camilo cela - a colmeia

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A COLMEIA CAMILO JOSÉ CELA

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  • A COLMEIA CAMILO JOS CELA

  • Nota da Primeira Edio A minha novela A Colmeia, primeiro livro dasrie "Caminhos Incertos", no mais que umplido reflexo, uma sombra humilde daquotidiana, spera, entranhvel e dolorosarealidade. Mente quem quiser disfarar a vida com amscara da literatura. Esse mal corri asalmas; esse mal, que tem todos os nomes quelhe quisermos dar, no pode ser combatidocom os panos quentes do conformismo, coma cataplasma da retrica e da potica. Esta minha novela no aspira a ser mais -nem menos, certamente - que um troo davida narrado passo a passo, sem reticncias,sem estranhas tragdias, sem caridade, comoa vida decorre, exactamente como a vidadecorre. Queiramos ou no queiramos. Avida o que vive - em ns ou fora de ns -;

  • ns no somos mais que o seu veculo, o seuexcipiente, como dizem os farmacuticos. Penso que hoje no se pode escrever mais -melhor ou pior - como eu fao. Se pensasse ocontrrio, mudava de ofcio. A minha novela - por motivos particulares -vende-se na Repblica Argentina; os novosares - novos para mim - creio que fazem bemao texto impresso. A sua arquitectura complexa, e deu-me muito trabalho a realiz-la. Claro est que esta dificuldade tanto aposso fundamentar na sua complexidadecomo na minha rudeza. A sua aco decorreem Madrid - 1942 - e entre uma torrente, ouuma colmeia, de pessoas que s vezes sofelizes, e s vezes, no. As cento e sessenta personagens (1) ,que seagitam - no correm - nas suas pginas,levaram-me durante cinco largos anos pelo

  • caminho da amargura. Se acertei com eles ouse com eles me enganei, uma cota que devedecidir quem a ler. A novela no sei se realista, ou idealista, ounaturalista, ou outra coisa. To-pouco isto mepreocupa demasiado. Cada qual que ponha aetiqueta que queira: uma pessoa j est feita atudo. C.J.C. *1. Trata-se de um clculo bastante modestopor parte do autor: na lista das personagensque figura no fim do livro, Jos ManuelCaballero Bonald recorda duzentos e noventae seis personagens imaginrios e cinquentapersonagens reais; no total, trezentos equarenta e seis. (N. do E.) Nota da Segunda Edio Penso o mesmo que h quatro anos. Nomundo sucederam coisas estranhas - to-

  • pouco demasiado estranhas -, mas o homemacurralado, o menino vivendo como umcoelho, a mulher a quem se apresenta o seupobre e amargo po de cada dia pendente dosexo - sinistra maneira de o conseguir -, ologista ordenado e cauto, a rapariguinha emdesamor, o velho sem esperana, o doentecrnico, o suplicante e ridculo doentecrnico, a esto. Ningum os incitou.Ningum os arrastou. Quase ningum olhoupara eles. Se bem que A Colmeia um grito no deserto; possvel que seja um grito no muitoestridente ou despedaador. Neste pontojamais fiz iluses vs. Mas, em todo o caso, aminha conscincia est bem tranquila. Sobre A Colmeia, aps decorridos estes trsanos, tudo foi dito, bom e mau, e pouco,certamente, com um sentido comum.

  • Escusado ser dizer que as pessoascontinuam a pensar que a literatura, como oviolino, por exemplo, um entretenimentoque, bem visto, no faz mal a ningum. E esta uma das quebras da literatura. Mas no merece a pena deixarmo-nos invadirpela tristeza. Nada tem arranjo: certeza quetemos de suportar com asco e comresignao. E, como os mais elegantesgladiadores do circo romano, com um vagosorriso nos lbios. C.J.C. Nota da Terceira Edio Quereria desenvolver a ideia de que ohomem so no tem ideias. s vezes pensoque as ideias religiosas, morais, sociais,polticas, no so seno manifestaes de umdesequilbrio do sistema nervoso. Todaviaest longe o tempo em que se saiba que o

  • apstolo e o iluminado fossem carne demanicmio, insone e trmula flor dedebilidade. A histria, a indefectvel histria,vai a contrapelo das ideias. Ou margemdelas. Para se fazer a histria necessrio noter ideias, como para se fazer dinheiro necessrio no ter escrpulos. As ideias e osescrpulos - para o homem acossado: aqueleque chega a sorrir com o amargo ricto dotriunfador - so um estorvo. A histria como a circulao do sangue ou como adigesto dos alimentos. As artrias e oestmago, donde corre e no qual se escoa asubstncia histrica, so de duro e frioquartzo. As ideias so um atavismo - algumdia se reconhecer -, jamais uma cultura eainda menos uma tradio. A cultura e atradio do homem, como a cultura e atradio da hiena, ou da formiga, puderam

  • orientar-se sobre uma rosa de s trs ventos:comer, reproduzir-se e destruir-se. A culturae a tradio no so jamais ideolgicas massim, e sempre, instintivas. A lei da herana - amais espantosa lei da biologia - no estalheia a isto que aqui estou a dizer. Nestesentido talvez admitisse que existisse umacultura e uma tradio de sangue. Osbilogos, sagazmente, chamam-lhe instinto.Quem nega ou, pelo menos, relega o instinto- os idelogos -, constri o seu mecanismoartificioso sobre a problemtica existncia doque chamam o "homem interior", esquecendoa luminosa adivinhao de Goethe: est foratudo o que est dentro. Algum dia voltarei sobre a ideia de que asideias so uma efermidade. Penso o mesmo que h dois anos atrs. Daminha casa vem-se, ancorados na baa, os

  • cinzentos, poderosos e sinistros barcos daesquadra americana. Um galo cacareja, emqualquer galinheiro, e uma menina cantacom vozinha doce - oh o instinto! - os velhosversos da viuvinha do conde de Ore. No merece a pena deixarmo-nos invadirpela tristeza. A tristeza tambm umatavismo. C.J.C. Palma de Maiorca, 18 de Junho de 1957. Nota da Quarta Edio Continuamos com as mesmas inteisresignaes: as mesmas doces paisagens quetanto aproveitam ao pobre como ao rico. grave confundir a anestesia com a esperana;tambm o tomar o nobre rabanete dapacincia pelas folhas ruins - murchas,desfeitas, trmulas - da renncia.

  • Desde a ltima sada destas pginaspassaram j cinco anos; o tempo, nos nossoscoraes, leva parado cinco anos, como umaave pernalta morta - erecta e ignorante -sobre a morta rocha alcantilada. Que ridcula,a carne que envelhece sem escutar a sapatada- ou o lento rudo - do tempo, esse lacrau! Sobre os surrados couros dos meus tteres(Juan Lorenzo, natural de Astorga, teria ditoque eram forneinos e de rafez affer(1)tinham cado no cinco mas sim vinte lentos,degolados, montonos anos. Para os meus -que o tempo palpita em todos e da sua marcanem a badana dos trs barbeadosestamentos(2) se livra: curas, cmicos etoureiros - tambm soaram os vinte agros (ouno to agros) avisos de vinte sansilvestres. Sim. Passaram os anos, to dolorosos quequase nem se sentem, mas a colmeia continua

  • a agitar-se, apesar de tudo, em adorao epasmo do que no entende nem lhe liga.Umas insgnias (a coleira do co que nomuda) foram arrombadas pelas outras e oscostumes dos meus pobres coelhosdomsticos (uns pobres coelhos domsticosque, *1. Fornicrios e de fcil negcio. Nosingular. Livro de Alexandre, verso 1016 d. 2.Cada um dos corpos legislativosestabelecidos em Espanha pelo estatuto real,em 1834. ao que parece, s aspiram a andarsossegados) foram-se acumulando, dceis equase suplicantes, ltima pancada que lhesassentou (que iluso mandar praa todos osdias!) nas orelhas. A histria - e este um livro de histria, nouma novela - acontece que, de vez em

  • quando, deixa de se entender. Mas a vidacontinua, ainda a seu pesar, e a histria,como a vida, tambm continua a digerir-se nainclemente panela da sordidez. Se calhar asordidez, como a tristeza de que falava hcinco anos, tambm um atavismo. A poltica - disse-se - a arte de encaminhar ainrcia da histria. A literatura,provavelmente, no outra coisa que a arte(e, se calhar, nem ainda isso) de resenhar amarejada daquela inrcia. Tudo o que noseja humildade, uma imensa e descaradahumildade, sobra na equipagem de umescritor; essa mochila que ganharia emeficcia se se acertasse em tirar pela bocatodos os atavismos que a enchem. Ainda queento, talvez, a literatura morresse: coisa queto-pouco nos deveria preocupar demasiado. C.J.C.

  • Ultima Recapitulao Arrojar la cara importa, que el espejo no hay por qu. QUEVEDO ... um plido reflexo, uma sombra humildeda... realidade... sem reticncias, semestranhas tragdias, sem caridade... Nota da 1.a edio ... um grito no deserto...... no merece a penadeixarmo-nos invadir pela tristeza. Nota da 2.a edio As ideias religiosas, morais, sociais, polticas,no so seno manifestaes de umdesequilbrio do sistema nervoso. As ideias eos escrpulos... so um estorvo. Nota da 3.a edio Continuamos com as mesmas inteisresignaes... grave confundir a anestesiacom a esperana...

  • Nota da 4.a edio H regras gerais: as guas tornam sempre aosseus leitos, as guas tornam sempre a sair dosseus leitos, etc. Mas ao fantasma, ainda tnue,da realidade, no nasceu quem o assinale,quem lhe d uma cacetada certeira que o faaesticar o pernil de uma vez para sempre. Omundo gira, e as ideias (?) dos governantesdo mundo, as histerias, as soberbias, osenfermios atavismos dos governantes domundo giram tambm a compasso e segundoas convenincias. Neste vale de lgrimasfaltam duas coisas: sade para se rebelarem edecncia para manter a rebelio:honestamente e sem reticncias, com toda anaturalidade e sem fingir estranhas tragdias,sem caridade, sem escrpulos, sem insnias(tal como os astros andam ou os escaravelhos

  • fazem amor). Tudo o resto pacto e msicade flauta. Num desses giros, sonmbulos giros, domundo imediato, A Colmeia ficou dentro.Tambm podia ter acontecido o contrrio.Tambm podia no ter sido escrita por quema escreveu: outro t-lo-ia feito. Ou ningum(sejamos humildes, imenso e descaradamentehumildes, etc). O escritor pode chegar at aoassassnio para valorizar o seu livro; s seexige que - no seu assassnio e no seu livro -seja autntico e que no se deixe arrastarpelas afveis e doiradas rmoras com que asociedade, como uma decrpita amante,brinda em troca de que se mascare o latejodaquilo que sucede sua volta. O escritor tambm pode afogar-se na prpriavida: na violncia, no vcio, na aco. A nicacoisa que ao escritor no permitido sorrir,

  • apresentar-se nos concursos literrios, pedirdinheiro s fundaes e ficar, entre Pinto eValdemoro, a meio do caminho. Se o escritor no se sente capaz de se deixarmorrer de fome, deve mudar de ofcio. Averdade do escritor no coincide com averdade de quem reparte o oiro. No querdizer que o oiro seja menos verdadeiro que apalavra, e sim, somente, que a palavra daverdade no se escreve com oiro mas simcom sangue (ou com a merda de ummoribundo, ou com o leite de uma mulher,ou com lgrimas). A lei do escritor no tem mais que doismandamentos: escrever e esperar. Ocmplice do escritor o tempo. E o tempo oimplacvel gorgulho que corri e afunda asociedade que tortura o escritor. Nadaimporta nada, fora da verdade de cada qual.

