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www.autoresespiritasclassicos.com Camille Flammarion A Morte e o seu Mistério Traduzido do Francês Camille Flammarion - La Mort et son mystère (1917) (obra em 3 volumes) VOLUME 1 Antes da Morte John Constable - Vale Dedham

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Camille Flammarion

A Morte e o seu Mistério

Traduzido do Francês

Camille Flammarion - La Mort et son mystère

(1917)

(obra em 3 volumes)

VOLUME 1

Antes da Morte

John Constable - Vale Dedham

Conteúdo resumido

Editada em três volumes, A Morte e o seu Mistério é um ex-

tenso e precioso repositório de narrações sobre fenômenos

extrafísicos, expostos e comentados por Camille Flammarion

com o rigor da metodologia científica.

Conforme as próprias palavras do autor, a obra visa demons-

trar por fatos de observação, fora de toda crença religiosa e em

completa e imparcial liberdade de julgamento, a existência da

alma, a sua independência do organismo corpóreo e a sua sobre-vivência à desagregação deste último.

Em síntese, são abordados neste trabalho os seguintes temas:

• o 1º volume, “Antes da Morte”, prova que a alma existe e

independe do corpo carnal;

• o 2º volume, “Durante a Morte”, demonstra a veracidade do aparecimento de fantasmas dos vivos, as aparições e

manifestações de moribundos e os fenômenos de premoni-ção;

• o 3º volume, “Depois da Morte”, oferece-nos a certeza da sobrevivência da alma após a morte, sua existência num

outro plano e a possibilidade de se comunicar com os Espí-ritos encarnados.

Estas duas obras: “A Morte e o seu Mistério”, juntamente com “O Desconhecido e os Problemas Psíquicos”, escrita anteri-

ormente pelo mesmo autor, formam a maior coleção de casos de

fenômenos psíquicos já reunidos em obra literária, nos últimos séculos. Daí a sua grande importância como documentos históri-

cos para as ciências psíquicas e, em decorrência, para as pesqui-

sas sobre os fenômenos mediúnicos.

– – 0 – –

“A imortalidade da alma é uma coisa de tal

importância, interessa-nos tão profundamente, que

é preciso ter perdido toda a sensibilidade para manter-se indiferente ao seu conhecimento.

O nosso primeiro interesse e o nosso primeiro

dever são os de nos esclarecermos sobre este as-

sunto, de que depende toda a nossa conduta: e é por isso que eu faço uma distinção extrema entre

os que trabalham com todas as suas forças para

nele se instruírem e os que vivem sem dele cuida-rem e sem nele pensarem.

Esta negligência numa questão em que se trata

deles mesmos, de sua eternidade, do seu todo, irri-

ta-me mais do que me comove, surpreende-me e espanta-me, é monstruosa para mim. Não falo as-

sim pelo zelo piedoso duma devoção espiritual.

Pelo contrário, entendo que se deve ter esse sen-timento por um princípio de interesse humano.”

Pascal

– – 0 – –

Sumário

I – Pode ser resolvido o maior dos problemas? .................... 5

II – O Materialismo – Doutrina errônea, incompleta e

insuficiente .................................................................... 29

III – Que é o homem? Existe a alma? .................................... 46

IV – Faculdades supranormais da alma, desconhecidas ou

pouco estudadas, provando a sua existência independente do organismo material –

Pressentimentos. – Adivinhações. – Premonições. –

Sensações em sonhos. – Chamadas misteriosas. ........... 60

V – A vontade agindo sem a palavra e sem qualquer sinal, à distância – Magnetismo. – Hipnotismo. –

Sugestão mental. – Auto-sugestão. ................................ 94

VI – A telepatia – As transmissões psíquicas a distância. – Vista e audição telepáticas. ...................................... 121

VII – A vista sem os olhos, pelo espírito, fora das transmissões telepáticas – Lucidez. – Criptoscopia..... 158

VIII – A visão dos acontecimentos futuros – O futuro

presente. – O já visto. .................................................. 213

IX – O conhecimento do futuro – O fatalismo. – O determinismo e o livre arbítrio. – Problema do

tempo e do espaço ....................................................... 235

CAPÍTULO I

Pode ser resolvido o maior dos problemas?

