas existentes no Bra-sil. Segundo o ciensta, a populao brasileira, marcada como era por um altondice de miscigenao, tornava-se um laboratrio ideal para o estudo das conse-qncias dos diferentes pos de cruzamento na constuio dos indivduos. Com oobjevo de ilustrar o perl da populao brasileira, Agassiz inicialmente encomen-dou a Augusto Stahl, fotgrafo prossional com casa comercial na cidade do Riode Janeiro, uma srie de fotograas de africanos, classicados por Agassiz comopos raciais puros. O resultado desta iniciava se materializou em duas sries defotograas, uma na forma deportraits e uma segunda composta de fotograas decarter cienco sionmico de pos tnicos de negros e negras do Rio de Janeiro,mas incluindo na seqncia tambm alguns chineses que viviam na cidade. Note-seque todos os gurantes da sequncia sionmica aparecem nus e em trs posies

    25 Prof. and Mrs. L. Agassiz,A Journey , p. 292. Traduo minha do original.26 Prof. and Mrs. L. Agassiz,A Journey , p. 298. Traduo minha do original.

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    xas (de frente, de costas e de perl). Uma terceira srie de fotograas foi realizadaem Manaus, tendo como fotgrafo um dos integrantes da expedio, Walter Hun-newell, e documentou os pos mistos ou hbridos amaznicos. Em 2010, em cola-borao com Sasha Huber, lancei o livro e organizei uma exposio fotogrca.27

    Ao lado dos estudos da fauna marma e da geologia, uma das preocupaesde Agassiz ligava-se ao estudo das raas humanas. Desde sua chegada aos EUA, nomeio da dcada de 1840, o ciensta havia se envolvido no debate norte-americanoa respeito das raas, tendo ele se alinhado primeiramente ao lado dos poligenistas(isto , aqueles que acreditavam que a humanidade no era una, mas formada por di-ferentes espcies, tendo havido mais de uma criao divina, posio a qual ele nuncaabdicou) e mais tarde, abraado a teoria da degenerao, que rezava que a miscige-nao entre as diferentes raas humanas ou o hibridismo levava degenerescncia.A base desta crena era que as raas cruzadas, ao invs de carregarem as melhores

    caracterscas de seus ancestrais, levava a que traos atvicos viessem supercie,expondo os descendentes de unies mistas a todos os riscos de uma progressiva de-generescncia. importante notar que Agassiz esteve envolvido no debate a respei-to da raa no ambiente norte-americano, defendendo tanto o abolicionismo sendoele pardrio da abolio da escravido - quanto a segregao das raas.

    O que notvel em tudo isso que, desde pracamente a sua chegada aCambridge, Massachuses, Agassiz havia se envolvido com os baluartes da teseda inferioridade racial. Homens como Samuel George Morton e Josiah No, quepublicaram o grosso dos estudos craniomtricos racistas nas dcadas de 1840 e50, haviam se tornado correspondentes e antries de Agassiz em cartas, passeios

    culturais e palestras apresentadas para pblicos de senhores de escravos e simpa-zantes no sul.28 Mais ainda, Agassiz no fazendo nenhum mistrio de sua adeso aoracismo cienco havia, a parr da inuncia de Morton, aderido ao poligenismo,ainda na dcada de 1840. A idia de que as diferentes raas humanas houvessem

    27 Sobre o tema ver:Machado, Maria Helena P. T., Traces of Agassiz on Brazilian Races: TheFormaon of a Photographic Collecon in: Machado, Maria Helena P. T. e Huber, Sasha, (T)Racesof Louis Agassiz: Photography, Body, and Science, Yesterday and Today/ Rastros e Raas de Louis

    Agassiz: Fotograa, Corpo e Cincia, Ontem e Hoje So Paulo: Capacete/29. Bienal de Artes deSo Paulo, 2010, pp. 20-43.

    28 Morton, Samuel George. Crania Americana; or, A comparave view of the skulls of vari-

    ous aboriginal naons of North and South America. To which is prexed an essay on the variees ofthe human species. Philadelphia: J.Dobson ; London : Simpkin, Marshall, 1839; e Crania Aegypa-ca; or, Observaons on Egypan ethnography, derived from anatomy, history and the monuments.Philadelphia: J. Penington, 1844. No, Josiah Clark. Types of mankind: or, Ethnological researches,based upon the ancient monuments, painngs, sculptures, and crania of races, and upon theirnatural, geographical, philological and Biblical history; illustrated by selecons from the inedited

    papers of Samuel George Morton ... and by addional contribuons from Prof. L. Agassiz, LL.D., W.Usher, M.D., and Prof. H. S. Paerson, ... Filadla: Lippinco, Grambo & Co., 1854.

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    sido criadas para habitar provncias zoolgicas especcas, estando, portanto, ap-tas a responder apenas aos desaos de seu meio ambiente, encontrava sua base nopoligenismo e moldava-se com perfeio teoria de Agassiz do criacionismo, cujaidia fundamental escorava-se numa viso estca do mundo natural. Assim, a

    adeso de Agassiz tanto ao poligenismo, quanto teoria da degenerao das raaspelo hibridismo, concebida e defendida nos EUA por Josiah No, mdico que atua-va em Mobile, Alabama, sob o argumento de que o cruzamento das raas produziauma descendncia biologicamente enfraquecida e com acentuadas tendncias esterilidade, surgia como passo natural a referendar a interpretao criacionista ehierrquica do mundo natural, desde sempre esposada pelo mestre naturalista.29