  • E ainda menos que nada deve importar amscara da verdade (ainda a mscara daverdade de cada qual). O escritor a besta de sofrimentosinsuspeitveis, animal de resistncia sem fim,capaz de deixar a vida - ea reputao, e osamigos, e a famlia, e as mais confortveisninharias - em troca de um feixe de quartosde papel no qual se pode adivinhar a suaminscula verdade (que, s vezes, coincidecom a minscula e absoluta liberdadeexigvel ao homem). Ao escritor nada, nemsequer a literatura, lhe importa. O escritorobediente, o escritor atado ao carro dopoltico, do poderoso ou do paladino, brindaa quem da barreira v os touros (os homensclassificados em castas, classes ou colgios),um espectculo demasiado triste. No hescritor mais comprometido que aquele que

  • jura fidelidade a si mesmo, que aquele que secompromete consigo mesmo. A fidelidadeaos demais, se no coincide, como umamoeda com outra moeda, com a violenta eprpria fidelidade ao ditado da nossaconscincia, no manha de maior respeitoque a disciplina - ou os reflexoscondicionados - do cavalo de circo. O escritor nada pede porque nada - nem voznem caneta - necessita: basta-lhe a memria.Amordaado e manietado, o escritor continuaa ser escritor. E morto, tambm: porque a suavoz ressoa pelo ltimo confim do deserto, e arecordao das suas personagens por a fica.Mal que pesa aos pobres tteres que queremarranjar o mundo com o direitoadministrativo. sociedade, para ser feliz na sua anestesia(as folhas do rabanete da esperana), sobram-

  • lhe os escritores. O mal para a sociedade que no encontrou a frmula de os raspar desi ou de os fazer calar. To-pouco est nocaminho de o conseguir. Nos tempos modernos, o escritor adoptouquatro atitudes sucessivas ante os polticosobstinados em conduzir o homem porcaminhos artificiais (todos os caminhos poronde os polticos tm querido conduzir ohomem so artificiais, e todos os polticos seobstinaram em no permitir ao homemcaminhar pela sua senda natural de ntimaliberdade). Ao escritor que se tivesse trocadopor um poltico sucedia-lhe o escritor que seconformava a andar ao reboque do poltico.Ao escritor que se sente moo de cego dumpoltico, que ingnua soberbia!, continuar oescritor que ele desprezar. A histria tem jo nmero de pginas suficiente para nos

  • ensinar duas coisas: que jamais os poderososcoincidiram com os melhores, e que jamais apoltica (contra todas as aparncias) foi tecidapelos polticos (meros canalizadores dainrcia histrica). O fiscal desta inrcia e daschicotadas de quem quer, em vo, lev-la poraqui ou por ali, o escritor. O resultado nolhe h-de importar nada. A literatura no uma charada: uma atitude. C.J.C. Captulo Primeiro - No perder a oportunidade, j estou fartade o dizer, o mais importante. Dona Rosa vai e vem por entre as mesas docaf, tropeando nos clientes com o seuformidvel traseiro. Dona Rosa diz comfrequncia chia e lixaram-nos. Para DonaRosa, o mundo o seu caf e tudo o mais em

  • redor dele. H quem diga que os olhos daDona Rosa brilham quando chega aPrimavera e quando as raparigas comeam aandar de manga curta. Eu creio que tudo istoso mexericos: Dona Rosa nunca teria dadonada a entender. Nem com Primavera nemsem ela. Dona Rosa agrada-lhe, nem maisnem menos, arrastar as suas arrobas porentre as mesas. Quando est s, fuma bomtabaco e bebe ojn(1), bons copos de ojn,desde que se levanta at que se deita. Depoistosse e sorri. Quando est bem-disposta,senta-se na cozinha, num banco baixo, e lnovelas e folhetins, quanto mais sangrentosmelhor: tudo alimenta. Ento graceja com aspessoas e conta-lhes o crime da calle deBordadores ou o do expresso de Andaluzia. - O pai de Navarrete, que era amigo dogeneral Miguel Primo de Rivera, foi v-lo,

  • ps-se de joelhos e disse-lhe: "Meu general,por amor de Deus indulte o meu filho"; eMiguel Primo de Rivera, ainda que tivessecorao de oiro, respondeu-lhe: "No me possvel, amigo Navarrete; seu filho tem deexpiar as suas culpas no garrote." *1. Aguardente preparada com anis e acarat saturao (N. do T.) "Que tipos! - pensa. - preciso ter estmago!"Dona Rosa tem a cara cheia de manchas,parece que anda sempre a mudar a pelecomo um lagarto. Quando est pensativa,distrai-se e puxa tiras da cara, por vezesalgumas bem compridas. Depois volta realidade e passeia para trs e para diante,sorrindo aos clientes, que no fundo odeia,mostrando os dentes enegrecidos e cheios desujidade.

  • Leonardo Melndez deve seis mil duros(1) aoSegundo Segura, o engraxador. Oengraxador, que um pobre diabo raqutico eentorpecido, esteve a juntar durante muitosanos, para depois lhe emprestar tudo.Leonardo um oportunista que vive deexpedientes e de planear negcios que nuncase concretizam. No que saiam mal, no; que, simplesmente, no saem nem bem nemmal. Leonardo usa umas gravatas muitovistosas e pe fixador no cabelo, um fixadormuito perfumado que cheira ao longe. Temares de grande senhor e tambm um grandeaprumo, um aprumo de homem muitoviajado. A mim no me parece que tenhaviajado muito, mas a verdade que os seusmodos so de pessoa a quem nunca faltaramcinco duros na carteira. Trata os credores spatadas e eles sorriem-lhe e olham-no com

  • apreo, pelo menos por fora. No faltouquem pensasse j em met-lo em sarilhos,mas at agora ainda ningum chegou a viasde facto. A Leonardo o que mais lhe agradadizer so duas coisas: palavrinhas emfrancs, como por exemplo madame, rue ecravate, e tambm ns os Melndez.Leonardo um homem culto, um homemque indica saber muitas coisas. Joga sempreum par de partidas de damas e no bebeseno caf com leite. Aos das mesas prximasque v estarem a fumar tabaco claro, diz-lhesmuito delicadamente: "O senhor pode dar-meuma mortalha? Queria enrolar um cigarro,mas estou sem papel." Ento o outroresponde-lhe: "No, no tenho, mas se osenhor quiser um cigarro j feito... " Leonardofaz um gesto ambguo e tarda uns segundos aresponder: "Bem, ento para variar fumemos

  • tabaco claro. Creia que no sou grandeapreciador dessas fibras." s vezes o do ladono lhe diz mais que isto: "No, papel notenho, lamento no lhe poder ser agradvel",e ento Leonardo fica sem fumar. Com os cotovelos apoiados sobre o velho eencrostado mrmore das mesas, os clientesvem passar a proprietria, quase sem darempor ela, enquanto pensam, vagamente, nessemundo que, ai!, no foi o que podia ter sido,nesse mundo onde tudo foi falhando pouco apouco, sem que ningum o explicasse, *1. Moeda espanhola equivalente a 5 pesetas.(N. do T.) nem ao menos de um modo insignificante.Muitos mrmores das mesas foram anteslpidas nas Sacramentales(1); nalguns, queainda conservam as letras, um cego poderialer, passando as pontas dos dedos por

  • debaixo da mesa: Aqui jazem os restosmortais da Menina Esperanza Redondo,morta na flor da vida, ou R.I.P. o Ex.mo Sr. D.Ramiro Lpez Puente, subsecretrio doFomento. Os clientes dos cafs so pessoas que cremque as coisas passam por si, e que no merecea pena dar remdio a nada. No de DonaRosa, todos fumam e alguns meditam sobreas pobres, amveis e ntimas coisas que lhesenchem a vida ou que lhes esvaziam a vidainteira. H quem junte ao silncio um gestosonhador, de recordao imprecisa, e htambm quem puxe pela memria com a caraabsorta, e estampado nela o gesto da bestaruim, da amorosa, da suplicante bestacansada: a mo sustendo a fronte e o olharcheio de amargura como um mar calmo.

  • H tardes em que a conversao morre demesa para mesa, uma conversao sobre oabastecimento, ou sobre aquela criana mortaque ningum j recorda, aquela criana mortaque - o senhor no se lembra? - tinha o cabelolouro, era muito bonita e bastante magrita,vestia sempre um jersey creme e devia teruns cinco anos. Nestas tardes, o corao docaf lateja como o de um doente,descompassado, e o ar parece tornar-se maisespesso, mais cinzento, ainda que de vez emquando passe, como um relmpago, umalento morno que no se sabe donde vem,um alento cheio de esperana que abre, poruns segundos, um orifcio em cada esprito. A Jaime Arce, que apesar de tudo tem um arimportante, no fazem mais que protestar-lheletras. No caf, parece que no, tudo se sabe.Jaime pediu crdito a um banco, concederam-

  • lho e ele aceitou umas letras. Depoisaconteceu o que aconteceu. Meteu-se numnegcio onde o enganaram, ficou semvintm, apresentaram-lhe as letras e ele disseque no as podia pagar. Jaime Arce ,seguramente, um homem honrado e depouca sorte, nisto de dinheiro. Muitotrabalhador no , isso verdade, mas to-pouco teve sorte. Outros to vadios ou aindamais que ele, com um par de golpesafortunados, fizeram uns milhares de duros,pagaram as letras e agora andam por a todoo dia de txi e fumando bom tabaco. A Jaimeno lhe aconteceu isto: aconteceu tudo aocontrrio. Agora anda procura de rumo,mas no o encontra. Ainda se tivessecomeado a trabalhar na primeira coisa quelhe surgiu...

  • *1. Em Madrid, confraria que tem por fim oenterramento dos seus confrades emcemitrio Prprio. (N. do T.) mas como no surgia nada que valesse apena passava os dias no caf, com a cabeaapoiada no encosto de pelcia, olhando paraos doirados do tecto. s vezes cantava baixoum trecho de zarzuela, enquanto marcava ocompasso com o p. Jaime nunca pensava nasua desdita; na realidade acontecia que nuncapensava em nada. Olhava para os espelhos edizia: "Quem ter inventado os espelhos?"Depois olhava para uma pessoa qualquerfixamente, quase com impertinncia: "Aquelamulher ter filhos? Se calhar uma velhapudibunda." "Quantos tuberculosos estaroagora neste caf?" Jaime Arce fazia umcigarro fininho, uma palhinha, e acendia-o."H quem seja artista a afiar lpis, fazem-lhe

  • um bico que picaria mais que uma agulha enunca mais o estragam." Jaime muda deposio, tinha uma perna a ficar dormente."Que misterioso que isto! Tas, tas; tas, tas; eassim toda a vida, dia e noite, Inverno eVero: o corao." A uma senhora silenciosa que costumasentar-se ao fundo, no caminho que conduzaos bilhares, morreu-lhe o filho, ainda no hum ms. O jovem chamava-se Pao epreparava-se para entrar nos Correios. Aoprincpio disseram que fora uma paralisia,mas depois viu-se que no, tinha sido umameningite. Durou pouco tempo, tendo ficadologo sem os sentidos. Conhecia j todas aspovoaes de Leo, Castela-a-Velha, Castela-a-Nova e parte de Valena: (Castelln de LaPlana e, mais ou menos, metade de Alicante);foi uma grande pena ter morrido. Pao

  • comeou a andar mal desde uma molhadelaque apanhou quando criana. A me ficou s,porque o outro filho, o mais velho, andava acorrer mundo, no se sabia bem por onde.Pela tarde ia para o caf da Dona Rosa,sentava-se ao p da escada e ali ficavadurante as horas mortas, apanhando calor.Desde a morte do filho, Dona Rosa mostrava-se muito carinhosa com ela. H pessoas quegostam de ser atenciosas com quem est deluto. Aproveitam para dar conselhos, oupedir que tenham resignao ou nimo, eassim se sentem bem. Dona Rosa, paraconsolar a me de Pao, costuma dizer-lheque, para ter ficado tonto toda a vida, maisvaleu Deus t-lo levado. A me olha-a comum sorriso concordante e diz-lhe que, bemvistas as coisas, tem razo.

  • A me de Pao chama-se Isabel, Dona IsabelMontes, viva de Sanz. uma senhora aindade boa aparncia, que usa uma capa umpouco coada. Tem ar de ser de boa famlia.No caf respeitam-lhe o silncio e s de longeem longe alguma pessoa conhecida,geralmente uma mulher, de regresso doslavabos, se apoia sua mesa para lheperguntar: "Ento? J vai estando maisconformada?" Dona Isabel sorri e raramente responde;quando est um pouco mais animada,levanta a cabea, olha para a amiga e diz:"Que bom aspecto que voc tem, Fulaninha."O mais frequente, sem dvida, que nodiga nada: um gesto com a mo, ao despedir-se, e nada mais. Dona Isabel sabe que deoutra classe, pelo menos de outra maneira deser distinta.

  • Uma senorita de certa idade chama oempregado da tabacaria. - Padilla! - Diga, Dona Elvira! - Traz-me uma cigarrilha. A mulher procura na sua bolsa, cheia deternas e desonestas cartas antigas, e petrinta e cinco cntimos sobre a mesa. - Obrigada. - De nada. Acende com o olhar perdido a cigarrilha, edeita uma grande baforada. - Padilla! - Diga, Dona Elvira! - Entregaste-lhe a carta? - Sim, senhora. - Que te disse?