“To be or not to be.”

(Ser ou não ser.)

Shakespeare

Resolvo-me a oferecer hoje à atenção dos homens que

passam uma obra começada há mais de meio século, apesar de

ela me não satisfazer completamente. O método científico experimental, o único que vale para a pesquisa da verdade, tem

exigências a que não podemos nem devemos eximir-nos. O

grave problema exposto neste ensaio é o mais complexo de todos os problemas e participa tanto da constituição geral do Universo

como da do ser humano, microcosmo no grande todo.

É nas horas da mocidade que se empreendem estes estudos

sem fim, porque de nada se duvida e temos diante de nós uma longa vida em perspectiva; mas a vida mais longa passa como

um sonho, com suas luzes e suas sombras. Se podemos desejar

alguma coisa de melhor e útil no curso desta existência, é o de servir de algum modo ao progresso lento, mas todavia real da

humanidade, essa raça bizarra, crédula e céptica, indiferente e

curiosa, boa e má, virtuosa e criminosa, aliás incoerente e ignorante no seu conjunto, saída apenas dos casulos da crisálida

animal.

Quando foram publicadas as primeiras edições do meu livro

A Pluralidade dos Mundos Habitados (1862-1864), um certo número de leitores pareceu aguardar a sua natural continuação

aparente: A Pluralidade da Existência da Alma. Se o primeiro

problema foi julgado resolvido pelos meus trabalhos seguintes (Astronomia Popular, O Planeta Marte, Urânia, Lúmen,

1 Estela,

Sonhos Estrelados, etc.), o segundo ainda o não está 2 e a

sobrevivência da alma, seja no espaço, seja nos outros mundos,

seja pelas reencarnações terrestres, põe sempre diante de nós o

mais formidável dos pontos de interrogação.

Átomo pensante, levado sobre um átomo material através das

imensidades da Via-Láctea, o homem pode perguntar a si mesmo se existe pelo espírito tão insignificante como pelo corpo, se a lei

do Progresso não o deve elevar numa ascensão indefinida e se há

um sistema do mundo moral harmoniosamente associado ao sistema do mundo físico.

O espírito não será superior à matéria? Qual é a nossa

verdadeira natureza? Qual é o nosso futuro destino? Somos

apenas chamas efêmeras brilhando um instante antes de nos extinguirmos para sempre? Não tornaremos mais a ver os que

amamos e que nos precederam no túmulo? As separações são

eternas? Tudo se extingue em nós? Se alguma coisa fica, em que se torna esse elemento imponderável, invisível, mas consciente,

que constituiria a nossa duradoura personalidade? Sobreviverá

muito tempo? Sobreviverá para sempre?

“Ser ou não ser?” Eis a grande, a eterna questão, formulada

pelos filósofos, os pensadores, os pesquisadores de todos os

tempos e de todas as crenças. A morte será um fim ou uma

transformação? Existem provas, testemunhos da sobrevivência do ser humano após a destruição do organismo vivo? Até hoje o

assunto tem permanecido fora do quadro das observações

científicas. Será permitido tratá-lo pelos princìpios do “método experimental”, ao qual a humanidade deve todos os progressos

realizados pela Ciência? Será lógica essa tentativa? Estaremos

diante dos arcanos de um mundo invisível diferente daquele que cai sob os nossos sentidos e é impenetrável aos nossos meios de

investigação positiva? Não será possível ensaiar, procurar, se

certos fatos, correta e escrupulosamente observados, são suscetíveis de serem analisados cientificamente e aceitos como

reais pela crítica mais severa? Dispensemos mais frases, mais

metafísica. Aos fatos! Aos fatos!

Trata-se da nossa sorte, do nosso destino, do nosso futuro

pessoal, da nossa existência.

