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Caminhadas de universitários de origem popular UFT Universidade Federal de Tocantins UFT

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Caminhadas de universitários de origem popular : UFT / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.96 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-51-1

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal do Tocantins. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix IanniniThiago Maioli Azevedo

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Organ i z ado resJailson de Souza e Silva

Jorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

UFT

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Antônio Weliton Vieira da Silva

Adenauer Marques Cunha

Auro Silvestri

Crislane Maria da Silva

Cristiane da Silva Veras

Deuzilene Mendes Marinho

Édila Nunes dos Santos

Elda da Silva Costa

Geisy Gracielly Evangelista

Geovania da Silva Oliveira

Juliana Alves Araújo

Karla Adriana Rodrigues Coelho

Karliana Silva Oliveira

Marcela Ramos Alves

Marcelene Batista Cunha

Marco Antonio Costa Junior

Nádia Sousa Santos

Paulo André Rodrigues de Oliveira

Rafael Ataides de Suza Sobral

Roberta Alves de Oliveira

Rosilda Ferreira e Silva

Tayanna Fonseca Pimentel

Yanne Pereira da Silva Oliveira

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Adriano Firmino V. de AraújoCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFT

Ana Flávia Santos CoelhoCoordenação Adjunta

Karylleila dos Santos AndradeCoordenação de Produção Textual

Denilda Caetano de FariaCoordenação Administrativa

Roseli BodnarMonitora da Articulação com o Programa Escola Aberta

Alan Kardec Martins BarbieroReitor

Flávia Lucila Tonani de SiqueiraVice-Reitora

Ana Lúcia PereiraPró-Reitora de Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimen-to em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distri-buídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

ApresentaçãoUniversidade Federal do Tocantins e o Programa Conexões de SaberesAdriano Firmino V. de Araújo,Ana Flávia Santos Coelho,Karilleila dos Santos Andrade 09

IntroduçãoTeias tecidas, Conexões de SaberesKarilleila dos Santos Andrade 11

MemorialAntonio Weliton Vieira da Silva 13

MemorialAdenauer Marques Cunha 13

Meus relatos escolaresAuro Silvestri 20

Meu nome é MariaCrislane Maria da Silva 22

Luta – perseverança, vitória.Cristiane da Silva Veras 28

“O que sou é que me faz viver”Deuzilene Mendes Marinho 30

MemorialÉdila Nunes dos Santos 34

Meus paisElda da Silva Costa 36

Uma breve introdução de minha vidaGeisy Gracielly Evangelista 41

MemorialGeovania da Silva Oliveira 46

MemorialJuliana Alves Araújo 49

MemorialKarla Adriana Rodrigues Coelho 51

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MemorialKarliana Silva Oliveira 56

Lutas e vitóriasMarcela Ramos Alves 61

O relógio de DeusMarcelene Batista Cunha 64

MemorialMarco Antonio Costa Junior 67

“Só sei que foi assim...”Nádia Sousa Santos 69

A militânciaPaulo André Rodrigues de Oliveira 77

MudançasRafael Ataides de Souza Sobral 79

MemorialRoberta Alves de Oliveira 82

Minha históriaRosilda Ferreira e Silva 85

A história de uma vidaTayanna Fonseca Pimentel 88

MemorialYanne Pereira da Silva Oliveira 91

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Apresentação

Universidade Federal do Tocantins 9

A formulação e a implementação de políticas destinadas à democratização do acessoao ensino superior e à promoção do “transbordamento” do conhecimento científico geradodentro das universidades para as comunidades, vem sendo um dos grandes desafios dasIFES, principalmente no campo da extensão universitária. Dentro desta perspectiva, aforaos problemas típicos enfrentados pela maioria destas instituições, a Universidade Federaldo Tocantins (UFT) enfrenta problemas inerentes as suas especificidades.

Até a década de 80, a região norte do estado de Goiás, carecia de políticas públicasvoltadas para seu desenvolvimento, sendo caracterizado pela pobreza e atraso econômico.Essa realidade foi fruto, em grande parte, da grande distância entre esta região e os grandescentros políticos (estadual e federal). Sua baixa densidade demográfica alargava ainda maisesta distância, na medida em que impedia uma ampla participação na esfera política. Comoconseqüência, foi observado um crescente sentimento de abandono e insatisfação por partede sua população, dando origem a alguns movimentos que reivindicavam maior assistênciado poder público para esta região. Tais reivindicações culminaram na emancipação donorte goiano através da criação do Estado do Tocantins, promulgada na Constituição de1988. No entanto, mesmo hoje, é possível constatar algumas seqüelas desta política deabandono, principalmente no norte do Tocantins, na região do “Bico do Papagaio”.

Pertencendo inicialmente à Região Centro-Oeste do Brasil, atualmente o Estado doTocantins faz parte na Região Norte, estando inserido no contexto da Amazônia Legal. Doponto de vista econômico, as bases do estado repousam no setor agrícola. Sua capital, omunicípio de Palmas, foi criado em 1990 a partir de um plano diretor, caracterizando-acomo uma “cidade planejada”. O desenvolvimento urbano desse município deve contem-plar as diretrizes gerais desse plano diretor, repercutindo em uma formação diferenciada dosespaços populares.

Criada em outubro de 2000, a UFT realizou o primeiro concurso para composição doseu quadro docente no ano de 2003. Em 2004 houve a apreciação e convalidação doscursos de graduação e pós-graduação e os atos legais praticados até então pela FundaçãoUniversidade do Tocantins (UNITINS), sendo, posteriormente, homologado o Estatuto e oRegimento da UFT e realizado o primeiro concurso para composição do quadro técnicoadministrativo. Na ocasião, foram incorporados vinte e sete cursos de graduação nas áreasdas Ciências Sociais Aplicadas, Humanas, Educação, Agrárias e Ciências Biológicas, ofere-

Universidade Federal do Tocantins e oPrograma Conexões de Saberes

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cidos em sete campi, nas cidades de Araguaína, Arraias, Gurupi, Miracema, Palmas, PortoNacional e Tocantinópolis e um curso de pós-graduação Stricto Sensu, até então oferecidospela UNITINS, em um total de mil estudantes.

A UFT nasceu com a missão de se tornar um diferencial na educação e no desenvolvi-mento de pesquisas e projetos inseridos no contexto socioeconômico e cultural do Estado.Este se caracteriza por ser multicultural e, dessa maneira, esta instituição surgiu com odesafio de promover práticas educativas que elevem o nível de vida de sua gente, por meiodos cursos de graduação e licenciaturas e por atividades de extensão e de pesquisa. Istojustifica a importância da sua descentralização. Os campi estão localizados em regiõesestratégicas do Estado, permitindo aos estudantes de várias regiões, não só do Tocantins, oacesso ao ensino público superior. Hoje, a instituição conta com mais de 9 mil alunos.

Devido a sua localização, a UFT busca o investimento em ensino, pesquisa e extensãoem sintonia com as especificidades da Amazônia Legal, demonstrando, sobretudo, o com-promisso social da Universidade. As áreas prioritárias de atuação são: Identidade, cultura eterritorialidade; Agropecuária e meio ambiente; Biodiversidade e mudanças climáticas; eEducação e Fontes de energia renovada.

Dentro desse contexto, a Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitáriosda UFT - PROEX tem como missão proporcionar condições para que a comunidade tenhaacesso às informações científicas, tecnológicas e culturais, cooperando com a construçãode novos conhecimentos e a integração da Universidade com a sociedade em geral.

O Programa Conexões de Saberes da UFT atua no sentido de criar meios e promoverações para tornar o ensino superior acessível às populações de origem popular, de forma agarantir uma melhor inserção e a permanência com qualidade dessa população nessa insti-tuição, fazendo valer o princípio da universalização do conhecimento.

A coordenação do Programa procura elaborar e aplicar ações para o estreitamento dosvínculos (conexões) entre os espaços (saberes) acadêmico e popular, de forma a garantir oacesso e permanência com qualidade de estudantes oriundos deste último espaço na Uni-versidade Federal do Tocantins.

Professor Adriano Firmino V. de AraújoCoordenador Geral do Programa Conexões de Saberes da UFT

Professora Ana Flávia Santos CoelhoCoordenadora do Programa Conexões de Saberes da UFT

Professora Karylleila dos Santos AndradeCoordenadora de Produção Textual do Programa Conexões de Saberes da UFT

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Introdução

Universidade Federal do Tocantins 11

Memória. Teia tecida. Fios se entrelaçam, prendem-se, cruzam-se. Rememória. É o passadopresente. Cada um no seu tempo e espaço: lutas, desafios, buscas, obstáculos, lágrimas, vitórias,sonhos. Ver-se no espelho e identificar-se com sua história de vida. Fios emergem, misturan-do-se com as percepções do agora que passam a ocupar um novo espaço da consciência.

A teia constitui-se em um exercício de interrogação das experiências já vividas parafazer aflorar não só recordações, mas também informações que possam configurar novossentidos ao presente. Saber aprender-apreender a refletir as lembranças da vida é um exercí-cio de auto-conhecimento.

Ser convidado a rememorar é atividade incomum nos tempos de hoje, em que somosconstantemente estimulados a pensar no futuro e, nestes tempos de pós-modernidade, asorver infinitamente o presente. Muitas foram as questões que os bolsistas do ProgramaConexões de Saberes da UFT se fizeram ao produzir os memoriais: Por que relatar minhavida a desconhecidos? Essa exposição é necessária? Por que tecer os fios?

No início, resistência e dificuldade em reviver o passado, compartilhar experiências.Textos curtos, enunciados soltos. Com o tempo, os fios foram se encontrando, o que estava

Teias tecidas, Conexões de Saberes Tecendo a manhãUm galo sozinho não tece uma manhã: eleprecisará sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que ele e olance a outro; de um outro galo queapanhe o grito de um galo antes e o lance aoutro; e de outros galos que com muitosoutros galos se cruzem os fios de sol de seusgritos de galo, para que a manhã, desdeuma teia tênue, se vá tecendo, entre todosos galos.E se encorpando em tela, entre todos, seerguendo tenda, onde entrem todos, seentretendendo para todos, no toldo (amanhã) que plana livre de armação.A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que,tecido, se eleva por si: luz balão. João Cabral de Melo Neto

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guardado, às vezes trancado, mutilado, preso, sufocado, foi se soltando, espraiando-se,influenciando. In-fluir, fluir de dentro para fora. As experiências dos atores sujeitos dosmemoriais eram de confluências: duas correntes que se encontram, se reconhecem e semisturam. Sabe quando duas taças de cristal estão em silêncio e batemos uma na outra, elasse reverberam sonoramente. Como diz Rubem Alves, uma taça não influenciou a outra.Uma taça fez a outra emitir o som que vivia, silencioso, no seu cristal. Rememorar: um toquepara provocar o outro a fazer soar a sua história de vida.

Ser Conexões de Saberes, ser UFT, viver universidade, sentir a diversidade, é oinstante do reencontro com uma trajetória especial de conquistas e sonhos de cada bolsistado Programa.

Professora Karylleila dos Santos AndradeCoordenadora de Produção Textual do Programa Conexões de Saberes da UFT

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Universidade Federal do Tocantins 13

Antonio Weliton Vieira da Silva*

Meu nome é Antonio Weliton, tenho 21 anos e faço História na UFT. Irei contar umpouco da minha vida neste memorial.

Meus pais se conheceram no período final da ditadura militar, em 1983. Na época, meupai era filiado ao Partido dos Trabalhadores-MA. Ele lutava junto com outros militantes dopartido para melhorar a vida do trabalhador. Passava muita necessidade, pois partido deesquerda neste país nunca teve grande respaldo. Devido a ameaças de coronéis locais, meu paiteve que ir para o Tocantins. Por causa dessa mudança e dos acontecimentos que ele vivia, memandou morar com a minha avó em Goiânia. Nessa época, eu tinha 6 anos. Com a estabilidadeque meu pai adquiriu morando no estado, eu e minha irmã voltamos a viver junto com meuspais, foi quando comecei a estudar. Na escola, nunca arrumei confusão, pois tinha uma timi-dez profunda, o que foi abolida com o tempo por causa da socialização com os coleguinhas.

Aos 12 anos, consegui entrar em um Coral num colégio municipal da zona sul dePalmas, capital do Tocantins. Eu desempenhava o papel de tenor, pois tinha uma voz umpouco grave. Foi através do coral que a música entrou na minha vida. Sentia que com amúsica podia ter a oportunidade de sair do anonimato: sonho de criança, é claro. Comotinha um bom rendimento na escolinha de música, mas a voz não era uma das mais lindaspara participar de fato de um coral, a professora encaminhou-me para uma escola de músicada guarda metropolitana, onde davam aula de música e ensinavam a criança a tocar uminstrumento de sopro de sua escolha, na época já tinha 13 anos.

Gostava de ouvir Kenny G, Sandoval, por isso acho que me apaixonei pelo som dosax, o que me ajudou na escolha do instrumento. Tive um aprendizado rápido. Em poucotempo já fazia parte da banda de música principal, deixando os colegas da escolinha paratrás. Conheci novos amigos bem mais experientes. Foi uma experiência incrível, já que euera o mais novo do grupo. Passei cinco anos na banda onde aprendi muita coisa sobrepostura, ética, moral e militarismo. A banda era parte de um grupo semi-militar: guardametropolitana.

Com a troca de prefeito de Palmas, o salário de todos os bolsistas da guarda foiextinto. Ficaram somente os músicos concursados, o que pra mim representou um choque,já que tinha passado 5 anos prestando serviços ao município. Foi por esse motivo que tiveque sair da guarda e abandonar por dois anos a música. Tinha 18 anos e acabara de concluiro ensino médio. Por dois anos fiquei trabalhando informalmente como garçom, vendedorpracista, caixa etc.

A leitura foi algo que depois dos 16 anos sempre esteve presente em minha vida, porisso pensei na hipótese de cursar uma graduação. Na escola, tive notas muito boas em

Memorial

* Graduando em História pela UFT.

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14 Caminhadas de universitários de origem popular

Química e História, o que chega a parecer um paradoxo. Como no Tocantins não temfaculdade que ofereça o curso de Química, a saída foi prestar o vestibular para História naUFT, no Campus de Porto Nacional. No início, foi meio difícil entender o curso e suaestrutura, mas percebi que o curso oferecia algo que eu sempre busquei desde o tempo doensino médio: senso crítico aguçado.

Hoje aos 21 anos e no 5º período de História, estou cada dia mais convencido emseguir a carreira que escolhi. Quero me tornar um pesquisador na área e continuar com amúsica, já que consegui adquirir um saxofone, o que era um sonho desde a adolescência.Creio que ainda tenho muito a conquistar neste plano, mas isso só o tempo dirá.

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Universidade Federal do Tocantins 15

Adenauer Marques Cunha*

Sou fruto do amor perene entre Luiz Carlos Cunha e Miriam Alves Marques Cunha.Aliás, devo dizer que somos frutos de tal sentimento, falo também de meu irmão, amigo ecúmplice, Daniel. Acrescentando a esta tríade minha querida avó, Rosa Cunha, encerro meucírculo familiar, já que nunca tive contato ou relações afetivas com os outros membros dafamília – falando de uma forma geral. Aproveito para declarar a estas pessoas meu amor,gratidão, dependência e completude.

Voltando a mim: nasci há 21 anos. Para ser mais exato, aos 4 dias de outubro de 1985.Sou libriano e conceicioense, já que minha terra natal é a pequena Conceição do Araguaia.Essa cidade se espalha ao longo das bucólicas margens do Rio Araguaia. Rio, que se fossedotado da habilidade humana da fala, discorreria muito melhor a meu respeito que estehermético memorial. Conceição do Araguaia está localizada ao Sul do Pará e faz fronteiracom o estado do Tocantins – minha terra atual.

Em outros tempos, eu costumava escrever exasperadamente, mas confesso que me dóiredigir este memorial. Não sei ao certo o que este texto quer de mim, não gosto de escreverpor escrever, preciso preencher estas linhas com minha essência e não apenas com tinta,seria desperdício de caneta e papel. E sei que não estou no caminho certo, o que escrevi atéagora não está a contento, pois meu pulso não começou a doer... mal sinal, meus textossomente ficam bons quando meu pulso dói. Eu sei, me conheço.

Paro o trabalho, tomo café, ouço música, volto ao papel e não consigo concatenar asidéias... sofro com isso, o escrito fica sem coesão. Sou genioso e subjetivo o suficiente parainterromper a minha história e relatar o seu processo. Isso é interessante e deve também serdito, de que vale o produto se você desconhece a produção?

Bem, isso não é de todo mal. Acho que encontrei o caminho. As idéias do parágrafoacima me fizeram pensar: hoje eu sou o produto, minha caminhada é minha produção;escrevo aqui sobre produto e produção... voltemos à produção.

O primeiro livro da minha vida, foi um livrinho infantil do Ursinho Puff. Considero issoo marco inicial da minha alfabetização, se hoje sou capaz de ler e compreender Hegel, Nietzsche,Habermas e companhia é graças ao livrinho do Puff. O mais interessante é que eu sequer li o tallivro quando o adquiri. Lembro-me de que fiz meu pai ler e reler a historinha algumas dezenasde vezes, durante uma viagem que fizemos de Conceição do Araguaia a São Paulo.

Uma viagem de mais de 40 horas devido às estradas de terra do Norte. O ônibus erapouco veloz e um tanto sucateado. As estradas esburacadas, o ônibus velho e minha curio-sidade pueril cansaram meu pai durante aquela viagem, mas ele o fez de muito bom grado.Por que então isso simboliza o início da minha alfabetização se eu sequer li o tal livro?

Memorial

* Graduando em Comunicação Social-Jornalismo pela UFT.

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16 Caminhadas de universitários de origem popular

Simples, alguns poucos anos após àquela viagem eu já havia entrado na escola e estavadevidamente alfabetizado quando encontrei o livrinho no meio entre papéis velhos dentrode uma caixa. Me surpreendo agora em me lembrar que na capa do livro eu havia escritomeu nome, que meu pai me ensinara a escrever. E ao longo de todo livro eu havia transcritoa letra de forma bem tremida várias palavras e frases que compunham a história. Qual asurpresa? Toda criança faz isso, mas para mim é mágico me lembrar e ter a certeza de que foiaí que tudo começou, e culminou no acadêmico de jornalismo que sou hoje, se preparandopara fazer monografia. Espero fazer isso com a mesma simplicidade, facilidade, curiosidadee dedicação da criança de três anos que acabo de lhes contar.

Meu pulso começa a doer. Graças aos céus!Creio que o mais impressionante na vida de todos nós é se dar conta de que somos

elementos sociais e históricos do complexo sistema que é o mundo. Quero dizer, quaseninguém percebe, que qualquer pessoa nasceu e cresceu em um dado contexto, às vezesnascemos em um contexto e vivemos em outro, ou outros. Somos observadores e agentesativos na construção da história do mundo. E não é somente isso, vivemos em sociedade ecomungamos diversos signos, símbolos, costumes e morais com nossos semelhantes.

Não obstante, o que quero dizer é que poucas são as pessoas que se dão conta disso econseguem traçar paralelos ao ponto de analisar suas próprias vidas de cima desses píncaros.

Talvez esteja sendo complicado demais, mas vou me fazer entender. Quem é capaz dese lembrar dos anos que viveu a adolescência, recordar de qual momento histórico se tratavae se ver como espectador de tudo isso? E mais, delimitar até que ponto esses acontecimen-tos interferiram na sua formação?

Outra intriga: nossa vida social é tão impregnada de ideologias igualitárias e merito-cráticas que não nos damos conta das artimanhas e estratagemas utilizados pelos opressorespara nos controlar. Somos classificados e posicionados socialmente quanto ao nosso gêne-ro, raça, sexo, cultura, classe, mas quem é suficientemente esclarecido ao ponto de perceberque isso tudo não é nada salutar?

Digo isso tudo não apenas para divagar, o que acontece é que estou tentando contex-tualizar minha vida, enquadrá-la no mundo que vivi e vivo. Entender o quê significa ser umapessoa de origem popular dentro disso tudo. Meu intuito com isso é compreender quem sou ecomo sou, mas não consigo fazê-lo, acho que tive a percepção tapada durante estes anos.

Bem, já que não consigo me inserir na história do mundo, não porque me julgue a pardesta, mas porque de fato não consigo isto de forma cognoscível, vou voltar somente àminha história.

Minha mãe é tocantinense de Arapoema. Na década de 70 migrou do Norte para oestado de São Paulo, lá conheceu meu pai, se casaram e após algum tempo mudaram para oPará, pois minha mãe tinha um pé por lá. E 1985 nasci, em 88 foi a vez de meu irmão, e em1990, com a família já constituída, meus pais decidiram que nos mudaríamos para SãoCaetano do Sul – terra natal do meu pai. Então, migramos do interior do interior do Brasilpara a região metropolitana de São Paulo, coração econômico do país.

Em São Caetano, moramos em uma casa onde meu pai passou parte de sua juventude,é o mesmo lugar no qual minha avó mora até hoje. Às vezes, durante os períodos de férias,nós voltamos lá para visitá-la.

Minha mãe, que até então trabalhara para ajudar na renda familiar, passou a desempe-nhar a função de dona-de-casa. Meu pai saía muito cedo para trabalhar, raramente o via sair.

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Foi então, com cinco anos de idade, que iniciei minha vida escolar. Mamãe me levava àescola todo dia de manhã e me lembro do primeiro dia de colégio, chorei desesperadamenteporque não queria largar da minha mãe, chorei porque não sabia o que iria encontrar por lá,com quem eu iria lidar e não sabia como agir.

O nome da escolinha era Escola Municipal de Educação Infantil Otávio Tegão (EMEI).Me recordo pouco do que vivi por lá, lembro bem que apesar de ser uma escola municipalera muito bem cuidada, funcionava adequadamente e as professoras eram donas de umadidática exemplar. Já se passaram 16 anos desde que estudei no EMEI e tenho apenas flashsna cabeça, não consigo me lembrar de muita coisa.

Enfim, em 1992 regressamos ao Pará, voltamos a morar na mesma casa de antes e,como eu já havia começado a estudar, meus pais me matricularam em uma escola municipalperto de casa. O nome do colégio era Escola Municipal Teófilo Aguiar. Como eu já haviacursado a pré-escola, fui matriculado direto na 1ª série, aliás a dita escola sequer tinha pré-escola. Quando minha mãe me deixou pela primeira vez no Teófilo Aguiar eu chorei. Eraum mundo novo, bastante diferente daquilo que tinha conhecido há pouco tempo. Choreiporque não queria largar da minha mãe, chorei porque não sabia o que iria encontrar por lá,com quem eu iria lidar e não sabia como agir.

As diferenças entre esta e aquela escola eram gigantescas, a começar pela classe sociale situação econômica das crianças que freqüentavam os dois colégios. O Teófilo funciona-va em uma espécie de galpão que abrigava anteriormente uma usina de beneficiamento dearroz. A infra-estrutura do estabelecimento era completamente inadequada para o funciona-mento de uma escola. Não havia playground e nenhuma outra área que servisse de lazer àscrianças nas horas de intervalo, os alunos se divertiam pelos arredores da escola que nãotinha nenhum piso ou gramado, era terra grossa e suja.

Na escola anterior, eu me sentava em um local apropriado para lanchar em compa-nhia de todos os meus colegas, agora eu me deparava com uma escola precária, semcantina ou assentos para que os alunos pudessem lanchar. O pior, o lanche servido erauma espécie de papa feita com leite-em-pó e água, não havia pratos e nem talheres paraos alunos comerem, os alunos improvisavam recipientes em folhas de caju que elespegavam por ali mesmo.

A escola ficava no subúrbio, uma das regiões menos favorecidas da cidade e as crian-ças que a freqüentavam eram muito pobres, muitos dos pais eram analfabetos e a maiorianão havia concluído sequer o primário. Meus colegas não tinham materiais escolares, asroupas eram velhas e gastas e me recordo que muitos andavam descalços.

As professoras trabalhavam com pouco ou nenhum afinco. Mesmo que quisessemdesempenhar um bom trabalho não conseguiriam, não havia a mínima estrutura para que oensino fosse considerado algo descente. Não havia livros e até hoje não há biblioteca, nãohavia nada que pudesse ser chamado de material didático, havia mal papel para que ativi-dades e provas pudessem ser impressas.

A diferença entre o EMEI e o Teófilo Aguiar poderia ser mensurada em anos luz,apesar das duas escolas serem ambas municipais. Entrei nesta escola praticamente alfabeti-zado, sabia escrever e ler muita coisa enquanto meus colegas davam os primeiros passos noantiquado bê-a-bá. Por esta razão, eu era visto, ora como um santo, ora como um pecador.Meus colegas me olhavam com admiração, por isso tinham muito apreço por mim. Já aprofessora me excluía um pouco, não me tratava como as outras crianças, não me deixava

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fazer certas atividades e parecia decepcionada com o fato de que não conseguir fazer comque os outros, alguns não conseguissem chegar no nível em que eu estava.

Me lembro que certa vez ela me deu uma bronca porque eu havia ultrapassado oslimites de uma atividade que ela havia passado. Tratava-se de algo como ter que contornaralgumas letras que estavam tracejadas na cartilha, descontente em ter que fazer isso euescrevi o alfabeto inteiro no meu caderno sem seguir tracejado algum. A mulher não só medeu uma bronca como me obrigou a ficar de castigo na sala depois do final da aula. Até hojetento compreender o porquê disto.

Estudei no Teófilo Aguiar de fevereiro a junho de 1992. Em agosto do mesmo ano,minha mãe conseguiu me matricular na Escola de Ensino Fundamental e Médio MinistroJarbas Gonçalves Passarinho, ou somente Fundação Bradesco. Mas eu fui obrigado a iniciarnovamente a pré-escola porque eu era novo demais para ser matriculado no segundo semes-tre da 1ª série, pelo menos foi esse o argumento que eles utilizaram. Quando entrei naFundação Bradesco eu chorei novamente pelos mesmos motivos das vezes anteriores. Sem-pre choro frente a um novo desafio, mas sempre me saio bem. Acho que meu choro é umaforma infantil de entrar com o pé direito em cada momento da vida.

Comecei tudo de novo, até hoje considero isto um atraso, mas as coisas aconteceramcomo deveriam ser. Foi na Fundação Bradesco que construí toda minha vida escolar, estudeilá da pré-escola ao 3º ano do Ensino Médio, foram doze anos de vivência e durante todo estetempo a escola foi minha segunda casa. Ela ficava praticamente no meu quintal, era só atra-vessar a rua. Os amigos que conquistei lá, e que tenho até hoje, foram também minha família.

A Fundação Bradesco não é uma escola pública, mas não pode ser considerada umaescola particular, é uma instituição filantrópica do Banco Bradesco destinada a educar crian-ças e adolescentes populares. Ainda é a melhor escola do sul do Pará e foi muito bom terestudado lá. Eles preparam muito bem os estudantes para o vestibular, mas não para a vida,não dão muita noção de cidadania e do quê é o mundo além dos portões da escola. Apesar deser destinada a acolher estudantes de origem popular, havia gente de todas as classes sociaisestudando comigo, de filhos de médicos e de gerente do banco a filhos de faxineiros quetrabalhavam na própria escola. Apesar das diferenças de classe existirem e nós convivermoscom isso todo dia, nossa visão era tapada, eles insistiam em fingir que todos eram iguais e nãohavia distinções entre nós. Todos usavam o mesmo uniforme, o mesmo material didático e atéo mesmo caderno, o mesmo lápis, a mesma borracha. Isso acontecia porque a escola dava todoinício de semestre uniforme e materiais para os alunos, da borracha ao livro didático.

O lugar era ótimo, havia quadra poli-esportiva, oficina de artes, laboratório de quími-ca e informática, atendimento odontológico e a biblioteca do colégio até hoje é melhor quea biblioteca da universidade local. Tudo isso de graça, porém eles se esqueceram de dizerque o vestibular não é o maior desafio desta vida, há piores.

Saí de lá preparado para entrar na universidade pública, mas não preparado paracontinuar nela e enfrentar uma vida adulta.

Durante 12 anos minha vida foi assim, casa e escola, família e amigos. Quando termi-nei o 3º ano do Ensino Médio fui aprovado em dois vestibulares, um para o curso de Letrasda UEPA, e outro para Jornalismo aqui na UFT. Isso me deu duas opções, continuar naminha cidade, na casa dos meus pais ou pôr a cara no mundo com 18 anos, ou vir para acapital do Tocantins, morar sozinho e levar uma vida adulta cheia de responsabilidades,que eu sequer sabia que existiam.

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Optei ignorantemente pela segunda alternativa, como se isto fosse uma questão obje-tiva do vestibular e bastava assinalar um x. Me matriculei neste curso de jornalismo e vimmorar em Palmas, longe de casa e da minha família, apesar da minha cidade natal estar apouco mais de 300 km de distância daqui. Nunca experimentei na vida tantas mudanças.Meu mundo virou ao avesso, passei a provar o doce e o amargo de uma vida “independen-te”. Foi aí que precisei amadurecer, ou isso, ou eu desistia de vez. E devo confessar que mesenti impelido a abandonar tudo e voltar voando para o conforto do meu lar.

Para quem acha que é difícil entrar na universidade, é melhor saber que o mais difícilé permanecer nela. O pior de tudo sempre foi a falta de condições financeiras para continuarpor aqui, cheguei ao ponto de ter que decidir entre comprar passes de ônibus para ir para auniversidade ou comida para poder passar a semana, perdi muita nota, porque não tinhadinheiro para tirar cópias para estudar ou fazer trabalhos.

Sempre chorei quando pisei o pé pela primeira vez em uma escola, e desta vez não foidiferente, chorei quando entrei na universidade, chorei porque não queria largar da minhamãe, porque não sabia o que iria encontrar, com quem eu iria lidar e como agir. E desta vez,chorei mais porque era irreversível, porque não era mais criança, porque tinha que aprendermuita coisa sozinho.

Não me envergonho de dizer que até hoje choro, porque descobri que também é difícilsair da universidade. Estou no quarto ano e quase terminando o curso. Nestes quase quatroanos aprendi muita coisa, mudei e amadureci muito, conheci meus amigos BM’s (Bons eModestos) que são minha família aqui e não sei pra onde vão quando tudo terminar, não seise vou vê-los de novo no futuro. É tudo muito incerto e isso me dá um pouco de medo, nãosei bem ao certo nem mesmo o quê será de mim, e o pior é saber que vou sentir muitasaudade disso tudo, muita lágrima ainda virá. Espero não secar. Esta é minha vida até aqui.