  • - Nada, no estava em casa. A criada disse-me que no me preocupasse, pois lhaentregaria sem falta hora do jantar. Elvira cala-se e continua a fumar. Sente-seum pouco esquisita, sente calafrios e parece-lhe que anda tudo roda. Elvira leva umavida de co, uma vida que, bem visto, nemmerecia a pena viver. No faz nada, isso certo, e por no fazer nada nem sequer come.L romances, vai ao caf, fuma uma ou outracigarrilha e fica espera do primeiro quecaia. O mal que o que cai costuma ser delonge em longe, e quase sempre do pior edefeituoso. A Jos Rodrguez de Madrid coube-lhe umprmio no ltimo sorteio. Os amigos dizem-lhe: - Houve sorte, hem?

  • Jos responde sempre o mesmo, parece quedecorou: - Ora! Oito miserveis duros. - No, homem, no d explicaes, porqueno vamos pedir-lhe nada. Jos escriturrionum tribunal e consta que tem algumaseconomias. Tambm dizem que casou com uma mulherrica, uma rapariga da Mancha, que morreucedo deixando tudo a Jos, e que ele seapressou a vender as quatro vinhas e os doisolivais, porque assegurava que os ares docampo faziam mal s vias respiratrias, e queprimeiro que tudo estava a sua sade. Jos, no caf de Dona Rosa, pede sempre umabebida; no um presumido nem umpobreto desses de caf com leite. Aproprietria olha-o quase com simpatia pelogosto comum ao ojn. "O ojn o melhor do

  • mundo; estomacal, diurtico ereconstituinte; cria sangue e afasta o espectroda impotncia." Jos fala sempre com muitapropriedade. Uma vez, h j um par de anos,pouco depois de terminada a Guerra Civil,teve uma altercao com o violinista. Quasetodos asseguravam que a razo estava dolado do violinista, mas Jos chamou aproprietria e disse-lhe: "Ou a senhora pe lfora a pontaps este desrespeitador edesavergonhado, ou eu no volto a pisar estelocal." Dona Rosa, ento, ps o violinista narua e no voltou mais a saber-se dele. Osclientes, que antes davam razo ao violinista,comearam a mudar de opinio e por fim jdiziam que Dona Rosa tinha feito muito bem,que era necessrio ter mo rija e castigar."Com estes desplantes, quem sabe ondeiramos parar!" Os clientes, para dizer isto,

  • adoptavam um ar srio, equnime, um poucoenvergonhado. "Se no h disciplina, no hmaneira de se conseguir algo de bom, que seaproveite", dizia-se por entre as mesas. Um homem j de certa idade conta aos gritosuma histria passada, j quase h meiosculo, com Madame Pimentn. - A grande imbecil pensava que meapanhava. Sim, sim... Era bonito! Convidei-aa tomar uns copos e ao sair bateu com a carana porta. Ah, ah! Sangrava como um bezerro.Dizia: "Oh, la, la; oh, la, la", e saiu cuspindoas tripas. Pobre desgraada, andava sempreembriagada! Bem visto, at tinha graa! Algumas caras, das mesas prximas, olham-no quase com inveja. So as caras das pessoasque sorriem em paz, com beatitude, nessesinstantes em que, quase sem darem por isso,chegam a no pensar em nada. As pessoas

  • so embusteiras por estupidez e, por vezes,sorriem, ainda que no fundo da sua almasintam uma repugnncia imensa, umarepugnncia que quase no podem conter.Por embustice pode-se at chegar aoassassnio; certamente que j se cometeualgum crime para se ficar bem com algum,para adular algum. - Deve tratar-se assim todos estes maganos;ns, pessoas decentes, no podemosconsentir que nos ponham os ps em cima.Bem dizia o meu pai! "Queres uvas? Entovem busc-las." Ah, ah! A grande sabida novoltou a arribar por ali! Por entre as mesas corre um gato gordo,reluzente; um gato cheio de sade e de bem-estar; um gato rolio e presunoso. Mete-sepor entre os ps de uma senhora e elasobressalta-se:

  • - Gato do diabo! Sai daqui! : O homem dahistria sorri-lhe com doura: - Mas, senhora, que mal lhe fazia o pobregato? Um jovem guedelhudo faz versos naquelabarafunda. Est alheio, no d conta de nada; a nica maneira de poder fazer versosbonitos. Se olhasse para os lados fugia-lhe ainspirao. Isso da inspirao deve ser comouma borboleta cega e surda, mas muitoluminosa; seno, no se explicariam muitascoisas. O jovem poeta est a compor um enormepoema, que se chama Destino. Teve as suasdvidas sobre se devia pr O destino, maspor fim, e depois de consultar alguns poetasmais versados, pensou que no, que seriamelhor intitul-lo simplesmente Destino. Eramais fcil, mais evocador, mais misterioso.

  • Alm disso, chamando-se Destino, ficavamais sugestivo, mais... como diramos?, maisimpreciso, mais potico. Assim no se sabiase se queria aludir a "o destino", ou a "umdestino", a "destino incerto", a "destino fatal"ou "destino feliz" ou "destino azul" ou"destino violado". O destino cingia-se mais,deixava menos campo para que a imaginaodivagasse vontade, fora de todo o enredo. O jovem poeta trabalhava j h vrios mesesno seu poema. Tinha trezentos e tal versos,uma maqueta cuidadosamente desenhada dafutura edio e uma lista de possveissubscritores, a quem, na altura, enviaria umboletim, para o caso de quererem inscrever-se. Havia tambm escolhido o tipo deimprensa (um tipo simples, claro, clssico;um tipo para ler com sossego; queremosdizer um bodni(1), e tinha j marcada a

  • quantidade da tiragem. Todavia, ainda duasdvidas atormentavam o jovem poeta: o prou no pr o Laus Deo a terminar o clofon, eo redigir, ele prprio ou no, a notabiogrfica para a badana da sobrecapa. Dona Rosa no era, certamente, o que sepode chamar uma sensvel. - E o que lhedigo, j o sabe. Para vadios j me basta o meucunhado. Boa rs! Voc est ainda muitoverde, percebe?, muito verde. Era o quefaltava! *1. Tipo de carcter tipogrfico, desenhadopelo impressor italiano Giovanni BattistaBodom (1740-1813). Onde que voc viu um homem sem culturae sem princpios andar por a armado emvalento como um finrio, como um senorito!No devo ser eu que o veja, juro-o! DonaRosa suava pelo bigode e pela testa.

  • - E tu, palerma, trata de ir buscar o jornal.Aqui no h nem respeito nem decncia, oque ! Se algum dia me viro do avesso, dou-vos gua pela barba! Ho-de ver! Dona Rosa cravava os seus olhitos de rato emPepe, o velho criado chegado h unsquarenta ou quarenta e cinco anos atrs, deMondonedo. Por detrs das grossas lentes, osolhitos de Dona Rosa parecem os olhosatnitos de um pssaro dissecado. - Que olhas? Que olhas? Parvo! Ests comoquando chegaste! No h Deus que lhes tireesse ar de velhaco! Anda, espevita e ir tudobem, porque se fosses mais homem j te tinhaposto com as patas na rua! Entendes-me?Pois lixam-se! Dona Rosa apalpa o ventre e volta a trat-lopor voc:

  • - Vamos, vamos... Cada qual ao seu trabalho.J sabe, no perder nunca a oportunidade,que gaita! Nem o respeito, entende?, nem orespeito. Dona Rosa levantou a cabea e respirouprofundamente. Os pelinhos do seu bigodeestremeceram com um gesto retardador, comum gesto airoso, solene, como o dos negroscornichos de um grilo apaixonado eorgulhoso. No ar paira como que um pesar que se vaicravando nos coraes. O corao di e podesofrer o que se passa, hora aps hora, attoda uma vida, sem que nunca ningumsaiba, apesar de toda a cincia. Um senhor de barba branca d bocadinhosde bolo, molhados em caf com leite, a ummenino amorenado que est sentado nos seusjoelhos. O senhor chama-se Trinidad Garcia

  • Sobrino e prestamista. O Sr. Trinidad teveuma primeira juventude turbulenta, cheia decomplicaes e de veleidades, mas quando opai morreu disse para si prprio: "De agoraem diante tens de ter cautela; seno, estsbem arranjado, Trinidad." Dedicou-se aosnegcios, teve juzo e enriqueceu. O sonho detoda a sua vida era ter sido deputado;pensava que ser um dos quinhentos entrevinte e cinco milhes no era nada mau. O Sr.Trinidad andou a procurar agradar durantealguns anos a vrias personagens da terceirafila do partido de Gil Robles, a ver seconseguia que o fizessem deputado; para eleo stio era igual; no tinha nenhumademarcao preferida. Gastou algumasmassas em convites, deu dinheiro para apropaganda, ouviu bonitas palavras,

  • mas por fim no apresentaram a suacandidatura por lado algum e nem sequer olevaram tertlia do chefe. O Sr. Trinidadpassou momentos difceis, de graves crises denimo, acabando finalmente por se tornar"lerrouxista". No partido radical parece queia bem, mas nisto veio a guerra e com ela ofim da sua pouco brilhante e no muitoprolongada carreira poltica. Agora o Sr.Trinidad vivia afastado da "coisa pblica",como o dissera Alejandro naquele diamemorvel, e conformava-se com que odeixassem viver tranquilo, sem lherecordarem os tempos passados, enquantocontinuava a dedicar-se ao lucrativo misterde emprstimo a juros. Pela tarde ia com oneto ao caf da Dona Rosa, dava-lhe o lanchee ficava calado, ouvindo a msica ou lendo ojornal, sem se meter com ningum.

  • Dona Rosa apoia-se a uma mesa e sorri. - Que me conta, Elvirita? - Como a senhora v, pouca coisa. Elvira d uma fumaa e meneia um pouco acabea. Tem as faces estragadas e asplpebras vermelhas, como se fossemdelicadas. - Arranjou aquele? - Qual? - O de... - No, saiu mal. Andou comigo trs dias edepois ofereceu-me um frasco de fixador. Elvira sorri. Dona Rosa semicerrou os olhos,cheia de pena. - Ainda h gente sem conscincia, filha! - Ora! Que me importa! Dona Rosa aproxima-se e diz-lhe ao ouvido: - Porque no arranja as coisas com Pablo?

  • - Porque no quero. Uma pessoa tambm temo seu orgulho, Dona Rosa. - Lixam-se! Todas temos as nossas coisas!Mas o que lhe digo, Elvirita, e j sabe quequero sempre o melhor para si, que comPablo ia bem, no tenha dvida. - Nem por isso. um tipo muito exigente. Ealm disso um baboso. Acabei por meaborrecer, que quer! At me davarepugnncia. Dona Rosa fala com voz meiga, a vozpersuasiva dos conselhos: - Tem de ter maispacincia, Elvirita! Voc ainda muitocriana! - Julga isso? Elvirita cospe para debaixo da mesa e limpa aboca com a ponta de uma luva. Um tipgrafo enriquecido, chamado Vega,Mrio de la Vega, fuma um charuto

  • descomunal, um charuto que parece ser deanncio. O da mesa ao lado trata de semostrar simptico. - Que rico charuto que o amigo est a fumar!Vega, sem o olhar, responde-lhe comsolenidade: - Sim, no mau, mas tambm me custou umduro. O da mesa ao lado, homem raqutico esorridente, teria gostado de dizer algo assim:"Isso, para si, que ?", mas no se atreveu; porsorte envergonhou-se a tempo. Olhou para otipgrafo, voltou a sorrir com humildade, edisse: - S um duro? Parece pelo menos de setepesetas. - Pois no: um duro e trinta cntimos degorjeta. Com este j fico satisfeito. - Sem dvida!