Não é somente a razão fria que indaga; não é somente o

espírito; é também o sentimento; é também o coração.

É pueril e pode parecer vaidoso que eu entre em cena; mas é

algumas vezes difícil abster-me e, como é sobretudo para

responder às dores de corações ulcerados que tenho prosseguido nestas pesquisas laboriosas, parece-me que o prefácio mais

lógico deste livro seria oferecido por algumas das inumeráveis

confidências que tenho recebido durante meio século, para reclamar angustiosamente a solução do mistério.

Aqueles que nunca viram morrer um ente adorado não

conhecem a dor, não caíram no abismo do desespero, não

tropeçaram com a porta fechada do túmulo. Quer-se saber, e um muro impenetrável ergue-se inexoravelmente diante do pavor.

Tenho recebido centenas de adjurações às quais quisera poder

dar resposta. Devo tornar conhecidas estas confidências?... Hesitei muito tempo. Mas são tão numerosas, representam com

tanta sinceridade o intenso desejo de chegar a uma conclusão,

que o meu caminho está traçado, visto tratar-se do interesse geral. Tais manifestações são a introdução natural desta obra,

pois foram elas que me determinaram a escrevê-la. Peço

desculpa, entretanto, de reproduzir estas páginas sem as modificar, pois se revelam o estado d’alma dos seres sensíveis

que as conceberam, exprimem a meu respeito conceitos

elogiosos cuja publicação neste lugar poderia dar ensejo a crer-se numa falta de modéstia da minha parte. Isso não passa de

particularidade pessoal e, portanto, insignificante, tanto mais que

um astrônomo, “que se considera átomo” diante do Universo infinito e eterno, é inacessível e hermeticamente fechado às

sensações da vaidade mundana. Os que me conhecem já me

julgaram, a esse respeito, faz longos anos.

A minha absoluta indiferença por todas as honrarias prova-o

suficientemente.

Que me chamem grande ou pequeno, que me louvem ou que

me censurem, sou espectador longínquo desses atos.

A seguinte carta foi escrita por desolada mãe, e transcrita textualmente. Ela mostra quanto seria desejável tentar ao menos

aliviar a miséria da humanidade sofredora. Mais do que a

medicina do corpo, é a medicina da alma que se deveria criar.

(CARTA 1.730) 3

“Ao nosso grande Flammarion

Reinosa (Espanha), 30 de março de 1907.

Senhor:

Quisera ajoelhar-me diante do senhor e beijar-lhe os pés,

pedindo que me ouça e que não repila a minha súplica. Não sei nem posso exprimir-me; desejava inspirar-lhe lástima,

interessá-lo na minha dor, mas era preciso vê-lo, contar-lhe a

minha desgraça, pintar-lhe o horror do que se passa em minha alma, e então não lhe seria possível deixar de sentir

imensa compaixão. É necessário que eu padeça muito para

chegar a cometer um ato de audácia e de indiscrição que parece uma loucura! Como me lembrei de dirigir-me ao

nosso ilustre Flammarion para pedir-lhe que console uma

desconhecida que não tem outro título à sua benevolência senão o de compatriota? É porque sofro! Venho de perder

um filho, o meu único filho. Sou viúva e toda a minha

felicidade consistia nesse filho e numa filha. Para que me pudesse compreender, Sr. Flammarion, seria preciso que

tivesse conhecido o filho adorado que acabo de perder e que

eu lhe descrevesse os trinta e três anos de sua existência.