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20 Caminhadas de universitários de origem popular

Auro Silvestri*

Minhas primeiras experiências em sala de aula deram-se na pré-escola, na qualpassei dois anos, um para cada série. A primeira, conhecida como jardim de infância,freqüentei com quatro anos de idade em que, segundo me recordo, brincávamos boa partedo tempo com os brinquedos da escola. Também nos assentávamos em grupinhos aoredor de pequenas mesas para as atividades. Na segunda série, chamada “pré”, o quemudou um pouco foi o teor das atividades. Lembro-me de algumas com desenhos empapel para fazer o contorno, entre outras. Bom era, por um lado, não ter a preocupaçãocom deveres quanto a pesquisas e tarefas. Mas por outro, havia os conflitos instantâneosde não se ter o que se quer às vezes.

Depois passei para a primeira série do ensino fundamental. Daí até a quarta, estudandona mesma instituição, pude ir conhecendo mais disciplinas e, assim, vivenciando uma novafase escolar. Neste tempo, freqüentava ora o turno matutino, ora o vespertino. Diminuíam-se as brincadeiras e aumentavam as aplicações de conhecimento mais abstrato. Principal-mente, me lembro das matérias de Língua Portuguesa e Matemática.

Recordo-me de que no pátio da escola havia, além de pelo menos uma árvore, um bomespaço de concreto em que, por vezes, nos ocupávamos em atividades recreativas, isto é,nas brincadeiras do intervalo. O pátio, apesar do seu tamanho médio, era suficiente para oscorre-corres que se fazia. Considero essa etapa escolar como se fosse a base de praticamentetodo o restante do processo educacional pelo qual passei, pois foi aí que se deram osaprendizados fundamentais do conhecimento abstrato, em sua maior parte, que serviram deelementos estruturantes para os subseqüentes. E assim por diante, até o fim do ensino médioe, depois, a faculdade.

Na quinta série, lembro-me de que começava a ter mais de um professor para a mesmaclasse. E da sexta em diante já eram, quase sempre, um professor ou professora por discipli-na. Foi aí também, a partir da sexta, que comecei no ensino público. Sendo que até a oitava,freqüentei uma escola estadual. O segundo grau, hoje ensino médio, o fiz numa instituiçãofederal, concluindo esta fase no início do ano de 1999, ultrapassando um pouco o calendá-rio escolar por causa de greves. Considerando que, além disso, ao invés de três anos, fre-qüentei um a mais, pois se tratava do segundo grau técnico, cuja carga horária se cumpriaem quatro anos. Nesse caso, optei pelo curso técnico em turismo. Hoje, essa escola técnicaé conhecida como CEFET.

Ainda no período do ginasial, isto é, segunda fase do ensino fundamental, tambémtive mais contato com uma realidade sociocultural de maior diversidade, de forma a ampli-ar-me a noção do mundo escolar.

Meus relatos escolares

* Graduando em Comunicação Social pela UFT.

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Depois disso, durante a etapa escolar do ensino médio, lembro-me de rumores quetratava de algumas rupturas no sistema educacional vigente. No país, se estou certo, ocor-riam reconsiderações sobre o sistema de ensino que se tinha até então, inclusive na partedidático-pedagógica, se não me engano. Houve, por exemplo, a dissociação entre o ensinoregular e o ensino técnico. O que depois de um tempo também foi reconsiderado, voltandoa ser como era. Nos meus tempos de secundarista, também me recordo que dediquei algunsesforços ao movimento estudantil, envolvendo-me num e outro momento com os trâmitesda militância.

Uma vez terminada esta etapa da infância e adolescência escolar e, após experiênciasmal sucedidas com um e outro vestibular, tendo freqüentado inclusive cursinho, somenteno ano de dois mil e três é que ingresso na faculdade, no curso de Comunicação Social.

Vale ressaltar, entretanto, que, até o ano de 2001, estive residindo na cidade de ondesou natural, Cuiabá-MT, passando aí por todas estas etapas escolares até a conclusão doensino médio. Percorrido dois anos e alguns meses após isso, passei a residir em Palmas,capital do Tocantins, onde tenho cursado a faculdade de então.

Quanto ao Programa Conexões de Saberes, estava já no sétimo período quando pudeconhecê-lo e nele ingressar-me. O fato de já ter participado de uma e outra mobilizaçãoorganizada de caráter social, penso que me serviu de proveito e currículo para que pudesseparticipar também desse Programa.

Participando desse Programa, poderei acrescentar aindà mais a minha gama de experi-ências de aprendizado. De modo que assim possa ter mais coisas para me lembrar, contar eservir de exemplos para as novas vivências. Tanto para correções como para aprimoramentos.

Quando se entra numa faculdade, surge a sua volta um novo plano social ou meio deconvívio em que se tem a ocasião de exercer uma interação mútua de troca de expectativas, derealizações e de idéias no sentido nem sempre só acadêmico. E isso faz com que tenhamosboas oportunidades de desenvolvimento não só profissional, mas também pessoal. Aindamais quando se está inserido em espaços como esse proporcionado pelo Conexões de Saberes.Pois se tem aí um subsídio tanto financeiro como humano que auxilia o estudante a continuarinteragindo nos diversos tipos de relações próprias do universo acadêmico, isto é, não somen-te em sala de aula, mas também nas atividades extra classe, por assim dizer.

Ter entrado na faculdade também representou uma boa ocasião para que pudesse porem prática o aprendizado obtido no tempo de ensino médio. Passei a exercitar aquilo queestava guardado na memória, quanto aos conhecimentos anteriormente adquiridos. Foi aítambém que se pôde ter certo contato com as outras áreas e ramos acadêmicos, através dabiblioteca e outras atividades, como as interdisciplinares. Aprendi que não se precisa ficarisolado numa só área do conhecimento científico, por exemplo.

Outra coisa é a oportunidade que se passa a ter de enriquecer as vivências por seconhecer pessoas, com suas diferentes formas de lidar com o meio universitário. Isso contra-põe os eventuais tédios que se tem às vezes, por ocasião de contínuas atividades em salas deaula. Posso apontar os programas universitários como o Conexões de Saberes como vanta-josos, nesse sentido. Já que através deles temos, em alguns momentos, certas dinâmicasenvolvendo mais indivíduos numa só coletividade.

Para concluir, deixo registrado um sentimento de socialização nessas recordações,devidos agradecimentos aos que participaram desses processos direta e indiretamente, comoprofessores(as), colegas, familiares, que porventura tomarem parte desse relato.

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Crislane Maria da Silva*

Quem tem na pele essa marca, possui aestranha mania de ter fé na vida. Milton Nascimento e Fernando Brant

Crislane Maria da Silva, assim me chamam. Sou tocantinense, filha de dois alagoanos,a caçula de uma família de nove irmãos. Somos seis irmãs e três irmãos. Aos gostos de meupai, o nome das meninas tinham que começar com a letra C, e o segundo nome Maria(Cremilda, Creuza, Cleunice, Claudenice, Claudinete e Crislane), todas Maria. Os meninoscom a letra D, e o segundo Francisco (Dorgival, Davi e Duardo), todos Francisco. Não sei o queele viu de tão especial nessas letras. Talvez nada. Na sua simplicidade escolheu nomes tam-bém simples para compor com Maria e Francisco, o Silva, a soar pela vida também simples.

Meu pai, Francisco José da Silva, e minha mãe, Maria Lourdes Silva, um diacasaram lá no interior de Alagoas. Assim, começou nossa história. Sempre viveram daterra e do que ela pode se tirar. Moravam no sítio do meu avô paterno, plantavam,colhiam, vendiam. Depois o sítio foi vendido para um grande plantador de cana-de-açúcar e puseram uma mercearia onde vendia de pinga a panelas. Com muitas dificulda-des, muito trabalho e pouco resultado, resolveram ir embora para Goiás. Um irmão demeu pai estava morando lá. Eu dizia que lá água e terra eram boas, era preciso só semearque tudo dava, sem mais trabalho algum.

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter ganasempre.. Milton Nascimento e Fernando Brant

E lá se foram Francisco e Maria e seus quatro filhos ainda pequenos, mais um de coloe outro na barriga. Como muitos retirantes, com a fé e a esperança de terra, água e temposmelhores. Venderam tudo que tinham, receberam uma parte do dinheiro; a outra ia ser pagacom um prazo. Foram com o dinheiro contado para viagem, que quase foi esquecido nobalcão de uma lanchonete da rodoviária. O dinheiro restante era para comprar um “pé dechão”. Dinheiro esse que até hoje não recebeu. Essa história aconteceu em 1975.

Chegaram ao povoado de Combinado, no então Goiás, depois Tocantins. Com muitotrabalho, já que o tal dinheiro nunca recebera, comprou um lote na serra, zona rural deCombinado. O tempo foi passando, o povoado virou município.

Meu nome é Maria

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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A família cresceu, mais três filhos chegaram...Quando eu nasci, já morávamos na zona urbana. Vim ao mundo em tempos de vacas

gordas: tive berço, enxoval, nasci no hospital... minha mãe já tinha 36 anos, não pensavaem ter mais filhos, “sem querer, querendo,” eu nasci...

Acho que é por isso que hoje não gosto de dar trabalho a ninguém, odeio incomodar,até mesmo quando é necessário.Vivi ali até meus seis anos, guardo poucas lembranças, mashá coisas que a gente não esquece e nem quer se esquecer. Lembro-me da praça da igreja,das amoreiras, do mingau da escola, da Serra, das goiabeiras do fundo do quintal...

Tem lugares que me lembram minha vida por onde andeias histórias, os caminhos, o destino que eu mudeicenas do meu filme em branco e pretoque o vento levou e o tempo traz... Rita Lee

Meu pai é um sonhador e não se inquieta, está sempre em busca. E é preciso o bomsenso de minha mãe para estar-lhe puxando para realidade. Em uma dessas invenções demeu pai, “encucou” que íamos morar no Pará, “que lá era terra boa e barata”, bateu o pédizendo que íamos e a minha mãe batia o pé dizendo que não, que se fosse era para ele irsozinho e com a “renca” de filhos. Minha mãe ganhou a guerra e o meu pai desistiu de irmorar no Pará.

Herdei de meu pai esse coração sempre em busca, embora acredite que não tenho tantafé como ele, talvez seja mais receosa como minha mãe. Me preocupo demais com o “se” e aínão faço vôos tão altos, mas acredito que a utopia é imprescindível para viver. A utopia écomo as estrelas, não podemos nunca alcançá-las, mas elas estão sempre lá no céu iluminan-do a noite escura, como diz Leonardo Boff, “enchem de reverência o espírito humano. Elamantém a esperança aberta pra cima e para frente, assim como as estrelas”.

Com a esperança aberta, meu pai resolveu que não ia para o Pará, e sim para Palmas, acapital do novo estado, a cidade das oportunidades, diziam. E sobre as bênçãos de minhamãe, fomos. Percebo hoje que fora uma decisão acertada. Combinado era muito bom, masPalmas para nós, seus filhos, seria bem melhor. “Quando se deseja o abismo é preciso terasas”, já dizia Nietzsche.

E voamos pra Palmas, em abril de 1992. Chegamos à noite em uma casinha de palha.Ali seria nossa casa, o choro foi geral, menos o pai, “as coisas vão melhorar”. Palmas era umacidade recém-criada, mas já existia periferia. Aqui moramos no Bairro Aureny III. Poeira,água de carro de pipa; girassóis, poeira; carcaça de frango, esperança; poeira, desemprego,fé em Deus... tempos difíceis aqueles.

Tudo esta guardado em la memoria, sueño de la vida y de la história. Leon Gieco

Aos poucos as coisas foram se ajeitando. Construímos uma casa, todo mundo estudan-do, alguns trabalhando, meu pai conseguiu uma terra para trabalhar de meia (planta, cuidacolhe e reparte a metade com o proprietário), depois conseguiu uma chácara própria. Enfim,

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seu sonho!! A chácara ficava a 4 km do bairro. O pai e a mãe ficavam lá e vinham no domingopara vender na feira e ir para missa à noite. Eu morava na nossa casa com meus irmãos eirmãs e passava minhas férias na chácara.

E eu fui crescendo junto com essa cidade, no meu bairro, na minha rua, na minhacasa, na vizinhança, na igreja, na chácara. Estudava, fazia catequese, brincava na rua e nacasa das vizinhas. Estudei da 1ª a 8ª série no colégio Estadual Liberdade, fica perto daminha casa. Sempre fui uma boa aluna, mas nunca ganhei prêmios ou “estrelinhas” porcausa das minhas boas notas. Era uma criança tímida, até a 4ª série era muito chorona.

Uma de minhas irmãs, Claudenice (a Clau), trabalhava e ainda trabalha em um escritóriode contabilidade e sempre trazia pra mim o almanaque do Jornal do Tocantins. Toda segunda-feira, minhas mãozinhas se apertavam, ansiosas para que ela chegasse para poder pegar mais umalmanaque e devorá-lo. Nele havia uma sessão de correspondência. Cheguei até a me correspondercom algumas pessoas. Isso tudo me ajudou a exercitar o gosto pela leitura, quanto ao desenvol-vimento da escrita. Depois de algum tempo, desisti de enviar as cartas. Era difícil pô-las nocorreio, já que no bairro não tinha e ainda não tem nenhum posto dos correios. Dependia da boavontade das minhas irmãs e irmãos que trabalhavam no centro para ir aos correios para mim. Échato depender dos outros e eu desconfiava que elas liam as minhas cartas.

Em 2000, a nossa chácara foi desapropriada para a construção do aeroporto e da usinahidrelétrica. Foi uma confusão, um desrespeito, uma mixaria que pagaram de indenização.Mas “ordem e progresso”, é o que eles dizem.

Depois de muito procurar e até ficar doente sem ter uma chácara para plantar, colher,cuidar, viver, meu pai comprou uma no município de Divinópolis, que fica a uns 120 kmde Palmas. E lá se foram Francisco e Maria, dessa vez, só os dois. Os filhos, em suamaioria, já haviam se casado e um deles trabalhando no Maranhão. Ficaram em casa eu aCleu e o Du. Antes a distância que nos separava do pai e da mãe era 4 km. Íamos nachácara todo final de semana e voltávamos no domingo, além dos feriados, férias e aqualquer hora podíamos ir de bicicleta ou a pé. Mas agora era 120 km. É muito chão.Agora, só nos feriados e nas férias. Antes eu chorava escondida, hoje não choro mais,aprendi a caminhar com as minhas próprias pernas, eles me ensinaram e a vida também.Minha mãe ainda chora.

Já que você não está aqui,o que posso fazer é cuidar de mim... Renato Russo

Do ensino fundamental guardo as melhores lembranças da 8ª série. Foi a melhor série quecursei, não porque o colégio tinha melhorado a didática, ou estrutura, mas tive uma professoraótima de geografia e nossa turma sabia se divertir. Normalmente, tínhamos aulas até a hora dorecreio, faltava sempre professor, aí sobrava tempo suficiente para fazer até um jornal. Eu e umaoutra colega iniciamos essa aventura. Nessa época queria ser jornalista. O jornal era escrito àmão, tirávamos cópia e vendíamos, chegamos à 2ª edição e paramos: fomos ameaçadas desurra por uma garota que não gostou de uma notícia sobre ela na coluna de recadinhos.

O ensino médio eu cursei no CEM Santa Rita de Cássia, fica em outro Bairro noAureny I, como cursava pela manhã, ia a pé 2,5 km, aproximadamente, e voltava de ônibus.Dessa época, agradeço a todos os colegas que me deram carona de carro ou bicicleta, oumesmo a companhia a pé. À Cleu, por pagar meus passes estudantis.

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Gostava de me envolver em outras atividades. Participava da vida comunitária e daigreja, nos movimentos, na catequese me preparando para crisma, nas missas. Em 2001,entrei em um grupo de jovens e assim conheci a PJ (Pastoral da Juventude) e o Hítalo, meapaixonei pelos dois. Desde então nunca saí: “Juventude, já!”. E estamos juntos até hoje.No ano seguinte, ajudei a formar o grupo de jovens Kerígma, nesse caminho fui fazendomeu caminho.

Um dia acordei, me olhei no espelho e vi que havia crescido, não no tamanho,claro. Mas havia crescido. Estava terminando o ensino médio e aí: o que vou ser, jáque cresci?

Comecei a buscar respostas. Decidi que precisava trabalhar. Conversando sobre issocom a Irmã Leida, ela me sugeriu entrar no grupo de Geração de Renda, “Farmácia VivaSaúde e Vida”. É um projeto que nasceu com as líderes da Pastoral da criança, parapreparar multimistura e xaropes caseiros, e depois virou um grupo de geração de renda. Apartir do conhecimento popular, do uso de algumas plantas medicinais fazem remédiosbaratos, atendendo muitas famílias de baixa renda do bairro. Todo dinheiro que entravaera dividido com os cincos componentes, era pouco, mas era muito digno. Caí de pára-quedas, trabalhava à tarde e estudava de manhã. Foi uma grande escola para mim.

Mas a tal pergunta eu ainda não havia me respondido. Me encantei pela vida religiosae quis ser uma Irmã de Notre Dame, tenho um imenso carinho e respeito por elas. Parte daminha formação pastoral devo a essa congregação.

Chegava ao final do ano e eu precisava decidir: ir para casa de formação ou prestar ovestibular. Decidi nem sim nem não. Embora eu quisesse fazer uma experiência vocacionalme preocupava se esse era o caminho certo. Não me permitia apenas tentar, eu tinha que tercerteza. Mal sabia eu que as incertezas são mais constantes na vida que as certezas e segu-ranças. E há sempre que se decidir. E eu decidi não decidir.

Nesse meio tempo, fiz o vestibular para Engenharia de Alimentos, queria fazer Farmá-cia, mas só tinha na faculdade particular. Fiz o vestibular tranqüila, não exigia de mim aaprovação, não havia feito cursinho, intensivão ou coisa assim. Lancei os dados e deixei odestino decidir por mim.

No dia do resultado, estávamos eu e a Isaurina trabalhando e conversando sobrequalquer coisa que não lembro mais. Tocou o telefone no escritório da Pastoral da Criança,que ficava ao lado, era para mim. Fui atender. Era a minha irmã no outro lado dizendo queeu havia passado no vestibular. Minha reação foi não acreditar, só podia ser brincadeira.Voltei e continuamos o nosso trabalho.

Com a dúvida e um misto de sentimentos, fui para casa. Os amigos e o namoradocomeçaram a ligar e caiu a ficha. Eu era mais uma universitária da UFT. E de certa forma fizminha escolha e a minha resposta.

Eu fui a primeira da família a entrar na Universidade, logo eu a caçula de noveirmãos. Meu pai mal escreve o próprio nome, minha mãe cursou até a terceira série. Era umorgulho para eles ter uma filha universitária. Eu tenho orgulho de ser filha deles, pois oque eles me ensinaram, livro nenhum ensina. O saber deles não tem diploma nem status,mas é mais precioso.

Por isso eu pergunto a você no mundo, se é mais inteligente o livro ou a sabedoria?

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

O mundo é uma escola; a vida é um circo; amor palavra que liberta, já dizia o profeta... Marisa Monte

Com muito medo e toda a minha vontade, fui ao meu primeiro dia na universidade.Teve o trote, uma bobeira que um dia alguém inventou e começaram a repetir e ninguémsabe dizer o porquê. O primeiro período, até agora, foi o mais difícil. Não estava acostu-mada a percorrer todos os dias duas horas de ônibus, ficar o dia todo estudando e comercomida fria. Assistir às aulas de Cálculo e não conseguir acompanhar o raciocínio doprofessor. Era uma decepção, uma vez que nunca tive dificuldade em matemática, masmuitos conceitos eu não havia visto. E eu pensava: “Não vou me adaptar!!!”

As coisas, como na natureza, tendem ao equilíbrio. Aos poucos fui me adaptandoàquele novo ambiente. Conseguia me sair bem em todas as matérias, inclusive em Cálculo.

Comecei a vender cosmético, pra garantir uma graninha (quase nada), meus irmãos eirmãs me ajudavam com as despesas. Tentei monitoria, não consegui. Tentei BITEC, nãoconsegui. Tentei PIBIC, quase consegui.

Vi o cartaz sobre a seleção para bolsistas do Programa Conexões de Saberes. Eraperfeito. Contemplava minhas necessidades acadêmica e financeira, ao passo que estariadando um retorno à minha comunidade. No dia que saiu o resultado da seleção para oPrograma, surgiu a oportunidade de enviar um projeto para concorrer uma bolsa no PIBIC.Mais uma vez tive que tomar uma decisão. Fiquei com o que já era certo, e o que mais meentusiasmava. Cá estou escrevendo meu memorial.

O Programa tem me possibilitado ousar vôos mais altos, como ver a questão universi-tária brasileira a partir de uma outra ótica. Até pouco tempo, eu mal sabia o que era lógicameritocrática. Embora, já no terceiro ano, considerasse o sistema de acesso ao ensino supe-rior federal excludente e um direito de apenas alguns que avalia apenas o mérito: isso émeritocracia. Escrevia no jornal da escola, um dos meus artigos dizia: “Pensar só no proble-ma não resolve nada, é preciso ver além dele. Saber as respostas certas, como exige ovestibular, nem sempre é o essencial, é importante fazer as perguntas certas. É aí que ascoisas começam a mudar.”

Estar no Programa não é apenas uma circunstância. Eu devo isso a uma teia de fatosque eu já havia tecido, através de minhas relações, dos meus amigos e amores, da minhafamília, da minha fé, da minha militância, dos livros que eu li e das músicas que meembalaram. E por pensar a partir do chão que eu piso. Mais que ser moradora de um bairrode periferia e vir de origem popular é importante se identificar com esse território, com aslutas e dores do local.

Como diz Leonardo Boff: “A situação é formada por opções e decisões que meantecederam. Estou jogado dentro de uma situação que não escolhi. Dentro dessasituação me auto-determino e faço caminhada da minha realização. A situação é omeu limite (...) é também chance e oportunidade, pois dentro dela vigem inúmeraspossibilidades.”

E assim eu vou vivendo, tentando me integrar naquilo que penso, vejo e sinto. Eu vejoo mundo e as pessoas no mundo, eu vejo a injustiça e a beleza. Aí eu penso; logo sinto.

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Embora com minhas ações eu não mude o mundo e nem as pessoas, mas quem sabe a mimtente ser e florescer.

Assim vivendo minha utopiaEu vou levando a vida,Eu vou viver bem melhor,Doido pra ver o meu sonho teimosoUm dia se realizar.Milton Nascimento e Fernando Brant

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28 Caminhadas de universitários de origem popular

Cristiane da Silva Veras*

Meu nome é Cristiane da Silva Veras. Nasci em Altamira, Pará, no ano de 1980. De seisirmãos, sou a mais velha. Meu pai, Raimundo Nonato, lavrador e vigilante noturno, nãoteve a oportunidade de ir à escola; não sabe ler e escrever. No entanto, em meio aos obstá-culos aprendeu a ler e escrever seu nome e algumas outras palavras. Mas nunca deixou deincentivar e de se esforçar para que os filhos tivessem um bom estudo. Minha mãe, MariaAparecida, merendeira escolar e coordenadora infantil, depois de muito esforço e luta,concluiu o ensino médio. Minha mãe ama estudar e sonha em fazer ainda um curso superior.Por amor aos estudos, meus pais não mediram esforços para os filhos estudarem e, assim,terem melhores oportunidades no mundo letrado.

Meu percurso escolar começou em 1986 no jardim de infância. No ano de 1988 curseia 1ª série do ensino fundamental, os primeiros anos de estudo da minha vida ocorreram naescola Estadual Oneide de Souza Tavares, na cidade onde nasci.

Em 1989, eu já estava morando em Morada Nova, Marabá, estado do Pará. Minhafamília e eu permanecemos por 3 anos, onde estudei a 2ª, 3ª e 4ª série na escola municipal1º grau Pedro Peres Fontinelle. Em seguida, no ano de 1992, já estávamos morando emPalmas. Aqui vivi os maiores acontecimentos da minha vida, no âmbito escolar.

No ano de 1992, cursei a 5ª série no Colégio Estadual Santa Rita de Cássia, mas tiveque mudar de escola, porque mudamos de bairro. Então fui estudar na Escola EstadualNovo Horizonte, onde estudei a 6ª, 7ª e 8ª série. Para cursar o 2º grau tive que retornar aoColégio Estadual Santa Rita de Cássia. Era o único colégio que tinha ensino médio naregião Sul de Palmas. No ensino médio optei pelo magistério. Era o desejo de meus pais.Eles questionavam que era o melhor curso, com maiores chances de trabalho para pessoasde baixa renda.

Mas o meu desejo era o curso de contabilidade. Abri mão das minhas vontades e curseio magistério. Conclui o ensino médio no ano de 1998. Quando terminei esta fase não tivepossibilidades de fazer um cursinho pré-vestibular, então resolvi estudar novamente outrocurso de 2º grau para não ficar parada por dois anos, escolhi o curso científico, o colegial.

Após os dois anos, foi possível fazer um cursinho pré-vestibular particular, que commuito esforço dos meus pais e meu, conseguimos pagar por 4 meses. O sonho dos meus paisera ter os filhos(as) na universidade, fazendo um curso superior. Como eu sou a filha maisvelha, eles achavam que por obrigação eu tinha que fazer um curso superior. Para realizar osonho deles, me empenhei o máximo nos meus estudos e no cursinho preparatório, para

Luta – perseverança, vitória

* Graduanda em Pedagogia pela UFT.

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assim ser bem sucedida no vestibular. Quando eu fiz o vestibular em 2001, eu já estavanoiva, planejava casar no final do ano.

A escolha do curso foi minha. No momento da inscrição do vestibular escolhi o cursode Pedagogia, era o que mais se aproximava do magistério, pois aprendi a gostar da área dehumanas quando cursei o magistério. Então resolvi aprofundar os meus conhecimentos emrelação à docência, planejamento, didática, metodologia e a supervisão. O curso de Peda-gogia tem todo um suporte para esse aprofundamento.

Fui aprovada na vigésima quarta colocação no meu primeiro vestibular. Meus paisficaram numa alegria sem explicação, acho que eles ficaram mais alegres do que eu mesma.Eles contaram para todos os amigos e conhecidos que agora tinha uma filha na universida-de. Comecei o curso de pedagogia no ano de 2001, em agosto, quando era ainda FundaçãoUniversidade do Tocantins, campus Universidade de Palmas, onde tinha que pagar umataxa a cada período. Ao final de 2001, em dezembro, foi realizado o meu casamento. Quan-do me casei com Adriano, eu estava no 1º período do meu curso. Ao final do 3º período,tranquei o curso porque fiquei grávida. Em janeiro de 2003, chegou ao mundo minha filha,Jhessica Michelle.

Por desejo meu e de meu esposo, resolvemos que eu ficaria um ano sem estudar. Masos meus pais acharam que eu não retornaria para a faculdade. Pensaram que o sonho de teruma filha com curso superior não seria realizado. No início de 2004, eu retornava a faculda-de e a alegria dos meus pais se restaurava: minha filha havia completado um ano de idade.

Tive dificuldades para retornar à faculdade, pois encontrei problemas para fazer odestrancamentro do curso. Consegui, mas retornei ao curso com apenas duas disciplinas.Para ter um bom desempenho nos meus estudos, fiz alguns sacrifícios como, estudar em doisperíodos diários, manhã e tarde, tarde e noite, sacrificando meus momentos familiares commeu marido e filha. Mas contei com o apoio e a compreensão do meu esposo.

Mas os acontecimentos de minha vida acadêmica não acabaram. Em abril de 2006, fiza inscrição para seleção de bolsista para o Programa Conexões de Saberes, para alegriaminha fui selecionada. No primeiro momento, achei que não seria contemplada, pois nuncative sorte em programas e projetos realizados na universidade. Dessa vez foi diferente, fuicontemplada como um dos 25 bolsistas para compor o grupo do Programa Conexões deSaberes da UFT.

Estar nesse Programa é de grande prazer e satisfação. É de muita valia para o meucrescimento profissional, intelectual e pessoal. Estou tendo a oportunidade de aprender alidar com vários acontecimentos diferentes e de construir novos conhecimentos com umgrupo de estudo diferente do convencional da sala de aula. Posso dizer que estou tendo umaconexão de saberes em minha vida.

Espero que quando eu estiver atuando na área da educação, saiba usar as experiênciasadquiridas na minha formação acadêmica e no Conexões de Saberes. Desejo atuar no cam-po de trabalho com determinação, sabedoria e desenvoltura. Estou aprendendo muito eespero aprender muito mais nesse Programa. Tenho consciência de que serei uma profis-sional capacitada e flexível no campo de trabalho, pois estou aproveitando as oportunida-des dadas a mim, em relação à formação profissional e pessoal. O Conexões e o curso dePedagogia me proporcionam crescimento intelectual, determinação, conhecimento de mundoe o saber enciclopédico.

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Deuzilene Mendes Marinho*

Pela memória é possível afirmar as dificuldades enfrentadas, bem como as alegriasadquiridas ao longo da nossa trajetória. Falar sobre o nosso passado nos remete não apenasaos momentos felizes, mas também aos fatos que afloram alguns ressentimentos que ficammarcados e guardados nas raízes dos nossos pensamentos. Colocar esses acontecimentos naponta do lápis não é uma tarefa fácil, ainda mais quando se trata de um passado marcado porincertezas. Apesar das palavras limitarem meus sentimentos, pretendo relatar a minha cami-nhada da melhor forma possível, para que assim todos a compreendam, inclusive eu...

Mas afinal, quem sou eu?Meu nome é Deuzilene Mendes Marinho. Sou caçula de seis filhos. Nasci em agosto de

1984, na cidade de Palmeirópolis, interior do Tocantins. Sou amiga, brincalhona, mas infeliz-mente sou muito teimosa. Fisicamente, sempre fui magrinha. E quem não me conhece, vê emmim apenas uma menina frágil. Nem se quer imagina o que passei no percurso da minha vida.

Pensando na minha história de vida, a sensação que eu tenho é de que não deixei deser ainda a “menininha” que adorava brincar na rua, confeccionava seus próprios brinque-dos, se aventurava nas árvores mesmo com medo de cair, tinha medo do “bicho papão”, iaa pé para a escola, chorava por qualquer motivo, tocava a campainha da casa do vizinho esaia correndo... todas essas lembranças, na maioria das vezes, são esquecidas. Mas eu estoutendo a oportunidade de resgatá-las através da memória.