  • - Homem! No creio que seja necessrio serum Romanones para fumar destes charutos. - Um Romanones, no, mas veja o senhor, euno o podia fumar, e como eu muitos dos queaqui esto. - Voc quer fumar um? -Eu...! Vega sorriu, quase arrependendo-se do queia dizer. - Ento trabalhe como eu trabalho. O tipgrafo soltou uma gargalhadadescomunal, violenta. O homem raqutico esorridente da mesa ao lado, deixou de sorrir.Corou, sentiu um calor a queimar-lhe asorelhas e os olhos comearam a ficaravermelhados. Baixou o olhar para no seaperceber que todo o caf o olhava; ele, pelomenos, assim o julgava. Enquanto Pablo, um miservel que v ascoisas pelo pior, sorri contando o caso de

  • Madame Pimentn, Elvira deixa cair a pontada cigarrilha e pisa-a. Elvira, de vez emquando, tem gestos de verdadeira princesa. - Que mal lhe fazia a si o gatinho? Bichinho,bichinho, toma, toma...! Pablo olha para asenhora. - Temos de ver como os gatos sointeligentes! Discorrem melhor que algumaspessoas. So uns animaizinhos que entendemtudo. Bichinho, bichinho, toma, toma...! O gato afasta-se sem voltar a cabea e mete-sena cozinha. - Eu tenho um amigo, homem endinheirado ede grande influncia, no v pensar que umpelintra, que tem um gato persa, o qual dpelo nome de Sulto, e que um prodgio. - Sim? - Assim o julgo! Diz-lhe: "Vem c, Sulto", e ogato vem movendo o seu bonito rabo, que

  • parece um penacho. Diz-lhe: "Vai, Sulto", e oSulto vai como um cavalheiro muito digno.Tem um andar muito vistoso e um plo queparece seda. No creio que haja muitos gatoscomo esse; esse, entre os gatos, algo como oduque de Alba entre as pessoas. O meuamigo quer-lhe como a um filho. Claro,tambm verdade que um gato que cativa. Pablo vagueia o olhar pelo caf. H ummomento em que d com Elvira. Pestaneja evolta a cabea. - E como so afectivos, os gatos! J reparoucomo so afectivos? Quando so acarinhadospor uma pessoa j no se esquecem dela portoda a vida. Pablo pigarreia um pouco e fala com vozgrave, importante: - Exemplo que deviam seguir muitos sereshumanos!

  • - Tem razo. Pablo respira profundamente. Est satisfeito.A verdade que isso de "exemplo quedeviam seguir", etc, tinha-lhe sado a primor. Pepe, o criado, regressa ao seu lugar semdizer palavra. Ao chegar aos seus domnios,apoia uma das mos nas costas de umacadeira e v-se nos espelhos como se vissealgo de muito raro. V-se de frente, no queest mais prximo; de costas, no do fundo; deperfil, nos das esquinas. - O que esta velha bruxa precisava era queum dia a abrissem de alto a baixo. Porca!Velha sabida! Pepe um homem a quem as coisas passamdepressa; basta-lhe dizer, em voz baixa, umafrase que no se atreveria a dizer em voz alta. - Usureira! Mesquinha! At comes o po dospobres!

  • Pepe gosta muito de dizer frases trabalhadasnos momentos de mau humor. Depois vai-sedistraindo pouco a pouco e acaba poresquecer tudo. Dois midos de quatro ou cinco anosbrincam aos comboios, aborrecidos, semnenhum entusiasmo, por entre as mesas.Quando vo at ao fundo da sala, um faz demquina e o outro de vago. Quandoregressam at porta, trocam. Ningum lhesliga importncia, mas eles seguemimpassveis, enfastiados, brincando para trse para diante com uma convico tremenda.So dois midos ordenados, coerentes, doismidos que brincam aos comboios, ainda quese aborream como ostras, porqueresolveram divertir-se e, para divertir-se,resolveram, acontea o que acontecer, brincartoda a tarde aos comboios. Se eles no

  • conseguirem, que culpa tm? Fazem todo opossvel. Pepe olha-os e diz-lhes: - Vocs ainda caem... Embora j esteja quase h meio sculo emCastela, Pepe fala o castelhano traduzindodirectamente do galego. Os midosrespondem-lhe "no senhor", e continuam abrincar sem f, sem esperana, at mesmosem caridade, como quem cumpre umdoloroso dever. Dona Rosa mete-se na cozinha. - Gabriel, quantas onas deitaste? - Duas, minha senhora. - Vs? Ests a ver! Assim no h quemaguente! No te expliquei bem claro que nodeitasses mais que ona e meia? Com vocsno vale a pena falar em espanhol, porquenunca lhes apetece entend-lo.

  • Dona Rosa respira e volta carga. Respiracomo uma mquina, arquejante, precipitada:todo o corpo em sobressalto e um silvo aroncar-lhe no peito. - E se a Pablo lhe parece que est muito claro,que v com a mulher dele aonde lhes sirvammelhor! Esta boa! S visto! Esse desgraadopernalta no sabe que, graas a Deus, o queaqui sobram so os clientes. Entendes? Se nolhe agrada que se ponha a andar; aindaganhamos. Nem que fossem reis! A mulherdele uma vbora de quem j estou farta.Muito farta o que eu estou de Dona Pura! Gabriel previne-a, como de costume. - Olhe que a ouvem, minha senhora! - Que oiam, para isso que eu falo! Eu notenho papas na lngua! S no sei como essemastrono se atreveu a correr com a Elvirita,que um anjo e que no pensava seno em

  • agradar-lhe, e aguenta como um cordeiro aenredadora da Dona Pura, que umaintriguista sempre a morder pela calada!Enfim, ver para crer, como dizia a minha meque Deus tem. Gabriel trata de compor as coisas. - Quer que tire um pouco? - Tu bem sabes o que deve fazer um homemhonrado. Quando queres, sabes muito bem oque te convm! Padilla, o empregado da tabacaria, fala comum novo cliente que lhe comprou um pacoteinteiro de tabaco. - E est sempre assim? - Sempre, mas no m pessoa. Tem umpouco de gnio, mas no m. - Mas quele criado chamou-lhe parvo! - Ora, isso que importa! s vezes tambm noschama maricas e vermelhos.

  • - E vocs ficam assim to tranquilos? - Sim, senhor, ficamos tranquilos. O novocliente encolhe os ombros. - Bom, bom... O empregado vai dar outra volta pela sala. Ocliente fica pensativo. - Eu no sei quem ser mais miservel, seessa foca suja e enlutada ou esta scia delorpas. Se a agarrassem um dia e lhe dessem,entre todos, uma boa sova, com certeza queentrava na ordem. Mas, qu!, no se atrevem.Por dentro estaro todo o dia a jurar-lhe pelapele, mas por fora o que se v! "Parvo, saidaqui! Ladro, desgraado!" E eles,encantados. "Sim, senhor, ficamostranquilos." E verdade! Diabo de gente,assim at d gosto! O cliente continua a fumar. Chama-seMaurcio Segovia e est empregado na

  • Companhia dos Telefones. Digo isto tudoporque, se calhar, ainda volta a aparecer.Tem uns trinta e oito ou quarenta anos,cabelo ruivo e a cara cheia de sardas. Vivelonge, para os lados de Atocha; veio a estebairro por casualidade; veio atrs de umarapariga que, de repente, antes que Maurciose decidisse a dizer-lhe algo, dobrou umaesquina e entrou na primeira porta. Segundo, o engraxador, vai gritando: - Senhor Surez! Senhor Surez! O Sr. Surez, que tambm no um habitual,levanta-se donde est e vai ao telefone.Coxeia de cima, no do p. Veste um fatomoderno de cor clara, e usa lunetas.Aparenta ter uns cinquenta anos e parece serdentista ou cabeleireiro. Olhando bem,parece tambm um viajante de produtosqumicos. O Sr. Surez tem todo o ar de ser

  • um homem muito atarefado, desses quedizem ao mesmo tempo: "Um caf"; aoengraxador: "Rapaz, arranja-me um txi."Estes senhores to ocupados, quando vo aobarbeiro fazem a barba, cortam o cabelo,arranjam as unhas, engraxam os sapatos elem o jornal. s vezes, quando se despedemde um amigo, advertem-lhe: "Das tantas stantas estarei no caf; depois dou um salto aoescritrio, e ao fim da tarde passarei por casado meu cunhado; os nmeros dos telefonesvm na lista; agora vou porque ainda tenhouma srie de pequenos assuntos a resolver."Nota-se logo que estes homens so ostriunfadores, os escolhidos, os acostumados amandar. Ao telefone, o Sr. Surez fala em voz baixa,esganiada, um tanto afectada. O casaco est-

  • lhe um pouco curto e as calas esto-lhejustas, como as de um toureiro. - s tu? - Sim... sim... Bem, como queiras. - Entendido. Bem; no te preocupes que nofaltarei. - Adeus, querida. - Ah, ah! L ests tu com as tuas coisas!Adeus, amor; agora deixo-te. O Sr. Surez volta sua mesa. Vai a sorrir eleva agora a coxeadura um pouco maistrmula, a estremecer; uma coxeadura quasecachonda, uma coxeadura coqueta,estabanada. Paga o caf, pede um txi e,quando ele chega, levanta-se e sai. Olha coma cabea bem erguida, como um gladiadorromano; conhece-se que vai transbordante dealegria, radiante de gozo.

  • H algum que o segue com a vista at eledesaparecer tragado pela porta giratria. Semdvida alguma que h pessoas que chamammais a ateno que outras. Conhecem-sebem, como se tivessem um sinal na testa. A proprietria d meia volta e encaminha-separa o balco. A cafeteira niquelada no cessade deitar cafs, enquanto a registadora derespeitvel antiguidade soa constantemente. Alguns criados de caras flcidas, tristonhas,amarelentas, esperam, metidos nos seus jestafados smokings, com a bandeja apoiadasobre o mrmore, que o encarregado dasdistribuies lhes d os pedidos e as chapasdoiradas e prateadas dos mesmos. O encarregado desliga o telefone e reparte oque lhe foi pedido. - Com que ento a falar outra vez ao telefone,como se no houvesse nada mais que fazer?

  • - Estava a pedir mais leite, minha senhora. - Sim, mais leite! Quanto trouxeram estamanh? - O costume, minha senhora: sessenta. - E no foi o suficiente? - No, parece-me que no vai chegar. - Caramba, nem que estivssemos naMaternidade! Quanto pediste? - Mais vinte. - E no sobrar? - No creio. - No creio? Lixam-nos! E se sobra, diz-me? - No, no sobrar. Julgo eu! - Sim, "julgo eu", como sempre "julgo eu",isso muito fcil. Mas se sobra? - Ver que no h-de sobrar. Veja como est asala. - Sim, claro, como est a sala, como est asala. Isso diz-se muito bem. Verias onde iam

  • todos se eu no fosse honrada e servisse bem!So umas ricas prendas! Os criados, olhando para o cho, procurampassar despercebidos. - E vocs vejam se se mexem. H muitos cafsnessas bandejas! Ser que esta gente no sabeque temos rochas, biscoitos e tortas? No, jsei! So vocs que no dizem nada! O quequereis que eu me visse na misria. Masenganam-se! J sei com quem tenho de mehaver! Esto lindos! Anda, vamos a mexeressas pernas e a pedir a qualquer santo queno me suba a mostarda ao nariz. Os criados, como quem ouve chover,afastam-se do balco com os pedidos. Nemum s olha para Dona Rosa. To-poucopensam na Dona Rosa. Um dos homens, com os cotovelos sobre amesa, a testa apoiada na mo - olhar triste e

  • amargurado, e expresso preocupada esurpreendida -, fala com o criado. Trata desorrir com doura, parece um midoabandonado que pede gua numa casa docaminho. O criado faz gestos com a cabea e chama omoo do caf. Luis, o moo, aproxima-se da proprietria. -- Minha senhora, o Pepe diz que aquelesenhor no quer pagar. - Que se arranje como puder para lhe sacar amassa; isso com ele; se no conseguir, diz-lhe que paga do seu bolso e pronto. A proprietria ajusta os culos e observa. - Qual ? - Aquele dali, o que tem culos de arame. - Que tipo, sim senhor. Isto, sim, que temgraa! Com essa cara! Ouve, e por que cargade gua no quer pagar?

  • - Pois... Diz que veio sem dinheiro. - Claro, s faltava este teimoso! O que sobraneste pas so tratantes. O moo, sem olharDona Rosa nos olhos, fala num fio de voz: - Diz que vir pagar quando tiver dinheiro. As palavras, ao sarem da garganta da DonaRosa, soam como um trovo: - Isso o que dizem todos, e depois, para umque volta h cem que nunca mais aparecem ese te vi no me lembro. Nem falar! Ingratosque pagam o bem com o mal! Diz ao Pepeque j sabe: para a rua com suavidade, e, nopasseio, duas patadas bem dadas onde calhe.Lixam-nos! O moo j se afastava quando Dona Rosavoltou a falar-lhe: - Escuta! Diz ao Pepe que fixe a cara dele! - Sim, minha senhora.