Condenado por todos os médicos célebres de Madrid e de

Paris, na idade de cinco anos, em virtude de uma coxalgia, sacrificamos, eu e meu pobre marido, uma bela situação em

Madrid, retirando-nos para triste campina espanhola, a fim

de salvarmos a idolatrada criança. Esteve doente durante oito anos e ficou coxo! Quanto me custou de cuidados, de

aflições, de noites de insônia, de angústias, de sacrifícios, é

impossível dizê-lo! Mas como era gentil! Criado num carrinho, coberto de carícias e de beijos, era a criança mais

adorável que se podia sonhar! Ah! essa infância! Se ela

perdurasse ainda! Aos doze anos já não sofria da perna, mas não podia andar sem muletas. Que pesar para mim, que o

havia dado à vida, forte e bem constituído! Mais tarde, aos dezessete anos, caminhava com uma única muleta e uma

bengala. Aos vinte era o mais belo moço que se possa

imaginar. Se não temesse ser ousada, enviar-lhe-ia o retrato,

para lhe mostrar que o amor materno nada exagera. O seu

encanto subjugava toda a gente. Possuía esse dom de agradar que não se explica nem se define! Homens, mulheres,

crianças, velhos e novos, deixavam-se seduzir por qualquer

coisa inexplicável, que irradiava da sua pessoa. Em toda parte onde fosse com ele, recebia felicitações pela beleza e

pela bondade de meu filho! Invejavam-me! Porque era tão

belo como bom. Em sua alma tudo era nobreza, grandeza, generosidade.

Inteligente, espirituoso, de caráter igual e terno, a vida com ele era um sonho celeste, um perpétuo encantamento! E

poderá avaliar-lhe o mérito, Sr. Flammarion, quando eu lhe

disser que aos vinte anos teve uma cistite – provavelmente um retrocesso à sua primeira doença – que foi o ponto de

partida de longa série de sofrimentos, dos quais só o inferno

dará idéia! Não posso compreender que Deus, nosso Criador, permita que a carne humana seja assim martirizada,

sobretudo quando esse martírio é imposto a um ser inocente

e bom como era meu filho.

Todos os grandes especialistas foram novamente

consultados; mas, infelizmente, nenhum o pôde curar. Passou treze anos em alternativas de melhorar e piorar,

conservando, no meio de dores atrozes, a mesma igualdade

de caráter, a mesma doçura, a mesma bondade e a alegria de sempre, para não entristecer os outros.

Fazia quatro anos que pouco sofria; e o ano passado encontrava-se tão bem que se julgara curado! Desde a morte

de meu pobre marido, falecido em 1902, que meu filho era o

chefe de nossa pequena família; mãe, irmã e ele. Como éramos felizes! Ainda que obrigados a trabalhar para

angariarmos o nosso pão, a vida parecia-nos tão bela! Minha

filha não quis casar-se para se consagrar inteiramente ao irmão, a quem adorava. Via os meus dois filhos amarem-se

tanto que não receava a morte, certa de que seriam inseparáveis, vivendo um para o outro. Que dizer-lhe,

senhor, da ternura de meu filho para sua mãe e da desta por

seu filho? Procure no Céu, entre os anjos, lá bem alto, nesses

mundos onde a sua vista penetra, tudo o que a ternura pode

produzir de mais suave, de melhor, e terá perfeita idéia do amor filial e do amor materno desses dois entes! Nem quero

pensar nisso! Não ouso lembrar-me dos olhos, da voz de

meu filho quando, fitando-me, dizia: “Querida mãe!”

O ano passado, em agosto, propuseram-lhe visitar uma

mina (ele se interessava por esses negócios e deles se ocupava havia algum tempo) e quis levar-me com ele.

Chegados a certo sítio, disseram-nos que era preciso montar

a cavalo para chegarmos até à mina. A princípio recusei, sabendo que a equitação lhe era proibida devido ao

sofrimento da bexiga; mas meu filho me garantiu que

poderia fazer esse trajeto sem perigo; hesitei, parlamentou-se: cedi.

Ah! não ser possível remediar o mal praticado!... Essa excursão fatigou tanto meu filho que ele adoeceu com febre

gástrica. Entregue aos cuidados de médicos ignorantes e

estúpidos que não conheceram o seu estado e levaram meses a dizer “que não era nada”, um tumor invadiu-lhe a bexiga e,

não podendo as membranas suportar essa prova, ela

rebentou!