Toda minha infância morei em Palmeirópolis. Ô “terrinha” boa! Foi uma fase marcadapor limitações de todas as ordens. Apesar disso, tinha uma alegria muito grande de viver.Como uma boa calanga do cerrado, na minha infância comi muita macaúba, piqui, murici,carnaúba, buriti, tudo com farinha.

A minha vida na escola começa em 1989, quando sou matriculada na Pré-EscolaMunicipal Elda Silva Barros, em Palmeirópolis. Minha mãe mandou confeccionar meuuniforme, saia pregueada verde e blusa branca. Para adquirir esse dinheiro ela teve quevender uma vasilha de plástico para uma vizinha. Entrar na escola foi algo tão marcante queainda me lembro do meu primeiro dia de aula como se estivesse acabado de acontecer.Muito cedo eu caminhava orgulhosa de mãos dadas com minha mãe, sentia uma felicidadeenorme, e ao mesmo tempo o medo se apresentava com grande intensidade.

“O que sou é que me faz viver”1

1 William Shakespeare* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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Ao chegar ao colégio, entrei para sala e me sentei. Assim que minha mãe foi embora,eu chorei muito. Só parei de chorar quando a professora me colocou sentada ao seu lado. Eesse episódio se repetiu nos primeiros dias de aula. Depois eu me adaptei e comecei aexplorar aquele ambiente, até então desconhecido por mim.

Nos intervalos, eu gostava muito de brincar de escorregar pelos corredores. Isso durouaté eu conhecer o mundo encantado da biblioteca. A partir daí, troquei as brincadeiras pelasfascinantes viagens nos livros de histórias. Como não sabia ler, ficava apenas admirando asfiguras. Passados alguns meses de encantamento, aquele mundo aos poucos foi se transfor-mando em decepção. Muito rápido, fui sentindo um isolamento. Comecei a me achar feia eburra porque era pobre. No final da primeira série, de acordo com o resultado final, eu tinhasido aprovada para a série seguinte. Mas eu fui impedida de recomeçar o novo ciclo porfalta de vagas. A direção da escola alegou que o critério usado para passar os alunos foramas notas. Todos os alunos que ficaram atrasados junto comigo, coincidência ou não, erampobres, assim como eu. Como essa era a única escola que disponibilizava essa série, tiveque repetir a primeira para não ficar parada.

A partir daí comecei a me esforçar para ser a melhor aluna da classe. Lembro-me de queme sentia vitoriosa quando superava em nota a menina que era preferida pelos professores,a mais rica da classe e considerada a mais inteligente. Na sala de aula era rotina a leituraindividual e em voz alta. Nesse momento, deixar de aplicar a entonação correta, era motivode correção impaciente da professora. Eu gostava e ainda gosto de estudar matemática, oque mais assustava era o dia de sabatina, os alunos tinham que decorar a tabuada. Cometerum erro, era fatal.

Em 1994, passei pelo primeiro momento de transição da minha vida escolar. Fuiestudar no Colégio Estadual Zulmira Nogueira Avelino, depois chamado Professora OneidesRosa de Moura. Ia cursar a temida terceira série, onde todos diziam que era uma das maisdifíceis. No começo, eu senti um pouco com a mudança de ambiente. A timidez tomouconta de mim, tinha medo de perguntar e ser perguntada em sala de aula, não gostava desofrer olhares de desprezo de minhas colegas. Hoje eu sei, era a discriminação de classe queestava me anulando. Mas eu não abria mão de buscar ser aceita como todas. Passei a mededicar cada vez mais aos estudos. Naquele momento, isso representava a busca da valori-zação atribuída pelo professor aos alunos que tivessem os melhores desempenhos e signifi-cava também entrar no jogo da competição entre os colegas pelas melhores notas.

A nota era vista, e, infelizmente, ainda é como prova de aquisição do conhecimento.Apesar de boas notas e de não apresentar dificuldades com o aprendizado, não me sentiaparte da escola. Achei-me de fato pertencente aquele meio, quando passei a ser representan-te de sala. A partir daí, comecei a construir vínculos com os professores e colegas. Aospoucos, fui deixando o complexo de lado e passei então a participar das atividades que aescola oferecia como grêmios estudantis, gincanas, atividades esportivas, entre outras.

A competição pelas melhores notas resultou em uma discussão entre uma colega e eu.Do nada, ela começou a me insultar. Não me recordo muito bem as palavras usadas por ela.Só sei que na hora o sangue me subiu a cabeça e quando percebi a menina estava no chão.Eu a empurrei. Isso resultou na minha primeira visita à diretoria. Na presença da Diretora, eutremia tanto que mal conseguia falar. Mesmo com muita dificuldade relatei (aos prantos) oacontecido. Aparentemente tudo ficara resolvido. Passados dois dias, chega a minha casauma intimação pra minha mãe comparecer a escola o mais rápido possível. Expliquei o que

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houve para ela, mas mesmo assim preferiu ir até o colégio certificar-se dos fatos. Quantoa mim? Fiquei em casa à espera do meu castigo. Depois de muita tensão, minha mãechega. E para minha surpresa, chega aos prantos. Ansiosa por saber logo o motivo dochoro, não hesitei em lhe perguntar. Como resposta, minha mãe me deu um forte abraço.Em seguida, disse que eu tinha sido destacada como a melhor aluna do colégio e tinhasido premiada com um micro-system.

O fato de ter sido destacada como melhor aluna fez com que eu me dedicasse obsessi-vamente aos estudos. Eu estudava, não na intenção de adquirir conhecimentos, e sim peloprazer da competição pelas melhores notas. Nem imaginava os problemas que isso viria metrazer futuramente. Dedicando-me tanto aos estudos, meus familiares e amigos criaram umaexpectativa de sucessos profissional e escolar muito grande a meu respeito. E isso, de certaforma, me atrapalhou muito, pois eu tinha medo de decepcioná-los. Com isso estudava cadavez mais, até o ponto de esquecer de comer.

Até a oitava série, os valores da prática pedagógica tradicionais estavam presentes, osprofessores tinham uma postura autoritária. As aulas praticamente não se diferenciavamquanto à estrutura de apresentação de conteúdo, os conceitos e fórmulas tinham que sermemorizadas. Nessa época, em um outro horário eu freqüentava o Programa Pioneiros Mi-rins, onde eram realizadas atividades ligadas ao convívio social, atividades esportivas,artísticas e culturais. Foi aí que comecei a compartilhar o meu conhecimento com outraspessoas. Passei a dar aulas de reforço para outros integrantes do programa. Devido a minhaobsessão por estudar, me destaquei também no programa, sendo titulada como PioneiraMirim nota 10. Mas uma vez fui premiada, dessa vez, ganhei uma bicicleta.

Na passagem para o Ensino Médio, a cada novo dia, eu vivenciava diferentes relações,passei a ter uma grande diversidade de colegas. Eram marcantes os momentos de recreação,as atividades culturais, na biblioteca, onde nos reuníamos pra estudarmos juntos.

Em 2001, passei pelo segundo momento de transição da minha vida escolar. Osprofessores, bem como o diretor, tentaram me alertar sobre as conseqüências em optar emestudar à noite. Mas foi em vão... eu já estava decidida. Nessa época, eu estava no segun-do ano do ensino médio e ainda não tinha nenhuma perspectiva acerca do vestibular.Logo nos primeiros dias de aula, senti na pele as conseqüências. Com a mudança, apare-ceram alguns problemas. A turma era quase que totalmente desinteressada. Toda quinta-feira eles se reuniam e combinavam para ninguém aparecer no colégio na sexta. Eu era aúnica que aparecia, mas de nada adiantava... os professores não contribuíam com a minhavontade de estudar.

Comecei a me preocupar com outro problema: continuar no interior dificultaria o meuacesso ao ensino superior. Pensando nisso, em 2003 passei pelo mais difícil e ao mesmotempo decisivo momento de transição da minha vida escolar. No intuito de traçar novoshorizontes, fui morar em Porto Nacional, na casa de uma tia minha. Deixei amigos, cidadenatal, família, tudo isso para tentar realizar o sonho universitário.

Fui estudar o terceiro ano no Colégio Estadual Professor Florêncio Aires. No decorrerdo ano letivo senti nas notas a diferença do ensino. Quantos assuntos eu não conhecia? Asensação que eu tive foi de recomeço. Para acompanhar os outros alunos, tive que correratrás do prejuízo. A saudade da família aliada a minha desmotivação fizeram com que euentrasse em início de depressão. Por várias vezes cheguei a chorar em sala de aula, sem sequer ter um motivo muito forte para isso. Lembro-me com muita emoção, em um dos meus

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momentos de nostalgia, meus amigos contando pra mim: amigo é coisa pra se guardar / nolado esquerdo do peito / dentro do coração / assim, falava a canção que na América ouviu.Graças a essas amizades que fiz, consegui sair da fossa em que eu me encontrava.

Se em Palmeirópolis eu quase não ouvia falar de vestibular, em Porto Nacional esseera o principal assunto do colégio. Antes de prestar vestibular fiz um teste vocacional edescobri que eu tinha vocação para Serviço Social. Pensei em seguir essa carreira, só que ocurso era oferecido apenas por uma faculdade particular na capital. Fazer um curso particu-lar estava fora de cogitação e longe da condição financeira da minha família.

Assim que terminei o ensino médio, fui morar com meus irmãos (com exceção daminha irmã mais velha) em Taquaralto, bairro de Palmas. Quando fui prestar meu primeirovestibular, meu precedente de boa aluna fez com que criassem uma expectativa muitogrande quanto ao meu ingresso na universidade. Apesar de ser esforçada e de isso ser umplano de vida, não passei no primeiro nem no segundo. Além de lidar com uma tristezainterna, ainda tive que me deparar com críticas e observações sobre minhas derrotas.

Ao sentir a necessidade de uma melhor preparação para o vestibular, me matriculeinum cursinho popular da paróquia de Taquaralto. Fiz a inscrição para o vestibular da UFTpara o curso de Engenharia de Alimentos. Fiz as provas e sem levantar expectativa fuiaguardar o resultado.

Chega o tão esperado dia. Eu não estava muito ansiosa para saber o resultado; pelomenos disfarçava que não. Um colega de cursinho me ligou para dar a notícia de que euhavia passado. Mas a ficha não caiu no primeiro momento, só foi cair quando fui até auniversidade e vi com meus próprios olhos o meu nome no listão dos aprovados.

Alguns conhecidos reagiram negativamente diante da decisão de ser Engenheira deAlimentos. Queriam que eu continuasse os estudos em cursos mais valorizados socialmen-te. No entanto, o que significava uma desnecessária frustração de expectativas para alguns,era considerado uma grande vitória para mim. Eu fui a primeira da minha família a conse-guir tal façanha.

Em 2004, ingressei na UFT. Desde então o curso transcorre entre descobertas, refle-xões, mudanças de visão do mundo. No começo foi muito difícil, mas o simples fato de estarna Faculdade, nos corredores, escadas, auditório, biblioteca, laboratórios é indiscutivel-mente um convite à alegria de aprender. Nesse ano, o Programa Conexões de Saberes só veiosomar a minha vontade de viver cada vez mais a universidade, de produzir conhecimento,de pensar e viver o mundo.

Foi muito importante pra eu começar o ano pensado “quem sou eu”. Apensar do receioinicial quando parei para pensar em minha história, nos mais variados aspectos, nas experi-ências que vivenciei e nos conceitos que vieram por elas. Parece besteira, mas quando olhopara trás, percebe como estou crescendo e como estou direcionando minha vida.

O que busquei nesse memorial não foi somente pontuar informações sobre minhavida, mas sim, estimular em todos que dele se sentem personagens, o despertar de outrashistórias, para que se produzam outros sentidos, outras relações, outros nexos.

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Memorial

Se fosse um artigo, uma matéria, uma reportagem... seria muito fácil de escrever. Falarda própria vida não é uma tarefa muito simples, eu particularmente não me sinto à vontade.Primeiramente, muito prazer, meu nome é Édila, nasci em 5 de maio de 1986, souTocantinense nata, o que é raro por aqui, curso Comunicação com habilitação em Jorna-lismo e sou apaixonada pelo meu curso.

Não tenho muitas lembranças dos primeiros anos de minha vida escolar, comecei aestudar com 6 anos de idade, em Gurupi-TO, no Henrique de Santana. Estudei lá até aprimeira série, depois fui morar em Redenção – PA (meus pais são separados, e, nessaépoca, fui morar com minha mãe). Nessa escola, estudei apenas a segunda série, depoisvoltei para Gurupi-TO. Comecei estudar no Educandário Evangélico Ebenézer, ondepermaneci até a oitava série.

Foi uma época muito boa, tenho amigos ainda desse tempo, foi no ensino fundamen-tal que comecei a ter ojeriza por cálculos e amar a área de humanas. Tive uma boa formaçãode base, e devo à escola todo o meu conhecimento básico. O ensino médio eu cursei noCentro de Ensino Médio Ary Ribeiro Valadão Filho. Quero ressaltar que eu odiava ter queescrever esse cabeçalho, muito grande! Foi um choque pra mim, eu nunca gostei de mudarde escola. Nesse caso foi pior porque todos os meus amigos foram pra outra escola. Maseram os três últimos anos de colégio, foi quando eu comecei a me preocupar mais com ovestibular. Sempre gostei de me envolver em gincanas, lideranças de sala, e essa foi umaépoca bem ativa em feiras de ciências, desfile de 7 de setembro, na rádio da escola.

Surgiu nessa época o meu interesse por jornalismo, já que eu sempre tive muita facili-dade de me comunicar. As matérias que estudávamos, mas me aproximavam do curso quefaço hoje, mas muito devo a professora Vera que me fez gostar de Química, a professoraMarlene que me fez entender a funcionalidade da Física e a professora Wandiara que me fezentender que a Língua Portuguesa seria uma ferramenta que eu utilizaria por toda vida. Fiztambém ótimos amigos no meu ensino médio, cito Raquel, que hoje é minha amiga, e serápor toda a vida. Começamos a estudar para o vestibular também em casa, eu e Raquel, nofinal do ano eu fiz a prova da UFT, então foi só esperar, foram os dois meses mais longos daminha vida! Eu nunca tinha achado meu nome tão lindo como o dia em que eu o vi na listade aprovados: Édila Nunes dos Santos! Eu fiquei eufórica, meus pais ficaram felicíssimos,mas foi uma correria enorme porque o resultado saiu numa sexta-feira, e na segunda eu tinhaque estar em Palmas. Eu correndo, arrumando as malas e a papelada pra fazer matrícula,meus amigos correndo, organizando festa de despedida, minha irmã caçula chorando por-que eu iria embora. Deu-me um friozinho na barriga de pensar em morar sozinha, em umacidade que eu não conhecia ninguém, exceto minha prima!

Édila Nunes dos Santos*

* Graduanda em Comunicação Social pela UFT.

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Universidade Federal do Tocantins 35

Entrei na Universidade com 17 anos, tive o mesmo sentimento que senti aos 6 anos aoir a escola pela primeira vez: medo. Era um universo totalmente diferente de tudo que eu játinha visto, foi amor a primeira vista. A maior diferença entre a Universidade e a escola eraque na Universidade as pessoas se expressavam da maneira que elas eram, todas as tribosreunidas cada um no seu espaço e interagindo entre si.

O primeiro período foi o mais difícil, eu sentia muitas saudades de casa, ainda sintoaté hoje, dos amigos... morar sozinha foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, porqueme fez crescer, ter responsabilidades, trabalhar pra me manter. Tinha dificuldades comalgumas disciplinas, era tudo muito teórico, e eu comecei a pensar se não teria feito aescolha errada, mas com o passar do tempo passei a gostar muito de filosofia e todas as“gias” (psicologia, antropologia, sociologia) que estudávamos. Ainda no primeiro perío-do fiz os melhores amigos que alguém poderia ter, que durante esses quase quatro anos decurso (hoje estou no 7° semestre) foram minha família, carinhosamente chamados de“família BM”.

A universidade me fez ver o mundo de outra forma, acredito que a formação pra sercompleta, deva conter ensino, pesquisa e extensão, o tripé da universidade, acreditandonisso, participei de muitos encontros do meu curso, conheci pessoas maravilhosas Brasil afora, e entrei no Programa Conexões de Saberes, que é o programa de extensão mais atuantede nossa Universidade. Vejo nos projetos uma forma de retornar à sociedade o acesso quetemos ao ensino superior, que ainda é tão difícil em nosso país.

Levo desses anos de academia além da minha formação como comunicóloga, forma-ção de caráter, e acima de tudo sou grata por ter aprendido a pensar. Pensar no mundo comoum todo, na sociedade, na função social de cada um de nós. Pensar é o que nos faz ir adiante,nos torna pessoas melhores. Termino com uma célebre frase de Descartes: “Cogito, ErgoSun” (Penso, logo existo).

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Antes de começar a contar a minha história, não poderia deixar de falar de duaspessoas que foram e são muito importante na minha vida. Eles me ensinaram que paravencer na vida é preciso ter garra, coragem; me fizeram aprender que mesmo diante dosproblemas e dificuldades que aparecem devemos dar a volta por cima, lutar pelos nossosobjetivos e nunca desistir: ir até o fim, até alcançar o objetivo que queremos conquistar.

Estou falando de meus pais que são pessoas humildes e trabalhadoras: MaximianoRibeiro da Costa, meu pai, e Ester da Silva Costa, minha mãe.

Ele nasceu na cidade de Pedro Afonso-TO e é o segundo dos seis filhos de MariaRibeiro, minha avó, e Manoel Otaviano Ribeiro, meu avô. Morou em Pedro Afonso até os 17anos, depois passou a morar em várias outras cidades. Em 1965, mudou-se Colinas, na épocaera Norte de Goiás, juntamente com seus pais. Começou a trabalhar como alfaiate, comercian-te e com imobiliária por algum tempo. Trabalhava para o sustento da família e para manterseus irmãos mais novos na escola. Em 1975, foi morar em Tucuruí-PA onde começou atrabalhar na Usina Hidrelétrica. Lá exercia a profissão de motorista na Construtora CamargoCorrêa. Aos 64 anos, mais uma demonstração de garra e vitória, voltou a estudar e já concluiuo Ensino Médio. Esse é um exemplo de luta, perseverança e determinação.

Minha mãe é natural de Tucuruí-PA e é a quinta dos sete filhos de Sebastiana Loiolada Silva, minha avó, e Manoel Cândido da Silva, meu avô. Durante sua infância sempremorou na mesma cidade onde nasceu. Estudava e trabalhava no sindicato dos trabalhadoresrurais e na Construtora Delphas Engenharia como secretária. Estudou no Colégio das Frei-ras, Nossa Senhora da Conceição, até a 8ª série do Ensino Fundamental. Morava com seuspais e irmãos, o que ganhava trabalhando ajudava no sustento da família.

Os dois se conheceram em Tucuruí-PA e se casaram no ano de 1979. Até hoje vivembem, graças a Deus. Meus pais estão casados há 28 anos. Dessa união, nasceram seis filhos:Maristela, Mirian, Maria Eunice, Elda, Ana Lúcia e Eliel.

Meus irmãosTodas as minhas irmãs concluíram o Ensino Médio e sempre estudaram em escolas

públicas. A Maristela e a Mirian cursaram o curso Técnico de Enfermagem no SENAC-TO.Atualmente, trabalham como enfermeiras em um hospital público. Maria Eunice, casou-see dessa união nasceu meu sobrinho lindo e maravilhoso, o Marcos Paulo. Ana Lúcia e oEliel estão estudando na Escola Técnica Federal do Tocantins: ela faz Saneamento Ambiental,e ele Eletrônica. Graças a Deus somos todos unidos.

Elda da Silva Costa*

Meus pais

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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Minha origemNasci no dia 11 de março de 1985 às 23 h, no Hospital Geral da Vila Permanente em

Tucuruí-PA. Pesei 4 kg e 160 g, uma menina saudável. Ah, de parto normal com a Dr.ªFátima. Nasci em um lar evangélico, por isso minha mãe quis me dar um nome bíblico: Eldada Silva Costa. Sou a quarta dos seis irmãos que meus pais tiveram. Com dois dias de nas-cida, minha mãe me levou para a casa da minha avó, pois a nossa casa estava com a energiacortada. Foi um momento muito difícil, pois não tínhamos dinheiro para pagar a conta, tudona nossa vida foi com muita luta e dificuldade.

Quando tinha um ano de idade, meus pais resolveram se mudar para cidade deParauapebas, no Pará. O motivo era porque estavam desempregados. Chegando lá, tudoestava começando, não tinha escolas, energia, água encanada e nem asfalto. Tudo era muitodifícil, meu pai começou trabalhar fazendo frete em uma caminhonete levando diariamenteos feirantes de Parauapebas para a Serra dos Carajás. Chegava em casa por volta de 1h damanhã. Morávamos em casa de aluguel e não tínhamos quase nada: só um fogão, uma cama,nossas roupas e nada mais. Minha mãe ia buscar água para beber nos poços dos vizinhos.Como não havia energia, não tínhamos ferro para passar roupa. Minha mãe conta que usavacomo ferro uma panela de cabo que esquentava no fogo para passar as roupas melhoresquando íamos sair. Lá passamos mais de um ano, foram muitos sofrimentos e vitórias.Quando meus pais conseguiram ganhar um dinheiro trabalhando diariamente para quitarnossas dívidas, resolvemos retornar novamente para Tucuruí, onde tínhamos casa própriana Rua Kleber Beliche, em frente à casa da minha avó materna.

Vida escolarEm 1988, aos quatro anos de idade, começou minha vida escolar. Minha mãe me

matriculou na escola Municipal Ursinho Feliz que existe até hoje. Ficava na Vila Pioneiraem Tucuruí-PA. Sempre tive muita vontade de estudar e não gostava de faltar um dia deaula: era uma aluna exemplar. Aprendi a escrever o meu nome ainda aos quatro aninhos deidade. Na hora do recreio gostava muito de brincar no parquinho da escola, participava doseventos. Quando chegavam as datas comemorativas, como o dia do índio e páscoa, euchegava em casa toda pintada. Achava muito engraçado quando eu ganhava ovos de páscoana escola, as coleguinhas me tomavam no caminho: eu era uma criança muito quieta, nuncafui agressiva com ninguém. Eu ia a pé todos os dias sem medir esforços, da nossa casa até aescola não ficava tão perto. A minha mãe era quem me deixava e buscava, às vezes eraminha irmã Maristela. Nesta mesma escola fiz o jardim I e II.

Em 1991 meus pais resolveram se mudar para Goiânia por questões familiares. Minhaavó, mãe de meu pai e seus irmãos já estavam morando lá, por isso ele fez mais questão deir. Então saímos de Tucuruí, vendemos nossa terra e tudo que tínhamos e fomos para Goiâniaem uma caminhonete. Meu pai mandou fazer uma cobertura para cobrir a carroceria e dentrocolocamos um fogão, colchão, roupas, panelas e fomos. À noite, meu pai não dirigia, acha-va muito perigoso. Então dormíamos nos postos de gasolina dentro da caminhonete. Nessatrajetória passamos seis dias viajando de Tucuruí a Goiânia.

Nessa época, meu pai estava desempregado e minha mãe gestante de quatro meses domeu irmão mais novo, o Eliel. Fomos morar em uma casa próximo da minha avó e ficamosnesta capital quatro meses. Meu pai ouvia falar da cidade de Palmas: a mais nova capital doBrasil no Estado do Tocantins e que lá estava bom para ganhar dinheiro. Saímos de Goiânia

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e fomos para Palmas. Chegamos no dia 1º de julho de 1991. A capital estava recém-fundadae tudo estava começando. Não tinha asfalto nas ruas, era uma poeira que cobria as casasquando os carros passavam; energia não tinha, usávamos lampião e lamparina que enchiatoda a casa de fumaça; água encanada não tinha, era o caminhão pipa que vinha abastecerem todas as casas; os hospitais estavam em construção.

Minha mãe estava perto de dar a luz, por isso foi encaminhada a uma cidade maispróxima, Porto Nacional. Fomos para Palmas em busca de novas conquistas e uma vidamelhor. No início, como nem tudo são flores, passamos por muitas dificuldades, não chega-mos a passar fome porque Deus estava sempre conosco suprindo nossas necessidades. Meupai trabalhou muito nas políticas com a sua caminhonete. Já faz 30 anos que ele tem omesmo carro: continua sendo sua ferramenta de trabalho. Fomos morar em uma casa dealuguel no setor Bela Vista. Ela ficava perto da escola infantil “Os Pioneirinhos” e tinhacomo diretora a tão conhecida Tia Dedê. Nesta mesma escola minha mãe me matriculoupara fazer o Jardim III.

Ensino fundamentalAos sete anos de idade, comecei a estudar a 1ª série e cheguei até a 4ª série na Escola

Municipal Tiago Barbosa, que passou a se chamar Benedita Galvão, situada no setor BelaVista, onde morávamos e estamos até hoje.

Fiz a 5ª e 6ª séries nesta mesma escola. Percorria a pé todos os dias, pois ficava pertoda casa onde morávamos. Minha mãe me matriculou na Escola Municipal Luiz RodriguesMonteiro para fazer a 7ª e 8ª séries porque a outra escola que ficava próximo a minha casasó tinha até a 6ª série. Ia para a aula todos os dias de bicicleta, mas às vezes pegava caronacom meu pai, já que a escola não ficava muito perto de casa, situava-se no centro deTaquaralto, cerca de 3 km.

Lembro-me de quando fazia a 7ª série que eu tinha um professor de Geografia chama-do Osvaldo. Certo dia, ele pediu que os alunos fizessem uma redação com tema livre, todoseles entregaram menos eu. Sempre tive dificuldade para fazer redação, nunca fui muito boa.O professor disse que eu teria uma chance e perguntou o que eu sabia fazer e respondi quesabia cantar: era acostumada a cantar desde muito pequena nas igrejas. Na próxima auladele, levei o meu Play Back e cantei. O professor e todos os alunos gostaram, não sabiamque eu tinha aquele grande talento.

Ensino médioNo ano de 2000 comecei a estudar o 1ª ano do Ensino Médio no Colégio Estadual

Santa Rita de Cássia. Era um dos melhores colégios de Palmas. Ainda funciona até hoje.Estudava à noite, pois de dia freqüentava aula de música. O colégio ficava muito distanteda minha casa, mas eu ia sempre de bicicleta e às vezes de ônibus com minha irmã MariaEunice. Ela estudava o 2º ano nesta mesma escola. No ano seguinte em 2001, cursei o 2º anoaté o mês de junho no mesmo Colégio.

Estávamos passando por problemas financeiros e devido a isso, minha irmã e euresolvemos voltar para Tucuruí-PA em busca de melhorias. Fomos no período das férias,mês de julho do mesmo ano. Chegando lá, fomos morar na casa da minha avó Sebastiana.Logo, minha mãe me matriculou na Escola Estadual Raimundo Ribeiro de Souza, pois tinhaque concluir o 2º ano. O Colégio não ficava muito perto de casa, mas eu ia todos os dias a

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pé no período da tarde. Gostei muito! Os alunos e professores me receberam muito bem, masnão gostava muito dessa caminhada longa que eu fazia de casa para o colégio.

Nunca me esqueço de um festival de paródia que a professora de geografia, Carmem,fez. O tema era sobre a Amazônia. Os alunos dividiram em grupos de cinco componentes.Fiquei responsável pelo meu grupo de fazer a paródia e conseguir os músicos. O meu grupoficou em 2º lugar. Foi muito legal e divertido e até hoje guardo o certificado desse festival.Lá, passei a freqüentar uma igreja onde tinha uma banda de música. Como sabia tocarsaxofone, aproveitei a oportunidade para me exercitar. Falei com o maestro Ribamar que euera musicista, mas estava sem instrumento. Ele logo conseguiu um instrumento para mim.Passei a fazer parte da banda de música que se apresentava todos os finais de semana.Sempre viajávamos para fazer apresentações nas cidades vizinhas. Foi muito maravilhosoesse tempo. Entrei na fanfarra da prefeitura de Tucuruí por intermédio de duas colegas deaula que não me recordo os nomes. Eu tocava pratos e tínhamos ensaios todas as noites.Estávamos nos preparando para apresentar no desfile do dia 7 de Setembro. Foi muito lindaessa apresentação e uma experiência muito boa, pois nunca havia participado de umafanfarra. Passados seis meses por lá e retornamos a Palmas-TO.

De volta, em 2002, dei início ao 3° e último ano do Ensino Médio no mesmo colégioonde havia iniciado o 1° ano. Sempre gostei de participar dos eventos que aconteciam nocolégio. Gostava muito dos festivais de música que se realizavam todos os anos. Já chegueiaté a ganhar alguns troféus. Recordo-me da nossa formatura, como hoje. Eu, com aquelabeca enorme, minha família toda presente. Convidei a escola de música da Guarda Metro-politana para dar abertura com o Hino Nacional brasileiro. Meu pai foi quem entrou comigocomo paraninfo. Cheguei até a apresentar um número musical para todos os formandos, amúsica Esperança. Foi muito bonito.

EsperançaQuem aqui chegou... quem aqui chegarTrás sempre um sonho de algum lugarVem de peito aberto sem saber o que seráCom coragem de se aventurarQuem aqui chegou... quem aqui ficarPor esses caminhos há de encontrarSonhos tão iguais corações a se entregarRecriando a vida.

(Refrão)Vida, dias esperançaSonho, sonho, sonhos esperançaE paz, paz, paz esperançaE paz, paz...Quem aqui chegou ficará.Marcelo Barbosa, Luís Schiavon e Nil Bernardes

Antes de ingressar na universidade, participei por dois anos do Programa Força Jo-vem, onde atuávamos nas escolas diariamente, auxiliando os professores com atividades e

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dinâmicas. Participava também nas comunidades populares, dando palestras educativas deorientação cultural. Toda essa experiência foi muito importante para mim. Aprendi a convi-ver com pessoas diferentes e a interagir com outros conhecimentos e novas visões demundo.