    Agassiz no apenas aderiu American School of Ethnology, mas passou, nasdcadas de 1840 e 50, juntamente com Morton e No, a compor o triunvirato quecomandou a abordagem racialista-poligenista defensora da segregao por meiodo ataque ao hibridismo ou mulaoism (mulasmo), como os cienstas racia-listas da poca gostavam de se referir questo da miscigenao entre brancos enegros.30 Entre as complexas e contraditrias idias, tendncias e posies a res-peito da escravido e da raa que circularam tanto no sul quanto no norte entre osanos que precederam e acompanharam a Guerra Civil americana, Agassiz pareceter se idencado e contribudo para duas grandes linhas de pensamento racia -listas, a j citadaAmerican School Ethnologye o Free Soil Movement. Este lmo,inspirado em ideias que associavam um forte nacionalismo supremacia da raabranca ou anglo-saxnica nas terras norte-americanas, advogava a homogeneida-de racial como condio para a sobrevivncia nacional. Este po de formulao,mais comum no norte do que no sul (o qual, obviamente dependia da mo-de-

    -obra negra e portanto, mostrava-se menos inclinado a abrir mo dela), emborapropugnasse a abolio, via como soluo nal ao problema da presena da raanegra no conjunto da nao a emigrao coleva ou, pelo menos, a segregao dosafroamericanos em um cinturo de clima quente e semi-tropical no sul, no qual osnegros viveriam o mais apartados possvel do mbito polco nacional, sempre soba tutela de uma populao branca que scalizaria o trabalho e a vida dos mesmos.Com isto, acreditavam os defensores da incompabilidade da convivncia da raanegra com a civilizao, os negros seriam, ao menos, impedidos de cometer danosirreparveis ao corpo da nao, uma vez que assim se preveniria, pela proibiolegal, o mulasmo (isto , o casamento interracial) e mesmo a mera convivnciaentre brancos e negros.31 Este exatamente o sendo da argumentao conda

    nas famosas cartas-resposta de Agassiz (em nmero de quatro), endereada, em1863, a Dr. Samuel Gridley Howe, o qual, tendo sido nomeado para o American

    29 Menand, Louis, The Metaphysical Club. A Story of Ideas in America. New York: Farrar,Straus and Giroux, 2001, cap. Agassiz, pp. 97-116.

    30 Fredrickson, George M. The Black Image in the White Mind. The Debate on Afro-Ameri-can Character and Desny, 1817-1914. Hanover, NH: Wesleyan University Press, 1987, pp. 86-87.

    31 Fredrickson, George M., The Black Image in the White Mind, pp. 130-164.

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    Freedmens Inquiry Commission, havia resolvido consultar Agassiz a respeito dequestes cruciais para a elaborao de polcas interraciais, tais como as possibi-lidades de sobrevivncia da populao negra e mulata liberta, minoritria no con-

    junto da populao norte-americana. Sobreviveria esta como uma raa parte ou

    seriam os afroamericanos absorvidos por meio da miscigenao? Se tal ocorresse,o que se poderia esperar da populao hbrida? Seria esta fraca, degenerada ecom tendncias a desaparecer devido crescente inferlidade que devastaria estapopulao medida mesma que o mulasmo aumentasse?

    As respostas de Agassiz, que vm sendo extensivamente citadas devido s suaspossveis consequncias na denio da polca racial ps-guerra civil, referendava ospiores prognscos de Howe, armando que a miscigenao era contrria ao estadonormal das raas, assim como ela contrria preservao das espcies no reino ani-mal ... Longe de se me apresentar como uma soluo natural das nossas diculdade, aidia da amalgamao me causa muita repugnncia...32 Alm disso, Agassiz especi-

    camente no aconselhava a universalizao dos direitos polcos para a populao li-berta negra, sob o argumento de que ... nenhum homem tem direito quilo para o qualele no est preparado para usufruir...J com relao aos mulatos, Agassiz sublinhavaque sua prpria existncia provavelmente apenas transitria e toda a legislaoque se refere a eles deve ser regulamentada segundo esta percepo e implementada

    para acelerar o desaparecimento deles nos estados do norte ....33

    Desde os anos de 1840, circulavam no sul e no norte propostas de repa-triao ou emigrao dos negros norte-americanos para frica, Amrica Lana eCaribe. Uma das propostas mais populares e que havia circulado insistentemente,

    nos anos de 1850 nos estados sulistas e que, na dcada de 1860, havia sido encam-pada, sob novo formato, por defensores norstas, tal como General James WatsonWebb representante plenipotencirio dos EUA no Brasil durante a Guerra Civil era a transferncia da populao negra norte-americana para o Brasil, sobretudo

    para as provncias tropicais do Norte, especicamente para a Amaznia, onde tra-balhariam como aprendizes por certo nmero de anos.34 E no por acaso, Agassiz

    32 ...contrary to the normal state of the races, as it is contrary to the preservaon of species in theanimal kingdom...Far from presenng to me a natural soluon of our dicules, the idea of amalgama -on is the most repugnant to my feelings... Carta de Louis Agassiz endereada ao Dr. S. G. Howe, Nahant,9 de agosto, 1863 IN: Agassiz, E. C. (ed.).Louis Agassiz. His Life and Correspondence. Boston: Houghton and

    Miin, c. 1885. (The Project Guemberg Ebook by Louis Agassiz) [Ebook # 6078, cap. 20].33 No man has a right to what he is unt to use ...their very existence is likely to be onlytransient, and that all the legislaon with reference to them should be regulated with this view, andso ordained as to accelerate their disappearance from the Northern States. Carta de Louis Agassizendereada ao Dr. S. G. Howe, Nahant, 9 de agosto, 1863 IN: Agassiz, E. C. Louis Agassiz. His Lifeand Correspondence, cap. 20.

    34 Hill, Lawrence F. Diplomac Relaons Between the United States and Brazil. Durham:Duke University Press, 1932, pp. 159-162.

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    como um dos criadores da teoria das provncias zoolgicas, advogava fortementea idia de que a raa negra havia sido criada para colonizar especicamente reastropicais, reas estas totalmente inadequadas para a sobrevivncia e o labor dohomem branco.35 Nota-se que os projetos que visualizavam a transferncia macia

    de afroamericanos para reas coloniais ou perifricas corriqueiramente lanavammo do argumento da compabilidade da raa negra aos trpicos para ngir inicia-vas de expulso dos negros do pas com tons rseos da lantropia. Argumentavamos defensores da imigrao forada ou esmulada que a felicidade da raa negradependia de seu enraizamento em seu ambiente natural, isto , nas reas de climaquente, pois apenas a esta poderia prosperar.