Os suplícios do inferno nada são comparáveis às torturas

experimentadas por meu infortunado filho! Foi chamado um cirurgião célebre; chegou vinte e duas horas depois do

acidente, quando o enfermo já estava prestes a partir para o

outro mundo!

Foi operado, mas era tarde. O infeliz sobreviveu treze dias

à operação; o cirurgião só lhe dava vinte e quatro horas de vida. Compreendendo, porém, a dor de sua mãe e de sua

irmã, resistiu, lutou corajosamente, apesar de tudo. Ah! que

treze dias, senhor! Durante esse tempo deu-nos a medida da grandeza de sua alma.

Não pensando senão em nós, nas conseqüências da sua morte para as duas mulheres que ficavam sós, sem apoio, em

terra estranha, a chorar eternamente o filho adorado, um

irmão, procurou por todos os meios suavizar a crueldade

desta situação. O que nos disse nesses momentos supremos

não é de um moço de trinta e três anos, mas de um santo, de um anjo, de um ente sobre-humano! Oh! aquele rosto

torturado pelos sofrimentos! Aqueles olhos que pareciam ver

alguma coisa do Além!

E a sua boca, contraída pela dor, procurando ainda sorrir;

a sua mão apertando a minha, enquanto me dizia: “Adeus, mãe querida, adeus! Amava-te tanto! Não te esqueças de

mim!”

“Senhor todo poderoso – dizia ele –, não deste maior cruz a teu filho que era Deus, do que a mim que sou um pobre

homem! A morte! a morte por piedade! Se me quereis, mãe, pedi a Deus que me envie a morte!”

E foi assim durante treze dias.

Ó Flammarion! tenha compaixão de mim! Em nome de

sua mãe, seja misericordioso! Estou louca de dor. Há trinta e dois dias que ele morreu e, depois disso, não consegui

dormir dez horas. À noite fico de pé até às quatro da manhã,

e quando, vencida pelo cansaço, me deito, vestida, no meu leito e fecho os olhos, a idéia fixa continua durante o penoso

sono; não perco a lucidez um só minuto e, quando abro os

olhos experimento a obsessão que perdura durante o dia. É tão assustador o que sinto, e tão atroz, que a mim mesmo

pergunto se o inferno não será preferível ao que sofro!

É possível que seja Deus o criador de seres destinados a suportar semelhantes misérias?

O senhor, astrônomo e pensador, que pesa os sóis e os mundos e cuja vista penetra nessas regiões misteriosas onde

o nosso espírito se perde, oh! diga-me, suplico-lhe de joelhos, se as almas sobrevivem, se posso conservar a

esperança de tornar a ver meu filho e se ele me vê! Existirá

algum meio de comunicar com ele?

Ao senhor, que sabe tantas coisas sobre o céu, sobre os Espíritos, sobre as maravilhas do Universo, peço, por

piedade, que me diga uma palavra que deixe um raio de

esperança, por fraco que seja, no meu coração despedaçado,

magoado, martirizado! Não pode compreender o excesso da

minha dor! Quisera morrer dela, e assim o espero, mas... minha filha implora-me que viva, que a não deixe só no

mundo, e vejo-me obrigada a viver e a sofrer! Que horror!

Quando penso que num só instante podia pôr fim a este suplício!... Se fosse possível pesar a dor, medi-la como o

senhor media os mundos, seria tal o peso da minha, tamanha

a extensão, que o assustaria pensar que uma alma possa atingir tal grau de tormento. É preciso que haja para isso

alguma coisa de infernal no meu destino! Nem ferros em

brasas, nem tenazes de tortura são capazes de produzir semelhantes sofrimentos! Meu filho, meu filho adorado!

Desejo vê-lo! Não quero o Céu sem ele! Oh! meu

Emmanuel, idolatrado filho das minhas entranhas! alegria da minha vida! felicidade de mãe para sempre perdida! Há um

Deus? Será ele quem permite esses horrores sobre a Terra?