Ensino superiorNo final de dezembro de 2002, tentei o meu primeiro vestibular na UFT, que na época

era UNITINS, para o curso de Direito. Mas infelizmente não passei. Mesmo sem ter condi-ções para fazer cursinho, tentei outro vestibular para o curso Normal Superior, mas fuireprovada novamente. O que eu queria mesmo era estudar em universidade pública, nãoimportava em estar fazendo um curso que não tinha vocação. Nunca prestei vestibular emuniversidade particular, porque meus pais não tinham condições de me manter estudando.

No final de 2004, resolvi fazer o vestibular. A inscrição era R$ 75,00 e o curso eraEngenharia de Alimentos, com entrada para o segundo semestre de 2005. Entrei com opedido de isenção da referida taxa, pois não tinha este valor para cobrir a despesa. Conseguia redução para R$ 10,00. Recordo-me de que estava na casa de minha irmã, Mirian, e de meucunhado quando resolvemos verificar acerca do resultado do vestibular. Como não melembrava do semestre que havia escolhido, selecionamos o semestre errado. Na mesmahora, minha outra irmã, Maria Eunice, nos avisa por telefone que recebeu a informação deum amigo que meu nome constava na lista de aprovados. Na dúvida e no intuito de tercerteza, verificamos novamente.

Para mim, era um sonho. Não sabia se sorria ou se chorava de tanta emoção. A alegriafoi tanta que naquela noite não consegui dormir. No dia seguinte, pela manhã, voltei paraminha casa feliz da vida, dando a notícia para todos que eu conhecia.

No 2º período, fui admitida no Programa Conexões de Saberes. Recebo uma bolsa queme é muitíssimo útil para pagar minhas despesas, já que o curso que estudo é diurno. Comoparte desse Programa, participei do II Seminário Nacional do Programa Conexões de Sabe-res, no Rio de Janeiro-RJ. Foi uma experiência incrível.

Hoje, estou no 4° período do curso de Engenharia de Alimentos. Um curso muitodifícil, mais ainda por ser integral, tornando-se quase impossível a possibilidade de seradmitida no mercado de trabalho durante o curso, mas nem por isso eu desisti.

Ao longo da minha vida como estudante, tenho observado como a informação e oconhecimento são importantes e essenciais na vida, sobretudo, quando pensamos na dinâ-mica do senso crítico, conhecimento enciclopédico, que deve constantemente ser amplia-do. Enquanto o profissional detém a informação intelectualizada, conhecimento científicoatravés de sua jornada de aprendizagem, o leigo detém o conhecimento de senso comum,resultado da sua experiência de vida e de sua cultura de mundo. Ele repassa essas experiên-cias de uma geração para outra. Para que a Engenharia e as outras ciências alcançassem onível que possuem hoje, foi necessário que homens e mulheres se dedicassem por uma vidainteira em busca de informações e conhecimentos colhidos das experiências de várias co-munidades. Assim, fica fácil afirmar que as pessoas simples e comuns, podem ser uma fonteriquíssima e inesgotável de informação e conhecimento.

Tenho muitos planos para o futuro. Quero concluir esse curso e quando eu conquistartodos os meus sonhos, quero chegar ao final dizendo: eu venci. Aliás, pensando bem, já souuma vencedora, mais que vencedora, sou guerreira.

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Geisy Gracielly Evangelista*

Uma breve introdução de minha vida

Sou Geisy Gracielly Evangelista, filha de Maria das Graças Evangelista. Meu paibiológico jamais o conheci, mas nunca senti sua falta, porque meu tio Francisco, irmãode mamãe, o substituiu e até me registrou como filha. Nasci no dia 24 de janeiro de1985, na cidade de Imperatriz, no estado do Maranhão, cidade essa que amo muito eque vivi até os meus vinte anos. Sai quando fui aprovada no vestibular da UFT - Universi-dade Federal do Tocantins - para o curso de Ciências Contábeis, na cidade de Palmas-TO.

Alfabetização: a descoberta de um novo mundoNão me lembro do meu primeiro dia de aula, mas me recordo que ficava fascinada

com tudo aquilo que era novo para mim e receosa, pois estava longe de minha mãe ejunto de pessoas estranhas. Eu tinha cinco anos e estudava na Escolinha Sonho deCriança, no ano de 1990, na cidade de Imperatriz-MA.

Meu tio Silva, também irmão de mamãe, sempre me levava para a escola, elapassava a maior parte do dia trabalhando. Enquanto íamos pelo caminho, eu o amon-toava de minhas perguntas infantis. Em casa, sempre fui o xodó de todos: era a únicacriança em casa, morava com a minha mãe e seus quatro irmãos, tios maravilhosos e queos amo muito.

Como filha única, sempre fui muito mimada e fazia pirraças, tanto em casa comona escola. Algumas vezes, na escolinha, inventava de querer ir embora com o pretextode que não gostava daquele lugar. A professora, muito paciente, inventava de me fanta-siar de chapeuzinho vermelho, bruxa ou fada, isso dependia da minha escolha. Eu nãoera a melhor aluna da classe e não me interessava em fazer as atividades da escola, mastudo isso era só para chamar a atenção da turma.

Algumas vezes, quando titio ia me buscar na escola, a professora advertia-o de que eunão estava indo bem, mas que tinha potencial e precisava de ajuda. Ao chegar em casa elecomentava com a mamãe e ela me ajudava, mas não tinha muita paciência. O que eu maisgostava na escola era folhear as revistas em quadrinhos, algumas vezes, chegava a pegá-las nocolégio e levá-las para casa com o objetivo de recortá-las.

No ano seguinte, minha tia, Jesus, também irmã de mamãe, conseguiu uma bolsaintegral em uma escola particular da cidade, a escola São Francisco Xavier. Era a pri-meira série, mas mamãe ao ver que a sala comportava alunos maiores do que eu, resol-veu pedir a diretora da escola para que eu ficasse na alfabetização, como mãe protetora,queria garantir minha segurança.

* Graduanda em Ciências Contábeis pela UFT.

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Ensino fundamental: desleixo 0 x superação 10No ano de 1992, estava na primeira série e continuava na mesma instituição. Voltei

para casa tão feliz: estava descobrindo um mundo novo, o mundo das letras. Um dia, aprofessora de português pediu para eu ler em voz alta um texto, mas ainda não sabia ler epassei a maior vergonha, já que alguns dos meus coleguinhas já sabiam ler. Cheguei aofinal de ano sabendo ler, não foi um aprendizado fácil, por isso hoje valorizo tanto a leitura.

Passei de ano “raspando”, como dizem. Agora já estava na segunda série. O assuntocomeçou a complicar e as minhas notas que já não eram boas, só pioraram. A minha famíliasó tomou conhecimento disso a partir de minhas notas e das reuniões escolares. Como sabiaque não era a melhor aluna da sala, acabei por me desleixar mais ainda, chegando a nãoestudar para as provas.

Em razão disso, quase fui reprovada, mas a escola percebeu que tudo acontecia pordesleixo meu e entrou em contato com minha mãe, que se comprometeu de que eu iriamelhorar. Em seguida, me matriculou em uma escola de reforço e, a partir de então, comeceia me esforçar e a estudar mais. Passei de ano não mais “raspando”, mas com boas notas.

Chegando à terceira série tive umas das melhores professoras da minha vida, a tiaSevera. Apesar do nome, ela era muito divertida e a partir de suas aulas maravilhosas, passeia estudar mais e a me interessar por leitura e matemática. Sempre pedia para mamãe comprargibis, como ela sabia que leitura é fundamental, comprava sempre para me incentivar a ler.

No ano de 1996, minha tia, Francisca, irmã de mamãe, conseguiu uma bolsa parcialpara eu estudar no Sesi, uma das instituições mais rígidas de minha cidade. Lá me sentiainferior a todos os outros alunos. A grande maioria tinha uma condição financeira melhorque a minha e também os achava mais inteligentes do que eu.

Certo dia, a professora de português pediu para que todos os alunos levassem umdicionário para a aula seguinte. Eu fiquei fascinada quando minha mãe chegou comaquele minidicionário: logo, lhe pedi que me ensinasse a manuseá-lo. Mamãe semprequis me garantir uma boa educação, apesar da dificuldade ela sempre dava um jeiti-nho. Lembro-me ainda hoje de quantas vezes ela vendeu seus pertences para comprarmeus livros.

Mas comecei a sentir dificuldades na escola, minha família falava que eu ainda nãoestava adaptada a nova escola, mas também sabia que a metodologia de ensino do Sesi eramais rigorosa. No dia em que recebi a minha nota de matemática fiquei apavorada, poistinha tirado exatamente quatro, só então percebi que precisava me esforçar mais.

Lembro-me até hoje do primeiro livro de literatura infantil que a professora exigiu: “Afelicidade não tem cor”. Sei que para mim esse livro foi uma grande lição de moral. A partirdele comecei a valorizar e a amar as pessoas como elas são, sejam elas negras, brancas,ruivas ou morenas.

Ao iniciar as provas do segundo bimestre, determinei a mim que não mais tiraria umanota vermelha em matemática; assim aconteceu. Com isso aprendi que para conquistarmoso que desejamos, devemos nos esforçar e determinar a que ponto queremos alcançar, e nãodesistir diante dos obstáculos, já que são eles que nos ajudam a crescer e nos aperfeiçoar.

A primeira aula de Inglês, ainda me recordo, estava na quinta série e tinha onze anos.A professora Bhet, muito fluente na língua, ensinou-nos a pronunciar o alfabeto através deuma música. Foi uma aula muito divertida, principalmente para mim que estava ansiosa poraprender essa nova língua.

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Nessa série, conheci a Maksandra, uma das minhas melhores amigas que consideroaté hoje, nós gostávamos das mesmas coisas, freqüentávamos a mesma igreja e éramosmuito estudiosas. Até hoje, somos muito amigas, apesar de morarmos longe, já que elacontinua na mesma cidade.

No ano seguinte, sexta série, foi um ano conturbado para mamãe, porque pela primeiravez me apaixonei, logo pelo garoto mais popular da escola. Com isso, deixei de lado osestudos e passei a suspirar pela minha paixão infantil. Um dia ao chegar da escola, ela mechamou para uma conversa séria, falou que as minhas professoras entraram em contato comela, para informá-la que eu, como aluna exemplar, estava deixando muito a desejar. Conteientão que estava gostando de um menino, ela replicou e disse que era para deixar isso delado. Mamãe queria que eu me dedicasse com afinco aos estudos, para não ser no futuroigual a ela: que só tinha o antigo segundo grau e trabalhava o dia todo para ganhar no finaldo mês apenas um salário-mínimo, logo a compreendi.

Chegando a sétima série, ainda estudando no Sesi, estava tão adaptada à escola que jáa sentia como minha segunda casa, mas ao chegar ao final do ano, ficamos sabendo que aescola não iria mais ter de quinta a oitava série: estava com um prejuízo e a única soluçãoera não abrir para essas turmas. Fiquei muito triste, gostava muito do colégio, dos professo-res e dos meus amigos.

Quando contei para minha mãe que não teria mais a oitava série, ela logo me falou quenão teria condições de me colocar em uma escola particular. Fiquei triste porque a grandemaioria dos meus colegas iria estudar em escola particular, mas entendi a situação.

Ao iniciar o outro ano, ela conseguiu para mim uma vaga em uma escola pública dacidade. Sinceramente, não gostei muito da escola, o ensino era muito fraco, os professoressó queriam marcar ponto e passar os alunos, mesmos que não soubessem de nada. Eu erauma excelente aluna, os professores me elogiavam, contudo, havia colegas que não gosta-vam de mim porque os professores me tinham como exemplo da turma. Apesar de tudo isso,passei a estudar ainda mais. No final do ano, queria fazer o seletivo do CEFET-MA, concor-rendo a uma vaga para o ensino médio, sabia que se não passasse continuaria estudando namesma escola, então a única solução era estudar o máximo possível.

Ensino médio: a maturaçãoEstava dormindo quando meu tio Cláudio telefonou avisando que eu tinha sido apro-

vada, foi um dos dias mais felizes da minha vida, o dia 16 de janeiro de 2001, data deaniversário de mamãe.

O primeiro dia de aula no CEFET fui com ela, pegamos o primeiro ônibus, queria chegaro mais cedo possível no colégio. Ao chegarmos lá, fiquei fascinada com o lugar, tinha umainfra-estrutura ótima e o prédio era enorme. Houve uma solenidade de abertura, apresentaçãodos professores e boas vindas aos alunos. Em seguida, fomos para a sala de aula.

Como todos da sala haviam passado por uma seleção e tinham vindo de escolas diferen-tes, quase ninguém se conhecia, mas depois de alguns dias, já estávamos íntimos. Os meusprofessores eram bastante formais e tinham uma linguagem culta, principalmente o professorBosco, que ministrava as aulas de física. Nesse primeiro ano de ensino médio, senti dificulda-des, a metodologia de ensino da instituição era rigorosa. Passei a estudar o máximo quepude, pois deveria superar mais esse obstáculo. Conheci pessoas maravilhosas, como oAnísio, a Marly, a Thalita e o Wellington, sempre estudávamos e fazíamos trabalhos juntos.

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No segundo ano, já estava bem familiarizada com a escola e, especialmente, com osmeus colegas. Minhas notas eram boas, mas não as melhores. Dentre as várias matérias, asque eu menos gostava eram biologia, história e espanhol, as que amava eram matemática,português e inglês. Filosofia foi incluída em nosso currículo, ao passo que foram excluídasas disciplinas de artes e sociologia.

No ano de 2003, terceiro ano, foi uma fase de expectativas, ao final do ensino médioiria prestar vestibular. Fiz três testes vocacionais para saber qual profissão me identificava.O resultado só dava Psicologia e vários cursos da área de exatas. Estava um pouco triste,uma vez que iria me separar dos meus amigos e da escola que já amava. Aprendi que a vidaé mesmo assim e que cada um segue seu rumo.

Chegando ao final do ano, prestei vestibular para psicologia na UFMA - Universida-de Federal do Maranhão e na UESPI - Universidade Estadual do Piauí. A concorrência parao curso nas duas instituições era enorme, acabei não estudando o suficiente: estava muitoansiosa, caso não conseguisse corresponder às expectativas da minha família. Como resul-tado, não passei em nenhum.

Pré-vestibular: a motivaçãoNão desisti, teria que tentar outra vez, “só os fracassados desistem de tentar”, dizia

mamãe. Em agosto de 2004, resolvi me matricular em um cursinho pré-vestibular, logofiquei muito animada, porque os professores motivavam muito os vestibulandos e passei aestudar bastante. Quando começaram as inscrições do vestibular da UFT, decidi me inscre-ver por incentivo de uma amiga, a Roberta, que conheci no cursinho pré-vestibular, concor-rendo a uma vaga para o curso de Ciências Contábeis, em Palmas-TO, era o único curso queme interessava.

Me inscrevi também outra vez no vestibular da UFMA, concorrendo a uma vaga nocurso de Desenho Industrial. Agora, já não estava tão ansiosa como no último vestibular esabia que tinha estudado o suficiente. Em decorrência disso, acabei passando nos doisvestibulares. Optei por contabilidade por dois motivos: o mercado de trabalho ser maisamplo e por não conhecer ninguém em São Luís, já que o curso de Desenho Industrial era lá.

Ensino superior: um sonho alcançadoEstava me preparando para ir a mais uma aula no cursinho pré-vestibular, quando a

Roberta me ligou avisando que eu e ela havíamos sido aprovadas no vestibular da UFT.Esse com certeza foi o melhor dia da minha vida, pois foi a realização de um sonho paramim, minha mamãe e minha família.

Ao mudar para a cidade de Palmas, no Tocantins, senti dificuldades no início. Primei-ro, pela mudança de estado e separação da família, a saudade era enorme. Segundo, porquenão me identifiquei de imediato com o curso.

Nesse meio tempo, um pouco desentusiasmada, fiquei muito feliz quando a Robertacomentou comigo sobre o Programa Conexões de Saberes, vinculado ao MEC. Ela era bolsis-ta e falou-me que abririam novas inscrições para mais vagas, logo fiquei entusiasmada.

Hoje, me sinto lisonjeada em ser bolsista de um Programa como esse que só vemcontribuir e incentivar as pessoas de origem popular no sentido de criar meios e promo-ver ações para tornar o ensino superior acessível, fazendo valer o princípio dauniversalização do conhecimento.

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Com o passar do tempo, acabei por me apaixonar pelo meu curso e quem maiscolaborou para que isso ocorresse foi a professora Selma, professora de contabilidade quenos ensinava com determinação e muita dedicação. Quanto à distância da família, acabeime adaptando, mas algumas vezes ainda bate aquela vontade de querer estar junto damesma. Hoje, divido aluguel de uma pequena casa perto da universidade com duas ami-gas, a Suellem e a Suiane, que as considero como minhas irmãs, aprendi com elas o valordo respeito às diferenças.

Aprendi que na vida nunca temos tudo que queremos, sempre temos que abdicar dealguma coisa. Com relação ao futuro, é um pouco incerto, mas pretendo terminar o curso eme especializar na área. Enfim, quero buscar melhorias para mim, minha querida mamãe eminha maravilhosa família, pois se até aqui cheguei, foi porque todos me ajudaram.

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Geovania da Silva Oliveira*

FamíliaSou a quarta filha, a caçula de uma família de quatro irmãos, dois homens e duas

mulheres. Meu pai, homem trabalhador que sempre deu “duro” na vida para sustentar afamília, estudou só até a 5º série do ensino fundamental, pois precisou começar a trabalharmuito cedo para ajudar seus pais na roça. Minha mãe, estudou mais do que meu pai. Elaconcluiu a 8º série do ensino fundamental, depois de casada terminou o ensino médio.

Meus pais foram os grandes incentivadores para que eu e meus irmãos estudássemos,nunca colocaram obstáculos ou nos impediram de nos dedicarmos aos estudos. Eles tiveramgrande participação na minha vida escolar, em nenhum momento eles se opuseram aosestudos. Sempre fizeram, mesmo com muito esforço, um jeito de comprar meus cadernos,minha farda escolar. Permanecem até hoje me apoiando nos estudos.

Vida escolarComecei a estudar as séries iniciais na escola São José de Ribamar, junto com um dos

meus irmãos, o que proporcionava ótima amizade entre nós, pois sempre andávamos juntos,tanto fora quanto dentro da escola. Como as escolas públicas não oferecem a fase educaci-onal de alfabetização, essa foi a única série em que estudei em escola privada. Tenho boaslembranças desse período, adorava ouvir histórias, pintar os desenhos com lápis de cor,brincar com os amigos.

Ingressei na primeira série novamente com meu irmão na Escola Municipal DorgivalPinheiro de Sousa. Esse colégio era bem maior do que aquele em que estudei, permaneci láaté a 6º série. Fiquei um pouco assustada na 1º série com tudo o que via. Tudo era bastantediferente daquilo que eu estava acostumada: os coloridos da sala não existiam mais. Aospouco, fui me adaptando com o ambiente, visto que a professora era muito carinhosa epaciente comigo. Foi com ela que aprendi a gostar de ler.

As outras séries foram diferentes, não foram tão boas assim, os professores sempremudavam. Eles não tinham a mesma paciência e atenção. Só que a cada “degrau” de série iaaprendendo cada vez mais. Eu sempre fui uma aluna estudiosa e dedicada com os estudos.

Quando passei para a sétima série, fui para o colégio Estadual Amaral Raposo queficava mais próximo de minha casa. Permaneci nele até o meio do ano do 3º ano doensino médio.

Eu me lembro que queria muito estudar nesse colégio porque meus irmãos mais ve-lhos já estudavam lá. E também, tinha um ensino melhor do que o outro em que tinhaestudado. Isso foi uns dos meus motivos de querer estudar nele. Quando minha mãe conse-

Memorial

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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guiu me matricular, foi uma alegria só. Fiquei muito feliz, pois sabia que ia me dedicar maisaos estudos. Foi lá que fiz algumas amizades que permanecem até hoje, que inclusive umadelas permanece comigo no Conexões de Saberes.

Foi nessa escola que comecei a gostar de história e ciência, as que menos simpatizavaeram física e matemática. Tive um pouco de dificuldade em aprender, não era bem dificul-dade, não tinha interesse em aprender mesmo. Pensei que nunca iria prestar um vestibularna área de exatas, pelo fato de não gostar da disciplina. Só que nunca fiquei reprovada emnenhuma delas.

Antes de terminar o ensino médio, precisamente no dia 15 de junho de 2001, umacontecimento marcou muito a minha vida e de minha família, a morte do meu irmão, umjovem de apenas 21 anos que tinha muitos sonhos pele frente, mas que foi assassinadocovardemente. Naquele ano, um mundo desmoronou na vida de minha família, uma perdainexplicável, uma dor incomparável. Nesse mesmo ano, tive que deixar os estudos no“meio” do ano porque fomos morar em outra cidade.

Logo que nos mudamos para Aparecida de Goiânia, em Goiás, minha mãe logo conse-guiu um colégio pra mim. Ela me disse que eu não podia perder o ano, mais eu estava tãodesanimada para ir ao colégio que para mim tanto fazia eu estudar ou não, estava meioangustiada com a vida. Mas mesmo assim fui para o colégio. Chegando lá me sentia como“peixe fora da água”, como diz a expressão. As pessoas eram esquisitas: mal se olhavam.Elas não tinham aquele companheirismo.

Os professores passavam as matérias numa correria, nem perguntavam aos alunos setinham dúvida. Sem falar que tinha um menino que dizia que eu falava engraçado por causado meu sotaque. Não podia falar nada para ele, pois era motivo de piada, sempre ria de mim.Isso era muito chato, mas aos poucos fui me acostumando. Eu não via a hora daquele anoacabar para sair daquele lugar.

VestibularQuando terminou o ano letivo, não quis prestar vestibular, porque não me sentia

preparada. Então, primeiro fui fazer cursinho. Foi lá que veio minha escolha para o curso,tive uma professora de química que fazia Engenharia de Alimentos na Universidade Cató-lica de Goiás. Na aula, ela me falou sobre o curso e disse que era ótimo, tinha suas dificul-dades, mas era muito bom. Quando ela falou isso, eu me interessei em saber mais sobre ocurso. Já que nunca tinha ouvido ninguém falar sobre esse curso. Pensei! “Por que nãoprestar vestibular para Engenharia de Alimentos?” Percebi também que se fizesse essaescolha, teria que lidar durante todo o curso com as disciplinas que menos gostava: mate-mática e física. E isso me pôs mais em dúvida se fazia ou não.

Era chegada a hora da inscrição do vestibular, porém, não estava completamentecerto do que fazer. Pensei em dois cursos: Medicina Veterinária e Engenharia de Alimen-tos, mas logo desisti de Medicina Veterinária, pois a UFT, em Palmas, não oferecia essecurso. Foi aí que escolhi Engenharia de Alimentos. Ainda sem muita vontade, decidi queseria a melhor opção.

Primeiro vestibular foi na UNITINS, hoje é a atual Universidade Federal do Tocantins.Minha inscrição foi meu irmão quem fez porque ele estava morando em Palmas. Quando eleme ligou perguntando se eu queria fazer vestibular lá, eu disse sim. Foi aí que ele me disseque a UFT oferecia o curso que eu queria.

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Como eu estava em Goiânia tive que viajar para Palmas para o vestibular. Chegandolá, no dia anterior do vestibular, eu e meu irmãos fomos procurar onde seria o local da minhaprova. Descobrimos que seria na própria faculdade. No dia da prova, fiquei muito ansiosa,pois nunca havia feito o vestibular antes, quando comecei a ler a prova, percebi que asmatérias de português, história, química e biologia estavam muito boas, pois tinha estuda-do realmente aquilo que estava ali, mais a prova de espanhol não tinha sido tão boa.

O resultadoNo dia seguinte viajei para Goiânia, mas meu pensamento só estava no resultado do

vestibular, antes de viajar meu irmão me disse que só me telefonava se eu tivesse passado,pois não ia gastar com interurbano se não fosse aprovada. Na noite anterior ao resultado,tive um sonho que me revelou que eu tinha passado no vestibular. Quando acordei a primei-ra coisa que fiz foi falar do sonho para meus pais. O resultado seria naquele mesmo dia pelamanhã. Fiquei esperando o meu irmão me telefonar. Chegou a tarde, nada dele me telefonar.Pensei que não tinha passado. Fui ao supermercado comprar alguma coisa para minha mãe,que não me lembro o que era, quando estou dentro do supermercado vejo a minha mãebranca e sem fôlego me dizendo: “Teu irmão acabou de ligar dizendo que você foi aprova-da”. Naquele momento, eu senti uma alegria que não sei nem passar para o papel. Foi muitobom o que eu senti.

Minha família estava toda orgulhosa de mim, pois minha mãe dizia para todo mundoque a filha caçula tinha passado no vestibular. Minha alegria só não estava completa por-que meu irmão não estava conosco, mas uma coisa eu sabia, onde quer que ele estivesseestaria muito feliz pela minha vitória.

UniversidadeA necessidade de uma vida melhor, o sonho de cursar uma faculdade e o desejo de um

dia poder ajudar meus pais, dando-lhes uma vida melhor, me motivaram para que conti-nuasse minha caminhada no estudo. Como diz o ditado popular: “nem tudo na vida sãoflores”. Foi na faculdade que começaram aparecer minhas reprovações em cálculo e físicadevido não ter tido uma boa base na escola pública.

Mas nunca pensei em desistir por causa das dificuldades que tive, fui atrás do tempoperdido em querer aprender sobre essas matérias. Hoje, eu posso dizer quer batalhei muitopara aprender as disciplinas que fazem parte de minha vida acadêmica.

Estou no 8º período de Engenharia de Alimentos. Eu só posso elogiar esse curso. Nãome decepcionei nem um pouco, ao contrário, ele excedeu minhas expectativas, pois euestou amando o curso. Foi na faculdade que tive o privilégio de ser uma bolsista do Cone-xões de Saberes. Um Programa ótimo que dá oportunidade aos acadêmicos de origem popu-lar, garantindo sua permanência com qualidade na universidade.

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Juliana Alves Araújo*

Tenho 21 anos, nasci em Paraíso do Tocantins, morava com minha mãe, meu pai emais dois irmãos, uma irmã de 23 anos e um irmão de 25 anos.

Recordo-me de que aos quatro anos, todos os dias minha mãe levava meus irmãos naescola, que ficava próxima a minha casa. Como meu pai levantava cedo para trabalhar, nãotinha ninguém para ficar comigo, então minha mãe me levava com ela. Eu gostava muito deir acompanhando meus irmãos e minha mãe. Lembro-me de que a escola era muito bonita,eu sentia muita vontade de estudar também, tinha muita curiosidade de entrar para sabercomo era lá dentro. Meus irmãos me falavam muito bem das aulas que tinham.

No segundo semestre do mesmo ano, minha mãe me matriculou no jardim. Eu estavamuito feliz, ganhei uma roupa igual à da minha irmã que ela vestia todos os dias para ir àescola, chamada de uniforme: era uma blusa branca de manga e uma saia rodada azul.Ganhei também uma mochila e uma lancheira que todos os dias minha mãe preparava umlanche para eu comer no recreio.

Eu fiquei encantada quando entrei na escola, as paredes eram todas desenhadas etinha também um parquinho no pátio, a sala era muito bonita, cada aluno sentava em umamesa. E tinha uma professora que eu a chamava de tia como os demais alunos.

No ano seguinte, meus pais tiveram que trocar eu e meus irmãos de escola. Essa escolaem que a gente estudava era particular. A renda da família ficou curta e tivemos que ir parauma escola pública. Meus irmãos se adaptaram na nova escola, eu não consegui me adaptar.Eu sentia muita falta dos colegas que tinha feito na outra escola. A sala era muito grande etinha muitos alunos, a professora demorava muito para ir até minha mesa quando eu achamava. Eu me sentia muito sozinha. Comecei a perder a vontade de estudar, não mesentia bem naquele lugar e acabei desistindo de estudar. Minha mãe tentou de tudo paraque eu não perdesse o ano, mas de nada adiantou.

Com seis anos eu voltei a estudar, agora com a mesma vontade de quando tinha meusquatro anos. Minha mãe me matriculou no pré, na mesma escola de antes e aos poucos fuime acostumando.

Passei boa parte da minha vida escolar nessa escola, Colégio Presbiteriano Vale doTocantins. Estudei todo meu ensino fundamental e ensino médio. Ah, da 1ª a 4ª série,estudei com a mesma turma. Quando passei para a 5ª série, como era um colégio público etinha muitos alunos, a minha turma de antes ficou dividida, alguns colegas meus ficaramcomigo em uma turma A, os outros na turma B. Eu achei muito ruim. Eu e meus colegasresolvemos nos reunir para conversar com a coordenadora para não dividir a nossa turma.De nada adiantou! Ela falou que a partir daquela série as salas tinham turmas A e B, que eramdivididas por idade. Com o passar dos dias fui conhecendo os novos colegas de turma e fui

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* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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fazendo novas amizades. No recreio, nos reuníamos com todas os colegas. A cantina era olugar mais procurado na hora do recreio, tinha merenda escolar para todos.

Na minha 8ª série, descobri o esporte. Foi algo maravilhoso na minha vida. Comeceia treinar vôlei, três vezes por semana. No começo, foi um pouco difícil, pois eu não era umadas melhores, mas tinha muita vontade de ser. Às vezes, ficava desanimada, mas nuncadesistia de ir aos treinos, meu treinador e também professor de Educação Física sempre meentusiasmava muito, falava que por ser uma das mais altas eu seria uma boa jogadora, assimpoderia ajudar o time da escola a ser campeão nos campeonatos.

Realmente, meu professor tinha razão, com o tempo eu fui melhorando. De reservapassei a ser titular em todos os jogos. Não vou mentir que sempre sentia um friozinho nabarriga quando estava na quadra para jogar e olhava as arquibancadas do ginásio lotadas,com todos meus colegas da escola. Eu sentia uma grande responsabilidade em ganhar, paraque todos os presentes ali sentissem orgulho da nossa escola. Quando perdíamos, eu mesentia muito triste.

Quando estava no ensino médio, sentia uma grande responsabilidade de estudar mui-to para passar no primeiro vestibular, porque me sentia atrasada nos estudos, meus colegasterminariam com um ano a menos do que eu. Isso porque eu perdi um ano quando eu desistie tive que fazer o pré no ano seguinte novamente.

Pensei em parar de jogar vôlei, mas como me sentia muito bem quando estava nostreinos e jogando, resolvi continuar treinando só duas vezes na semana à noite. E à tarde,deixei reservada para fazer as tarefas de casa e revisar um pouco de cada matéria.