    A inuncia dos viajantes sobre os abolicionistas brasileiros foi, decerto, con-sidervel. Livros como o do casal Agassiz, publicado em 1868, certamente chega-ram com certa rapidez s mos de abolicionistas cultos, que costumavam viajar. O

    prprio Nabuco, cita Agassiz em epgrafe de um dos captulos do abolicionismo.A passagem escolhida, porm, nada diz a respeito do poligenismo ou do degene-racionismo. Pelo contrrio, a passagem escolhida por Nabuco aquela na qual osAgassiz condenam a escravido:

    Se os seus [do Brasil] dotes morais e intelectuais crescerem em

    harmonia com a sua admirvel beleza e riqueza natural, o mun-

    do no ter visto uma terra mais bela. Atualmente h diversos obs-

    tculos a este progresso; obstculos que atuam como uma doena

    moral sobre seu povo. A escravido ainda existe no meio dele.36

    Lendo os viajantes de maneira seleva, sobretudo selecionando passagensdo famoso Agassiz, Nabuco mostra que os abolicionistas brasileiros esto, de ma-neira sul, depurando as ideiais divulgadas por intelectuais norte-americanos e,desta forma, rejeitando uma leitura frontalmente racialista da realidade brasileira,a qual, por seu turno, cada vez mais se implantava nos EUA.

    Os Abolicionistas Brasileiros Olham para os EUA: A Violncia da GuerraCivil e a Lei de Lynch

    Neste terceiro item procurarei sugerir como os abolicionistas brasileiros se

    ulizaram da Geurra Civil e de suas consequncias como argumentos favorveis abolio. J adotando uma estratgia retrica que mais tarde se tornou cannica,os abolicionistas brasileiros armavam a diferena dos caminhos da superao daescravido. O Brasil, por ter desenvolvido relaes escravistas mais exveis e por

    35 Fredrickson, George M., The Black Image in the White Mind, pp. 138-145.36 Nabuco, J., O Abolicionismo, p. 142.

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    no professar doutrinas racialistas, poderia superar a escravido sem maiores per-calos, inclusive integrando os libertos, oferecendo-lhes cidadania. Estes argumen-tos, hoje j bem superados por uma historiograa crca das iluses da democraciaracial, serviam, na dcada de 1880, na boca dos abolicionistas, tanto como propa-

    ganda quanto como aviso dos perigos dos potenciais descaminhos da abolio.

    No livro Abolicionismo, Nabuco inmeras vezes enfocou o tema da GuerraCivil e das relaes raciais vigente nos EUA como forma de alertar os brasileiros dosperigos da radicalizao. Dizia Nabuco:

    Se mulplicando-se a raa negra sem nenhum dos seus cruzamen-

    tos, se mulplicasse a raa branca por outro lado mais rapidamen-

    te, como nos Estados Unidos, o problema das raas seria outro tal-

    vez mais srio, e quem sabe se solvel apenas pela expulso da mais

    fraca e inferior por incompaveis uma com a outra; mas isso no se

    deu no Brasil. As duas raas misturaram-se e confundiram-se . . .37

    Ao mesmo tempo, na dcada de 1880, quando o abolcionismo popular as-cende, juntamente com a ecloso de revoltas de escravos, fugas e outros pos derebeldia provocando reaes cada vez mais violentas de senhores de escravos, so-bretudo daqueles congregados em Clubes de Lavoura, os abolicionistas comeama se referir violncia racial nos EUA, sobretudo aos linchamentos, como forma deapontar os potenciais perigos da radicalizao.38

    Dizia Nabuco a respeito das limitaes da lei do Ventre Livre:

    Tem se espalhado no pas a crena de que os escravos, muitas

    vezes cometem crimes para se tornarem servos das penas e es-

    caparem assim do caveiro, . . . Por isso, o juri no interior tem absol-

    vido escravos criminosos, para serem restudos aos seus senho-

    res, e a lei de Lynch h sido posta em vigor em mais de uma caso. 39

    Vale lembrar ainda o bem conhecido discurso apresentado por ChrisanoOtoni ao Senado em 1884, o qual registra no apenas a escalada de tenses sociaisnos distritos escravistas, que passavam a antepor radicalmente fazendeiros aos

    escravos revoltosos e militantes abolicionistas, como evoca os crescentes coni-tos entre autoridades municipais, judicirias e policiais e os grupos de fazendeiros

    37 Nabuco, J. O Abolicionismo. p. 105.38 Sobre o tama, ver: Machado, Maria Helena P. T., O Plano e o Pnico. Os Movimentos So-

    ciais na Dcada da Abolio. 20. Edio revista, So Paulo: Edusp, 2010.39 Nabuco, J. O Abolicionismo, op. cit., 101.

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    organizados em torno dos Clubes de Lavoura ou ainda em bandos armados. Situa-o que sugeria, no sem razo, a emergncia no Brasil ou pelo menos, nas re-as conturbadas pelos conitos escravistas de padres de jusamento sumrioe linchamento, dos como uma das conseqncias mais nefastas da Guerra Civil

    norte-americana:

    ...Mas, paralelamente a estes fatos, surgem outros igualmente

    lamentveis, ainda mais condenveis, porque so pracados por

    homens livres. Rero-me expulso do lugar de sua residncia

    dos juzes que julgam de certa maneira, por indivduos reunidos e

    armados que se dizem povo; a expulso de advogados que reque-

    rem em juzo alguma libertao; e a par disto ainda excessos mais

    espantosos; a invaso das prises, a rerada de criminosos que so

    esquartejados na praa pblica! E o que mais assustador o siln-

    cio guardado sobre cada um destes fatos! . . . Supondo que fosse alei de Linch em uso em alguns Estados da Unio Americana, cabe-

    -me perguntar a todos os responsveis pela direo dos negcios

    pblicos: desejais que se admitam em nosso pas um tal eslo?