Por piedade, Sr. Flammarion, em nome dos que ama e que o amam, não seja insensível à maior dor humana que jamais

supliciou um coração; diga-me alguma coisa, o senhor que

possui o segredo dos céus! que muito sabe, pois nós, simples mortais, não o sabemos nem o compreendemos. Diga-me se

as almas sobrevivem em alguma parte, se elas se recordam,

se elas amam ainda os que ficam na Terra, se nos vêem, se podemos chamá-las para junto de nós!

Ah! se pudesse visitá-lo e ajoelhar a seus pés! Perdoe esse proceder insensato; estou louca de dor, não sei se sonho ou

se estou acordada! Sei que sinto uma dor aguda que parece

ferro em brasa posto sobre uma chaga!

Perdoe, Sr. Flammarion! Os seus sóis, as suas estrelas, tão

belas e maravilhosas, não sofrem, não sentem, e eu sinto uma dor maior do que todos os mundos que se agitam no

espaço! Ser tão pequena coisa, tão miúda, e entretanto sentir uma dor tão intolerável! Que é isso? Que mistério é esse?

Um ser tão fraco, tão limitado e... sofrer tanto!

Perdoe mais uma vez, mestre, em nome de sua mãe! Perdoe-me e tenha compaixão de sua infeliz compatriota.

Viúva N. Boffard

Reinosa (Espanha), Provìncia de Santander.”

Aí está a carta angustiada que reproduzo textualmente para mostrar todo o horror de semelhante situação. Que me

desculpem, mais uma vez, as expressões ditirâmbicas que me

dizem respeito. A única significação que têm é a de fazerem sentir com exatidão essas dores imensas, duplicadas pela

esperança ardente de se verem dissipar as trevas.

Seria preciso ter um coração de pedra para não nos

comovermos até às lágrimas diante dessas súplicas lancinantes do amor materno, para ficarmos surdos ante a angústia de tais

desesperos e para não experimentarmos o desejo ardente de

consagrar a vida a dar-lhes remédio.

Os padres recebem diariamente súplicas dessa ordem, porque

são considerados ministros de Deus, dotados do poder de

penetrar o enigma do sobrenatural e de resolvê-lo. Respondem a

essas dores levando-lhes os confortos da religião. O sacerdote afirma em nome da fé, da revelação; mas a fé não se impõe nem

é tão geralmente aceita quanto se imagina. Conheço padres,

bispos, cardeais que a não têm, apesar de a indicarem como benefício social. Há na Terra umas cinqüenta religiões

diferentes, úteis talvez, mas inaceitáveis sob o ponto de vista

filosófico. Em face dos espetáculos que acabamos de relembrar, poderão seus ministros convencer-nos de que um Deus bom e

justo rege a humanidade? O homem de ciência não se senta nem

no confessionário nem na cátedra evangélica e só pode dizer o que sabe. É, antes de tudo, leal, franco, independente, racional. O

seu dever é estudar, pesquisar. Procuramos ainda e não

afirmamos ter encontrado e muito menos ter recebido do Céu a revelação da verdade. Foi tudo quanto pude responder à

desconhecida, dando-lhe a esperança de tornar a ver um dia seu

filho e de ficar doravante em relação espiritual com ele. Quanto eu estimaria levar à sua alma uma convicção libertadora! Mas

não tenho, como Augusto Comte, Saint-Simon ou Enfantin, a ilusão de ser o grande sacerdote de uma nova religião.

Entretanto, não há dúvida de que a religião universal do futuro

será fundada na Ciência e em particular na Astronomia associada

aos conhecimentos psíquicos.

Procuremos humildemente e todos juntos. Perdoem-me ainda

por reproduzir as linhas elogiosas desta epístola; mas suprimi-las seria suprimir ao mesmo tempo a expressão dessa angústia, dessa

confiança e dessa fé.

A morte de um filho inspirou a carta precedente. A de uma

filha ditou a seguinte:

(CARTA 809)

“Theil-sur-Vanne, novembro, 1899.