Meus pais, sempre me cobravam muito, falavam que eu tinha que estudar bastantepara passar no vestibular da Universidade Federal do Tocantins. Eles não tinham condi-ções financeiras para pagar uma faculdade particular. Eu nunca fui a aluna mais inteligen-te da turma, mas sempre me esforçava para tirar notas boas, sempre consegui passar direto,sem recuperações.

Meu 3º ano foi um desastre! Começamos o ano sem dois professores, um de matemá-tica e outro de português. Recordo-me de que depois de quase três meses de aulas quecomeçamos a ter aulas de matemática e português. O professor de matemática era muitobom, explicava a matéria muito bem e todos os alunos da sala gostavam dele. Já a profes-sora de português não era muito boa, ela era muito lenta com a matéria. Então a salacomeçou a desanimar. Esse foi um dos anos na escola em que eu menos estudei e acabeisentindo as conseqüências disso quando prestei o meu primeiro vestibular, foi uma de-cepção não ter passado.

No ano seguinte, entrei em um cursinho público, onde eu pagava apenas uma taxa.Com dois meses, esse cursinho teve que fechar, por questões políticas. Entrei então em umcursinho particular, não era o melhor, mas era muito bom.

Quando fiz o meu segundo vestibular para Engenharia de Alimentos, consegui passar.Nossa! Me recordo de que eu fiquei tão feliz que chorei de tão emocionada.

Quando entrei pela primeira vez na sala da faculdade, senti uma grande sensação deconquista, de ter vencido uma etapa muito importante na minha vida. Hoje, cursando o 3ºperíodo, vejo que ainda preciso vencer muitas outras etapas que estão por vir. A vidadentro da Universidade não é fácil, mas graças a Deus tenho minha família que está meajudando a vencer cada etapa. Tenho muitas perspectivas boas para meu futuro. A escolame ensinou a ser a pessoa que sou hoje e a faculdade está me ensinando a caminhar com“minhas próprias pernas”.

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Quem sou eu?Será que eu mesma sei quem sou eu na verdade? Vou tentar me descobrir aqui e farei

o possível para que vocês me conheçam melhor depois deste memorial. Chamam-me deKarla, sou morena clara, olhos verdes, cabelos meio ruivos, tenho 1.60 m, 52 kg, 28 anos esolteira. Considero-me uma mulher bonita (aahhh!!!). Bom, isso é o que dizem. Sou amiga,trabalhadora e leal. Estou agora cursando o 6º semestre de Pedagogia na UniversidadeFederal do Tocantins. Moro sozinha, no centro da cidade, bairro próximo à universidade.Nasci na cidade de Goiatins -TO no dia 31/03/1978, de parto natural, vim ao mundo pormeio de uma parteira.

A origemEita meu Deus do céu! Dizem que Goiatins é o lugar onde “Judas perdeu as botas”, por

ser tão longe e sem perspectivas de vida. Mas eu acho que não é bem assim, pois existemlugares ainda muito mais distantes. Pode-se chegar a Goiatins por meio de ônibus ou avião,mas não pensem naquelas grandes aeronaves como um Boeing 737, por exemplo. Lá sóexiste um pequeno campo de pouso para pequenas aeronaves, esse campo nem pavimenta-do é. Daí vocês imaginem o tamanho proporcional da cidade.

Meu pai é Antonio Lima Coelho, estudou até a 4ª série do ensino fundamental. Segun-do a minha avó, ele dizia que não tinha nascido para estudar e que se minha avó insistisse,ele iria sumir no mundo sem deixar notícias. Minha mãe é Raimunda Rodrigues da CostaNeta, estudou até a 8ª série. Sou filha de mãe solteira, como se diz por aí. Minha mãe já tinhaoutro filho quando nasci, sou a segunda dos 9 que ela gerou, vivos são apenas 8, contandocomigo. A família de minha mãe é bem humilde. Quando nasci, ela vivia em dificuldades,ganhava a vida como manicura. Sendo eu a primeira neta da minha avó paterna, ela pediuque minha mãe deixasse eu ser criada por ela, ou seja, que minha mãe abrisse mão de minhacriação. A família de meu pai tinha melhores condições e uma certa tradição na cidade,sendo assim, eu poderia ter melhores oportunidades na vida, pensou a minha avó.

Minha famíliaMeu pai nunca viveu junto com a minha mãe, hoje ele é casado com outra mulher e

com ela tem 3 filhas, sempre morou em Goiatins. Minha mãe também se casou, com o meupadrasto e teve 8 filhos, atualmente ela mora em Paruapebas-PA. Bem, ao todo tenho 11irmãos (5 homens e 6 mulheres).

Karla Adriana Rodrigues Coelho*

Memorial

* Graduanda em Pedagogia pela UFT.

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Fui criada desde os meus 3 meses de vida pela minha avó paterna, Leonides, a quem,depois de Deus, eu devo tudo. Ela é a pessoa mais importante na minha vida, sou o que sougraças a ela. Meu pai só me registrou como filha, mas nunca morei com ele. Minha mãe foiembora de Goiatins para o estado do Pará tentar uma vida melhor, quando eu tinha mais oumenos uns 2 anos. Eu conheci a minha mãe quando eu tinha quase 18 anos. Quando ela saiude Goiatins eu era muito bebê e não guardei nenhuma lembrança dela. Respeito a minhamãe e nos vemos mais ou menos de 2 em 2 anos, mas não sinto nenhum amor por ela, não énenhum tipo de ressentimento pelo fato dela ter me dado para a minha avó. Ressalto aquique minha vó já me disse que ela não queria de forma alguma abrir mão de mim, depois demuita insistência da parte dela, minha mãe cedeu.

Como fui criada pela minha avó paterna, eu nunca a chamei de vó, eu a chamo de mãe.Hoje ela está com 76 anos, ainda é bem lúcida, mas tem a saúde frágil. Ficou viúva muitonova, acho que com uns 42 anos. Teve que criar os 11 filhos dos 14 que gerou, fora eu, elaainda criou mais uns 3.

A infânciaVivi na fazenda, bem próximo a Goiatins, com minha avó até os 7 anos, idade em que

fui para escola. Já era alfabetizada quando fui à escola pela primeria vez, isso ocorreuporque minha vó era professora, hoje ela é aposentada. Com 7 anos, fui para Goiatins paraestudar e morar com minha tia Anady que também é minha madrinha de batismo. Desdecedo, comecei a aprender a trabalhar, sempre tive que ajudar minha vó, isso dentro doslimites de uma criança. Pensando bem, hoje eu posso dizer que fui criada e preparada paraser aquela famosa mulher, a tão conhecida “Amélia”. Sei que isso sempre foi uma preocupa-ção da minha avó: me preparar para a vida, ou seja, antes de mais nada, aprender as tarefasdomésticas. Isso pelo fato dela saber que o meu pai nunca se importou comigo, e quequando ela se fosse eu poderia me virar sozinha ou poderia estar amparada por um casamen-to. Então, quando fui morar com minha tia, tive que ajudar em casa nos afazeres domésticos.

Minha avó, só veio morar na cidade, quando eu estava na 5ª série, trabalhava muito eficava doente com freqüência. Quando ela veio, eu saí da casa da minha tia, “graças a Deus”,porque eu me sentia como uma empregada. A minha infância não foi tão feliz, desde cedocomecei a ter responsabilidades, mas brinquei muito, nunca fui cercada de cuidados efestas. Aniversário com festa mesmo eu só tive um. Mesmo não tendo uma infância comomuitas crianças têm hoje, não posso deixar de dizer que sempre fui e sou muita amada pelaavó, que sempre tentou me dar o melhor, mesmo eu tendo que ajudá-la em casa ela sempretentava me poupar o máximo.

A vida escolarEntrei na 1ª série do ensino fundamental com 7 anos, em Goiatins mesmo, no Colégio

Estadual Adá de Assis Teixeira. Conclui a 8ª série nesse colégio, no final do ano de 1993.Fui passear no fim do ano na casa da minha tia Arely, irmã do meu pai, em Colinas-TO. Elaconversou comigo dizendo que eu deveria ir morar lá para estudar, pois assim teria melhoresoportunidades, já que era uma “cidadezinha” mais desenvolvida. Ela ligou para minha avóe acertou tudo, nem voltei mais pra Goiatins.

Iniciaram-se as aulas e minha tia me matriculou no Colégio João XXIII, para fazer omagistério, à noite, pois assim eu poderia trabalhar durante o dia. O único trabalho que ela

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conseguiu arranjar foi o de empregada doméstica na casa de uma conhecida dela. Fiqueimorando com minha tia só até julho de 1994. Isso porque comecei a namorar. Ela tinhamedo que eu engravidasse, visto que não poderia ficar me controlando 24 horas. Ah! Nafamília tinha uma tradição que as meninas só poderiam namorar depois dos 15 anos. Poresses motivos, ela resolveu que ia me mandar para morar em Goiânia-GO, com minha tiaAltair, essa era considerada um general. Achavam que ela poderia dar um jeito em mim, ouseja, me controlaria mesmo. Cheguei em Goiânia e tia Altair conseguiu que eu fosse morarcom uma amiga dela, dona Aparecida. Eu teria que pagar a minha estadia lá com serviçodoméstico. Minha tia me matriculou no Instituto de Educação de Goiás, onde dei seqüênciaao meu curso técnico em magistério. O curso lá era de 4 anos e não de 3 como era de costumena época. Já quase no final do ano, dona Aparecida não quis que eu ficasse em sua casa,porque eu arranjei um namoradinho. Disse para tia Altair que não podia me controlar. Fuientão morar com minha tia. Lá permaneci até o final de 1997, quando concluí o 4º ano demagistério, ou seja, o 2º grau. Fiz cursinho no meu último ano do 2º grau. Tia Altair pagavacom muita dificuldade aulas num dos melhores cursinhos de Goiânia. Não estava maisdando certo a minha relação com ela e como minha avó não permitia que eu morassesozinha e também não tinha condições de me manter lá, voltei para Goiatins.

As batalhas na vidaQuando estava terminando o 2º grau, fiz a minha primeira tentativa no vestibular em

Goiânia, me inscrevi em 3 universidades, para minha frustração não passei em nenhum.Decidi voltar para Goiatins em 1997. Nesta época eu fiquei muito preocupada com o meufuturo, pois morando lá eu não poderia fazer um curso superior. Eu achava mais difícil aindaporque eu não me sentia capaz de passar em uma universidade Federal e sabia que não teriacondições de estudar em uma particular. Minha avó não teria condições de pagar e me demanter, ainda que ela desejasse muito realizar este sonho. Meu pai se quisesse poderiaajudar. Ele é um fazendeiro bem-sucedido e é o dono do único posto de combustível queexiste na cidade. Mas sempre soube que nunca poderia contar com ele.

Quando cheguei a Goiatins, logo comecei a procurar trabalho. Fui convidada para daraula no Instituto Educacional Turminha Feliz. Trabalhei lá como professora o ano todo de1998. No final de 1998, eu tentei novamente o vestibular em Araguaína/TO, na UNITINS,mais uma vez não passei. Em 1999, eu não quis mais continuar dando aulas, recebi nesseperíodo o convite feito pelo Secretário da Administração da Prefeitura para trabalhar naárea de informática. Em junho de 1999 me inscrevi novamente no vestibular, fiz minhainscrição para Pedagogia, pois era um curso de custos mais acessível, só que dessa vez eraem uma faculdade particular, em Araguaína, passei, mas pensei logo, “o que fazer agora?”

Trabalhei na Prefeitura até julho de 1999, nesse período fui morar em Colinas nova-mente com a minha tia Arely. Colinas fica a 100 km de Araguaína, aí eu poderia morar emColinas e estudar em Araguaína. Diante dessa situação, meu pai me ajudou a pagar a minhamatrícula na faculdade e ajudaria até eu conseguir um trabalho que pudesse arcar com asdespesas. Meu pai só me ajudou depois de muita insistência da minha avó. Estudei só até ofim do ano de 1999, pois não conseguia trabalho e não dava conta de pagar a mensalidadeque já estava em atraso. Meu pai não queria pagar as mensalidades. Sei que essa atitude delesempre se deu pelo fato da minha madrasta manipulá-lo para que ele não me ajudasse. Elaé muito ambiciosa e quer tudo só para ela e minhas outras irmãs, nunca gostou de mim,apesar de ter se casado com ele sabendo da minha existência.

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Parei de estudar e fiquei em Colinas até julho de 2000. Aí, mais uma vez, eu volteipara Goiânia com a cara e a coragem como se diz. Fui tentar a vida! Fiquei morando “defavor” na casa da dona Aparecida até quando eu conseguisse um trabalho que pudesse memanter. Fiquei morando lá uns três meses, depois fui morar com uma colega, onde dividía-mos as despesas. Trabalhei como recepcionista, garçonete, atendente de telemarketing emuma escola de inglês, onde cheguei ao cargo de supervisora de marketing.

Em abril de 2002, dei uma avaliada na minha vida durante aqueles quase 2 anos emGoiânia e concluí que não estava satisfeita com os resultados na minha vida pessoal eprofissional: não estava estudando e não via perspectiva de fazer um curso superior. Maiode 2002, eu resolvi voltar para Goiatins, um dos motivos que me levou a tomar essa decisãofoi o fato de minha avó estar sozinha e adoecendo com freqüência.

A grande vitóriaFoi em novembro de 2003 que minha tia Anady, que já estava morando em Palmas-

TO, me ligou e me incentivou a me inscrever no vestibular na UFT, que por sinal foi em2004 que a UFT se consolidou como instituição federal, antes era UNITINS, FundaçãoUniversidade do Tocantins. Inscrevi-me e fui para Palmas no dia 18 de janeiro de 2004, jáfui decidida a ficar lá passando ou não. Tentaria arranjar boas oportunidades de trabalho eestudar de alguma forma.

A prova do vestibular foi logo em seguida, dia 23. Fiquei feliz porque achei a provafácil: uma voz no meu interior me dizia que eu iria passar. Chegou o dia do resultado dovestibular e fui cedo para universidade, não tive coragem de comprar o jornal. Quase nãoconsegui me aproximar das listas afixadas nas paredes, tinha muita gente, mas com muitadificuldade eu consegui me aproximar da lista e pude ver o meu nome. Não queria acreditarnaquilo que os meus olhos viam, fiquei quase em estado de choque, depois de algum tempoeu me recuperei e gritava em voz alta “EU PASSEI, PASSEI, PASSEI”. Peguei o celular ecomecei a ligar para todas as pessoas que eu considerava importante para mim.

A universidade e o ConexõesFoi e está sendo um período de lutas. Com uns 3 meses que estava aqui em Palmas na

casa da minha tia Anady, eu fui convidada por uns amigos a ir morar com eles, minha relaçãocom minha tia não estava boa. Mas tive muitos problemas, dentre eles, não tinha comocontribuir com as despesas no quesito (R$). O jeito foi contribuir com serviços domésticos.Minha avó me ajudava com R$ 100,00 ao mês. Esse dinheiro era para minhas despesas nafaculdade (livros, xerox, passe estudantil, lanche e outros) e também produtos para higienepessoal. Para complementar a minha renda eu comecei a vender catálogos (Avon, Demilus,Hermes) e cosméticos, faço isso até hoje. Depois de muitos problemas com esses amigos, euresolvi morar sozinha. Foi muito difícil no começo, passei muitas dificuldades e necessida-des, mas graças a Deus e com muita coragem eu superei os obstáculos. Hoje posso dizer quetudo está mais calmo.

Estou aqui hoje na Universidade Federal do Tocantins, antes tão distante, sendoformada para ser uma cientista da educação e docente. Esta não é só uma escolha profissio-nal, como também uma posição de luta perante a vida e as injustiças sociais. Acredito econcordo com Paulo Freire, quando ele diz que “educar é um ato político”. Diante de todasas minhas dificuldades, e da maioria da população brasileira empobrecida, tenho a necessi-

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dade e obrigação de fazer algo para amenizar essa situação. O meu caminho até aqui foilongo e cheio de obstáculos como vocês já puderam perceber, ainda tenho obstáculos avencer, como me manter na universidade, pois dependo só de mim.

Desde que ingressei no ambiente acadêmico, procurei me envolver em atividades depesquisa, no intuito de seguir a carreira acadêmica. Não tive muito sucesso em minhastentativas, porém, continuei e continuo tentando. Hoje, estou no 6º semestre e a desejadaoportunidade para pesquisar só veio aparecer no final do 4º semestre com o ProgramaConexões de Saberes.

Estou muito satisfeita e empolgada com esse Programa. Espero absorver o que puderdessa oportunidade. Com o Conexões de Saberes, eu já fiz muitos amigos e conheci pessoascom histórias de vida magníficas e que passaram por grandes dificuldades também parachegar até aqui. A minha missão hoje, eu acredito que seja, fomentar em outros jovens odesejo de ingresso na universidade, fazendo com que deixem de lado a baixa auto-estimaque os impede de visualizar o ingresso na faculdade. Se o meu maior desafio antes era entrar,hoje é permanecer nessa instituição que me mostra o tempo todo que não foi feita para mim.Seja pelos seus campos descentralizados ou por seu corpo docente que não entende ou nãoquer entender que viemos de escolas públicas e, por isso, não vimos em nossas aulas deportuguês como fazer uma resenha, seguindo as normas da ABNT. E mais, de que precisa-mos trabalhar para nos manter dentro dela. Ao escrever este memorial, procurei contar aminha história de forma leve e com bom humor. Tentei registrar aqui o que foi mais impor-tante na minha caminhada. A minha intenção é mostrar que mesmo os momentos difíceispodem ser contados de forma alegre, pois acredito que é dessa forma que devemos contar osmomentos tristes pelos quais passamos. Assim, me despeço deste memorial, não esquecen-do de agradecer a minha avó, Leonides, e a todos que acreditaram e me ajudaram nessatrajetória.

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Sempre contei trechos e passagens da minha vida para várias pessoas, mas nuncapensei que um dia ela se tornaria capítulo de um livro em que poderei contá-la por comple-to. Nas minhas conversas sempre gostava de ressaltar muito a força e a coragem de minhamãe, pessoa que tenho imensa admiração e orgulho. Vamos lá... era uma vez...

E como todo povo da roça, meus pais se casaram cedo. Minha mãe com 17 anos, meupai com pouco mais de 20. Os dois nunca tiveram muito estudo, pois com o casamentoprecoce e os filhos ainda na adolescência era difícil de prosseguir na vida escolar. Isso fezcom que eles quisessem uma vida diferente para seus três filhos.

Iniciei a minha vida escolar aos 3 anos de idade, ainda no maternal. Lembro-me commuita clareza daquele tempo, chorava bastante e não queria saber de escola, mas meus pais,que não tiveram essa oportunidade, queriam insistentemente que eu começasse a estudar oquanto antes. Foi assim com todos os meus irmãos. Depois do maternal, vieram os Jardins I, II,e III. Após toda essa jornada eu já estava bem acostumada com a escola e também já estavacrescidinha, era hora de mudar de escola e de série. Nessa nova escola comecei a alfabetiza-ção. Foi onde eu conheci uma professora que se tornou minha grande paixão na época, TiaAuxiliadora, era como a chamávamos. Nunca me esqueço daquela pessoa doce, carinhosa,atenciosa, paciente. Me apeguei tanto a ela que não suportava a idéia de mudar de série paranão ter que mudar de professora. Passaram-se os anos e continuei a estudar nesta escola até asegunda série. Esses foram os únicos anos que estudei em escola particular.

O ano era 1993 e nossa família teve que mudar de casa e de bairro, conseqüentementemudamos de escola. E aí começava toda uma fase de adaptação, novos colegas, novosprofessores, novo endereço. Aos poucos, fomos nos adaptando aquele ambiente, gosteimuito da escola e fiz muitas amizades.

No ano seguinte, 1994, a nossa vida mudaria completamente, pois mudamos paraoutra cidade, precisamente para Redenção no Pará. Meu pai, que não tinha serviço fixo etrabalhava como camelô na época, estava em condições financeiras muito difíceis. A con-vite de um irmão, resolveu mudar para aquela cidade. Essa mudança para mim e meusirmãos foi um choque. Meu Pai, que só estudou até a 8ª série, e minha mãe, que tinha feitoparte do segundo grau, não tinham muitas opções de emprego. O jeito era se virar com o queaparecia, então os dois resolveram trabalhar num “pit dog”, vendendo lanches preparadosna hora. Eu, minha irmã e meu irmão, íamos iniciar nossa fase de adaptação. Mas agora nãosó com a escola, mas também com a cultura daquele povo. Tudo para gente era muito novo,pois nunca havíamos saído da nossa terra natal. Começamos a estudar e tudo era muitoconfuso, até que nos acostumamos.

Karliana Silva Oliveira*

Memorial

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT,

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Enquanto isso, meus pais davam duro no “pit dog”. Nossa ajuda era fundamental. Eue minha irmã mais velha ficávamos acordadas até tarde ajudando nossos pais, o grandemovimento do “lanche” era à noite. Foi aí que começaram as dificuldades para ir à escola.Ficar acordada até altas horas, ajudando meus pais, dificultava muito acordar cedo para ir àaula e por pouco não ficamos de recuperação. Mas graças ao empenho da minha mãe, conse-guimos vagas para mudar de turno e assim recuperar as notas e passar naquele semestre.

E com toda essa questão de ficarmos acordados até tarde e quase ficarmos reprovados,meus pais decidiram abandonar aquela atividade, que estava trazendo muitos transtornospara nós no âmbito escolar e na vida pessoal também.

Em julho deste mesmo ano de 1994, o casamento dos meus pais, que já não ia tão bem,chega ao fim. Minha mãe, aquela mulher que aparentava tão frágil e insegura, toma aseguinte decisão: sair de casa e levar seus três filhos. Ela que se casou tão nova e não tinhaformação escolar completa e que depois de casada não teve a oportunidade de estudar,resolveu encarar o mundo de frente e ir à luta.

Então voltamos para nossa cidade natal Imperatriz. A separação dos meus pais paramim foi muito difícil. No começo, eu não conseguia assimilar bem o que se passava e tudoficou muito confuso. Minha mãe tentava nos explicar e nos confortar. Afinal ainda éramosmuito crianças para entender. Estávamos de volta para começarmos tudo do zero. Isso foimuito marcante para mim, pois meu pai não nos viu partir, ele viajava e minha mãe viunaquele momento a oportunidade de dar um novo sentido a sua vida. Meu pai era muitomachista e não permitia que minha mãe estudasse e nem trabalhasse. Aquela situação a faziamuito infeliz, mas mesmo meu pai agindo dessa maneira minha mãe nunca desistiu detentar. E ao longo do período em que ficou casada procurou fazer alguns cursos como:manicura, depiladora, isso já prevendo uma eventual necessidade no futuro.

E graças a essa perseverança e força que conseguiu nos manter quando voltamos paraImperatriz. Estávamos na pior, não tínhamos nada, apenas algumas peças de roupas. O apoiodos parentes e amigos foi fundamental naquele momento. Como estávamos de férias, ficamosuns dias na casa da minha bisavó, numa cidadezinha próxima, até que minha mãe arrumasseum cantinho para gente morar. Faltando poucos dias para iniciar as aulas, minha mãe conse-guiu arrumar um emprego num salão de beleza de uma amiga, onde ela trabalhava de manicu-ra e depiladora, conseguiu também alugar uma quitinete e nos matricular na escola.

Essa já era a quinta escola que eu estudava e nem precisa falar, pois o início deadaptação foi terrível igual a todos os outros. Estudei nessa escola durante todo o segundosemestre de 1994. E a nossa situação financeira estava muito difícil, minha mãe tinha quenos sustentar sozinha, não tínhamos nada: nem camas e nem geladeira, vivíamos com o quedava. Vendo essa situação que minha mãe atravessava no momento, eu e meu irmão maisnovo resolvemos ir morar com meu pai, até que a situação de minha mãe melhorasse. Issoaconteceu em 1995. Meu pai já havia se mudado de cidade e de Estado novamente, dessavez ele foi para Porto Alegre do Norte-MT. Ele já estava morando com outra mulher, com oseu irmão e família.

Eu sofri com o choque cultural mais uma vez, eu estava com 11 anos de idade e não foinada fácil aqueles tempos que eu passei lá sem a presença da minha mãe. Meu pai resolveutrabalhar novamente como camelô vendendo roupas. Ele tinha seu irmão como sócio que oajudava com as vendas. Morávamos as duas famílias na mesma casa, o que era bastantecomplicado, pois o espaço era muito pequeno. Na escola, as pessoas me olhavam torto e

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riam do meu jeito de falar, eu bastante tímida quase não fiz amizades, eu também não procureime apegar muito, sabia que no ano seguinte eu voltaria para a casa da minha querida mãe.

No ano seguinte, 1996, eu e meu irmão retornamos para casa de minha mãe, que nosesperava ansiosa. E pude perceber que naquele momento minha mãe estava feliz, já estavatrabalhando e aos poucos conseguindo se recuperar.

Mais uma vez vou para um novo colégio. Nessa escola eu consegui me fixar por 3anos. Estudei lá até a 8ª série, pois lá não tinha o segundo grau. Durante o tempo em quefiquei estudando, pude descobrir a emoção de reencontrar as amigas, depois de longasférias, reencontrar os professores, fiz amizades inesquecíveis e usufruí de tudo que aquelaescola podia me oferecer. Nela pude consolidar a minha base escolar. Terminei a 8ª série eprecisava encontrar um novo colégio onde pudesse cursar o 2° grau. Foi aí que me inscrevipara o processo seletivo do CEFET-MA que era concorridíssimo, pois todos os alunos darede pública e particular almejavam uma vaga naquela escola. Depois de muitas horas dededicação aos estudos, lá estava meu nome na lista dos aprovados, quase não acreditei,minha mãe ficou muito orgulhosa com aquela conquista.

E só para não perder a conta, essa já era a oitava escola que eu estudava, por sinal os3 anos de Ensino Médio foram os melhores para mim. Eu adorava a escola que estudava,tinha ótimos professores e fiz amizades eternas. Foi nessa escola que despertei muito avontade de ingressar numa faculdade, pois todos os meus professores davam aulas emuniversidades. Eles nos incentivavam muito a buscar algo mais além. A escola era extrema-mente organizada, tinha um ambiente muito acolhedor. Eu tinha um imenso prazer de ir àaula todos os dias, até mesmo quando estava doente.

Assim que terminei o ensino médio, passei a ajudar minha mãe no salão, eu fazia detudo um pouco. Ela estava bastante empolgada, pelos estudos e pelo fato de estar lheajudando no salão. Foi quando resolvi me inscrever em dois vestibulares: um na minhacidade, outro no Tocantins. Fiz o primeiro processo seletivo em Imperatriz mesmo, mas nãotive êxito. Minha mãe sempre me deu bastante apoio para continuar tentando, mas ela nãosuportava a idéia de eu ter que ir embora para outra cidade.

Preparei-me durante 6 meses num cursinho popular que ficava próximo da minhacasa, onde eu tinha aula todas as noites.

Enfim, chega o grande dia da prova! Graças a Deus, correu tudo muito bem. Saí daprova bastante confiante e otimista. Chegando em casa contei para minha mãe que euestava muito empolgada e certa do meu sucesso. Ela me olhou com um olhar de tristeza edisse: “infelizmente você não poderá estudar em Palmas se você passar no vestibular, poisandei fazendo as contas e não terei condições de lhe sustentar naquela capital”. Naquelemomento, não tive outra alternativa a não ser concordar com ela.

Quando chegou o dia do resultado das provas, preferi não olhar. Passaram-se os dias ede repente o telefone de minha casa toca, é a sobrinha do meu padrasto avisando que euhavia passado na segunda chamada do vestibular da UFT. E havia um problema, eu precisa-va viajar naquele mesmo dia, porque no dia seguinte era o último dia de matrícula. Eufiquei muito eufórica e precisava dar a noticia para minha mãe. Ela não quis acreditar. Maseu estava bastante decidida e queria ir de qualquer jeito, não poderia desperdiçar aquelaoportunidade, minha mãe não sabia o que fazer e nem o que dizer.

Quando minha mãe chegou em casa eu já estava com as malas praticamente prontas.Ela não tinha mais o que fazer a não ser me desejar sorte, nessa nova caminhada. Chegando

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a Palmas, fui morar com a sobrinha do meu padrasto e mais 3 pessoas, demorei um tempo atéme acostumar com aquela nova vida.

Com o início das aulas na UFT, me sentia bastante desconfortável, não conseguia meenturmar e morria de medo dos famosos “trotes”. Sofri muito de saudades da minha famíliae da minha casa. Agora eu teria que caminhar com minhas próprias pernas, as responsabili-dades eram maiores.

Depois de 6 meses na faculdade, a minha mãe estava com muitas dificuldades de memandar o dinheiro das despesas mensais. E eu que havia optado por um curso integral nãopodia trabalhar para ajudar nas contas. Mas minha mãe, que nunca foi de desistir, não queriaque eu parasse de estudar e fez o possível e o impossível para que eu continuasse estudando,mesmo com todas as dificuldades que enfrentávamos.

No ano de 2003, minha mãe recebeu uma proposta para trabalhar fora do país, elaficou bastante indecisa quanto a essa proposta, pois poderia ter um melhor salário e poderiadar uma vida melhor para seus filhos e eu não precisaria trancar a faculdade. Por outro lado,ficaria longe de seus filhos por algum tempo. Ela resolveu levar o sonho adiante e foi embusca de dias melhores para nossa família. Chegando em Portugal, as coisas não eram tãofáceis quanto pareciam, minha mãe, como já foi com uma proposta de emprego certo na áreaem que ela sempre trabalhou, logo começou a trabalhar. Mas o salário não era lá aquelamaravilha, e ela já não podia mais desistir, pois havia contraído uma enorme dívida parafazer essa viagem. O dia de sua partida foi o pior dia da minha vida, sofri muito. O únicocontato era apenas por telefone e não era sempre, pois as ligações custavam muito caro.Foram se passando os anos. Meu irmão e minha irmã vieram morar comigo em Palmas,minha irmã havia ficado desempregada e para diminuir as despesas minha mãe preferiu quemorássemos todos juntos.

E todos os anos sempre a mesma promessa de minha mãe voltar, mas nunca aconteceu,pois ela não conseguia juntar dinheiro suficiente para vir embora, as despesas dela e a nossaaqui consumiam todo o seu salário. E a volta sempre ficava adiada para o ano seguinte.