    o que vedes na Amrica do Norte mais digno de imitao? ...40

    Neste sendo, nota-se que, embora a jusa e a polcia, de forma geral, trabalhas-sem em harmonia com os interesses dos fazendeiros na manuteno da ordem e, por-tanto, na defesa da sacrossanta propriedade escrava, a dcada de 80 tambm colaboroupara o delineamento de possveis cises. O crescente desgoverno dos escravos parece

    ter sugerido s autoridades policiais que, em situaes crcas, mais importante do quedefender o direito dos fazendeiros seria preservar a chamada tranqilidade pblica.41

    Ora, a medida que os senhores perdiam o controle sobre seus cavos, es-tes passavam a exigir das autoridades que interviessem de forma truculenta naconteno da rebeldia escrava, e assim, decididamente, se colocassem ao lado dadefesa da propriedade. Por seu turno, muitas autoridades comeavam a se sen-r pressionadas e desrespeitadas, situao que delineava potenciais conitos depoder no mbito do controle social. Pode-se dizer que, embora permanea aindacomo questo nebulosa, o processo de interveno da esfera pblica no mundoprivado dos senhores de escravos comeou a gerar, em torno da dcada de 1880,uma ciso na esfera do controle social, a ciso esta que se dava em torno da imple-

    40 Discurso de Chrisano Otoni ao Senado de 09 de julho de 1884, reproduzido em Lima,Lana Lage da Gama, Rebeldia Negra & Abolicionismo. Rio de Janeiro: Achiam, 1981, pp. 102-103.

    41 Trecho baseado no captulo de minha autoria: Teremos Grandes Desastres, se no hou-ver Providncias Enrgicas e Imediatas: a Rebeldia dos Escravos e a Abolio da Escravido, in:Grinberg, Keila e Salles, Ricardo (orgs.), Brasil Imprio, vol. III. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,2009, pp. 367-400.

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    mentao das leis emancipacionistas. Embora estritamente conservador, defensorda legimidade da propriedade escrava e fundado no ideal da indenizao pecuni-ria e moral aos senhores pela emancipao dos escravos, na forma do estabele-cimento de perodos de trabalho obrigatrio e cumprimento de outras obrigaes

    pelo libertando, o gradualismo emancipacionista ainda assim produziu, nos distri-tos cafeeiros, grandes conagraes de interesses.

    Um dos episdios mais dramcos ocorridos neste perodo, j s vsperasda abolio, em fevereiro de 1888, atesta o nvel de confronto que se desenrolavanas reas cafeeiras de So Paulo, colocando fazendeiros, senhores de escravos, deum lado, e de outro, o Delegado de Polcia de Penha do Rio do Peixe, localizada aoeste da Provncia de So Paulo.42 Caso excepcional devido tanto a violncia dosfazendeiros, que lincharam o delegado abolicionista Joaquim Firmino de ArajoCunha, quanto devido a parcipao de ex-confederados norte-americanos emi-grados para a regio, como o mdico James H. Warne e Joo Jackson Klink, ambos

    naturalizados brasileiros e fazendeiros escravistas da regio e, do que se depre-ende dos autos criminais, lderes do linchamento. Ao que tudo indica, a acusaocontra Joaquim Firmino, que teria juscado a organizao de um grupo de fazen-deiros e capangas com objevo de aplicar uma represlia no delegado e outras -guras locais, baseava-se na atuao moderada e legalista destes em defesa das leisemancipacionistas, que naquela altura passavam a ser abertamente discudas emtoda parte, em meengs de rua, nos jornais, associaes abolicionistas, entre ou-tros espaos. Segundo os rus, o crime de Joaquim Firmino restringia-se a este es-tar dando guarita em sua casa a dois escravos em processo de emancipao, almde parcipar de meengs abolicionistas, organizados em torno do Clube EuterpeComercial de Mogi-Mirim.43 Tendo reunido, na calada da noite, nos arredores da

    cidade, mais de 200 pessoas, todas revoltadas com a aparente adeso do delegadolocal ao abolicionismo, a turba entrou sorrateiramente na cidade e postou-se frente da casa do delegado em grande algazarra, fazendo ao mesmo tempo umaenorme descarga de que caram cravadas de balas as paredes e folhas das janelas,enquanto outros quebravam as vidraas e foravam a porta..... A seguir, invadirama residncia, surraram at a morte o delegado, agrediram sua mulher e uma lhapequena. Ato connuo, a turba ganhou novamente a rua, dirigindo-se casa deoutras vmas, das tambm como colaboracionistas. No tendo podido alcan--las, pois devido ao alarde os perseguidos haviam do tempo de se refugiar nasvizinhanas, a turba irritada retornou casa de Joaquim Firmino. Ali, encontraramcado o delegado, provavelmente j morto. Alguns, porm, para se cercar do

    bito, chutaram e esfaquearam o cadver, apesar dos rogos de sua mulher e lha.44

    42 A nica pesquisa at hoje realizada sobre o caso a de Jcomo Mandato. Joaquim Firmi-no. O Mrr da Abolio. Itapira:SP: edio do autor, 2001.

    43 Lauro Monteiro de Carvalho e Silva, Moji-Mirim (Subsdios para a sua histria), Mogi--Mirim (SP): Casa Cardona, 1960, pp. 213.