Mestre:

Tenho a honra de o conhecer suficientemente pelas suas

obras, para saber que é bom e para esperar, embora me não

conheça, o seu assentimento em ler-me com indulgência e

que se compadecerá moralmente com a minha desgraça, concedendo-me o socorro espiritual de que tanto preciso.

Em 19 de setembro findo passei pela dor terrível de perder uma encantadora criança de dezesseis anos e meio, de

grande inteligência, de esquisita delicadeza de sentimento. E

como era bela!

Pensávamos que tínhamos diante de nós uma criatura

imaterial, tanto o seu corpo casto era de ninfa como o seu rosto angélico eram idealmente lindos.

A minha queridinha, com seus magníficos olhos azuis, tão expressivos, franjados de pestanas negras, assim como as

sobrancelhas tão delicadamente arqueadas, o nariz um pouco

longo, fino, direito, a boca talvez grande, mas de expressão tão meiga, o rosto de oval tão harmonioso, uma tez de lírio

branco!... Gentil covinha no mento imprimia destaque ao seu

sorriso, iluminando-lhe o rosto ordinariamente bastante sério.

Esplêndidos cabelos louros castanhos, anelados naturalmente e finamente encrespados qual musgo de ouro,

ornavam-lhe a fronte virginal; as orelhas, mimosas conchas

escondidas nos cabelos, eram ninhos de beijos em que

jamais pousarei os lábios ávidos de ternura...

Minha filha bem-amada já não vive, meus olhos nunca mais descansarão amorosamente no seu rosto adorado, só

posso por ela chorar.

Tantas perfeições morais e físicas aniquiladas

brutalmente, estupidamente, cruelmente, barbaramente! A morte desapiedada tudo me roubou. A minha Renata

estremecida partiu e eu vivo. A vida... Que terrível galé!...

Com ela acabaram as nossas interessantes conversas, os nossos colóquios sobre as questões mais abstratas do Além,

pois minha filha, apesar de moça, era pensadora, uma preciosa amiga, a minha confidente e minha companheira

amada! Era tudo para mim, essa bela flor ceifada antes de

desabrochar. Por que? Que problema!

Depois de sua morte, pensei muitas vezes no suicídio para

reunir-me a ela..., mas (seria intuição de seu próximo fim?) na véspera de expirar, disse, beijando-me com carinho: “A

mamã não se há de suicidar; devemos esperar, não é assim?”

Fiquei surpreendida e só compreendi tudo no dia seguinte, quando, branca como um lírio admirável, ela fechou seus

belos olhos para sempre, dando-me um último beijo. Ah!

esse beijo derradeiro! Pôs nele o resto de sua vida. Sinto-o sempre. Que momentos!... Que torturas!

Hora suprema e inolvidável, que revivo sempre! Amo o meu sofrimento. Vejo a minha querida morta que havia

adivinhado o meu desespero; ela quis que eu ficasse, para

chorar por ela. O meu pesar é feito de saudades estéreis, de decepção amarga, de revolta contra todos e tudo; barafusto

contra o próprio Deus, que me levou mais do que mil vezes

a vida. Agora, só posso viver da recordação de minha filha, meu pensamento constante, meu culto, minha adoração.

Quisera encontrar, se isso fosse possível, uma suavização à minha dor no Espiritismo; refugiar-me nele com fé,

esperança e amor...

Mas sou bem pouco iniciada nesse estudo.

Meu marido e eu temos tentado a experiência da mesa, sem resultado, apesar de empregarmos todos os esforços

para o conseguir, colocando nela o retrato de nossa querida filha, um anel de seus cabelos, uma página de sua escrita, e

de a termos evocado com toda a força de nossa vontade. Mas

as nossas lágrimas, os nossos apelos, os nossos desejos, tudo foi inútil! Quero continuar, perseverar, e é com esse fim,

caro e ilustre mestre, que lhe suplico o seu auxílio.

Ainda existe aquela cuja vida em flor foi tão brutalmente ceifada, que era tão pura, que teve apenas o tempo de amar

sua mãe?