No ano de 2006 minha mãe ficou bastante doente da coluna, devido trabalhar muitashoras seguidas na mesmo posição e ficou algum tempo sem trabalhar e conseqüentementesem receber. Foi aí que tive que arrumar um emprego, mas com um curso integral era difícilde trabalhar em qualquer lugar. Através de uma amiga fiquei sabendo que a Universidadeestava precisando de estagiários para trabalhar. Deixei meu currículo e alguns dias depoisfui chamada para começar no emprego. “Deus ouviu minhas preces.”

Trabalhando dentro da universidade seria mais fácil de conciliar os horários das aulascom o trabalho. E tudo parecia conspirar a meu favor, os horários do serviço encaixaram-seperfeitamente nos meus horários vagos de aula. Fiquei trabalhando por 6 meses comosecretária numa coordenação de curso e a partir daquele emprego dentro da universidadepude perceber o verdadeiro sentido de estar lá dentro. Passei a ter mais contato com profes-sores de diversos cursos e a me interessar mais por assuntos da universidade que não tinhaconhecimento.

O meu estágio de 6 meses já estava chegando ao fim, quando fui informada de que ocontrato se renovaria. Trabalhar dentro da universidade para mim era um privilégio, mas euprecisava ir mais longe. Foi quando ouvi falar do Programa Conexões de Saberes. Fiqueibastante interessada, pois sempre quis participar de atividades que pudessem contribuir

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para minha formação. Efetuei minha inscrição e dias depois eu estava dentre os bolsistasselecionados. Abandonei o meu estágio e passei a dedicar-me exclusivamente ao ProgramaConexões de Saberes, que se encontra em sua fase inicial dentro da UFT, mas que me enchede boas expectativas não só para o meu futuro profissional, mas para a vida.

Hoje participar do Conexões foi a melhor coisa que me aconteceu nesses 4 anos deuniversidade, pois já não tinha mais esperanças de participar de projetos de extensão. Esteé apenas o início de uma longa caminhada do Conexões e da universidade. Acredito que apartir desse, outros surgirão para contribuir com a permanência de muitos alunos.

E agora, chegando na reta final para concluir o meu curso, posso sonhar e ter a certezade um reencontro com a pessoa mais importante da minha vida, minha querida mãe. Ela mefez acreditar que tudo isso seria possível.

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Era novembro de 1987, em Itacajá, uma pequena cidade do interior do Tocantins, quenascia Marcela Ramos Alves. Sou de uma família bastante humilde. Meu pai, Mariano, élavrador e só teve a oportunidade de estudar até a 2ª série do Ensino Fundamental. Minhamãe, Madalena, é professora e atualmente faz o curso telepresencial de Pedagogia. Tenhomais duas irmãs, Marcelina e Marcilene.

Morei desde que nasci em um povoado chamado Obrigado, onde meus pais vivem atéhoje. Com 4 anos de idade, comecei a estudar, era a fase da alfabetização. Antes, quandoainda não tinha um local fixo, a escola funcionava na varanda da minha casa. Minha mãeera a professora e dava aulas para todas as turmas, que nunca tinham mais que 15 alunoscada. Eu estava sempre no meio dos alunos, por isso aquele meio jamais me foi estranho.Ainda com 4 anos, aprendi a ler e a escrever, porém minha mãe exigiu que eu repetisse aalfabetização, alegando que eu era muito pequena para fazer a 1ª série.

Assim, os anos se passaram, um ano a professora era a minha mãe, no seguinte, minhatia. Tinha dias que a merenda que o município mandava acabava e todos os alunos sereuniam no intervalo para comer o que traziam de casa. Lembro–me de que havia umapergunta que sempre fazíamos uns para os outros: “qual o teu lanche hoje?”

Fui sempre uma boa aluna, tirava boas notas, era sapeca como toda criança, massempre gostei de estudar, principalmente ler. Foi uma barra quando terminei a 4ª série, poislá na fazenda já não tinha como estudar, teria que mudar para cidade. Minha mãe, então,procurou alguma família na cidade que me acolhesse na sua casa. Graças a Deus ela encon-trou. Então eu fui morar na cidade.

Foi muito difícil esta mudança, na verdade a vida que as pessoas da cidade levavamera bem diferente da vida que eu estava acostumada a levar na zona rural, inicialmente, oque mais gostei foi de assistir a TV e brincar com as novas amiguinhas.

Lembro–me muito bem do meu primeiro dia de aula, 10 anos, 5ª série. Sentia medo,não sei de quê, não falava quase nada, não conhecia ninguém. E tinha uma coisa estranha:a cada 45 minutos trocava de professor.

Com o passar do tempo, me adaptei a nova rotina e continuei com as boas notas.Não era muito de estudar em casa, mas prestava atenção nas aulas e fazia todos ostrabalhos. Jamais me esqueço da Escola Estadual Almeida Sardinha, do professor deMatemática, Deusdará, da professora de Português, Neyde, enfim de todos os professo-res, colegas e amigos.

Marcela Ramos Alves*

Lutas e vitórias

* Graduanda em Comunicação Social pela UFT.

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Assim, três anos se passaram. Como na minha escola só tinha 8ª série à noite, tive queser transferida para o Colégio Estadual de Itacajá, para estudar pela manhã. Minha turma eraconsiderada a mais baderneira do colégio, mas continuei com meu bom desempenho. Re-cordo-me de que estudava de manhã e à tarde cuidava de criança.

Quando o ano de 2002 começou, surgiu a proposta de ir morar em Brasilândia doTocantins, uma cidade ainda menor que Itacajá. Fui para lá e fiz todo o meu ensino médio.Estudava no Colégio Estadual Sebastião Rodrigues Sales, o único colégio de ensinomédio da cidade.

Eu tinha 14 anos e fazia o 1º ano do ensino médio e nenhum grande sonho. Erabastante envolvida com a escola, estudava à noite, mas todos os dias ia ao colégio em outrohorário ou na casa da Wellyta, uma amiga, para fazer algum trabalho ou exercício de casa ousomente para conversar. Participava de todo evento da escola e da igreja.

Eu me lembro muito bem das aulas de Noções de Filosofia e Sociologia com aprofessora Darlene, Matemática com Lauro César, Português e Inglês com Almerinda, asbroncas da diretora Sandra, de cada professor e de cada colega que tive. Assim, passou o1º o 2º e já findava o 3º ano do ensino médio e eu nem imaginava que rumo tomaria aminha vida no ano seguinte.

Fazia plano e mais plano com a Wellyta de morarmos as duas na casa dela em Palmas,isso é claro, depois de passarmos no Vestibular 2005 da UFT, mas nem pensava que cursofazer e nem como me manteria lá.

Passei o ensino médio inteiro ouvindo falar que aluno oriundo de escola pública, semcursinho, não passava no vestibular de universidade federal. Fiz a prova do Enem, obtiveuma nota que ainda dava para concorrer a uma vaga em uma faculdade particular peloProuni, mas a falta de informação era tão grande que nem fiz inscrição. Não entendi queaquela poderia ser a minha chance de fazer um curso superior, uma vez que acreditava quenão poderia passar no vestibular da UFT. Também tinha plena consciência de que minhafamília com um salário de 450 reais mensal jamais poderia pagar uma faculdade para mim.

Peguei o edital do vestibular 2005 da UFT e procurei entre os cursos do Campus dePalmas qual mais me interessava. Optei por Comunicação Social, habilitação em jornalis-mo. Considerei para essa escolha meu gosto pela área de lingüística, fiz a inscrição já naprorrogação. Ah, quando peguei o edital, queria fazer letras, mas teria que escolher umcurso que tivesse em Palmas, pois poderia morar na casa da minha amiga, porque pagaraluguel estava fora de cogitação.

Em novembro de 2004, comecei a trabalhar como repositora em um supermercado deBrasilândia e estudava à noite. Estudar para prova do Vestibular nem passava pela minhacabeça. Depois que as aulas acabaram, em vez de aproveitar para me dedicar ao vestibular,saía todo dia para rua. Uma vez ou outra dava uma olhada nos livros e estudava um poucode Português. Não me preocupava. Nem sei o que eu pensava da vida.

Fiz a prova e quando recebi a notícia que tinha passado nem acreditei. Só então caí emmim. Fiquei muito feliz e ao mesmo tempo triste. Era angustiante pensar que eu que semprepensei que não passaria no vestibular tinha passado. Casa para morar eu tinha, aliás minhaamiga tem, mas ninguém vive somente de teto. Eu dividiria as despesas da casa com ela,teria que pagar passagem do coletivo para ir para faculdade e fazer as apostilas. Não viacomo isso seria possível. Ah! Como chorei! Conversei com minha mãe e então começava osufoco: tirar do pouco salário que ela recebia uma parte para minhas despesas aqui.

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Em 2005 minhas aulas começaram. Nova turma, nova cidade, tudo novo. Inicialmen-te, não tinha noção do quanto seria difícil aquele começo, sentia muita falta de conheci-mento, não daquele de sala de aula, mas de conhecimento de mundo, coisas que se aprendeviajando, vivendo, navegando na internet, algo bem distante de mim até aquele momento.

Por várias vezes deixei de fazer algum trabalho porque não sabia como acessar ainternet para fazer as pesquisas, ficava sempre calada, tinha medo de dar minha opinião e aspessoas sorrirem de mim. Foi então que conheci a realidade daqueles que tiram notas bai-xas. Nunca mais fui aquela ótima aluna.

Cresci acreditando que era uma pessoa com facilidade para aprender, tirava boasnotas, me destacava em sala de aula. Mas quando cheguei à faculdade, fui obrigada aencarar a realidade. Eu me sentia inferior diante dos colegas que estudaram em escolasparticulares ou fizeram cursinhos, sentia-me a pior das alunas, aquela menina que saiu dointerior e o interior não saiu dela. Incomodava-me a idéia de achar que os outros poderiampensar que eu estava ali por uma tremenda sorte.

Alguns colegas deram-me muita força, me ensinaram o básico de internet e aíentão comecei a andar com as próprias pernas. Passei momentos difíceis quanto à faltade um conhecimento enciclopédico, crítico, cultural mais intelectualizado, do mundo.Chorei muito, mas em momento algum essas dificuldades podem ser comparadas àsdificuldades financeiras, as quais enfrento até hoje, mesmo depois do Programa Cone-xões de Saberes. (Lágrimas)

Apesar de não ser o curso que sempre sonhei, na verdade nunca sonhei com cursoalgum, Comunicação Social hoje é a minha paixão. Por isso procuro levar a sério porquegosto muito.

Quando minha colega me falou do Programa Conexões de Saberes me inscrevi e fuiselecionada. Ah, como fiquei feliz! Era como se eu tivesse me encontrado na universidade,pois ali, além da bolsa de 300 reais todos os meses, eu poderia trabalhar com a comunidade,fazer o que sempre gostei.

Tenho uma certeza: o Programa Conexões de Saberes tem me ensinado muito!

O rio atinge seus objetivos porque aprendeu a contornarobstáculos. Quo Vadis

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Marcelene Batista Cunha*

Rememorar minha trajetória não é tarefa fácil para mim que sempre fui uma pessoamuito reservada. Nasci no ano de 1984, após 12 anos de casamento de meus pais que já nãoesperavam mais ter filhos. Portanto, sou a terceira filha. Fruto do inesperado, nasci do ventreda mulher guerreira que tem nome de Deusa por ser sinônimo de coragem e criação, fez dasdificuldades fortaleza.

Quando tinha quatro anos de idade, ganhei a minha primeira cartilha do seu Bejamim,tinha páginas amareladas, na capa, uma típica normalista, saia de pregas, uma vara na mão,um quadro negro escrito as letras iniciais do alfabeto. Com ajuda da minha mãe, aprendi aler antes mesmo de ir à escola. Na época, morávamos na fazenda Serra Pelada, próxima dacidade de Novo Acordo, hoje, com menos de quatro mil habitantes.

Em função dos estudos dos meus irmãos, alternávamos a nossa estadia entre a nossacasa na cidade e a roça nos finais de semana. No ano de 1989, fui pela primeira vez à escolaEstadual Pedro Macedo. Mãe me levou juntamente com a Vânia e o Paulinho, amigos comquem partilhei as delícias da infância. A escola era próxima da minha casa. No pré-escolar,minha professora se chamava Amália. Estudei lá por três anos, já estava na segunda sériequando minha mãe me transferiu para o colégio Estadual Dom Pedro I, onde estudei atéconcluir o ensino médio.

Quando fiz sete anos, nasce meu irmão Ricarte. Na mesma época, meu pai vende a terrae abre um bar. Foi de lá que retirou o sustento para nós estudarmos, o que não mudou muitonossas vidas. Tudo era simples e não rendia muito. Em 1994, nasce a minha irmã Sâmara, nomesmo período a minha irmã Marlene se casa. Então, eu precisei assumir algumas responsa-bilidades como, cuidar da casa dos meus irmãos e auxiliar no bar. Tarefas que pareciamdifíceis para uma criança.

No boteco, um ambiente tipicamente masculino, tive que criar mecanismo de autodefesa e me tornar a singular menina que precisava auxiliar no sustento da família. Achoque lá adquiri as primeiras idéias de eqüidade de gênero.

Foi por volta dos treze anos, quando me infiltrei nos movimentos sociais. Apesar dapouca idade era muito madura e apresentava uma estatura de adulta. A igreja me possibili-tou uma experiência muito boa através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e muitodos valores, das ações. Enfim, boa parte do que eu sou hoje foi graças a esses trabalhoscomunitários, orientados pelas irmãs Elaine e Eronice.

O relógio de Deus

* Graduanda em Pedagogia pela UFT.

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Outra etapa que vale a pena lembrar foi a do ensino médio, período muito especial.O colégio era tudo, não pelas aulas, mas pela diversão de estar com os amigos que maispareciam irmãos. Éramos uma turma bem diversificada, as aulas eram à noite, pois nãohavia Ensino Médio diurno, tinha muitos sonhos e inseguranças. Foi também neste pe-ríodo que minha mãe ficou doente e passamos por muitas dificuldades, por falta de recursospara fazer o tratamento.

Apesar das barreiras, considero que foi uma etapa de muitas aprendizagens. Me des-prendi do egoísmo natural da adolescência e fortaleci meus laços com a minha família, domesmo modo que aprendi a reconhecer nas pessoas suas qualidades e valorizá-las, o quedepois foi fundamental para minhas relações inter-pessoais.

No final de 2001, concluí o ensino médio e prestei o meu primeiro vestibular paraComunicação Social. Aliás, meu apelido era “repórter” no ensino médio, pois propagavaque seria jornalista. Confesso que falava muito, o que resultou em várias expulsões dasaulas de matemática, as quais detestava muito. Então, aproveitava para conversar com meusamigos.

Claro que não passei, chorei muito e recordo das palavras do meu pai “espera minhafilha, tudo acontece no tempo certo quando Deus quer”. Talvez ele tivesse razão, o que eunão compreendia porque o tempo de Deus não era permitido para mim. Inconformada como relógio de Deus que permite e justifica as desigualdades e a exclusão, fui trabalhar emuma farmácia.

No final do ano seguinte, lá vou eu de novo fazer vestibular. Dessa vez, para História.Mais uma vez o relógio de Deus não me permitiu passar. Decidi me mudar para Palmas. Foino dia 6 de janeiro de 2003 que me mudei, e “como mudei”. Foram cinco vezes em seismeses; um mês na casa de cada parente. Tinha dificuldades de me adaptar, eu acho.

Tive sorte e arrumei um emprego em uma distribuidora de medicamentos. Era a únicamenina no meu departamento, o que resultava em piadas machistas dos meus colegas.

No mês de julho de 2003, abriram as inscrições para o vestibular da UNITINS, nãotinha dinheiro para pagar minha inscrição e só fiz por insistência da minha prima e de umamigo do trabalho que me emprestou o dinheiro para pagar a inscrição. Fui muito desani-mada, estava enfrentando dificuldades financeiras e de me adaptar a nova cidade.

Escrevi-me para o curso Normal Superior, era o menos concorrido e tinha cansado deser “anormal e inferior”. No dia da prova, estava calma, mas achava improvável passar.Aquele era o último vestibular da UNITINS que estava em processo de federalização.

Quando saiu o resultado eu não fui olhar. Só soube do resultado no outro dia, quandoestava no meu trabalho e os meus colegas me avisaram. Olhei e não acreditava no que via natela do computador. Corri para comprar um jornal. Lá estava meu nome, só então liguei parameu pai. Foi muito legal dar a ele a notícia da minha aprovação. Começava ali outroproblema, o curso era vespertino e eu não podia deixar o trabalho. O meu pai mais uma vezprofetizava: “faça a matrícula Deus providenciará tudo”.

O meu tio cedeu uma casa para eu morar no Jardim Aureny IV, bairro periférico dePalmas. Lá vou eu viver da “providência Divina”, que aliás ensina muito. Nesse tempo,morando sozinha, aprendi a ser artesã, manicura, sacoleira, entre outras atividades para quecontinuasse estudando. O desemprego é angustiante e por várias vezes pensei em desistir.

Hoje estou no sétimo período de Pedagogia, que deixou de ser Normal Superior.Depois da federalização, a instituição unificou os cursos e mudou a nomenclatura.

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66 Caminhadas de universitários de origem popular

Leitores e leitoras, estes são alguns vestígios da garota da Joaquim Ribeiro, rua ondecresci. Rememoro minha história com lágrimas, risos, saudades, gratidão e esperança que orelógio de Deus permita a todos oriundos das camadas populares o acesso e a permanênciana universidade.

Fui agraciada por ter uma família que sempre me incentivou a estudar. Acho que dela,herdei a coragem e a perseverança de uma mulher além do seu tempo. Do meu pai, a sensatezde um homem sábio que sempre me orientou na busca pelo equilíbrio. Agradeço a todosque partilharam comigo nestes 22 anos de vida, em especial aos meus pais, irmãos, tios,primos e aos meus amigos: “anjos na terra”, como costumo chamá-los.

Por fim, faço minhas palavras de Paulo Freire: “Gosto de ser homem, de ser gente,porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, não é preestabelecida,que o meu destino não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilida-de não posso me eximir.”

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Não sei mais o que pensar, nem o que fazer. As pessoas sentem-se seguras dentro deseus mundos. Acreditam ter o direito de julgar o seu semelhante se achando superior. Então,me pergunto se esses “seres supremos” nunca erraram, ou se essas pessoas nunca pegaramemprestadas uma ou duas moedinhas do cofrinho da irmã ou de quem quer que seja, semque a mesma soubesse.

Ou ainda, ateou fogo na cerâmica do tio, porque viu uma moita seca ao lado dobarracão de madeira. E por ser louco demais e sempre andar com uma caixa de fósforos, nãohesitou e riscou um. E com todo cuidado para a chama não se apagar, protegendo-a dovento com a outra mão, agachou-se até o chão, aproximou a chama até o capim seco, e, derepente, sentiu no reflexo de seus olhos o calor do fogo se espalhando rapidamente por todaparte. Era uma criança agindo sem maldade, pois aquilo não lhe parecia causar nenhumdano a ninguém. Tratava-se de uma criança que não sabia, ou que achava que não sabia oque era certo ou errado. E como toda criança cresceu. Tornou-se um adulto. Comigo não foidiferente, mas fui condenado.

Passei por vários obstáculos na minha vida até que eu ingressasse na UniversidadeFederal do Tocantins (UFT).

“Um Memorial”, a coordenadora do Programa Conexões de Saberes disse. Eu sentimedo e insegurança, o que a história da minha vida poderia significar dentro do Programa,pois nunca fui exemplo de aluno durante todo o tempo em que freqüentei o ensino funda-mental e médio, não só na escola, mas também, fora dela. Me senti sempre um inútil.

Mas depois de ler “Caminhadas de universitários de origem popular”, vi que a minhahistória seria mais uma entre as várias histórias loucas que li. E que minha história era ahistória da minha vida, e que ela poderia sim ser compartilhada com outras pessoas. Tenta-rei mostrar um pouco de todos os meus momentos, mas ressalto que tenho segredos queguardo de mim mesmo.

Nasci na cidade de Ourinhos, no interior do estado de São Paulo, às margens do rioParanapanema. Ourinhos é a cidade que faz divisa com o estado do Paraná. Lá, estudeidesde o parquinho até a sexta série do ensino fundamental. Em 1998, fui com minha famíliapara Porto Nacional-TO. Em 1999, me mudei para Palmas e cursei a oitava série. Logo, em2000 iniciei o primeiro ano do ensino médio. Até então a sala de aula não me empolgavamuito, mas não havia sido reprovado nem um ano.

No final do ano 2000, fui para Ourinhos visitar os parentes e passar o natal e o anonovo por lá, quando voltei em 2001, já no segundo ano do ensino médio, conheci umagarota por quem me apaixonei perdidamente. Foi a primeira paixão. Eu estava cego. Por

Marco Antonio Costa Junior*

Memorial

* Graduando em História pela UFT.

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isso, não me empenhei no colégio e acabei ficando de D.P em matemática. Em junho de2001, ficamos sabendo que seríamos pais. Eu estava empolgado e feliz, pois sempre fuimuito carente. Naquele momento, eu estava construindo uma família.

Consegui um trabalho em uma marmoraria, nos tornamos uma “típica família”. Eutrabalhava o dia todo e estudava durante a noite. Mas isso não deu muito certo. Concluí oano, mas estava certo de que não me rendeu nada. No início de 2002, consegui, através docolégio onde estudava, um estágio na Secretaria da Fazenda do Estado. Como era umestágio apenas, só trabalhava no período matutino. Logo, consegui um segundo empregodurante o período da tarde na biblioteca municipal. Em 10 de fevereiro de 2002, meu filhonasceu, mas o relacionamento entre a mãe dele e eu já não estava muito bem. Éramos muitojovens e não tínhamos vivido praticamente nada da vida, acabamos nos separando.

Com isso, minha vida ficou um pouco turbulenta. Larguei completamente meus estu-dos, me entreguei ao álcool e ao Rock’n’Roll. Não estava indo bem nem mesmo no traba-lho. Decidi, então, morar sozinho. Daí, caí na boemia. Não queria mais saber de outra coisa.Comecei a fazer tatuagens para levantar uma grana a mais. Eu estava me sentindo bem comaquele ritmo de vida. No final de 2002, havia terminado o contrato na secretaria e tambémna biblioteca. Resolvi me mudar para Ourinhos e mudar de vida.

Em Ourinhos, fui morar na casa da minha avó. Depois de uma semana, meu tio meconvidou para trabalhar com ele. Vendíamos churros em um Fiorino branco, andávamospor todas as cidades da região. Em seguida, meu tio mudou-se para Sorocaba, no interior deSão Paulo. Todos os dias saíamos para aquela jornada nas cidades vizinhas. Conversáva-mos muito, pois estávamos o tempo todo dentro do Fiorino. Eram conversas longas e inter-mináveis, acabamos nos conhecendo demais, acho que éramos muito parecidos. Depois deum tempo, o trabalho já não estava dando certo.

Voltei para Palmas ainda em 2003. Mas não consegui permanecer por mais de 2 meses.Fui tentar novamente outra vida em outro lugar. Em dezembro, embarquei para Belo Hori-zonte-MG. Eu até tentei estudar nessa época, mas trabalhava o dia todo de ajudante em umaconstrução civil. Não tive coragem de encarar o colégio, foram tempos difíceis pra mim.Conheci muita gente em BH, e logo o álcool me atrapalhou novamente. Achei que eupoderia mudar essa situação. Resolvi parar de beber e ficar só no refrigerante. Permanecisem ingerir álcool por sete meses. Foi um bom tempo, pois fiquei mais saudável que onormal, mas aquela não era a vida que queria. Então, resolvi voltar para onde minha famíliase encontrava.

Retornando a Palmas, minha família me incentivou a retomar os estudos. Concluí oensino médio e fiz também um cursinho pré-vestibular. No final do ano prestei o vestibu-lar, não foi uma tarefa muito fácil, pois não sabia o que queria realmente fazer por todaminha vida. Fiz vários testes vocacionais e nada me agradava. Como gostava de RPG e játinha lido alguns livros sobre isso, percebi que as histórias que havia lido no jogo meempolgava muito, ia de histórias da mitologia grega até Atlântida. Resolvi prestar para ocurso de História.

O resultado saiu. E como todos já devem ter imaginado, eu passei. Minha vida mudoucompletamente. Hoje, sou acadêmico do curso de História, no campus de Porto Nacional, ebolsista do Programa Conexões de Saberes.

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A missão de escrever um memorial realmente é muito desafiadora. Falar sobre minhahistória para as pessoas que já me conhecem é fácil. Porém, falar essa mesma história paratanta gente, as quais nem mesmo conheço, isso sim é desafiador. Espero, sinceramente, quevocê, ao ler esse relato, possa saber que, por mais que tenhamos alguns obstáculos, serásempre possível lutar por nossos objetivos.

“Só sei que foi assim...”Falarei primeiro sobre minha família. Meus pais, Maria Luzanira e José de Arimatéia,

casaram-se em 1975. Ambos são maranhenses e vieram de famílias pobres. A mamãe é a sextafilha de uma família de sete irmãos. Já aos 12 anos de idade, quebrava coco babaçu para ajudarno sustento de sua família. O papai é o primeiro filho de uma família de dezesseis irmãos. Aos14 anos, foi para a cidade estudar, mas teve que voltar para a roça, a mando do meu avô, paratrabalhar na lavoura e ajudar a cuidar dos meus tios. Juntos, meus pais tiveram quatro filhos:Márcia, Aline, Leirson e a pessoa que vos escreve, Nádia, a caçula da turma.

De onde venho...

Era uma vez um lugarzinhono meio do nada... Toquinho

Nasci em 4 de dezembro de 1982. Igualmente a meus irmãos, nasci no Hospital SãoRafael, em Imperatriz do Maranhão. Um fato interessante marcou o início da minha vida: sefosse pela mamãe, eu me chamaria Larissa. Já o papai quis que eu me chamasse Nádia. Eassim foi feito. Meu pai queria homenagear a romena Nadia Comaneci, maior ginasta dahistória das Olimpíadas.

Vivemos até março de 1983 no Maranhão. Naquela época, havíamos saído de JoãoLisboa para morar em Imperatriz. Fomos então para Augustinópolis, no norte de Goiás. Eutinha apenas 3 meses de nascida. Minha mãe tinha uma irmã que já vivia naquela cidade.Lá, meus pais queriam construir uma vida nova.

Augustinópolis fica na região conhecida como Bico do Papagaio, famosa pelos confli-tos de terra na década de 80. Com a criação do Estado do Tocantins, em 1988, a cidade deixou

Nádia Sousa Santos*

“Só sei que foi assim...”

* Graduanda em Comunicação Social -Jornalismo pela UFT.

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de fazer parte do Goiás, passando a ser território tocantinense. Augustinópolis tinha apenassete meses de emancipação política quando chegamos por lá. Ou seja, é da minha idade.

Ganhamos uma casa antes de nos mudar. Moramos por um tempo naquela casa edepois meus pais a venderam. Fomos morar de aluguel e compramos outra casa, ondemoramos até o ano de 1999. No início, meu pai trabalhava como eletricista enquanto minhamãe cuidava do lar. Após um pequeno período, ela passou num concurso público do Estadoe começou a trabalhar como auxiliar de serviços gerais numa escola. O tempo passou eminha mãe foi aprovada em outro concurso, agora para professora. Nesse processo todo,minha mãe viajava para Araguatins, cidade próxima a Augustinópolis, para terminar osegundo grau.

Que saudade da minha infância...Tive uma infância muito marcante, regada a muitas brincadeiras. Não tive bonecas,

mas improvisava carrinhos de madeira com pneus feitos de lata de óleo. Além disso, brinca-va também de esconde-esconde, barra, queimada, elástico, locutora de rádio... tudo muitosimples, mas bastante enriquecedor.

A escola

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo... Toquinho

Meu primeiro contato com o mundo das letras foi cedo, até mesmo pela profissão damamãe. Certo dia, eu viajava de ônibus com minha mãe quando comecei a ler. Explico:enquanto passava na estrada, li, num muro, a sigla AABB! Pode até parecer pouco para umadulto, mas para mim, que tinha pouco mais de 2 anos de idade, foi o máximo!

Igualmente a minha irmã Aline, eu também entrei na escola aos 3 anos de idade. AMárcia e o Leirson começaram a estudar somente aos 5! Graças a Deus e a meus pais, tive aoportunidade de começar os estudos cedo. Não me recordo o nome de minha primeiraescola, mas sei que era próxima a minha casa. Eu era uma criança tímida e retraída e ficavanos cantos me escondendo com uma pasta e papel no rosto. Escondia-me também de umgaroto que sempre tentava me beijar e que eu nunca deixava. Dentre as poucas amigas queconheci no primeiro ano da escola, está a Fernanda, até hoje minha amiga.

Nessa fase de mudança, tive um contato muito forte com a Nelma, minha primeiraprofessora. Certo dia, ela não pôde ir à aula e pôs sua irmã para substituí-la. Eu tive vontadede ir ao banheiro, mas era muito calada e não falei para a professora. Ela simplesmente bateuem minha mão com uma palmatória! Isso me marcou profundamente. Chorei e meus paisforam até a escola reclamar.

Passou o ano e fui estudar no Jardim de Infância Leãozinho. Era a melhor escola deeducação infantil de Augustinópolis. Com uma bicicleta cargueira, meu pai levava meuirmão e eu para estudar. Foi um período muito bom. Lá, estudei os jardins I e II, mas àsvezes não me sentia muito bem porque os filhos das pessoas mais ricas da cidade tambémestudavam lá. De certa forma, eu me intimidava, mas aquilo não me impedia de conseguirnovos amigos.

Do jardim II, na Escola Leãozinho, entrei direto na 1ª série do 1º grau, hoje, ensinofundamental, no Colégio Estadual Manoel Vicente Souza. O ano era 1989 e eu já estava

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com 6 anos de idade. Novamente, outra mudança, pois o colégio também oferecia o 2º grau,hoje, ensino médio. Eram pessoas com enormes diferenças de idade. Lá eu estudei de 1989a 1999, ou seja, minha vida escolar foi praticamente toda no CEMVS.

Minha professora da 1ª série, a Tia Sílvia, era muito atenciosa comigo. Eu era muitoesforçada nas aulas. Quando chegava em casa, nem mesmo almoçava sem antes terminartodas as atividades escolares. A partir da 2ª série, passei a estudar com meu irmão. Semprefui mais dedicada nos estudos do que ele, por isso, quando chegamos ao final da 4ª série, elereprovou e eu adiantei meus estudos, mesmo sendo mais nova do que ele.