    44 Conforme Autuao constante do processo-crime de 1888, Autora: A Jusa contraDoutor James Warne e outros, processo parcialmente reproduzido em Mandato, Joaquim Firmi-

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    Ao contrrio do que se poderia esperar, nos dias seguintes, a maior parte dosindiciados se apresentou jusa local, conrmando a parcipao na reprimen-da ao delegado que, segundo os rus, merecia receber um susto por no cumpriraquilo que se esperava das autoridades, isto , delidade absoluta aos interesses

    dos fazendeiros . Atestando a certeza da impunidade, um a um os rus conrma-ram suas parcipaes, negando apenas terem comedo a agresso sica diretaao delegado. Comprovando o nvel de tolerncia local com relao ao compor-tamento violento dos fazendeiros quando se tratava de preservar a propriedadeescrava, todos os rus foram absolvidos por jri popular.45

    Outra rea na qual os padres de radicalidade e violncia comearam a seimplantar foi em Campos, rea aucareira uminense, onde a atuao de Carlos La-cerda, ex-delegado de polcia local e abolicionista radical esmulou a radicalizaoda rebeldia escrava, produzindo confrontos violentos e incendios de canaviais.46

    Termino esta comunicao com um trecho de uma carta annima, entregue polcia em nais de 1885, por um fazendeiro de Resende, rea cafeeira localizadanos limites entre So Paulo e Rio de Janeiro:

    Incognitos. Sociedade Secreta Abolicionista cujo centro aCorte, organisada com intuito de revolucionar a arraia-mida ecom ella apoiar a insurreio geral dos escravos para esse m

    preparada na Corte, Provncia do Rio de Janeiro, So Paulo, Pa-ran e Rio Grande do Sul, nstes trs ou quatro meses, por esta

    foram mandados 50 agentes pelas cinco provncias do Imprio.So agentes escolhidos, intelligentes para bem persuadir e deconana para executar; 10 foram para cada provncia. Um dosde So Paulo vae pela linha do Norte, percorrendo as cidades

    e povoaes por onde passa a estrada geral. Procuram no seuinerrio os liados a quem do instruces verbaes e animammostrando a proclamao que trasem com os diseres: Viva oImperador, Viva a Famlia Imperial,Abaixo o Ministrio e Viva aLiberdade Geral dos Escravos: assignaturas entre outras de Dan-tas, Joaquim Nabuco e muitos outros que no caram na mem-ria. Disem que so appoiados pelo Conde DEu e que j contamcom 400 subscriptos. Procuram faser nucleos municipaes querecebem instruces do nucleo provincial; e este do nucleo cen-tral para no dia que for deignado; depois de tudo preparado gri-tarem a revoluo e sublevarem os escravosue appoiaro paradar o golpe mais seguro. Contam em So Paulo com o apoio dositalianos que se interessaro no movimento e na Corte com os

    trabalhadores de estradas de ferro e outros, alm do conngen-te de pessoal de que dispem. O agente secreto que segue pelalinha do Norte, isto pelas povoaes cortadas pela estrada ge-

    no..., op. cit, pp. 102-105.45 Processo-crime de 1888, Autora: A Jusa contra Doutor James Warne e outros, proces-

    so parcialmente reproduzido em Mandato,Joaquim Firmino..., op. cit, pp. 152-155.46 Ver: Lima, Lana L. G., Rebeldia Negra & Abolicionismo.

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    ral, um homem branco mas no muito claro, de 30 a 40 annosde idade, intelligente, usa toda a barba, anda trajado com roupade casimira escura, sem signal algum parcular. cauteloso, anoite que procura os liados sendo por isso guiado por algumdos da terra. Esteve no Bananal e j entendeu-se com os seus, edeve estar em Barreiros ou j em Areas. No Procura s os dacidade, procura tambm os da roa e previne para se reunirem

    quando para isso verem ordem que receberam por signaes.47

    Os indcios que possumos no momento parecem sugerir que a constantemeno dos abolicionistas como as inmeras gravadas por Nabuco em O Aboli-cionismo a respeito dos perigos da radicalizao do processo de abolio nham,na verdade, um endereo bem certo. No se tratava estas apenas de lembretestericos, a violncia que se delineou nas reas escravistas da dcada de 1880 noBrasil, parecem sugerir que, na viso dos contemporneos, a Guerra Civil poderia

    estar mais perto de ns do que hoje podemos avaliar. Ulizando-se da retrica daharmonia e integrao, os abolicionistas queriam, na verdade, relembrar aos escra-vistas radicais dos enormes sofrimentos vividos pelo pas vizinhos, sugerindo queseria do interesse de todos abrir mo da escravido. A outra possibilidade seria terque enfrentar a violncia de escravos e outros deserdados, cada vez menos confor-mados com a sobrevivncia da escravido e de seus privilgios.

    Reagindo a este quadro assustador gerado pela crescente radicalizao, Na-buco e outros abolicionistas, se exigiram a tarefa de lembrar constantemente sobreo carter pacco das relaes raciais no Brasil. Hoje, frente a todo a evoluo denossos estudos sobre o tema, podemos nos perguntar: Teria sido esta uma estratgiapolca consciente adotada pelos abolicionistas com vistas a evitar a repeo doshorrores da Guerra Civil muito bem conhecidos pelos brasileiros? Se respondermosposivamente, talvez tenhamos que rever a histria do abolicionismo no Brasil!

    47 Arquivo do Estado de So Paulo, Polcia, caixa 2649, ordem 214 de 1885. Ocio contendocarta annima, supe-se copiada pelo Escrivo de Polcia de Resende e ento enviada ao Chefeda Polcia da Corte, que por seu turno a reenviou ao Chefe da Polcia de So Paulo, e este para asautoridades policiais municipais. Considera-se tambm a possibilidade que a carta annima tenhasido apenas relembrada pelo fazendeiro denunciante, que a vesse do em mos apenas paraleitura. No entanto, as circunstncias da denncia permanecem nebulosas. Apesar do tom poucoclaro da denncia, o que poderia fazer supor um certo grau de fantasia por parte dos fazendeiros,vale relembrar que poucos anos antes, na mesma regio, Antonio Mesquita e seus seguidoreshaviam, de fato, tentado levantar os escravos a parr de um plano similar. Acrescenta-se que ind-viduos presos na localidade conrmaram o suposto plano. Sobre esta tentava de sublevao ver,Machado, O Plano..., op. cit., cap. 5. (Grifo no original).