  • Dona Rosa ficou a ver a cena. Luis chega atPepe e fala-lhe ao ouvido: - Isto foi tudo o que ela disse. Por mim, sabeDeus! Pepe aproxima-se do cliente e este levantou-se lentamente. um homenzinho enfezado,plido, adoentado, com uns pobres culos dearame. Veste uma americana coada e calasdesfiadas. Cobre-se com um impermevelcinzento-escuro, com o cinto cheio degordura, e leva debaixo do brao um livroforrado com jornal. - Se deseja, deixo-lhe o livro. - No. Ande, vamos para a rua, no meaborrea. O homem vai at porta, seguido de Pepe.Saem os dois. Faz frio e as pessoas passamligeiras. Os ardinas apregoam os jornais datarde. Pela Calle de Fuencarral desce um

  • elctrico tristemente, tragicamente, quaselugubremente barulhento. O homem no um qualquer, um de tantos,no um homem vulgar, um ser corrente emaador; tem uma tatuagem no braoesquerdo e uma cicatriz na virilha. Estudou etraduz alguma coisa de francs. Seguiu comateno o vaivm do movimento intelectual eliterrio, e alguns episdios do El Sol quepoderia repetir quase de memria. Em novoteve uma noiva sua e comps poesiasaltrustas. O engraxador fala com Leonardo. Leonardoest a dizer-lhe: - Ns os Melndez, idoso ramo aparentadocom as mais antigas famlias castelhanas,fomos outrora senhores de vidas epropriedades. Hoje, como v, estamos quaseno meio da rua!

  • Segundo Segura sente admirao porLeonardo. Que Leonardo lhe tenha roubadoas suas economias , pelo visto, algo que oenche de pasmo e de lealdade. Hoje Leonardo est loquaz com ele, e eleaproveita-se disso e anda em seu redor comoum co fraldisqueiro. H dias, sem dvida,em que tem pior sorte e Leonardo trata-o spatadas. Nesses desditosos dias, oengraxador aproxima-se muito submisso efala-lhe humildemente. - O senhor manda! Leonardo nem lhe responde. O engraxadorno se preocupa e volta a insistir: - Que dia de frio! - Sim. Ento o engraxador sorri. feliz e, por sercorrespondido, teria dado outros seis milduros.

  • - Quer que d um pouco de brilho? O engraxador ajoelha-se, e Leonardo, quasesem o olhar, pe o p, com displicncia, napalmeta de ferro da caixa. Mas hoje, no. Hoje Leonardo est contente.Certamente est a redondear o anteprojectopara a criao de uma importante SociedadeAnnima. - J l vai o tempo, oh, mon Dieu!, em quequalquer de ns ia Bolsa e, a, ningumcomprava ou vendia sem ver o que nsfazamos. - Bons tempos! Hem? Leonardo faz um gesto ambguo com a boca,enquanto gesticula com a mo. - Tem uma mortalha? - diz ao da mesa dolado. - Queria fumar e neste momento estousem papel.

  • O engraxador cala-se e dissimula; sabe que esse o seu dever. Dona Rosa aproxima-se da mesa de Elvirita,que estivera a ver toda a cena do criado e dohomem que no pagou o caf. - Viu isto, Elvirita? Elvira tarda uns instantes a responder. - Pobre rapaz! Se calhar no comeu em todo odia, Dona Rosa. - Tambm voc me sai romntica? Estamosservidos! Juro-lhe que em ternura no hquem me ganhe, mas, com estes abusos! Elvirita no sabe o que responder. A pobre uma sentimental que foi para a vida fcilpara no morrer de fome, pelo menos, todepressa. Nunca soube fazer nada, e almdisso to-pouco bonita ou de modos finos.Em sua casa, desde pequena, no viu maisque desprezo e calamidades. Elvirita era de

  • Burgos, filha de um indivduo perigoso, quese chamava Fidel Hernndez. FidelHernndez, que matou Eudosia, sua mulher,com uma forma de sapateiro, foi condenado morte e garrotado porGregorio Mayoral no ano de 1909. Ele dizia:"Se a mato com sulfato na sopa, nem Deus sed conta." Elvirita, quando ficou rf, tinhaonze ou doze anos e foi para Villaln vivercom uma av que era quem tratava de SantoAntnio na parquia. A pobre velha viviamal e quando garrotearam o filho comeou adefinhar-se e em pouco tempo morreu. Asoutras raparigas do povoado metiam-se coma Elvirita e apontando-lhe a picota diziam-lhe: "Foi numa como esta que penduraram oteu pai, asquerosa!" Elvirita, um dia em quej no podia aguentar mais, saiu do povoadocom um asturiano que tinha vindo vender

  • amndoas. Andou com ele dois largos anos,mas como ele lhe dava umas sovastremendas que a desancavam, um dia, emOrense, mandou-o fava e meteu-se noprostbulo de la Pelona, na Calle do Villar,onde conheceu uma filha da Marraca, alenhadora da pradaria de Francelos, emRibadavia, que teve doze filhas todasrameiras. Desde ento, para Elvirita, tudo foimuito fcil, digamos assim. A pobre estava um pouco amargurada, masno muito. Alm disso, era de boas intenese, ainda que tmida, um tanto orgulhosa. Jaime Arce, aborrecido de estar sem fazernada, olhando para o tecto e pensando emtolices, levanta a cabea do espaldar e explica senhora silenciosa do filho morto, a senhoraque passava a vida debaixo da escada decaracol que d para os bilhares:

  • - Patranhas... M organizao... E tambmerros, no nego. Creia que no h mais. Osbancos funcionam defeituosamente, e osnotrios, com as suas oficiosidades, com assuas precipitaes, deitam os ps de foraantes de tempo e organizam tamanhabarafunda que depois no h quem seentenda. Jaime faz um mundano gesto de resignao. - Depois vem o que vem: os protestos, ossarilhos e a monda. Jaime Arce fala devagar, com parcimnia, atcom certa solenidade. Cuida do gesto epreocupa-se em deixar sair as palavraslentamente, como para ir vendo, medindo epesando o efeito que fazem. A senhora dofilho morto, em troca, como uma tonta quenada diz; escuta e abre os olhos de umamaneira estranha, de uma maneira que mais

  • parece para no dormir do que para prestarateno. - E isso tudo, minha senhora; o resto, sabe oque lhe digo?, o resto so tretas. Jaime Arce um homem que fala muito bem,ainda que diga, no meio de uma frase bemconstruda, palavras pouco finas. A senhora olha-o e nada diz. Limita-se amover a cabea para a frente e para trs, numgesto que no significa coisa alguma. - E agora, j a senhora v! Se a minha pobreme levantasse a cabea! A senhora, a viva de Sanz, Dona IsabelMontes, quando Jaime disse "Sabe o que lhedigo?", comeou a pensar no seu defunto, notempo em que o conheceu, com vinte e trsanos, ataviado, elegante, muito direito, com obigode engomado. Uma nuvem de felicidadeperpassou, um pouco confusamente, pela sua

  • cabea e Dona Isabel sorriu, de uma maneiramuito discreta, durante meio segundo.Depois lembrou-se do pobre Paquito, da carade bobo com que ficou com a meningite, eentristeceu de repente, acentuadamente. Jaime Arce, quando abriu os olhos que haviasemicerrado para dar maior fora frase "Sea minha pobre me levantasse a cabea!",olhou para Dona Isabel e disse-lhe,obsequioso: - Sente-se mal, minha senhora? Est umpouco plida. - No, no nada, muito obrigado. Coisasque passam pela cabea de uma pessoa! Pablo, como que sem querer, olha sempre umpouco de esguelha para Elvira. Ainda quetudo tenha terminado, ele no pode esquecero tempo que passaram juntos. Ela, bem visto,era boa, dcil, condescendente. Por fora,

  • Pablo fingia desprez-la e chamava-lhemiservel e meretriz, mas por dentro a coisaera diferente. Pablo, quando em voz baixa sepunha meigo, pensava: "No so coisas dosexo, no; so coisas do corao." Depoisesquecia-se e t-la-ia deixado morrer de fomee de lepra com toda a tranquilidade; Pabloera assim. - Escuta, Luis, que se passa com esse jovem? - Nada, Pablo, no lhe apetecia pagar o cafque tinha bebido. - Deviam ter-mo dito, parecia bom rapaz. - No se fie; h muitos vadios, muitos, semescrpulos. Dona Pura, a mulher de Pablo,disse: - L isso verdade. Se pudssemosdistinguir! O que toda a gente devia fazer eratrabalhar como Deus manda, no acha, Luis? - Tem razo, minha senhora.

  • - Assim, no havia dvidas. O que trabalhaque tome o seu caf e at um bolo se lheapetecer; mas o que no trabalha... poisvejam! O que no trabalha no digno decompaixo; os outros no vivem do ar. Dona Pura est muito satisfeita com o seudiscurso; realmente saiu-lhe muito bem.Pablo volta outra vez a cabea para a senhoraque se assustou com o gato. - Com estes tipos que no pagam o caf hque andar com olho neles, com muito olho.Uma pessoa nunca sabe com quem tropea.Esse que acabam de pr na rua, tanto podeser um gnio, o que se chama um verdadeirognio como Cervantes ou como Isaac Peral,como um patife disfarado. Eu ter-lhe-iapago o caf. Para mim que diferena me fazum caf a mais ou a menos? - Claro.

  • Pablo sorriu como quem, de repente, achaque tem toda a razo. - Mas isso no encontra a senhora entre osirracionais. Os seres irracionais so maisgarbosos e no enganam nunca. Um gatitonobre como esse, eh! eh!, que tanto medo lhemeteu, uma criatura de Deus, que o quequer brincar, nada mais que brincar. Pablo tem um sorriso de beatitude. Se sepudesse abrir-lhe o peito, encontrar-se-ia umcorao negro e peganhento como o pez. Pepe volta a entrar passados uns momentos.A proprietria, que tem as mos nos bolsosdo avental, os ombros deitados para trs e aspernas separadas, chama-o com uma vozseca, pouco sonora; uma voz que parece otimbre de uma campainha partida. - Vem c. Pepe quase no se atreve a olh-la.

  • - Que deseja? - Arreaste-lhe? - Sim, senhora. - Quantas? - Duas. A proprietria fecha os olhitos por detrs daslentes, tira as mos dos bolsos e passa-as pelacara, donde despontam os plos da barba,mal tapados com p-de-arroz. - Onde lhas deste? - Onde pude; nas pernas. - Bem feito. para aprender! Assim, para aoutra vez no querer roubar dinheiro agente honrada! Dona Rosa, com as suas gordas mosapoiadas no ventre inchado como um odrede azeite, mesmo a imagem da vingana doanafado contra o esfomeado. Patifes! Ces!Dos seus dedos gordos como morcelas

  • reflectem-se grandiosos, quase luxuriosos, osclares das lmpadas. Pepe, com olhar humilde, afasta-se daproprietria. No fundo, e ainda que no saibademasiado, tem a conscincia tranquila. Jos Rodrguez de Madrid est a conversarcom dois amigos que jogam s damas. - J podem ver, oito duros, oito miserveisduros. E depois a gente no pra de falar. Um dos jogadores sorri-lhe. - Menos d uma pedra, senhor Jos! - Psch! Pouco menos. Que que se podefazer com oito duros? - Sim, realmente, com oito duros pouco sepode fazer; isso verdade; mas enfim! eudigo, para casa tudo, menos um enxovalho. - Sim, isso tambm verdade; apesar de tudoganhei-os de uma maneira muito cmoda...

  • Ao violinista que puseram na rua porresponder ao Sr. Jos, oito duros chegavam-lhe para outros tantos dias. Comia pouco emal, certo, e no fumava seno emprestado,mas conseguia esticar os oito duros por umasemana inteira; certamente, devia haveroutros que se defendiam com menos. E Elvira chama o empregado: - Padilla! - A vou, senorita Elvira! - D-me duas cigarrilhas; pago-tas amanh. Padilla tirou as duas cigarrilhas e colocou-asna mesa onde estava Elvira. - Sabes?, uma para logo, para depois dojantar. - J sabe que aqui h crdito. O empregado sorriu com um gesto degalantaria. Elvira sorriu tambm.

  • - Escuta, no te importas de dar um recado aMacario? - Dou. - Diz-lhe se faz o favor de tocar LuisaFernanda. O empregado afastou-se arrastando os ps, acaminho do estrado dos msicos. Um senhorque j estava h um bocado a olhar cominsistncia para Elvirita, decidiu-se por fim aromper o gelo. - No acha que as zarzuelas so realmentebonitas? Elvira concordou com uma careta. O senhorno desanimou; interpretou aquele trejeitocomo um gesto de simpatia. - E muito sentimentais, no verdade? Elvira semicerrou os olhos. O senhor tomounovas foras. - Gosta de teatro?