Não digo que nunca colei na escola, mas no início, não colava de jeito nenhum, atéporque eu tinha muito medo de algum professor me flagrar. Eu até quebrei uma janela devidro na cabeça de um garoto que tentava me passar cola... mas não foi propositalmente!

Era muito bom estudar no Manoel Vicente. Eu adorava jogar futebol nas horas vagase me destacava nas aulas de educação física. Na 6ª série, outro fato marcante: meus pais nãotinham dinheiro para comprar meu uniforme escolar. Na hora da aula, o coordenador docolégio foi até minha sala e mandou os que estavam sem uniforme sair e ir para casa. Mesmotendo apenas 11 anos de idade, enfrentei o coordenador. Disse que não sairia porque nãotinha dinheiro para comprar a bendita blusa. Ele não quis conversa e me fez chorar na frentede todos. Fui para casa, mas nunca me conformei com aquilo. Vivemos num país muitoinjusto e eu, simplesmente, não suporto injustiça.

Era uma casa muito engraçada... Vinícius de Morais

Em casa, nunca tivemos luxo, mas também nunca passamos fome, graças a Deus e aotrabalho dos meus pais. Tínhamos apenas dois quartos, um para meus pais e outro para mime meus irmãos. Somente depois de muitos anos e de muita luta é que minha mãe conseguiuconstruir um banheiro interno.

Em 1994, novas mudanças. A mamãe passou a trabalhar como técnica de enfermagemno Hospital de Referência de Augustinópolis. Foi também em 94 que minha avó maternafaleceu, o que me deixou profundamente triste.

Voltando à escola...Na sétima série eu já estava menos tímida. Participava de atividades de teatro em sala e

de outras atividades que me desenvolviam, de fato. Quando entrei na 8ª série, conheci umapessoa muito especial, o professor Waldesco. Ele dava aulas de língua portuguesa e falavamuito sobre Clarice Lispector. Aquele professor foi muito importante para que eu desenvol-vesse o gosto pela leitura e pela escrita. Arrisco dizer que o Professor Waldesco deu o grandepontapé para minha escolha na faculdade. Pena que faleceu da forma mais triste... na solidão.

Pai, pode ser que daqui a algum tempo haja tempo pra gente ser mais... pai e filha, talvez... Fábio Jr.

Foi também quando eu fazia a 8ª série que meu pai viajou para Palmas para trabalhare depois levar o restante da família. Fiquei com minha mãe e meus irmãos em Augustinópolis.O papai começou a se afastar da gente, mas nos visitava. Ele sempre foi um homem inteli-gente e sonhador. Quando passava algum vendedor de enciclopédia, fazia questão de com-prar livros. Nossa casa sempre foi cheia deles, desde dicionários até Machado de Assis. Meu

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pai também era o melhor eletricista de Augustinópolis, mas não aproveitou bem as oportu-nidades que apareciam.

Minha adolescênciaAté chegar ao 1º ano do 2º grau, nem pensava em namorar. Dedicava-me aos estudos

e sentia como se minha infância ainda não tivesse passado. Na verdade, eu amava sercriança e tinha medo da idade adulta. Nunca fui uma “aborrecente”, mesmo sendo, desdesempre muito nervosa e impulsiva. Só namorei depois dos 15 anos, pois sempre achei oestudo mais importante que o namoro. Acho que fiz a escolha certa quando coloquei osestudos em primeiro lugar.

De novo, a escola...Terminei o 1º grau sem nenhuma reprovação. Outra mudança: a entrada no 2º grau aos

14 anos de idade. Era um mundo totalmente diferente de tudo que já tinha visto na escola.Para a entrada no 2º grau eu tinha duas opções: ou entrava no curso Normal (para serprofessora), ou no Técnico em Contabilidade. Não deu outra! De todas as meninas saídas da8ª série, apenas outra amiga e eu optamos pela contabilidade. Mas somente eu continuei ocurso até o final. No início, foi meio complicado fazer aquele curso, afinal, a maioria daturma era formada por homens. Mas conheci a Edinete, uma das minhas melhores amigas, eacabei por não perceber a diferença de gêneros na sala de aula.

E o relógio da vida passando... comecei a cursar o 2º ano e passei a estudar à noite,pois as turmas vespertinas e noturnas do 1º ano foram unidas para formar o 2º ano que sófuncionaria à noite. Eu gostava muito do curso de contabilidade, mas sentia falta dedisciplinas gerais, como física, química, biologia... com certeza, elas fizeram falta na horado vestibular.

Quando faltava algum professor (e isso era bastante comum), eu era a responsável porescrever a matéria no quadro negro. Achava até interessante, pois me dava certo senso deresponsabilidade para com os meus colegas de sala. Mas mesmo estando entusiasmada como curso, havia obstáculos no aprendizado. A constante falta de energia na cidade era umdesses obstáculos. Às vezes, ficávamos uma semana inteira sem energia à noite, ou seja,uma semana sem aulas! Como eu morava perto do colégio, já levava minha lanterna paraescapar do escuro.

Éramos seis... Maria José Dupré

Chegando ao 3º ano, agora com 16 anos, outras mudanças. Meu pai havia saído dePalmas em 1997 para morar em Brasília. Suas visitas já não eram freqüentes e minha mãeresolveu pedir transferência para a cidade de Arraias, sudeste do Tocantins, na divisa com oGoiás. Esse esforço foi para ficarmos mais próximos do meu pai. Minha família já estava seseparando. Minha irmã Márcia, já estava casada em Brasília e agora éramos apenas eu, oLeirson, a mamãe, o João Victor, nascido em 1998, e sua mãe, minha irmã Aline.

Foi muito difícil para eu me conformar com a idéia de mudarmos para Arraias, afinal,era uma cidade que nenhum de nós conhecia. Além disso, deixar meus amigos e minhacidade não foi nada animador. Não tive alternativa a não ser aceitar.

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Quando chegamos a Arraias, já estávamos de casa alugada pelo papai. Fomos olharescola para mim e para meu irmão. No caso dele, foi fácil conseguir uma vaga, mas paramim, não. O curso técnico em contabilidade não era oferecido em Arraias e tive que medesdobrar para acompanhar o 3º ano do Colégio Estadual Joana Batista Cordeiro, quepossuía um ensino muito melhor do que no Manoel Vicente, de Augustinópolis. O resulta-do disso tudo? Passei somente três semanas no Joana Batista e somente um mês em Arraias,já que meus pais decidiram que eu voltaria para terminar o 2º grau em Augustinópolis.

Fui morar com a Tia Delma, a irmã mais velha da minha mãe. Uma experiência marcantepara uma garota de 16 anos que ficou longe da mãe. Meus professores fizeram o máximopara me ajudar a acompanhar o restante da turma e me deram trabalhos extras para eumelhorar minhas notas. Acabando as aulas, saí definitivamente do Bico do Papagaio. Tinhaacabado de completar 17 anos e voltei para Arraias, onde permaneci por mais três meses.Minha mãe havia comprado um lote com um barraco em Palmas e novamente pediu trans-ferência de trabalho. Vimos que meu pai não estava muito interessado em ficar mais pertoda gente e resolvemos nos distanciar mais. Meu irmão foi para Brasília e a família ficoumenor ainda.

Aqui é pequeno, mas dá para nós quatro...Chegamos a Palmas em março de 2000. Instalamos residência na quadra 307 Norte.

No início, era tudo muito difícil na Capital. Tivemos que nos desfazer de alguns móveis,pois não caberiam no barraco. Somente minha mãe trabalhava e eu estava sem estudar. Foium ano inteiro de sufoco naquele barraco quente, com telhas de amianto, sem pia para lavarlouça... até mesmo para usar o banheiro íamos na vizinha, pois o nosso ainda estava porfazer. Ou seja, conforto, nem pensar.

As provas da vida...

Por isso, não demora que ahistória passa e pode nos levar... Milton Nascimento

Após quase um mês na nova cidade, meu namorado Marco também se mudou e passouum mês em minha casa até conseguir um trabalho. Me dediquei demais ao namoro e deixeios estudos de lado. Terminei o namoro após um ano e meio e resolvi voltar a estudar.Nesse mesmo ano, em 2001, comecei a trabalhar numa mercearia perto de casa. Foi tambémem 2001 que nasceu a Ana Luiza, filha da minha irmã Aline. Fiz a prova do ENEM e meuprimeiro vestibular no meio do ano. Não me preparei muito para as provas, mas me saírazoavelmente bem no ENEM.

Levei minha mãe para ir fazer a inscrição do vestibular comigo. Eu não estava certa docurso que deveria escolher. A primeira opção que veio à minha cabeça foi o curso deAdministração. Na verdade, meu sonho de criança é Agronomia, mas a federal não ofereceo curso em Palmas. Então, pensei bem, e, com uma ajudinha da mamãe, optei por Comuni-cação Social. A habilitação ainda era Rádio e TV. A Universidade Federal do Tocantinsainda não tinha esse nome, sendo chamada de UNITINS, pois era estadual e foi privatizada.Somente após muitas lutas dos movimentos estudantis do Tocantins é que a universidadefoi federalizada.

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O resultado do vestibular foi o esperado: não fui aprovada. Fiquei triste, mas meconformei, porque sei que não dá para passar no vestibular de uma federal sem o mínimopreparo. Quando eu olhava a lista e via que meu nome não estava entre os aprovados, choreie falei para uma colega que estava comigo: “Eu ainda vou ser uma jornalista!” (mesmotendo feito vestibular para Rádio e TV). Mas desanimei e não tentei outro vestibular até2003. Nesse período de tempo fiquei sem trabalhar e estudar.

Levantei, sacudi a poeira e dei a volta por cima...

E os sonhos não envelhecem... Milton Nascimento e Lô Borges

Resolvi ir novamente à luta. Soube de um cursinho pré-vestibular gratuito e resolvime inscrever. Os professores eram estudantes de Direito da UFT e davam aula volunta-riamente. O cursinho PROEJ (Programa da Esperança Jovem) foi essencial para meu apren-dizado como vestibulanda. As aulas eram nos finais de semana e eu as freqüentei porquase três meses.

Durante o cursinho, deixei de lado as festas. Mas não passava as madrugadas estudan-do. Esforcei-me dentro dos meus limites. Algumas pessoas até estranhavam tanto esforço eriam quando eu deixava de ir às festas nos sábados à noite para estudar aos domingos pelamanhã. Tenho plena certeza de que valeu a pena.

Eu já estava decidida sobre o curso que queria fazer: Comunicação Social! Só quedessa vez, a habilitação oferecida era Jornalismo! Meu bom desempenho com a línguaportuguesa e com a redação foi essencial para o bom resultado no vestibular. A prova foirealizada em janeiro de 2004. Eu estava com 21 anos de idade e com a certeza de que iria seraprovada. Os professores do cursinho também acreditavam que eu seria uma das poucasalunas que passariam no vestibular da UFT.

Vinte e sete de fevereiro de 2004... o resultado! Estava em casa tentando ouvir a listade aprovados pelo rádio. Os nomes de Comunicação já haviam sido falados. De repente, otelefone de casa toca. Era minha amiga Jânia confirmando a minha aprovação. Minhaprimeira reação foi gritar, pular e chorar abraçada com a Aline. Saí correndo pela rua contan-do para todos os meus conhecidos. Minha irmã e eu avisamos a nossos pais e a nossosirmãos. Eu liguei para o Luís, professor do cursinho e até para a rádio! Foi o dia mais feliz daminha vida. Passei no primeiro vestibular oficial da Universidade Federal do Tocantins!Não foi sorte, foi vontade e esforço!

Na faculdade...

Você não sabe o quanto caminhei pra chegar até aqui...Toni Garrido, Lazão, Da Gama e Bino

Quando entrei na faculdade, novas mudanças. Se antes eu sempre era a mais nova daturma, agora sou a mais velha da sala. Isso nunca fez muita diferença. Mas as diferençassociais dentro da universidade sempre foram enormes. Digo isso porque, mesmo a universi-

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dade sendo “pública”, a gente acaba gastando muito com apostilas, passe estudantil...Outra problemática é a falta de um restaurante universitário na UFT, o que acaba

pesando ainda mais no bolso dos estudantes. Nem me lembro às vezes em que voltei paracasa, à noite, a pé, com fome... isso porque, tinha que ficar fazendo trabalhos em computa-dores da universidade, faltava passe e não tinha dinheiro para comer depois do almoço. Nãofoi nada fácil passar por aquela situação.

A faculdade me possibilitou conhecer lugares do país que jamais acreditava conhecer.Nos encontros de Comunicação é quando mais confirmo que a universidade pode me ofere-cer tudo aquilo que sempre sonhei para mim. Um lugar em que vários mundos se misturam,mas que não me deixa esquecer de onde vim.

Bons e modestos

Têm pessoas que a gente não esquece...John Lennon e Paul Mc Cartney

Como sempre prezei uma boa amizade, logo que entrei na faculdade conhecinovos amigos. São pessoas maravilhosas que sempre farão parte de minha vida. Não poderiadeixar de citá-las: Adê, Ciela, Édila, Painho, Polly, Savanna, Renê e Wesley (hoje no cursode Direito). São os Bons e Modestos! Nome que criei e que ganhou fama na sala de aulapelos trabalhos acadêmicos que fizemos. Inclusive, com elogios dos professores. Os BM’Ssão a família que construí na universidade.

O jornalismo é lindo...

É incrível, nada desvia o destino.Hoje tudo faz sentido. E ainda há tanto a aprender... Jorge Vercilo

Amo o jornalismo. Não me vejo fazendo outra coisa da vida. Me entusiasmo ao saircom um gravador para fazer uma entrevista, escrever sobre política... o jornalismo é real-mente fascinante, diria até, inebriante! Entrei e não pretendo sair dessa área, mesmo comtodos os problemas da profissão...

Conexões de Saberes...Uma grande paixão... poder entrar nesse Programa, foi algo que me incentivou muito.

A oportunidade de trocar saberes com as comunidades populares de Palmas é estimulante.Poder retribuir tudo o que ganhei da sociedade é como na famosa propaganda: “não tempreço!” A universidade me mostrou várias possibilidades de crescimento, e o Conexõesmais ainda. Antes, tinha uma enorme dificuldade para apresentar seminários na sala de aula,mas depois de participar de uma mesa-redonda num seminário do Conexões... tudo mudou!

Além disso, meus colegas “conexistas” e meus coordenadores são pessoas maravi-lhosas. Fui escolhida a representante dos bolsistas na UFT. No momento em que escrevo

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76 Caminhadas de universitários de origem popular

esse memorial já não sou mais bolsista e nem a representante do Conexões UFT. Hoje,estou como voluntária, pois consegui uma vaga de trabalho há muito tempo esperada:assessora de comunicação. Mas o Conexões, como já disse, é uma paixão. E paixão assim,não dá para largar...

O pior defeito do ser humano é a ingratidão

Quero sua risada mais gostosa, esse seu jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa... Ivan Lins

Se Deus quiser, me formarei no final de 2007. Ainda tenho muito a aprender no meucurso, mas tenho certeza de que meu caminho será de sucesso. Estou batalhando para isso.E sou grata a muitas pessoas pelo que sou hoje. À minha mãe, guerreira por natureza, a meupai, mesmo ausente, a meus irmãos... ao Luís e à Valéria, professores do cursinho, e a todosos amigos que conquistei nesses 24 anos de vida.

Sei que a escolha do meu nome não foi em vão. Igualmente à Nadia Comaneci, eutambém nasci para ser vitoriosa!

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Tudo começou quando minha mãe, Rosimeire Berrederú, da tribo Karajá, Ilha doBananal, estado do Tocantins, casou-se com um não-índio, deixando a Aldeia Macaúba eindo morar na cidade de Gurupi-TO. Tiveram cinco filhos: 2 homens e 3 mulheres, Rosângela,Solange, Hujango, Keila e Paulo André.

Quando eu tinha 10 anos de idade veio a primeira decepção. Meu pai, Manoel Pereira,que era fotógrafo e viajava muito, encontrou uma outra mulher e foi morar com ela em umacidade próxima, deixando minha mãe com cinco filhos.

Meu pai pagava o aluguel da casa onde morávamos, mas não era o suficiente. Minhamãe tinha que complementar a renda fazendo trabalho de lavadeira, faxineira, entre outrasatividades domésticas. Minhas irmãs também ajudavam, trabalhando como domésticas nascasas alheias. Meu irmão também ajudou até quando foi morar com meu Tio Miguel Karajá,na Aldeia Boto Velho, Ilha do Bananal.

Quando meu irmão vinha da aldeia nos visitar, sempre falava para minha mãe voltarpara lá. Sei que ela queria, mas minhas irmãs queriam estudar e trabalhar. Elas não concor-davam com a idéia de minha mãe. Os meses de julho e dezembro, férias da escola, passáva-mos na aldeia. Passado algum tempo, minhas irmãs se casaram e ao se depararem cada vezmais com as dificuldades da cidade apoiaram-se na idéia de irem morar na aldeia. E lá seforam para aldeia Txuiri, também na Ilha do Bananal.

Nessa época, eu estava estudando no internato Fundação Bradesco, Escola de Canuanã,que ficava próximo à aldeia. Todos os finais de semana ia para lá ficar com minha família,gostava muito de ir para aldeia.

Entrei no internato na quinta série, não gostava de estudar, mas com o tempo fui perce-bendo a importância dos estudos e aprendi a necessidade de entender o mundo a minha volta.O que me deixava bastante angustiado era ver meu povo triste, enfrentando os mais diversosproblemas como: a permanência do gado de fazendeiros dentro da Ilha espantava os animaissilvestres; os vaqueiros comendo a caça e a pesca, sem o menor controle de nada; aumentodescontrolado de jacarés por causa da diminuição de predadores naturais como a onça e alontra, tornando-se o ambiente de caça perigoso para a comunidade; queimadas em algumasáreas da Ilha pelos fazendeiros com o objetivo de fazer melhor pastagem ou até por acidente.E temos ainda um outro problema. Hoje há uma estrada por dentro da ilha e as pessoas quepassam por lá e deixam cair toco de cigarro, garrafas, sacos plásticos que podem ocasionarqueimadas e poluir o meio ambiente.

A militânciaPaulo André Rodrigues de Oliveira*

* Graduando em Ciências da Computação pela UFT.

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78 Caminhadas de universitários de origem popular

Quando chega a época do turismo, no mês de julho, os chamados “turistas farofeiros”sujam as margens dos rios, as praias e quando conseguem entrar na ilha ainda fazem umestrago maior, pois matam os animais, pescam de forma predatória, sem o menor controle,usam bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. Enfim, alguns dissabores que a sociedadeenvolvente está trazendo para dentro da Ilha.

Ao concluir o ensino médio, fui morar na cidade de Formoso do Araguaia -TO, ondehavia mais oportunidades de estudo. Fiz o primeiro vestibular para Administração e nãoconsegui passar. Como minha situação financeira era pouca, minhas esperanças eram depassar na Universidade Federal.

Ao esperar um novo exame de vestibular, comecei a viajar com algumas liderançaspara fóruns de protesto no Congresso Nacional, elaborar documentos, reivindicando nossosdireitos que são garantidos por lei, mas que na prática não se revelam. Meu povo tem umaforte esperança nos membros da tribo que estudam.

No ano de 2006, passei no vestibular para Ciências da Computação na UFT, com isso,tive que sair dos movimentos indígenas para vir morar em Palmas. Chegando aqui, medeparei com outras dificuldades. É muito difícil sair do seio da família para vir morar emuma cidade onde nós, estudantes indígenas, não temos parentes. Nossas famílias não dis-põem de renda para nos ajudar e temos que lutar por políticas de permanência, contra o pre-conceito, discriminação, alimentação, entre outros problemas que nos afligem. Mas estamossuperando aos poucos. Esta realidade é de todos nós, alunos-índios e não-índios, sobretudoos de baixa renda que em busca de realizar seus objetivos passam por tudo isso, mas afinalnão há glória sem sofrimento.

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Nasci em Anápolis, Goiás, mas cheguei ao Tocantins antes de um ano de vida. Porisso, me considero tocantinense. Morávamos em Miranorte, Miracity como gosto de falar.Dessa época, não me lembro muita coisa, pois mudamos para Palmas quando eu tinha cincoanos. Morávamos em uma casa simples, mas bem legal, pois tinha várias coisas para se fazer,havia várias árvores perto de casa, muitas construções, era o começo da cidade praticamen-te. Como tinha cinco anos e minha família não tinha dinheiro para pagar uma escola parti-cular e a escola pública não aceitava crianças com cinco anos, fiquei sem estudar.

No ano seguinte, comecei a estudar no pré-escolar na Escola Estadual Darci Ribeiro.Lembro-me daquelas mesas redondas, paredes cheias de números e letras, foi uma épocamuito interessante. Costumo dizer que foi a partir dali que me tornei gente de verdade.Lembro-me de que no primeiro dia de aula aprendi a escrever meu nome. Nossa que felici-dade! Fui correndo para casa contar para minha mãe. Estava todo satisfeito. Nessa escola,fiquei até metade da terceira série. Mudamos de quadra e eu tive que ir para outra escola, aAntonio Carlos Jobim, conhecida como Tom Jobim. Nessa escola, que era municipal, foionde comecei a estudar de fato, era um pouco “hiperativo”, não parava um minuto, “o terrorda professora”.

Só a partir da sétima série comecei a me concentrar nos estudos. Nesse tempo, nempensava em universidade, só queria fazer veterinária. Mas da boca pra fora mesmo, porquenunca me interessei de verdade por isso. Pois bem! A respeito da minha sétima série, tenhoótimas lembranças. Era festa e estudo ao mesmo tempo, e mesmo assim, conseguia medivertir. Eu era bom em matemática, me fazia ter certo sucesso com as meninas, era eu quemdava aulas particulares na sala.

Da oitava série não tenho muitas lembranças boas, era meio chato. Comecei a estudarem uma sala e me transferiram para outra depois. Não conhecia quase ninguém, mas conti-nuava bom em matemática, agora também em física. Isso me ajudava muito, embora fugissedo rótulo de CDF a todo o custo. Nesse tempo, veterinária, meu sonho de garoto, já não eratão atraente assim, nem pensava nisso. Para falar a verdade, não queria nada da vida, sópensava nas farras, nas meninas, nesse tipo de coisa. Mantinha minhas notas boas, bem,digamos assim, em parte. Tirava boas notas nos três primeiros bimestres, no último, já tinhapassado mesmo, só tirava três, quatro, esse tipo de nota. Acabava-se então minha oitavasérie. Como as escolas municipais não têm ensino médio, tive que mudar de colégio. Fuipara o Tiradentes, que fica a quatro quadras de minha casa.

Rafael Ataides de Souza Sobral*

Mudanças

* Graduando em Administração pela UFT.

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80 Caminhadas de universitários de origem popular

No primeiro ano, foi um pouco ruim. Sabe, escola nova, não se conhece ninguém, masaté que foi interessante. A escola Tiradentes é considerada a melhor escola de ensino médioda rede estadual, cheguei muito entusiasmado e com boa impressão. A partir daí, comecei ame interessar de verdade por uma universidade. Vi que poderia levar uma boa bagagem parao vestibular, pelo menos era o que eu achava ate então. De novo comecei a estudar em umasala e me transferiram para outra. Foi um rolo só, perdi prova e me compliquei todo, mas nofim deu tudo certo. Para falar sério, não tenho muitas saudades de meu primeiro ano, mas“há males que vem para o bem”. Bom é isso que me falam! Nesse caso acho que é verdade,pois foi aí que eu percebi que se eu não fizesse as coisas por mim ninguém mais faria. Tiveessa experiência em meu primeiro ano, fatos que não tenho porque revelar, apenas digo queé verdade: “há males que vem para o bem.”

Quando comecei meu segundo ano, consegui estagiar na FUNASA (Fundação Nacio-nal de Saúde). Era legal lá! Conheci muitas pessoas, comecei a ter uma vida social maisativa, a me relacionar com pessoas interessantes e com muita bagagem, o que me fez ver omundo com outros olhos. Foi muito importante para mim. Trabalhava no setor de recursoshumanos, na secção de cadastro. Trabalhava com outro estagiário, que estudava na mesmaescola que a minha, nos tornamos bons amigos, apesar de não vê-lo faz um tempinho. Dessaépoca, tenho muitas saudades.

Ainda continuava bom em matemática no segundo ano, embora ninguém soubesse,pois estudava antes à tarde. Lembro-me de um fato muito interessante. Prova de matemática.Tudo bem! Ninguém me conhecia. Pois bem, fiz a prova em metade da aula, eu acho! Quandoentreguei a prova, todo mundo olhava para mim, ate ouvi alguém dizer: “Coitado, esse aí, nãosabe nada!” Entreguei a prova e fui, lentamente, para a minha carteira. A professora avaliou aprova e meio assustada respondeu que eu havia tirado cinco (nota máxima da prova), todomundo olhou para mim com uma cara de espanto. Eu fiquei todo satisfeito! Foi muito legal.

No começo do 3º ano, comecei a fazer um curso técnico de informática, era um poucocomplicado, pois a FUNASA fechava às 6h e o curso só começava às 8h, atravessava a praçados girassóis todos os dias. Quem conhece Palmas sabe que praça é essa, e que não épequena. Pois bem! Nesse tempo, abusei de bolachas, era todo dia, não tinha tempo de ir emcasa. Na outra metade do ano, vi a necessidade de fazer um cursinho pré-vestibular, fizentão quatro meses até o dia da prova da UFT. Estava nervoso, mas confiante, depois de ummês recebi o resultado: Aprovado e em quarto lugar. Nossa! Fiquei muito feliz! Conseguicalar a boca de muita gente. Meu pai, eu acho, estava mais feliz do que eu. Ele pôderesponder a todos que diziam que seus filhos não deveriam estudar. Acho que foi mais peloo meu pai que fiquei feliz.

UFT! Nossa consegui! Quando cheguei aqui tudo era novo, não tinha a mínima noçãode como era estar aqui. Aos poucos fui me encaixando. Quando entrei, tinha uma vaga parao Conexões de Saberes, mas não consegui. Na segunda tentativa, tive êxito. Tudo ainda énovo para mim. O Conexões me ajudou muito, aumentei minhas relações dentro da univer-sidade. Aprendi mais sobre a universidade, pois convivo com pessoas com experiênciamaior que a minha.

Quando cheguei aqui no primeiro dia, fiquei confuso, atordoado mesmo. Eu estava naUFT. Quando cheguei para fazer a minha matrícula, achava tudo novo. Não tinha a menornoção de como era tudo, como acontecia as coisas ou, pelo menos, onde ficavam as coisas.Turista mesmo, sabe. Mas tudo está ótimo. Hoje, já estou adaptado, tenho ótimas experiên-

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cias. Lembro-me de que no primeiro dia de aula senti a mesma sensação que tinha sentidoainda no pré-escolar.

A UFT é um sonho que consegui tornar realidade. As coisas são mais difíceis do que eupensava. Manter-se em uma Universidade Federal não é fácil. Estou conseguindo. Tenhopessoas legais e compreensivas a minha volta, o que é uma coisa rara pelo o que me falam.A UFT, um sonho distante, hoje uma realidade tão próxima. Sei que muitas pessoas nãoacreditavam que eu conseguiria. De fato, pensei que não conseguiria. É ruim você verpessoas próximas a você dizendo que você não é capaz. Quando penso em tudo que fiz,tudo que passei, fico até impressionado em estar aqui. Mas o que quero mesmo é continuarfirme. Sei que mereço estar aqui por tudo que fiz, e por tudo o que fizeram por mim. Oimportante é que está valendo a pena. Tudo mesmo. O próximo passo? Ainda não seidireito. Uma coisa de cada vez.

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82 Caminhadas de universitários de origem popular

Desde pequenina, as pessoas começam a estudar. Pois é, comigo não foi diferente.Nasci no dia 28 de agosto de 1983, na cidade de Imperatriz, Maranhão. Terceira de quatrofilhos de Vital Alves de Oliveira e Maria do Amparo Dias Oliveira, pessoas especiais eresponsáveis por meu caráter, responsabilidade, educação, honestidade e por tudo que jáestudei e que estudo até hoje.

Meus primeiros dias de aula foram muito desgastantes, tanto para mim, uma criançacom apenas três anos de idade, quanto para a minha “tia” na sala de aula. Eu era umadaquelas crianças amáveis que quando os pais diziam “Tchau, mais tarde venho pegarvocê!” eu abria a bocona desesperada, chorando, gritando e me agarrava na grade da portada sala para não entrar. Credo! Eu fazia o maior escândalo.

Minha irmã mais velha, Rita de Cássia, era quem me deixava na sala de aula. Estudavano mesmo colégio que se chamava Escola Santa Teresinha, uma escola particular de freirasque se localizava no centro da cidade. Nós morávamos num bairro que ficava perto docentro, gastávamos mais ou menos meia hora para chegarmos até lá. Íamos de ônibus e eudormindo nas pernas dela, na volta não era diferente. Além de tudo, eu levava mamadeirapara a escola e ainda chupava chupeta. Isso que era vontade de estudar, heim! Mas fui meacostumando. Também pudera!! Se não acostumasse, estava “ferradinha”, porque até hojeestudo e ando de ônibus. (risos)

Os anos se passaram e quando cheguei na 2ª série eu mudei de escola. Essa se chamavaEscola Machado de Assis, também era particular, que ficava no bairro que eu morava. Daí jánão precisava pegar ônibus, ia com meu irmão mais novo, Ricardo, andando mesmo, poisera pertinho de casa. Nossa! Lembro-me bem como eu e meu irmão éramos “malas semalça”. Perdi as contas das vezes em que inventávamos que estávamos doentes, com uma dorde cabeça ou dor de barriga, alguma coisa desse tipo para não irmos à aula, só para ficar emcasa brincando, andando de bicicleta. Assim, ganhávamos o dia todo para nos divertir, isso seminha mãe não estivesse em casa, se não, o jeito era ficarmos deitados, quietinhos mesmo.