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    DOMINGO, DIA 13: O UNDERGROUNDABOLICIONISTA, A TECNOLOGIA DE PONTA E A

    CONQUISTA DA LIBERDADEEduardo Silva*

    O tulo acima pode parecer complicado e at um tanto enlouquecido parauma conferncia acadmica, mas as questes que vamos discur aqui so muitosrias, embora relavamente simples. Primeiro vamos examinar a parcipao dopovo negro e, parcularmente, do prprio escravo no movimento underground ousubterrneo abolicionista. Em seguida vamos discur a importncia da apropriaosocial das novas tecnologias decorrentes da Revoluo Industrial sobretudo otransporte a vapor e a telegraa eltrica para o encaminhamento da Abolio talcomo se deu no Brasil.

    Antes de entrar em matria, contudo, eu preciso agradecer o honroso con-vite para realizar esta conferncia de abertura. Agradeo em parcular s minhasamigas Martha Abreu e Hebe Maos, do Programa de Ps-Graduao em HistriaSocial da UFF, e ao ps-graduando Luiz Gustavo Santos Cota, em nome de toda acomisso organizadora deste evento, no meu entender, fundador.

    muito bom estar aqui entre jovens pracantes do meu ocio. E umahonra ser chamado para colaborar com iniciava to importante. Penso que esteencontro uma pequena semente, mas que poder germinar em corrente nova dahistoriograa sobre o povo negro no Brasil.

    Alis, esve examinando a programao completa dos trabalhos que se-ro aqui apresentados e devo dizer que quei realmente impressionado. Primeiro,com a parcipao ampla de ps-graduandos, jovens pesquisadores dedicados aotema, no apenas do Rio de Janeiro e So Paulo, como seria normal em outros tem-pos, mas ainda de Santa Catarina, da Bahia e at do Amazonas. E, depois, confessoque quei muito impressionado tambm com a criavidade e variedade de tulos,temas e abordagens propostas em torno (ou beira) dos caminhos da Abolio edo ps-Abolio. Modestamente e sem alarde, trata-se de uma nova gerao,uma nova viso historiogrca que surge preocupada fundamentalmente com as

    grandes emergncias da atualidade, com as grandes e atualssimas questes sus-citadas pela luta abolicionista e pelo perodo novo que se abriu a parr do marco

    *Eduardo Silva pesquisador da Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,e scio tular do Instuto Histrico e Geogrco Brasileiro (IHGB). O autor agradece oapoio do CNPq.

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    fundador do 13 de Maio, o nosso talvez eterno perodo ps-Abolio, com seuvasto leque de possibilidades novas e entraves angos que se desdobram desde1888 at nossos dias.

    Por tudo isso, como velho pesquisador da rea, eu no podia mesmo carde fora. Aceitei com muita alegria o convite para estar aqui com vocs porque vinesta pequena semente a possibilidade de um campo novo e renovador da his-toriograa, talvez de nosso prprio entendimento do Brasil. Pela primeira vez en-contro uma gerao inteira de especialistas ps-graduandos e ps-graduados,

    jovens historiadores interessados em estudar e compreender o marco histricoda Abolio.

    Isso extraordinrio. E pode representar verdadeira revoluo na historio-graa. A gerao mais anga em parte porque estava demasiadamente envolvi-da, e em parte porque queria esconder o underground e exaltar apenas os grandesheris e a princesa no dedicou ao tema toda a reexo que merecia. Minhaprpria gerao, que s queria saber de modo de produo e outras questes in-fraestruturais, desprezou o tema, visto como demasiadamente superestruturale at reacionrio, j que inextricavelmente ligado gura de uma princesa.

    E agora aqui e agora vejo, nalmente, o renascimento de um dos temasmais importantes, denidores e complexos da histria do Brasil. Por isso estouaqui. Eu costumo brincar dizendo que o que precisa ser explicado no exatamen-te a escravido, que no fundo sempre exisu, mas a abolio da escravatura, ofato historicamente novo e desaador.

    Voltemos questo do tulo e da tecnologia de ponta. Estamos trabalhan-do principalmente com os casos do Rio, de So Paulo e de Pernambuco, mas, emsntese, podemos dizer que, por toda parte, foi exatamente essa adaptao e apro-priao social de novas tecnologias que permiu estruturar, na segunda metade dosculo XIX, um movimento anescravista eciente e verdadeiramente nacional.

    Essas e outras questes comeam a aparecer para mim depois da pesquisasobre Dom Ob II dfrica (em que surge j a questo da parcipao popular naluta anescravista) e, sobretudo, no trabalho seguinte, sobre o quilombo do Leblon,em que idencamos a existncia do underground abolicionista. De um lado, Dom

    Ob II dfrica, um autnco prncipe da frica Pequena; de outro, o quilombo doLeblon. A prpria pesquisa histrica mostrava, portanto, a necessidade de um novomarco terico para o 13 de Maio e o perodo Ps. A abolio da escravatura nopodia mais ser vista (ou combada) apenas como uma concesso da classe domi -nante senhorial. Pelo contrrio: as pesquisas revelavam, entre outras coisas, umaforssima e decisiva parcipao popular na conquista da liberdade. A explicao

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    anga, o paradigma senhorial da Abolio, simplesmente caducou. O quilombo doLeblon, no Rio de janeiro; o quilombo do Jabaquara, em So Paulo; os quilombosligados ao Clube do Cupim, em Pernambuco; o quilombo abolicionista em geral todos esses nos mostram, em lma instncia, que o movimento anescravista

    no pode ser estudado apenas na esfera polco-parlamentar. Alm das discussesociais na Cmara e no Senado do Imprio, existe uma presso importante quevem da prpria sociedade, um movimento que podemos chamar de subterrneoou underground abolicionista, isto , uma rede nacional de indivduos e organiza-es que nha por objevo principal solapar e destruir as bases de funcionamentodo sistema escravista no Brasil.1

    A existncia desse underground e a parcipao decisiva do prprio es-cravo explica, em lma anlise, a lei mais clara e curta at hoje assinada noBrasil. Talvez a nica lei realmente clara em toda a nossa histria: dois argos mui-

    to diretos e nenhum pargrafo para nuanar ou mazar coisa alguma. A nica lei,diga-se de passagem, discuda e assinada em pleno domingo de sol, o dia 13 demaio de 1888.