  • - Sim, bom... O senhor riu como que festejando umaocorrncia muito engraada. Pigarreou umpouco, ofereceu lume a Elvira, e continuou: - Claro, claro. E o cinema? Tambm lheagrada o cinema? - s vezes... O senhor fez um tremendo esforo, umesforo que o fez corar at s orelhas. - E esses cinemas escuros, hem?, que tal?Elvira mostrou-se digna e suspicaz. - Eu quando vou ao cinema para ver ofilme. O senhor reagiu. - Claro, naturalmente, eu tambm... Eureferia-me aos jovens, claro, aos parzinhos,todos j fomos jovens!... Escute, minhasenhora, observei que fumadora; para mim,isto de as mulheres fumarem parece-me bem,mesmo muito bem; que tem de mau? O

  • melhor que cada qual trate de si, no lheparece? Digo isto porque, se me permite (euagora tenho de me ir embora, estou commuita pressa, encontrar-nos-emos outro diapara continuarmos a conversar), se a senhoramo permite, eu teria muito gosto em...vamos, em oferecer-lhe uma caixa decigarrilhas. O senhor fala precipitadamente, comsobressaltos. Elvira respondeu-lhe com certodesprezo, com um gesto de quem tem a facae o queijo na mo. - Bem, porque no? Se tanto insiste! O senhor chamou o empregado e comprouuma caixa, que entregou com o seu melhorsorriso a Elvira; vestiu o sobretudo, apanhouo chapu e saiu. Mas antes, disse a Elvira: - Bem, senorita, tive muito gosto. LeoncioMaestre para a servir. Como lhe disse, ver-

  • nos-emos outro dia. Talvez j sejamos bonsamigos. A proprietria chama o encarregado. Oencarregado chama-se Lpez, ConsorcioLpez, e natural de Termelloso, naprovncia de Ciudad Real, uma povoaogrande, bonita e muito rica. Lpez umhomem ainda jovem, atraente, at mesmoasseado, tem as mos grandes e a testaestreita. um pouco mandrio e os maushumores de Dona Rosa no o incomodam. "Aesta fulana - costuma dizer - o melhor deix-la falar; ela pra por si." ConsorcioLpez um filsofo prtico; a verdade quea sua filosofia d bom resultado. Uma vez, em Termelloso, pouco antes de vir paraMadrid, dez ou doze anos atrs, o irmo deuma noiva que teve e com a qual no quiscasar depois de lhe ter feito dois gmeos,

  • disse-lhe: "Ou te casas com a Marujita ou eucorto-tos onde quer que estejas." Consorcio,como no queria casar-se nem to-pouco ficarcastrado, apanhou o comboio e veio paraMadrid; a coisa deve ter cado a pouco epouco no esquecimento porque a verdade que no voltaram a meter-se com ele.Consorcio levava sempre na carteira duasfotografias dos gmeos; uma, ainda de meses,nus em cima de um almofado, e outra dequando fizeram a primeira comunho, quelhe havia mandado a sua antiga noiva,Marujita Ranero, ento j casada com Gu-tirrez. Dona Rosa, como dissemos, chamouo encarregado. - Lpez! - Vou j, minha senhora. - Como estamos de vermute? - Por agora, bem.

  • - E de anis? - Assim, assim. J temos falta de alguns. - Pois ento que bebam de outro! Agora noestou para meter-me em despesas, no meapetece. Nada de exigncias! Escuta,compraste isso? - O acar? - Sim. - Sim; trazem-no amanh. - A catorze e cinquenta, no? - Sim; queriam a quinze, mas ficmos que,por junto, baixariam dois reales(1). - Bem, j sabes: para o bolso e nem Deus orepete. Entendido? - Sim, minha senhora. O jovenzinho dos versos est com o lpisentre os lbios, olhando para o tecto. umpoeta que faz versos "com ideia". Esta tarde,ideia j a tem. Faltam-lhe s as rimas. No

  • papel j tem apontadas algumas. Agoraprocura algo que rime bem com rio e que noseja tio nem trono; albedrio, j est na calha.Estio, tambm. - Guarda-me um caparazo estpido, umartifcio de homem vulgar. A menina deolhos azuis... Quereria, sem dvida, ser forte,fortssimo. De olhos azuis e belos... Ou a obramata o homem ou o homem mata a obra. Ados cabelos ruivos... *1. Um real equivale a 1/4 de peseta, ou seja25 cntimos. [N. do T.) Morrer! Morrer, sempre! E deixar um brevelivro de poemas. Que bela, que bela est...! O jovem poeta est branco,muito branco, e tem dois rosetes nospmulos, dois rosetes pequenos.

  • - A menina de olhos azuis... Rio, rio, rio. Deolhos azuis e belos... Trono, tio, trono, tio. Ados cabelos ruivos... Albedrio. Recuperardepressa o seu alvedrio. A menina de olhosazuis... Estremecer de gozo o seu alvedrio. Deolhos azuis e belos... Derramando de umgolpe o seu alvedrio. A menina de olhosazuis... E agora j tenho, intacto, o meualvedrio. A menina de olhos azuis... Ouvoltando a cara ao manso Estio. A menina deolhos azuis... A menina de olhos... Como tema menina os olhos...? Colhendo as messes doEstio. A menina... Tem olhos a menina...?Lara, lar, lar, lar, la, Estio... De repente, ojovenzinho nota que o caf se desvanece. - Beijando o universo no Estio. bonito... Cambaleia um pouco, como um meninoagoniado, e sente um calor intenso subir ats fontes.

  • - Estou um pouco... Talvez a minha me...Sim; Estio. Estio... Um homem voa sobre umamulher despida...! Que tio...! No, tio, no... Eento eu dir-lhe-ei: nunca!... O mundo, omundo... Sim, bonito, muito bonito... Numa mesa ao fundo, duas pensionistas,pintadas como bonecas, falam dos msicos. - um verdadeiro artista; para mim umprazer escut-lo. J me dizia o meu defuntoRamn, que Deus tem: "Repara, Matilde, sna maneira que tem de levar o violino cara."O que a vida: se esse rapaz tivessepadrinhos iria muito longe. Dona Matilde pe os olhos em alvo. gorda,suja e pretensiosa. Cheira mal e tem umabarriga tremenda, toda cheia de gua. - um verdadeiro artista, um artisto.

  • - Sim, verdade: eu estou todo o dia a pensarnesta hora. Tambm creio que umverdadeiro artista. Quando toca, como s elesabe, a valsa de A Viva Alegre, at me sintooutra mulher. Dona Asuncin tem um condescendente arde ovelha. - No acha que aquela era outra msica?Mais fina, mais sentimental. Dona Matildetem um filho imitador de estrelas, que viveem Valena. Dona Asuncin tem duas filhas: uma casadacom um subalterno do Ministrio das ObrasPblicas, chamado Miguel Contreras e que um poucobbado, e outra, solteira, que saiu de casa evive em Bilbau com um catedrtico. O prestamista limpa com um leno a boca dacriana.Tem os olhos brilhantes e simpticos

  • e, ainda que no esteja muito asseado,aparenta certa superioridade. A crianatomou um copo grande de caf com leite edois bolos, ficando bem aconchegada. Trinidad Garcia Sobrino no pensa nem semove. um homem pacfico, um homem deordem, um homem que quer viver em paz. Oseu neto parece um ciganito magro ebarrigudo. Tem um gorro pontiagudo e umaspolainas iguais; uma criana que vai muitobem amparada. - Aconteceu-lhe alguma coisa? Sente-se mal? O jovem poeta no responde. Tem os olhosabertos e pasmados e parece ter ficado mudo.Sobre a testa cai-lhe uma madeixa do cabelo. - Est doente? Algumas cabeas voltaram-se. O poeta sorriacom um ar estpido, pesado.

  • - Por favor, ajude-me a reclin-lo. V-se queadoeceu de repente. Os ps do poeta escorregaram e o seu corpofoi parar debaixo da mesa. - Ajudem-me; eu no posso com ele. As pessoas levantaram-se. Dona Rosaobservava do balco. - Tambm vontade de alvoroar... O rapaz deu um golpe na testa ao rolar paradebaixo da mesa. - Vamos lev-lo para os lavabos, deve ser umenjoo. Enquanto Trinidad e trs ou quatro clientesdeixaram o poeta na retrete, para que serecompusesse um pouco, o neto entre teve-sea comer as migalhas dos bolos, que tinhamficado sobre a mesa. - O cheiro do desinfectante reanim-lo-;deve ser um enjoo.

  • O poeta, sentado na retrete e com a cabeaapoiada na parede, sorri com um ar beatfico.No fundo, e sem dar por isso, era feliz.Trinidad regressou sua mesa. - J lhe passou? - Sim, no era nada, um enjoo. Elvira devolveu as duas cigarrilhas aoempregado. - E esta para ti. - Obrigado. Teve sorte, hem? - Psch! Menos d uma pedra... Padilla, um dia, chamou cabrito a umgalanteador de Elvira e Elvira incomodou-se.Desde ento, o empregado mais respeitoso. Leoncio Maestre por um pouco no mortopor um elctrico. - Burro!

  • - Burro ser o senhor, desgraado! Vai apensar em qu? Leoncio Maestre ia a pensarna Elvirita. - bonita, sim, muito bonita. Assim o creio! Eparece uma rapariga fina... No, vagabundano . Qualquer v! Cada vida um romance.Parece uma rapariga de boas famlias que setivesse zangado em casa. Agora estar atrabalhar nalgum escritrio, certamente numsindicato. Tem as feies tristes e delicadas;provavelmente o que necessita de carinho eque a amimalhem muito, que estejam todo odia contemplando-a. A Leoncio Maestre saltava-lhe o coraodebaixo da camisa. - Amanh volto. Sim, sem dvida. Se estiver,bom sinal. E se no... Se no estiver...! Vouprocur-la!

  • Leoncio Maestre levantou a gola dosobretudo para cima e deu dois saltinhos. - Elvira, senorita Elvira. um bonito nome.Creio que lhe agradou a caixa de cigarrilhas.Cada vez que fume uma lembrar-se- demim... Amanh repetir-lhe-ei o nome.Leoncio, Leoncio, Leoncio. Ela, se calhar, dar-me- um nome mais carinhoso, algo quevenha de Leoncio. Leo. Oncio. Oncete... Voutomar uma imperial porque me apetece. Leoncio Maestre entrou num bar e tomouuma imperial ao balco. Ao seu lado, sentadanum banco alto, sorria-lhe uma rapariga.Leoncio voltou-lhe as costas. Aguentaraquele sorriso parecia-lhe uma traio; aprimeira traio que fazia Elvirita. - No, Elvirita no. Elvira. um nomesimples, um nome muito bonito. A raparigado tamborete falou-lhe por cima do ombro.

  • - D-me lume, seu sisudo? Leoncio deu-lhe lume, quase tremendo.Pagou a imperial e saiu para a ruaapressadamente. - Elvira... Elvira... Dona Rosa, antes de se afastar doencarregado, pergunta-lhe: - Deste caf aos msicos? - No. - Pois ento d-o j; parece que estodesmaiados. Que ricos preguiosos! Osmsicos, sobre o estrado, arrastam os ltimoscompassos de uma parte de Luisa Fernanda, aquela to bonita quecomea, dizendo: Nos azinheirais da minha Estremadura,tenho uma casita tranquila e segura. Antes tinham tocado Momento Musical e,antes ainda, La del manojo de rosas, na parte

  • de "madrilena bonita, flor de verbena". DonaRosa aproximou-se. - Mandei que lhes dessem o caf, Macario. - Obrigado, Dona Rosa. - No tem de qu. J sabe, o dito vale parasempre; eu no tenho mais que uma palavra. - J sei, Dona Rosa. - Ento pronto. Seoane, o violinista, que tem os olhos grandese sados e tristes como os de um boi, olha-aenquanto enrola um cigarro. Franze a boca,quase com desprezo, e tem o pulso trmulo. - E a si, Seoane, tambm lho vo dar. - Est bem. - Ora toma, voc no nada seco! Macariointervm para deitar gua na fervura. - Ele anda aflito do estmago, Dona Rosa. - Mas no caso para estar to inspido!Caramba mais educao desta gente!