Quando cheguei ao ensino fundamental, veio a surpresa, eu e meus irmãos, quedesde o jardim de infância estudamos em colégios particulares, iríamos estudar em escolapública, porque já não seria possível meus pais nos proporcionar tal “luxo”. Então, eu eminha irmã do meio, Raquel, fomos matriculadas na mesma escola pública, chamadaAmaral Raposo, que se localizava no centro da cidade de Imperatriz. Foi uma mudançamuito grande, mas muito interessante para mim. Tive a oportunidade de conhecer pessoasde outras comunidades populares e classes sociais diferentes. Às vezes, acho que Deusnos coloca em determinados lugares para que possamos aprender e a avaliar determina-dos valores e visões de mundo que muitas vezes não conhecemos. Nessa escola, concluí

Roberta Alves de Oliveira*

Memorial

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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o ensino médio, fiz e descobri grandes amizades que, mesmo com o passar dos anos,continuam firmes e fortes.

Ao concluir o ensino médio em 2001, estava com dúvida se iria fazer a prova dovestibular. Eu tinha muito medo de fazer e não passar. Mas minha mãe queria muito queeu fizesse porque minhas duas irmãs já haviam passado no vestibular, uma para Admi-nistração de Empresas; a outra para História. Minha mãe sonhava que uma de nósfizesse Direito, mas nenhuma das minhas irmãs tinha o mesmo sonho e, pelo visto, eutambém não. (risos)

O primeiro vestibular que eu fiz foi para Ciências Contábeis, na Universidade Federaldo Maranhão (UFMA). Passei na primeira etapa, já na segunda etapa não passei. O segundovestibular foi na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), para História, outra vez nãoconsegui passar. Fui logo ficando com trauma, ainda fiz uns dois vestibulares para Pedago-gia e não passei novamente. Além de tudo, os cursos que eram oferecidos na minha cidadenão eram bem o que eu gostaria de estudar. Daí, deixei os estudos de lado, comecei fazercursinhos profissionalizantes. Em 2002, consegui meu primeiro emprego, durante três anosfiquei apenas trabalhando. Certo dia, em uma das minhas férias do trabalho, resolvi viajar efazer uma visita a minha irmã, em Palmas-TO. Nessa viagem, me reencontrei com duasamigas que eu havia conhecido ainda no ensino médio, naquela escola pública. Pois é!Essas amigas estavam estudando na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Geovania eSuiana, ambas cursando Engenharia de Alimentos. Elas, minhas irmãs e minha mãe meincentivaram bastante para eu tentar novamente passar no vestibular. Como nesse anominha irmã, Rita de Cássia, já havia se formado em Administração de Empresas e estavamorando e trabalhando em Palmas, capital do Tocantins, decidi unir o útil ao agradável,resolvi tentar passar para Engenharia de Alimentos. Apesar de não saber bem do que setratava o curso, achei interessante e bonito o nome. (risos)

Em agosto de 2004, ao retornar das férias do trabalho, matriculei-me num cursinhopré-vestibular, no intuito de alcançar meu objetivo, não foi nada fácil para mim, trabalhar eestudar, porque eu saía do trabalho e ia direto para o cursinho. Chegava muito tarde emcasa, ainda tinha que estudar mais um pouco ou pelo menos rever o que tinha sido visto naaula anterior, pois só abrir os livros no cursinho não iria obter o resultado esperado. Abrimão de sair para festas, shows, sem falar nos sábados e domingos em que eu passei estudan-do, sem se quer ir até mesmo à igreja.

No decorrer desse cursinho, fiquei muito cansada, estressada. Ao estudar nas madruga-das, me desesperava, começava a chorar, ficava exausta e com sono. Pensei várias vezes emdesisti, contudo, minha força de vontade de lutar por meus ideais foi bem maior. Recebiajuda e apoio do meu namorado, Aleandro, hoje meu noivo, sua compreensão foi muitoimportante para mim.

Em janeiro de 2005, sábado, dia da prova, eu tive que sair de Imperatriz por volta das6h da manhã de van rumo a Porto Franco, Maranhão, para chegar ao rio Tocantins e pegarum barquinho para atravessar para Tocantinópolis-TO, cidade em que fiz a prova do vesti-bular. Fiquei hospedada na casa da mãe de um amigo. Fiz a prova da Universidade Federaldo Tocantins (UFT) e para a surpresa de alguns e minha a Engenharia foi o meu destino. Eufui aprovada para o curso de Engenharia de Alimentos para a entrada do segundo semestrede 2005. Optei pelo segundo semestre, porque seria melhor para eu me organizar, pois aindaestava trabalhando.

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84 Caminhadas de universitários de origem popular

Pelo visto, minha mãe não estava com sorte para ter uma filha advogada, quem sabe omeu irmão caçula resolva fazer o vestibular para Direito?! Mas eu garanto que uma filhaengenheira ela irá ter sim. Eu já sou uma vencedora, mas do que isso, sou uma mulherguerreira ao lutar por meus sonhos. Eu agradeço a Deus por isso.

Por um lado, foi muito bom ter alcançado meu objetivo, mas por outro, apareceram aspreocupações. Eu já não poderia trabalhar devido meu curso ser integral e estava morandofora da minha cidade. Tinha todo um custo mensal que, basicamente, era minha permanên-cia na universidade. Então, certo dia, olhando o site da universidade, vi o edital do Progra-ma Conexões de Saberes. A princípio não sabia do que se tratava, mas quando vi “bolsaspara universitários”, logo me animei, preenchi a ficha com meus dados e deixei na PROEX.Após alguns dias, saiu o resultado, como eu havia me encaixado nos padrões da seleção,meu nome estava na lista dos selecionados. Nossa! Foi bom demais.

Hoje estou estudando e participando do Programa Conexões de Saberes onde, porcoincidência ou ironia do destino, Geovania, uma daquelas minhas amigas do ensinomédio, daquela escola pública que junto com outras pessoas especiais me deram o maiorapoio para eu tentar passar no vestibular, pois é, ela também participa desse programa.Tenho aprendido muitas coisas, dentre elas a de poder oferecer aos que não possuemacesso à universidade ou que se sentem incapacitados de entrar, ou ainda aos que entram,mas não conseguem permanecer, mecanismos, seja por ações, projetos, palavras, que elespodem conseguir entrar e concluir o curso universitário. Pretendo futuramente, já forma-da, exercer minha profissão em minha cidade e incentivar os jovens dos bairros popularesa cursar o ensino superior.

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Em 6 de abril de 1983 eu, Rosilda Ferreira e Silva, nasci na Casa de Saúde em Floriano,Piauí. Logo após o nascimento, meus pais me levaram para a cidade de Nazaré-PI, onde elesmoravam: meu pai, Raimundo de Souza e Silva, minha mãe, Maria de Lourdes Ferreira Reise Silva, e as minhas duas irmãs, Rosiane e Rosenilde.

Eu nasci com o peso muito abaixo do recomendado, além de ter um problema de pelechamada Ictiose. Eu tinha o mesmo problema que minha irmã do meio, só que mais sério. Aminha pele é extremamente ressecada. Por isso a pele solta muito, para não ficar descaman-do é preciso passar hidratante no corpo todo. Na época, os médicos não deram nenhumdiagnóstico exato, pois esse problema não tinha sido estudado ainda. Eles disseram queseria preciso um acompanhamento constante de um médico dermatologista, e quem nosacompanhava era o Doutor Hugo Prado.

Com dois anos mudamos para Oeiras-PI, depois de um ano comecei a estudar. Oproblema de pele persistia e os remédios eram caríssimos. Mas isso não me impede de fazerabsolutamente nada, só não posso pegar sol nem parar de usar os medicamentos.

Meus pais decidiram mudar de estado em 1989 para o Mato Grosso.Lá, ficamos na cidade chamada Matupá. Chegando lá não pude entrar na primeira

série por ser muito nova, então, minha mãe me matriculou na alfabetização. Eu acheimuito complicado, pois ela só encontrou vaga num colégio Evangélico e tinha muitasregras devido à religião. Eu não consegui me adaptar por ser católica, não queria fazeralgumas coisas, depois de alguns dias, comecei a me integrar com as outras crianças. Aítudo ficou bem! Quanto ao problema de pele, ficou muito complicado nessa época porquenão tínhamos mais um médico para nos acompanhar e na cidade em que nós morávamos nãotinha dermatologista.

Quem dava assistência aos doentes era um grupo de irmãs que tomava conta do hospi-tal da cidade. Lá havia muitos casos de malária. Uma das irmãs falou para minha mãe que elatinha que ter cuidado porque se eu ou minha irmã pegássemos malária ela não saberia se nóssobreviveríamos, pois o remédio usado para o combate da doença era muito forte, por causadesse problema ela não saberia se o nosso organismo reagiria de forma normal.

Com isso, minha mãe ficou muito preocupada e antes de completarmos um ano torna-mos a mudar de estado: Mato Grosso para o Tocantins. O meu pai estava muito confiante,pois ia ter muito serviço para ele porque sua profissão era de agrimensor. No dia vinte e trêsde janeiro de 1990, chegamos na cidade de Miracema-TO.

Rosilda Ferreira e Silva*

Minha história

* Graduanda em Comunicação Social pela UFT.

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86 Caminhadas de universitários de origem popular

No mesmo ano fui matriculada no Colégio Dona Filomena para fazer a primeira série,estava com sete anos. Me lembro que foi muito difícil, não com o estudo, mas em relação aomeu problema de pele. As crianças com que eu estudava não gostavam de brincar comigo,falavam que eu era doente. Com isso, eu me afastava delas e ficava sempre sozinha, metornei uma menina muito tímida, conversava com poucas pessoas. Estudei da primeira asétima série neste colégio.

Em 1997, passei para a oitava série e tive que mudar para outro colégio, pois onde euestudava naquele ano não teria a oitava série. Passei a estudar no colégio Tocantins que eraconveniado, portanto tinha que comprar os livros. Neste ano, tudo começou a ficar maisdifícil, meu pai não conseguia arrumar serviço, passamos dias muito complicados, além deter que colocar a comida em casa, tinha que pagar o colégio, os medicamentos eram caros esempre foram eles que pagaram tudo. A cada dia as coisas foram ficando piores, mas elesnunca deixaram de cuidar de mim e nem da minha irmã.

Mas teve uma época que as coisas ficaram tão complicadas que eles não conseguiammais pagar os medicamentos que nós precisávamos. Minha mãe procurou a Secretaria daSaúde do Estado onde nós estávamos morando para pedir ajuda. Foram dias terríveis, elanos vendo naquela situação sem poder nos ajudar. O local onde ela comprava os remédiosnão vendia mais fiado. Depois de muita luta, nós conseguimos uma verba para ajudar nacompra de boa parte dos medicamentos. Existe uma lei que diz que sempre teremos direitoa esse benefício.

No ano seguinte as coisas continuavam do mesmo jeito. Mas continuava estudando,nunca fui uma boa aluna, mas me esforçava o máximo para nunca ser reprovada e semprepassava de ano.

Quanto ao meu problema de pele, minha mãe conheceu uma médica em Palmas,Doutora Luciane Prado Silva Tavares, uma ótima médica. Ela fez um diagnóstico e come-çou um tratamento novo. A pele estava muito maltratada e os medicamentos não estavamfazendo mais efeito. Trocou de medicamentos. A pele estava tão acostumada que nãoaceitava outro medicamento, mas depois de tantas tentativas teve um creme manipuladoque deu certo. O tratamento deu tão certo que as pessoas já quase não percebem que tenhoalgum problema, muitos acham minha pele diferente, mas só ficam sabendo se eu contar.Só tenho que agradecer a Deus e a Doutora Luciane por sempre estarem ao nosso ladoquando precisamos.

Em 2000 estava terminando o terceiro ano do ensino médio e já estava me preparandopara prestar o vestibular. Prestei quatro vezes para Direito e não consegui.

Em 2004, mudamos para Palmas, a capital do Estado, por não ter ainda conseguidopassar numa universidade federal comecei a fazer um cursinho comunitário que durou umano. Foi quando resolvi prestar para um outro curso. Escolhi Comunicação Social na UFT,para minha felicidade fui aprovada e estou no quarto período. Estou gostando, mas nãodesisti do Curso de Direito, pois é o curso que eu quero.

Fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes através da minha irmã, quetambém estuda na UFT. Ela me incentivou para que eu fizesse a inscrição, tudo foimuito rápido, pois o período da inscrição estava chegando ao final, só teria mais doisdias, então juntei todos os documentos que precisava e no último dia da inscrição meescrevi. Fiquei na espera, mas não tinha muita esperança em ser chamada, pois antes jáhavia me escrito em tantos outros programas, mas em nenhum fui selecionada. Mas com

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a graça de Deus fui chamada. E o melhor era saber que além de ir trabalhar com ascomunidades, iria receber uma bolsa de trezentos reais que me ajudaria muito com osgastos com o curso. Jornalismo é um curso que precisamos ler bastante, como não tenhodinheiro para comprar livros uso esse dinheiro para tirar xerox.

Esta é a minha história. Continuo com o mesmo problema de pele, mas bem melhordesde que nasci. Continuo sendo acompanhada pela Doutora Luciane e fazendo parte doPrograma Conexões de Saberes.

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88 Caminhadas de universitários de origem popular

Quando criança com apenas cinco ou seis anos tudo o que eu mais queria era ir àescola. Ficava no quintal da minha casa esperando meu único irmão, três anos mais velhodo que eu, para lhe fazer perguntas sobre como tinha sido a aula naquele dia. Ele resistia emficar me descrevendo como tinha sido, já que ele estava muito acostumado com aqueleambiente, o que era algo muito esperado por mim.

Chegou a época que, segundo minha mãe, era o tempo certo de começar meusestudos. O engraçado é que eu me lembro muito bem do meu desejo em ir à escola, mas melembro pouco do meu primeiro ano de estudo. O que realmente me marcou neste primeiroano foi que eu tive que fazê-lo por duas vezes, não fui reprovada, mas minha mãe achouque eu não havia realmente aprendido o suficiente, então tive que repetir o ano em outraescola. Fiquei triste, pois eu já tinha feito os primeiros amigos na escola, de repente, iriater que mudar de escola e fazer o “prézinho”, como era chamado antigamente. A novaescola era muito diferente, era apenas uma sala de madeira com 25 alunos em média,grande parte deles vinham de famílias de origem popular. Logo após esse ano, cheguei aidade de ser aceita em um colégio estadual (que tinha bons conceitos entre a populaçãoem relação às escolas municipais na época). Aí, pude iniciar a primeira série do ensinofundamental como conhecemos hoje.

Minha mãe sempre acreditou que a melhor maneira de nos assegurar um futuro comboas realizações era sempre nos garantir estudo, mas estudo com qualidade. Mesmo semter condições financeiras para pagar escolas caras, sempre se preocupou com isso. Memudou de escola estadual para uma municipal menor, para eu cursar a terceira série. Destasérie em diante, são as que eu tenho mais recordações e consciência do quanto eu mesentia insegura naquele ambiente. Insegurança que acredito ter sido conseqüência deminha timidez em me expor em público, algo que sempre me prejudicou, pois nunca faziaperguntas aos professores e nunca tive atitudes de liderança na turma ou grupos de ami-gos, sempre queria passar por invisível.

Aos 11 anos, passei a cursar a quinta série em uma escola estadual da cidade. Ao finalda sétima série, eu e minha mãe decidimos que eu deveria cursar a oitava série em umaescola municipal, que estava sendo bastante comentada por ter um número maior de profes-sores graduados, já que era muito comum professores sem nenhuma graduação ministraremas disciplinas. Nesta série, há um fato interessante, como não havia na cidade nenhuma

Tayanna Fonseca Pimentel*

A história de uma vida

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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escola particular que oferecesse a 7ª série, tínhamos nesta sala da escola municipal alunosde classe média e alunos de classe popular, foi muito interessante observar a troca deexperiência entre esses alunos.

Particularmente, surgiu o desejo de me mudar de cidade, procurar uma cidade maiorque oferecesse outras atividades, como curso de informática, que ainda era pouco difundi-do na cidade que eu morava.

Sugeri para minha mãe a vontade de morar em outro lugar, como na época eu tinhauma madrinha que morava em Palmas-TO, minha mãe resolveu conversar com ela. Bem, elagostou da idéia, pois sempre teve muito carinho por mim. Mas algo que eu nem imaginavaaconteceu, um irmão da minha mãe, Amauri, meu padrinho de batismo, ofereceu sua casaem Pareuapebas-PA onde ele morava com sua família para eu morar com eles. Eu adorei aidéia de ir morar lá, já que eu conhecia a cidade.

Em Parauapebas, apesar de eu estar muito empolgada com o local, a nova escola eos novos amigos me fizeram sentir o mesmo sentimento de quando criança, uma insegu-rança muito grande. Nos primeiros dias de aula, percebi algo diferente nos alunos,todos tinham muitas expectativas, diferentes dos amigos das escolas anteriores, ondemuitos se limitavam apenas com o que era lhes exigido no ensino médio. Nessa escola,em Parauapebas, os alunos tinham planos de cursar um nível superior, isso colaboroumuito com a minha vontade de sempre buscar mais. Passei a perceber um mundo que eupraticamente desconhecia. Mesmo cursando o ensino médio, eu ainda não conseguiadecidir qual profissão seguir.

O terceirãoQuando fui cursar o terceiro e o último ano do ensino médio, decidi mudar de escola

e fazer um cursinho pré-vestibular particular. Era o primeiro cursinho da cidade, pois tinhase instalado na cidade uma universidade pública. A escola pública tinha uma didática fracaem relação à do cursinho. Na verdade, eu achava tudo muito difícil nesse cursinho e passavaa perceber que o ensino público ainda não tinha condições de preparar alunos pra universi-dade: minha dificuldade em aprender me desanimava. Porém, eu não tinha idéia do que erauma universidade, nem mesmo havia entrado em uma. Mas sabia que eu iria conseguir,sempre tive fé que Deus me ajudaria de alguma forma.

No final do terceiro ano, cheguei à conclusão de que o melhor lugar para eu tentarvestibular seria em Palmas-TO. Quando me inscrevi no vestibular, eu queria fazer psi-cologia. Mas na UNITINS, que naquele momento se encontrava em fase de transiçãopara torna-se Federal, que pouco tempo depois passou a ser UFT, Universidade Federaldo Tocantins, não tinha Psicologia. Acabei tentando para Ciência da Computação. Fizprimeiro um cursinho pré-vestibular, chamado intensivão, em um mês. Fiz o vestibulare não fui “selecionada”. Uma tristeza imensa, pois quando dei a notícia para minha mãeela não conseguiu disfarçar sua decepção. Seis meses de espera e eu fui tentar novamen-te, dessa vez o vestibular em duas faculdades particulares. Minha mãe me disse queiríamos tentar financiar a faculdade. Porém, o primeiro resultado que saiu era negativo,eu não havia passado.

Fui passar uns dias com meu pai em Redenção-PA, lá encontrei um casal, amigo demeus pais, que considero como tios que me falou que as inscrições do vestibular da UNITINShaviam sido prorrogadas. Neste mesmo dia minha mãe me diz que eu fui aprovada em

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Psicologia pela Universidade Católica de Goiás, fiquei muito emocionada, mas triste como preço das mensalidades na minha mente. Uma tia minha me convenceu a fazer a inscriçãopara a UNITINS novamente, já que havia sido prorrogado o prazo. No dia que fui providen-ciar os documentos para enviar pelos correios, eu senti uma certeza, como se soubesse queia passar. Era o último dia para envio de documentos, foi uma correria, mas tudo estavaacontecendo de maneira positiva.

Recordo-me de que orava a Deus e pedia a Ele que eu passasse em último lugar, masque fosse aprovada. Demorou poucos dias até que o resultado saísse, já que esse vestibularera o último realizado pela UNITINS, hoje, UFT.

Eu estava tomando banho quando dois primos meus e uma amiga começaram a gritarna porta do banheiro que eu havia passado. Foi ótimo! Muito emocionante! E sem nenhumcusto, pois era gratuito o curso. Mas ainda fui a um ciber-café ter certeza absoluta e vi meunome na lista de aprovados no curso de Engenharia de Alimentos. Foi maravilhoso aquelemomento, daí fui ligar para minha mãe para dar-lhe a notícia.

Quando fui fazer minha matrícula pedi meu desempenho do vestibular. Imediatamen-te lembrei-me das orações, pois fui aprovada em 40º lugar como pedi.

Cursando o sexto período de faculdade (3 anos), eu estava procurando algum projetode extensão para participar, foi quando meu namorado me falou do edital do Conexões deSaberes que ele havia visto no mural da faculdade. Eu procurei ler o edital, mas não entendiexatamente o que era o Conexões. O que chamou realmente minha atenção para o Programafoi para a proposta de trabalhar em comunidades populares. Levei toda documentaçãosolicitada e aguardei o resultado, em poucos dias saiu o edital de divulgação, meu nomeestava lá. Fiquei muito feliz e ansiosa para conhecer o projeto.

Na primeira reunião do projeto, que tinha o objetivo de nos apresentar o Programa, eume identifiquei com o trabalho proposto. Mudou completamente minha visão quanto aosmeus direitos e deveres na sociedade. Hoje, dentro do Conexões, estamos por realizar al-guns projetos educativos em escolas públicas, um deles tem me deixado bastante ansiosaquanto aos resultados, tem por tema Educação Alimentar.

Atualmente vou cursar o oitavo período de Engenharia de Alimentos, restando ape-nas dois semestres para a conclusão do curso. Tenho muitas expectativas quanto aomercado de trabalho, por ser uma profissão ascendente, mesmo existindo o medo de nãome inserir rapidamente no mercado de trabalho. Pretendo trabalhar em consultoria paraindústria de alimentos.

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Muito prazer, meu nome é Yanne Pereira da Silva Oliveira. “Grande como de ladrãode cavalo esse nome”. Assim dizia minha querida madrinha. Esta é apenas uma das frasesque escutei quando criança e guardo na memória até hoje. Escrevendo este memorial,percebi que as minhas lembranças são o que me faz sonhar com o futuro. Coisa quesempre gostei de fazer.

Um dos meus sonhos era, caso não fosse gente, virar fada ou borboleta. Que sonhobobo, você deve ter pensado. Mas é verdade. E confesso que ainda penso muito nele. Minhavida nunca foi perfeita, porém, sempre procurei vê–la do melhor ângulo. Então, como todoconto de fadas que se preze, minha história começa assim:

Era uma vez uma família linda: José, o pai, Zilda, mãe, Yara, filha. Todos moravam emImperatriz, no Maranhão. No dia 4 de março de 1986 ganharam um presente: Eu. E no anoseguinte, minha irmã caçula, Ylária. Morávamos no bairro Nova Imperatriz, que ainda é o maispopular da cidade. Nossa casa era grande e a maioria dos meus tios e tias moravam conosco, poisno lugar onde cresceram, interior do Tocantins, não oferecia condições de estudo.

Meu pai faleceu de câncer quando eu tinha 3 anos de idade. Então tivemos que mudarpara uma casa menor no mesmo bairro e vender tudo que meu pai tinha conquistado parapagar as despesas. Acabou o luxo!

Tenho boas lembranças da casa onde cresci e que minha mãe mora até hoje. O lugar erasimples, a vizinhança boa, tinha uma turma de amigos e nos encontrávamos nas calçadasquase todos os dias para contar histórias, brincar de esconder, pular corda e elástico, brincardo sapo e do tubarão que nós mesmos inventamos.

Minha mãe trabalhava o dia inteiro para sustentar a casa, nos dava somente o necessá-rio. Com essa atitude plantou em nós três princípios de simplicidade e igualdade, pois senão tinha pra todas, ninguém ganhava. Assim, aprendemos a reconhecer coisas que real-mente importavam, como a família e o estudo.

Comecei a estudar com 4 anos, na Escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Lem-bro–me com saudade das minhas professoras, as tias Socorro, tia josefa, a diretora, da minhaamiga Taynah, que me acompanhou até o ensino fundamental e que mantenho contato atéhoje. Era muito bom, participava de todas as apresentações de desfile, inclusive dança defrevo. Mas o melhor momento era o do lanche. Taynah e eu pegávamos a merenda de duas

Yanne Pereira da Silva Oliveira*

Memorial

* Graduanda em Engenharia de Alimentos pela UFT.

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meninas do jardim II e comíamos na sala de aula. E no recreio, comíamos o nosso. Como euera má! (Risos). Também era muito gostoso quando cantávamos:

Meu lanchinho, meu lanchinhoVou comer, vou comerPra ficar fortinho, pra ficar fortinhoE crescer, e crescer...

No primário, fui estudar no SESI, que foi para mim a escola mais linda do mundo. Lá,encontrei vários amigos e aprendi valores que carrego comigo. Dentre eles estão a discipli-na e o respeito, que percebia todos os dias quando colocava o uniforme (camisa branca,meia branca, sapato preto e uma saia de prega azul, que eu detestava, mas que depois mudoupara uma calça de moletom azul que eu gostava) e participava do momento cívico: “a fila”.Era boa aluna e jogava basquete. O SESI fechou quando eu estava na sétima série. Todacidade sofreu porque o ensino era muito bom, eu mais ainda porque tinha que mudar deescola. Voltei para o Perpétuo Socorro, onde cursei a oitava série.

Minha mãe sempre nos incentivou a estudar. Dizia que queria formar três doutoras, sónão falava em que área. Por isso, investia tudo que tínhamos nos estudos. Ingênua, euachava que doutor era só médico. E como ouvia dizer sempre que faculdade de medicina eramuito concorrida, me dedicava totalmente aos estudos. Engraçado é que quando me per-guntavam eu falava que jamais faria medicina.

Resolvi fazer o seletivo do CEFET para estudar o ensino médio. Que derrota! Nãopassei. Tive que estudar na maior escola pública da cidade, Dorgival Pinheiro de Sousa. Foia pior época da minha vida. A escola era tão grande e com tantos alunos, que apesar de termuitos coordenadores era difícil organizar. Não tinha uniforme nem horários corretos, asaulas não rendiam, a maioria dos alunos era desinteressada, a outra parte se conformava eacabava também perdendo o gosto pelo estudo, o que estava acontecendo comigo. Pedipara mudar de escola, minha mãe não aceitou.

Penso que para ela, era como se fosse um castigo por não ter entrado no CEFET. Malsabia ela que estava jogando fora toda minha determinação e vontade de estudar, poiscomecei a matar aulas e tirar notas baixas. No segundo ano do ensino médio, percebi queestava me destruindo e apelei: “vou parar de estudar”. Minha mãe sorriu e disse que se ofizesse eu iria quebrar coco. Permaneci firme, perdi um ano de estudo.

No ano seguinte, após enfrentar uma mega fila, minha mãe me matriculou noColégio Graça Aranha, também público, porém com ensino diferenciado e muita orga-nização. Cursei o segundo e metade do terceiro ano, porque as escolas estaduais entra-ram em greve por tempo indeterminado. A diretora sugeriu que quem pudesse, mudassepara uma escola particular para não atrapalhar o vestibular. Então, juntei um grupo de amigose levei para o Perpétuo Socorro, ganhei um bom desconto e meu padrinho, Antônio,pagou as mensalidades.

Minhas irmãs e eu resolvemos fazer o vestibular da UFT, minha mãe não aceitava, poisimaginava que não conseguiria nos sustentar. Dizia ela que estudar fora era para filho degente rica. Ainda assim, estudei muito e fomos fazer a prova em Tocantinópolis, em Tocantins,ficamos na casa da tia Consola. Foram dois dias terríveis, não comi, nem dormi direito epermaneci assim até o dia do resultado. Tremia com medo de não passar. Depois da prova,Ylária e eu ficamos na casa do meu avô, que fica em Nazaré, próximo a Tocantinópolis. Lá,

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tem apenas um telefone público. Então, mandaram um recado avisando que uma de nóshavia passado. Achei que fosse o resultado do Prouni, que minha irmã se inscrevera, pois oda UFT só estava previsto para semana seguinte.

Só depois, Yara ligou pra avisar que era o resultado do vestibular e que Ylária e eutínhamos passado, respectivamente, para zootecnia, em Araguaína, e engenharia de alimen-tos, em Palmas. Fizemos uma festa regada à feijoada e churrasco. Uma cobra quase me picouno dia, apesar do susto, foi muito bom.

Após as comemorações, mamãe ficou paranóica, porque realmente não conseguirianos sustentar longe de casa. Rezava todos os dias pra dar tudo certo e Deus providenciouum emprego pra Yara. Meu tio João Batista falou que eu poderia morar na sua casa, com suafamília (Joelma, a esposa; Breno e João Henrique, seus filhos; Jaira, sua cunhada) e minhamãe só teria de mandar o dinheiro dos passes e almoço, pois o curso é integral.

Sempre fui muito vaidosa e a falta de recursos para tal fim serviu de incentivo para eume tornar multiuso, como dizem minhas amigas. Aprendi arrumar cabelo, unhas, cortar,costurar, cantar etc... foi desempenhando essas atividades informais que conseguia o di-nheiro das xerox e dos lanches. Agradeço a Deus todos os dias pelas providências que Eletoma em minha vida. Este ano que a situação lá em casa ficou difícil, fui selecionada para oConexões de Saberes. Agora, me sustento e tenho orgulho em dizer que sou universitária epretendo fazer mais um curso.

Estou a quase um ano no projeto e sempre, inclusive quando estava escrevendo estememorial, fui questionada a respeito da importância do nosso trabalho. Respondo primeiroque sou prova viva da importância do Conexões, pois auxilia na minha permanência nauniversidade, um de seus objetivos. Em segundo, friso que em nosso estado poucos são osjovens que pensam em freqüentar a universidade, por achar que é uma realidade distante eque não lhe pertence. Nós, enquanto bolsistas e sonhadores, temos o papel de incentivá–los, da maneira que nos for possível, a quebrar essa barreira. Uma das expectativas quetenho é conseguir plantar a semente do desejo de estudar em algumas pessoas. Será que ésonhar demais? (Risos)

Quero agora, apertar pause e dedicar estas últimas linhas e milhões de cheiros a minhamãe guerreira, alegre e serena, meu porto seguro, exemplo de disponibilidade e fé, a quemdarei tranqüilidade em breve; as minhas irmãs, familiares e amigos do peito, pelo apoio moral.E para os companheiros do Programa Conexões de Saberes, um pequeno verso que eu adotei:

Quem caminha sozinho pode atéchegar mais rápido,mas aquele que vai acompanhado, com certeza chegará mais longe. Gonçalo Trajano

Sempre sonhei em mudar o mundo. Estou ao seu dispor se for por amor as causasperdidas...

PLAYE a menina que queria ser fada é feliz...A história continua...

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