    O lado subversivo do movimento abolicionista o abolicionismo enquantoutopia libertadora e movimento popular nos revela a parcipao fundamentalda prpria sociedade brasileira e, em parcular, da populao negra e mesa. Po-demos incluir aqui desde o simples liberto annimo at a elite negra e miscigenadada poca, gente como Lus Gama, Rui Barbosa, Jos Carlos do Patrocnio, AndrPinto Rebouas, Vicente Ferreira de Sousa, Hemetrio Jos dos Santos e muitosoutros de igual quilate pelo Brasil afora.2

    1 Cf. SILVA, Eduardo. Dom Ob II dfrica, o prncipe do povo: vida, tempo e pensamento deum homem livre de cor. So Paulo: Cia. das Letras, 1997; idem,As camlias do Leblon e a abolioda escravatura: uma invesgao de histria cultural. So Paulo: Cia. das Letras, 2003.

    2 Sobre Luiz Gama, ver MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil: Luiz Gama.So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetriade Luiz Gama na imperial cidade de So Paulo. Campinas: Editora da Unicamp/ Centro de Pesquisaem Histria Social da Cultura, 1999. Sobre Jos Carlos do Patrocnio, ver ORICO, Osvaldo. O greda Abolio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1977 (1 ed. 1931); MAGALHES JNIOR, R. Avida turbulenta de Jos do Patrocnio. Rio de Janeiro: Sabi, 1969; MACHADO, Humberto Fernan-des. Palavras e brados: a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro, 1880-1888. Tese de doutorado,

    So Paulo, USP, mimeografado, 1991. Sobre Andr Rebouas, ver VERSSIMO, Igncio Jos. AndrRebouas atravs de sua autobiograa. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1939; DOS SANTOS, SydneyM. G.Andr Rebouas e seu tempo. Rio de Janeiro, editora? 1985; JUC, Joselice.Andr Rebouas:reforma & utopia no contexto do Segundo Imprio: quem possui a terra possui homem. Rio deJaneiro: Odebrecht, 2001 (originalmente tese de Ph.D. defendida na Universidade de Essex, Ingla-terra, em 1986); SPITZER, Leo Spitzer. Lives in Between: Assimilaon and Marginality in Austria,Brazil, West Africa, 1780-1945. Londres: Cambridge University Press, 1989; CARVALHO, MariaAlice de. O quinto sculo: Andr Rebouas e a construo do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998;

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    E no apenas os grandes nomes da elite negra. A parcipao do prprioescravo tambm foi decisiva. Na verdade, desde que apareceu o respaldo de ummovimento popular ou subterrneo abolicionista, os cavos aderiram com entu-siasmo crescente e passaram a fugir em massa, em escala nunca antes registrada

    na histria do Brasil (exceto, talvez, durante as invases holandesas). Isso tornoua represso literalmente impossvel e at cmica. ngelo Agosni retrata muitobem essa situao nova. Ele registra o verdadeiro salve-se quem puder de mde regime, com homens e mulheres decididos fugindo em todas as direes e umfazendeiro desesperado tentando segurar seu escravo pelos fundilhos das calas.Alm das discusses parlamentares, portanto, havia um embrionrio movimentosocial negro que tambm precisa ser estudado. Enquanto no Parlamento s sediscursa e nada se resolve, os prenhos raspam-se com toda a ligeireza. Os lavra -dores mal podem segur-los, escreve ngelo Agosni na legenda esclarecedora.3

    PESSANHA, Andra Santos da Silva. Da abolio da escravatura abolio da misria: a vida eas ideias de Andr Rebouas. Rio de Janeiro: Quartet; Belford Roxo (RJ): UNIABEU, 2005. VicenteFerreira de Souza, ardente propagandista da abolio e um dos pioneiros das ideias socialistas noBrasil, ainda est a merecer um trabalho acadmico mais desenvolvido. Ver BERGER, Paulo Berger.Dicionrio histrico das ruas de Botafogo (IV Regio Administrava). Rio de Janeiro: FCRB, 1987,p. 64. Sobre Hemetrio Jos dos Santos, professor do Colgio Militar do Rio de Janeiro, gramcoe poeta, ver MULLER, Maria Lcia. Hemetrio Jos dos Santos, in FVERO, Maria de Lourdes deAlbuquerque e BRITTO, Jader de Medeiros (orgs.). Dicionrio de educadores no Brasil. 2 ed. aum.Rio de janeiro: Editora UFRJ/ INEP, 2002. O mesmo verbete foi republicado em: MULLER, MariaLcia Rodrigues.A cor da escola: imagens da Primeira Repblica. Cuiab: Entrelinhas/ Editora daUFMT, 2008, pp. 61-68.

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    Litograa de ngelo Agosni, Revista Illustrada, n. 466, 1887, p. 4. Reproduzimos essalitograa emAs camlias do Leblon..., op. cit., pp.32-33. A importncia social e documental do tra-balho de ngelo Agosni foi reconhecida pioneiramente por Monteiro Lobato (Ideias de Jeca Tatu,So Paulo, 1956, pp. 154-57) e Herman Lima (Histria da caricatura no Brasil, Rio de janeiro, 1963,vol. I, p. 120). O grande momento do arsta foi, sem dvida, a campanha abolicionista. Sustentoua Revista Illustrada de 1876 a 1891, sempre na linha de frente do movimento anescravista. Em1884, no auge da campanha abolicionista, mudou a redao da Revista da Rua do Ouvidor para osobrado da rua Gonalves Dias n 50, isto , exatamente as salas que cavam em cima da famosaA Primeira Fbrica de Malas no Imprio do Brasil, cujo proprietrio era o imigrante portugusJos de Seixas Magalhes, o chefe ou elo principal entre o quilombo do Leblon e a ConfederaoAbolicionista. Cf. Revista Illustrada, ano 9, n. 376, 1884, p. 8. Nelson Werneck Sodr ressaltou emAgosni, sobretudo, o valor da arte parcipante. Agosni foi dos mais expressivos exemplos de

    como a militncia polca enriquece, amplia e mulplica o efeito das criaes arscas autn -cas sendo, ainda, dos mais brasileiros dos arstas que nos conheceram e nos esmaram, porquesenu, compreendeu e expressou no apenas o que era caractersco em ns, da a sua auten-cidade, mas aquilo que representa o contedo do caractersco, isto , o popular. Suas caricatu -ras, por vezes contundentes, puseram a nu os traos grotescos da classe dominante brasileira dotempo, suas irremediveis mazelas, seu atraso insuportvel, e o vazio triste dos ornamentos, dosarcios, dos disfarces com que se apresentava, buscando aparentar grandeza. SODR, NelsonWerneck. Histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966, pp. 249-253.