  • Quando uma pessoa lhes chama a ateno,soltam uma patada, e quando tm de estarsatisfeitos porque se lhes faz um favor,respondem "est bem", como se fossemmarqueses. S visto! Seoane cala-se, enquanto o seu companheiroacalma Dona Rosa. Depois pergunta aosenhor da mesa contgua: - E o moo? - Est a recompor-se nos lavabos, no eranada. Vega, o tipgrafo, estende a tabaqueira aoimpostor da mesa do lado. - V, enrole um cigarro e no diga que vaidaqui. Eu j estive pior que voc e sabe o quefiz?, pus-me a trabalhar. O do lado sorri como um aluno ante oprofessor: com a conscincia turva, semperceber.

  • - J ter mrito! - Claro, homem, claro, trabalhar e no pensarem mais nada. E agora j v, nunca me faltanem o meu charuto nem o meu copo todas astardes. O outro faz um gesto com a cabea, um gestoque no significa nada. - E se eu lhe disser que quero trabalhar e notenho em qu? - Ora vamos! Para trabalhar, a nica coisaque faz falta ter vontade. Voc tem de factovontade de trabalhar? - Claro que tenho. - Ento porque no vai para a estaocarregar malas? - No podia; ao fim de trs dias estavarebentado... Eu sou bacharel... - E isso para que lhe serve? - Na verdade, para pouco.

  • - O que se passa consigo, meu amigo, o quese passa com muitos. Esto muito bem numcaf, familiarizam-se, e no tentam nada. Porfim caem um dia desmaiados, como essemenino bonito que acabaram de levar paradentro. O bacharel devolve-lhe a tabaqueira e no ocontraria. - Obrigado. - No tem de qu. Voc de facto licenciado? - Sim, senhor, da alnea trs. - Bom, ento vou dar-lhe uma oportunidadepara no acabar num asilo ou numa bichanos quartis. Quer trabalhar? - Sim, senhor, j lho disse! - V ver-me amanh. Tome um carto. V demanh, antes do meio-dia, a pelas onze emeia. Se quiser e souber, fica comigo comorevisor; esta manh tive que pr o outro na

  • rua, porque era um mandrio. Um semescrpulos. Elvira olha de esguelha para Pablo. Pabloexplica a um franganote que est na mesa aolado: - O bicarbonato bom, no faz mal algum. Oque acontece que os mdicos no o podemreceitar, porque para tomar isto ningum vaiao mdico. O jovem concorda, mas sem fazer muito caso,e olha para os joelhos de Elvira, que se vemum pouco por debaixo da mesa. Dona Pura, a mulher de Pablo, fala com umaamiga corpulenta, que limpa os dentes deoiro com um palito. - Eu j estou cansada de o repetir. Enquantohouver homens e houver mulheres, haversempre sarilhos; o homem fogo e a mulher

  • estopa, e assim acontecem as coisas! No seionde vamos parar! A senhora corpulenta parte distraidamente opalito entre os dedos. - Sim, a mim tambm me parece que hpouca decncia. E isso vem das piscinas; notenha dvidas, dantes no ramos assim...Agora apresentam-lhe uma jovem qualquer,estende-lhe a mo e j uma pessoa ficaapreendida para todo o dia. - verdade. - E os cinemas tambm tm muita culpa. Issode estar toda a gente to misturada e sescuras no pode trazer nada de bom. - Isso o que eu penso, Dona Maria. Devehaver mais moral; seno estamos perdidas. Dona Rosa volta mesma conversa. - E alm disso, se lhe di o estmago, porqueno me pede um pouco de bicarbonato?

  • Quando que lhe neguei um pouco debicarbonato? Qualquer um diria que nopode falar! Dona Rosa volta-se e domina com a sua vozbarulhenta e desagradvel todas as conversasdo caf. - Lpez! Lpez! Manda bicarbonato para oviolinista! O moo larga as canecas sobre uma mesa etraz um prato com um copo meio de gua,uma colherzinha e o aucareiro de alpacaonde est o bicarbonato. - J acabaram com esse servio de bandejas? - Foi assim que o senhor Lpez mo deu,minha senhora. - V, v; coloca isso a e pe-te a andar. O moo coloca tudo sobre o piano e afasta-se.Seoane enche a colher de p, inclina a cabeapara trs, abre a boca e... para dentro.

  • Mastiga-o como se fossem nozes e depoisbebe um golinho de gua. - Obrigado, Dona Rosa. - Est a ver, homem, est a ver como custato pouco ser delicado? A si di-lhe oestmago, eu mando trazer-lhe bicarbonato epronto, todos amigos. Ns estamos c paranos ajudarmos uns aos outros; acontece quese no podemos porque no queremos. avida. Os midos que brincavam aos comboiospararam de repente. Um senhor est a dizer-lhes que devem ter mais educao e maiscompostura, e eles, sem saberem o que fazercom as mos, olham-no com curiosidade.Um, o mais velho, que se chama Bernab,est a pensar num seu vizinho, pouco maisou menos da sua idade, que se chama Chs.O outro, o mais pequeno, que se chama

  • Paquito, est a pensar que o senhor cheiramal da boca. - Parece que cheira a borracha podre. Ao Bernab d-lhe vontade de rir pensarnaquilo to engraado que aconteceu com oChs e com a tia. - Chs, s um porco, no mudas de calesat que no tenham porcaria; no tensvergonha? Bernab contm o riso; o senhor tinha ficadofurioso. - No, tia, no tenho vergonha; o paptambm s os deixa com porcaria. Era paramorrer a rir! Paquito esteve a matutar um bocado. - No, a este senhor no lhe cheira a boca aborracha podre. Cheira a lombarda e a chul.Se eu fosse a este senhor punha no nariz umavela derretida. Ento falaria como a minha

  • prima Emilita - gua, gua -, que tem de seroperada garganta. A mam diz que quandoa operarem garganta ficar sem aquela carade tonta e que j no dormir mais com aboca aberta. Se calhar, quando for operada,morre. Ento coloc-la-o num caixo branco,porque ainda no tem mamas nem usa saltos. As duas pensionistas, recostadas num sof,olham para Dona Pura. - Eu no sei como h mulheres assim; essa tal e qual um sapo. Passa o dia a falar da vidadele a toda a gente e no se apercebe que se omarido a suporta porque ainda lhe restamalguns duros. Esse tal Pablo um sujeito comquem se deve ter cuidado. Quando olha parauma, parece que a despe. - Pois, pois. - E aquela ordinria, a Elvira, tambm tem osseus qus. Porque no a mesma coisa que a

  • sua filha, a Paquita, que apesar de tudo vivedecentemente, ainda que sem ter os papisem ordem. Esta, anda por a a rodar comoum pio e a sacar cobres a um qualquer paracomer alguma coisa. - Alm disso, Dona Matilde, no compareesse pelado do Pablo com o noivo da minhafilha, que um catedrtico de Psicologia,Lgica e tica, enfim, um cavalheiro. - Naturalmente que no. O noivo da Paquitarespeita-a e f-la feliz, e ela, que tem uma boafigura e simptica, faz-se agradar, que paraisso l est. Mas estas prostitutas nem tmconscincia nem sabem outra coisa que noseja abrir a boca para pedir algo. Haviam deter vergonha. Dona Rosa continua a conversar com osmsicos. Gorda, o seu corpo inchado

  • estremece de satisfao ao discursar; pareceum governador civil. - Voc tem uma aflio? Ento conte-ma e eu,se posso, ajudo-o. Se trabalha bem e est afoando como Deus manda, ento eu, quandochega a altura de fechar, pago-lhe e pronto.Sem dvida que o melhor levar as coisas abem. Porque pensa que estou eu sempre sturras com o meu cunhado? Porque umvadio que anda por a as vinte e quatro horasdo dia e ainda vem a casa para comer asmiserveis sopas. A minha irm, que umatonta, ainda o aguenta, ela foi sempre assim.Ai se desse comigo! Fazia-lhe umas festasnaquela cara bonita e que fosse aquecer-setodo o dia com os mandries. Se o meucunhado trabalhasse como eu trabalho, etrouxesse alguma coisa para casa, a conversa

  • seria outra; mas ele prefere andar por a semtentar nada. - Claro, claro. - Pois assim. O figuro um parasitamalcriado que nasceu para chulo. E no creiaque s falo pelas costas, porque ainda nooutro dia lhe atirei com isto s ventas. - Fez a senhora muito bem. - Se fiz. Por quem nos toma esse esfomeado? - Esse relgio est certo, Padilla? - Est sim, senorita Elvira. - Ds-me lume? Ainda cedo. O empregadodeu-lhe lume. - A senorita hoje est contente. - Achas? - Bem, a mim parece-me. Acho-a maisanimada que nas outras tardes. - Ora! s vezes por ms coisas pe-se boacara.

  • Elvira tem um ar dbil, doentio, quasevicioso. A pobre no come o bastante parano ser nem viciosa nem virtuosa. A do filho morto que estava a preparar-separa os Correios diz: - Bem, vou-me embora. Jaime Arce, reverenciosamente, levanta-se esorrindo diz-lhe: - A seus ps, minha senhora; at amanh seDeus quiser. A senhora afasta uma cadeira. - Passe bem, adeus. - O mesmo digo eu, minha senhora. Dona Isabel Montes, viva de Sanz, andacomo uma rainha. Com a sua capa coada dequero-e-no-posso, Dona Isabel parece umadecada cortes, que viveu como as cigarras eno guardou nada para a velhice. Atravessa asala em silncio e some-se pela porta. Aspessoas seguem-na com um olhar onde pode

  • haver de tudo menos indiferena; pode haveradmirao, ou inveja, ou simpatia, oudesconfiana, ou carinho, vamos l saber. Jaime Arce j no pensa nem nos espelhos,nem nas velhas pudibundas, nem nostuberculosos que o caf albergar (uns dezpor cento aproximadamente), nem nosamoladores, nem na circulao do sangue. Ao cair da tarde, Jaime Arce invadido poruma sonolncia que o entontece. - Quantos so sete vezes quatro? Vinte e oito.E seis vezes nove? Cinquenta e quatro. Enove ao quadrado? Oitenta e um. Onde nasceo Ebro? Em Reinosa, provncia de Santander.Bem. Jaime Arce sorri; est satisfeito com a suarecapitulao, e enquanto desfaz umas beatasrepete em voz baixa:

  • - Atalfo, Sigerico, Walia, Teodoredo,Turismundo... Aposto que isto no sabe esseimbecil? Esse imbecil o jovem poeta que sai, brancocomo a cal, da sua cura de repouso na retrete. - Desalinhavar, em guas, o Estio... Enlutada, ningum sabe porqu, desde quasecriana, h j muitos anos, suja e cheia debrilhantes que valem um dinheiro, DonaRosa engorda e engorda um pouco todos osanos, quase to depressa como amontoa odinheiro. A mulher riqussima; a casa onde est ocaf sua, e nas calles de Apodaca, deChurruca, de Campoamor, e de Fuencarral,dzias de inquilinos tremem como rapazesda escola, todos os princpios dos meses. - Quando uma pessoa confia - costuma dizer-, comeam a abusar. So todos uns vadios,

  • uns verdadeiros vadios. Se no houvessejuzes honrados, no sei o que seria de ns! Dona Rosa tem umas ideias muito suas sobrea honradez. - As contas bem dadas, filhinho, contas bemdadas, que so uma coisa muito sria. Jamais perdoou um real a algum e jamaispermitiu que lhe pagassem a prestaes. - Para que servem as ordens de despejo? -dizia. - Para que no se cumpra a lei? O queeu digo que se h uma lei, para que todosa respeitem; e eu a primeira. O contrrio uma revoluo. Dona Rosa accionista de um banco ondetraz com a cabea em gua todo o Conselho,e, segundo dizem pelo bairro, guarda basinteiros de oiro, to bem escondidos que nose encontraram nem durante a Guerra Civil.

  • O engraxador acabou de limpar os sapatos aoSr. Leonardo. - J esto. O Leonardo olha para os sapatos e d-lhe umcigarro de noventa. - Muito obrigado. Leonardo no paga o servio, nunca o faz.Deixa limpar os sapatos a troco de um gesto.O Sr. Leonardo bastante ruim para levantarondas de admirao entre os imbecis. O engraxador, cada vez que d lustro aossapatos do Sr. Leonardo lembra-se dos seusseis mil duros. No fundo est encantado deter podido tirar o Sr. Leonardo de um apuro;por fora arrepende-se um pouco, quase nada. - Os senhores so senhores, mais claro quegua. Agora anda tudo um pouco revolto,mas o que um senhor, desde o bero, logose nota.