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    Agosni representa arscamente o que outro abolicionista, Rui Barbosa, chamoua avalanche negra, isto , as fugas em massa que desestabilizaram e inviabiliza-ram o sistema social vigente.

    Alm de discur a parcipao decisiva da elite negra e do prprio escravono movimento abolicionista, gostaria de enfazar a importncia da nova tecno-logia de comunicao e transporte o jornal popular, o bonde puxado a burro, otrem a vapor, a navegao a vapor e a telegraa eltrica para a montagem e ofuncionamento do underground abolicionista.

    Hoje, como estamos vivendo em plena revoluo dos PCs (personal com-puters) e da internet, podemos compreender melhor o papel revolucionrio datelegraa eltrica. Os efeitos libertadores da nova tecnologia simplesmente nopodem ser negligenciados. J no nal do sculo XIX, tudo o que acontecia no Rio deJaneiro (sem falar de Lisboa, Paris ou Londres) repercua quase instantaneamentenas provncias do Imprio ligadas pelo trem a vapor, pelas linhas de navegao avapor e, sobretudo, pela telegraa eltrica.4

    Na pesquisa sobre o quilombo do Leblon, notamos como os fugivos, portoda parte, souberam rar vantagem da moderna rede de transportes urbanosque se implantou na segunda metade do sculo XIX. Vimos a importncia do bondepuxado a burro como uma quase pr-condio para o aparecimento dos quilom-bos abolicionistas. No trabalho sobre o Leblon, contudo, ainda estamos com o focona dimenso local, no tempo calmo das buclicas chcaras da Zona Sul do Rio deJaneiro e do bondinho puxado a burro. Falta examinar mais dedamente o impacto

    da tecnologia pesada, a estrada de ferro, a navegao a vapor e, nalmente ma-ravilha das maravilhas , a soscadssima telegraa eltrica.

    A nova tecnologia de comunicao e transporte, em seu conjunto, no ape-nas aproximou as pessoas e abriu os horizontes mentais como facilitou a fuga. Comas estradas de ferro e as linhas de navegao a vapor, era possvel fugir com maisrapidez e para bem mais longe. Na verdade, com a nova tecnologia, quebrou-seo ango equilbrio custo/benecio das fugas. Fugir cou cada vez mais simples,

    4 Sobre a inuncia da telegraa eltrica, comparvel internet de hoje, ver SILVA, Eduar-do. Law, Telegraph and Festa: a Revaluaon of Abolion in Brasil, in CROUZET, Franois; BON-

    NICHON, Philippe; e ROLLAND, Denis (orgs.). Pour lhistoire du Brsil: hommage Kaa de QueirsMaoso.Paris: L Harmaan, 2000, pp. 451-62; Idem, Interao, globalizao e festa: a abolioda escravatura como histria cultural, in PAMPLONA, Marco Antnio (org.). Escravido, exclusoe cidadania. Rio de Janeiro: Access, 2001, pp.107-18; Idem, O quilombo do Leblon e o under-ground abolicionista, 1883-1888, in Anais da XXV Reunio da Sociedade Brasileira de PesquisaHistrica (SBPH). Rio de Janeiro: SBPH, 2005, pp. 207-10; Idem, O processo de globalizao e aabolio da escravatura, in MATTA, Alfredo Eurico Rodrigues et al. (orgs.). Educao, cultura edireito: coletnea em homenagem a Edivaldo M. Boaventura. Salvador, EDUFBA, 2006, pp. 568-72.

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    organizado e barato.

    Com a telegraa eltrica tornou-se possvel, pela primeira vez na histria,montar e arcular uma rede verdadeiramente nacional de apoio s fugas e de so-

    lidariedade abolicionista. Fugir de uma provncia para outra (e mesmo para o exte-rior) passou a ser uma opo perfeitamente vivel. Com a nova tecnologia, o queantes parecia um feito heroico e excepcional fruto de muita coragem e astcia

    passou a ser fato comum. Ou ao menos cada vez mais comum.

    ngelo Agosni tambm documenta esse estado de coisas em outro tra-balho magistral, verdadeira janela aberta para o underground abolicionista. Trata--se de uma charge imensa, uma panormica, ocupando as duas pginas centraisda revista. Ao fundo, aparece o trem abolicionista ou trem do progresso (naverdade, uma representao da secressima underground railroad brasileira emplena avidade). O trem j est completamente lotado, mas podemos ver que osescravos connuam fugindo em massa. No primeiro plano, representando o atrasodo pas, os dois lmos presidentes do conselho de ministros (o liberal Jos Ant-nio Saraiva e o conservador baro de Cotegipe), montados no burrico do tradicio-nalismo, tentam defender o status quo, arrastando atrs de si uma jovem negraenvergonhada, desprotegida e triste simbolizando a Escravido brasileira. Cadadia o trem do progresso vai tomando passageiros, esclarece a legenda.5

    A pesquisa sobre o quilombo do Leblon nos alertou, portanto, para a im-portncia estratgica da nova tecnologia para a montagem e o funcionamento deum movimento abolicionista verdadeiramente nacional e at internacional. A con-

    nuao das pesquisas tem revelado a troca constante de telegramas entre abo-licionistas de diferentes