  • Se Segundo Segura, o engraxador, fosseculto, seria sem dvida leitor de Vz-quezMella. Alfonsito, o mido dos recados, volta da ruacom o jornal. - Ouve l, meu rico, onde foste buscar opapel? Alfonsito um mido dbil, de doze ou trezeanos, tem cabelo ruivo e tosseconstantemente. O seu pai, que era jornalista,morreu dois anos atrs no Hospital del Rey.Sua me, que em solteira foi uma meninacheia de melindres, esfregava uns escritriosna Gran Via e comia no Auxlio Social. - Havia bicha, minha senhora. - Sim, bicha; o que acontece que agora aspessoas pem-se a fazer bicha para saber asnotcias, como se no houvesse mais nadaque fazer. Anda, d c!

  • - Como j se tinha esgotado o Informaciones,comprei o Madrid. - Tanto faz. Para o que se tira a limpo! Vocentende isso de tantos Estados se tornaremlivres, pelo mundo, Seoane? - Ora! - No, homem, no preciso dissimular; seno quer, no fale. Para o diabo com tanto mistrio! Seoane sorri, com cara amarga de doente doestmago, e cala-se. Para qu falar? Alfonsito reparte o Madrid por algumasmesas. Pablo tira o dinheiro. - H novidades? - No sei. Pablo estende o jornal sobre a mesa e l osttulos. Por cima do seu ombro, Pepe procura inteirar-se. Elvira faz um sinalao rapaz.

  • - Deixa-me o da casa, quando a Dona Rosaterminar. Dona Matilde, que fala com o empregado databacaria enquanto a sua amiga DonaAssuncin est nos lavabos, comentadepreciativamente: - Eu no sei para que querem inteirar-se detudo quanto se passa, se ns aqui estamostranquilos! No lhe parece? - Isso o que eu digo. Dona Rosa l as notcias da guerra. - Muito atrasado me parece isto... Mas enfim,se no fim o conseguirem arranjar! Voc pensaque no fim conseguiro, Macario? O pianista pe uma cara de dvida. - No sei, pode ser que sim. Se inventaremalgo que d bom resultado! Dona Rosa olhafixamente para o teclado do piano. Tem umar triste e distrado e

  • fala como consigo mesma, como se pensasseem voz alta. - O que acontece que os Alemes, que souns cavalheiros como Deus manda, fiaram-sedemasiado nos Italianos, que tm mais medoque as ovelhas. Nem mais! A voz soa triste, e os olhos por detrs daslentes parecem velados e quase sonhadores. - Se eu tivesse visto Hitler, ter-lhe-ia dito:"No se fie, o senhor no seja tolo, porque esses tm um medo que nem vem!"Dona Rosa suspirou ligeiramente. - Que tonta que eu sou! Diante de Hitler, nome teria atrevido nem a levantar a voz... Dona Rosa preocupa-a a sorte das tropasalems. L com toda a ateno, dia a dia, acomunicao do Quartel-General do Fhrer,e relaciona, por uma srie de vagos

  • pressentimentos que no se atreve a verclaros, o destino da Wehrmacht com odestino do seu prprio caf. Vega compra o jornal. O seu vizinhopergunta-lhe: - Boas notcias? Vega um eclctico. - Depende. O moo vai dizendo "Vou!" e arrasta os pspelo cho do caf. - Diante de Hitler ficaria mais assustada queuma boneca, deve ser um homem que assustamuito; tem um olhar de tigre. Dona Rosa volta a suspirar. O seu tremendopeito tapa-lhe o pescoo durante unsinstantes. - Esse e o Papa, creio que so os dois queimpressionam mais. Dona Rosa deu umapancadinha com os dedos na tampa dopiano.

  • - E alm do mais, ele l saber o que se faz,que para isso tem os generais. Dona Rosa estum momento em silncio e muda de voz: - Bem! Levanta a cabea e olha para Seoane: - Como vai a sua mulher com os seusachaques? - Vai andando; hoje parece que est umpouco melhor. - Pobre Sonsoles; e ela que to boa! - Sim, na verdade est a passar umatemporada muito m. - Chegou a dar-lhe as gotas que o doutorFrancisco lhe indicou? - Sim, j as tomou. O mal que no conservanada dentro do corpo; vomita tudo. - Mas que coisa! Macario bate nas teclas suavemente e Seoanesegura o violino.

  • - Que vo tocar? - La Verbena, est bem? - De acordo. Dona Rosa sai do estrado dos msicosenquanto o pianista e o violinista, com gestoresignado de colegiais, rompem o tumulto docaf com os velhos compassos, tantas vezes -ah, Deus! - repetidos e repetidos. Donde vas con mantn de Manila, donde vascon vestido chin? Tocam sem papel. No faz falta. Macario, como um autmato, pensa: "E ento dir-lhe-ei: - Olha, filha, no h nadaque fazer; com um duro s tardes, outro noite e dois cafs, tu vers. - Ela, com certeza,que me responde:- No sejas tonto, vers;com os teus dois duros e com alguma lioque me aparea... Matilde, bem visto, umanjo; como um anjo."

  • Macario, por dentro sorri; por fora, quase,quase. Macario um sentimental malalimentado, que faz, por aqueles dias, osquarenta e trs anos. Seoane olha vagamente para os clientes docaf, e no pensa em nada. Seoane umhomem que prefere no pensar; o que quer que o dia passe a correr, o mais depressapossvel. Soam as vinte e uma horas no velho relgiode pequenos nmeros que brilham como sefossem de oiro. O relgio um mvel quasesumptuoso, que veio da Exposio de Paris,trazido por um marqus estouvado e semdinheiro que andou a fazer a corte DonaRosa, a por volta de 1905. O marquesinho,que se chamava Santiago e era Grande deEspanha, morreu tsico no Escorial, aindabastante novo, tendo o relgio ficado no

  • balco do caf, como para servir derecordao dumas horas que passaram semtrazer nem o homem para Dona Rosa nem ocomer quente todos os dias, para o morto. avida! No outro extremo do local, Dona Rosa ralha,com grandes espaventos, a um criado. Pelosespelhos, como traio, os outros criadosobservam a cena quase despreocupados. O caf ficar vazio antes de meia hora. Iguala um homem que tivesse ficado, de repente,sem memria. Captulo Segundo - Ande, vamos embora. - Adeus, muito obrigado, o senhor muitoamvel. - De nada. V por a. No o queremos vermais por aqui.

  • O criado tenta falar com voz sria, com vozde respeito. Tem um acentuado sotaquegalego que tira a violncia, a autoridade ssuas palavras, um sotaque que tinge desuavidade a sua seriedade. Aos homenscalmos, quando os incitam violncia, treme-lhes o lbio superior, como se uma moscainvisvel roasse por ele. - Se quer, deixo-lhe o livro. - No, leve-o. Martin Marco, plido, enfezado, com ascalas desfiadas e a americana coada,despede-se do criado, levando a mo abado seu triste e ensebado chapu cinzento. - Adeus, obrigado, o senhor muito amvel. - De nada, e no volte a arribar por aqui. Martin Marco olha para o criado, e gostariade dizer alguma coisa mais bonita. - Tem em mim um amigo.

  • - Muito bem. - E saberei corresponder. Martin Marco firma os culos de aros dearame e comea a andar. A seu lado passauma rapariga e a cara no lhe estranha. - Adeus. A rapariga olha-o por um instante e segue oseu caminho. jovem e muito bonita. Novai bem vestida. Deve ser uma modista dechapus - as modistas de chapus tm todasum ar quase distinto; assim como as amas sopasiegas(1), as boas cozinheiras biscainhas, asqueridinhas, as que se podem vestir bem elevar a qualquer lado, so modistas dechapus. Martin Marco vai lentamente pelo bulevarabaixo, a caminho de Santa Brbara. O criado pra um instante no passeio, antesde empurrar a porta.

  • - Vai sem um real! As pessoas passam apressadas, bemenvolvidas nos seus abafos, para fugir ao frio. Martin Marco, o homem que no pagou ocaf e que olha para a cidade como ummido doente e perseguido, enfia as mosnos bolsos das calas. As luzes da praa brilham com um esplendorque fere, quase ofensivo. Roberto Gonzlez levanta a cabea dovolumoso livro de contabilidade, e fala com opatro. - Far-lhe-ia diferena dar-me trs durosadiantados? Amanh o aniversrio daminha mulher. O patro um homem compreensivo, umhomem honrado que faz as suas tramias,como os demais, mas que no tem mausfgados.

  • - Claro, homem, a mim tanto me faz! - Muito obrigado, senhor Ramn. O padeiro tira do bolso uma grossa carteirade pele de bezerro e d cinco duros aRoberto. - Estou muito satisfeito consigo, Gonzlez, osnegcios da padaria marcham muito bem.Com esses dois duros a mais, voc podecomprar umas guloseimas para os seusfilhos. O Sr. Ramn fica um bocado calado. Coa acabea e baixa a voz. - No diga nada Paulina. - No se preocupe. O Sr. Ramn olha para as biqueiras das botas. - No por nada, sabe? Eu sei que o senhor um homem discreto e que no vai dar lngua, mas s vezes, sem querer, podia

  • escapar-lhe alguma coisa e l tnhamossermo para quinze dias. *1. Naturais de Pas, provncia de Santander. Quem manda sou eu, mas o senhor j sabe oque so as mulheres... - No se preocupe, no o deixarei ficar mal.Roberto baixa a voz. - Muito obrigado... - De nada; o que eu quero que o senhortrabalhe satisfeito. A Roberto, as palavras do padeiro chegam-lhe alma. Se o padeiro prosseguisse com assuas frases amveis, Roberto trabalharia degraa. O Sr. Ramn anda pelos seus cinquenta oucinquenta e dois anos. um homem robusto,com um farto bigode, corado, um homemsaudvel por dentro e por fora, que leva umavida honesta, levantando-se ao raiar do dia,

  • bebendo vinho tinto e dando belisces nascriadas de servir. Quando chegou a Madrid,nos princpios do sculo, trazia as botas aosombros para as no estragar. A sua biografia uma biografia de cincolinhas. Chegou capital com oito ou dezanos, e empregou-se numa padaria.Amealhou at aos vinte e um, altura em quefoi para o servio militar. Desde que chegou cidade e at assentar praa no gastou nemum cntimo. Guardou tudo. Comeu po ebebeu gua, dormiu debaixo do balco e noconheceu nenhuma mulher. Quando foiservir o rei, deixou as suas economias naCaixa Postal e, logo que passou disponibilidade, levantou o dinheiro ecomprou uma padaria; em doze anos juntaravinte e quatro mil reales, tudo o que ganhou:pouco mais de uma peseta diria. Na tropa

  • aprendeu a ler, a escrever e a contar, e perdeua inocncia. Abriu a casa, casou, teve dozefilhos, comprou um calendrio e sentou-se aver passar o tempo. Os antigos patriarcasdeviam ser bastante parecidos com o Sr.Ramn. O criado entra no caf. Sente, de repente, umcalor na cara; d-lhe vontade de tossir, masbaixo, como que para arrancar aquelasmucosidades que o frio da rua lhe provocouna garganta. Depois at parece que falamelhor. Ao entrar notou que lhe doam umpouco as fontes; notou tambm, ou quis-lheparecer, que Dona Rosa lhe tremia obigode. - Escuta, chega aqui. O criado acercou-se. - Arreaste-lhe? - Sim, minha senhora. - Quantas?

  • - Duas. - Onde? - Onde pude, nas pernas. - Bem dado! Patifes! O criado tem um arrepio pela espinha abaixo.Se fosse um homem decidido tinha afogado aproprietria; afortunadamente no o era. Aproprietria ri baixo, com risadas cruis. Hpessoas que se divertem ao verem os outrossofrerem calamidades; para as verem mais deperto, dedicam-se a visitar os bairrosmiserveis, a oferecer coisas velhas aosmoribundos, aos tsicos envolvidos emmantas ordinrias, s crianas anmicas epanudas que tm os ossos moles, s crianasque so mes aos onze anos, e s vagabundasj quarentonas, cheias de tumores: asvagabundas parecem ndios caciques com

  • sarna. Dona Rosa nem chega a essa categoria.Dona Rosa prefere emoes ao domiclio. Roberto sorri satisfeito; o pobre homemandava j preocupado que chegasse oaniversrio da sua mulher e estivesse sem umreal no bolso. Era uma fatalidade! "Amanh comprarei uns bombons Filo -pensa. - A Filo como uma criana, comouma criana de seis anos... Com dez pesetascomprarei umas coisitas para os pequenos etomarei um vermute... Talvez o que agrademais seja uma bola... Com seis pesetas jencontro uma boa