Sua mamã, palavra tão doce na sua querida boca! Eu era

demasiadamente feliz! Há quanto tempo já que não ouço o suave som da sua voz! Para ouvi-lo ainda, daria de bom

grado os anos que me restam de vida.

Desejo avidamente ter provas da sobrevivência da alma querida e bela de minha adorada filha, saber sobretudo se ela

pode comunicar comigo. Se alcançasse esta felicidade, dirigida pelo meu caro mestre, tal fonte perene de

consolação seria para mim indizível. Confundiria-o no

mesmo pensamento com minha filha e Deus. A leitura das suas obras admiráveis sugeriu-me o pensamento de pôr em

si as minhas esperanças, com a certeza de que “pode

satisfazer” o que lhe peço, e a confiança em que acolherá favoravelmente a súplica duma pobre mãe que exulta à

esperança de tornar a encontrar sua filha desaparecida e não

morta. Seja benévolo para esta mãe triste e ignorante. Já que possui a luz, alumie-a, socorra-a na sua miséria moral: é a

mais bela esmola que lhe pode fazer.

O meu grande desejo de aprofundar esses mistérios não é vã curiosidade: é necessidade poderosa, real, única, da qual

só a morte me poderá libertar. Aguardo, com confiança, mas também com impaciência, a sua resposta, e, se assim o julga

conveniente, irei de boa vontade a Paris, ou a outro qualquer sítio que me designar. Digne-se, senhor e ilustre sábio,

receber os meus agradecimentos antecipados e os melhores

sentimentos da sua humilde criada.

H. Primault”

Reproduzi exatamente esta carta, como a precedente, sem

eliminar os termos elogiosos a meu respeito, porque, como já disse em outro lugar, as sensações de vaidades pueris são-me

desconhecidas e, além disso, estou acostumado, há mais de meio

século, a louvores que me deixam indiferente. A convicção absoluta de um astrônomo é a de que somos apenas átomos da

última insignificância. Todavia, essas expressões de admiração

de leitores a um autor, seja ele quem for, justificam a confiança e a fé exprimidas e devem ser respeitadas.

A lealdade científica obriga-nos a dizer só o que sabemos.

Não devemos enganar ninguém, nem mesmo na melhor das

intenções e com o fim de oferecermos uma satisfação transitória. Não pude dar à pobre mãe uma certeza absoluta. Foi há vinte

anos. Desde essa época não interrompi as minhas pesquisas. Este

livro é escrito para expor os resultados do meu trabalho.

Tomei a liberdade de reproduzir, textualmente também, a

carta tão terna da minha correspondente desconhecida, porque é

a expressão da dor de todas as mães que perderam o seu filho, de

todos os que perderam um ente querido e para os quais até o nome de “bom Deus” parece um insulto à realidade. Explica-se

perfeitamente a revolta dessas almas. Possuo muitas outras cartas

mais severas ainda para as falsas consolações religiosas, as quais me foram dirigidas por católicos, protestantes, judeus,

espiritualistas de todas as crenças, livres-pensadores,

materialistas, ateus, aproveitando as injustiças observadas para negarem a existência dum Princípio inteligente na organização

do mundo.

Os homens consolam-se muitas vezes pelo cepticismo, pela

submissão ao irrevogável, pela verificação da indiferença da natureza para com as impressões humanas. As mulheres não.

Essas não se resignam. Não aceitam o nada. Sentem que há

qualquer coisa de desconhecido, mas de real. Querem saber.

É raro passar-se uma semana sem que eu receba cartas desse

gênero. Mas, qual é a inteligência universal? Somos inclinados a

imaginar que Deus pensa como nós, que o nosso sentimento da

justiça está de acordo com o dele, que o seu pensamento é da

mesma natureza que o nosso, apesar de infinitamente superior. É,

talvez, outra coisa. O inseto pensa pesadamente quando se transforma em crisálida e quando rompe esse invólucro para

abrir as asas que acaba de adquirir; o nosso pensamento está

presumivelmente tão longe do de Deus como o da lagarta o está do nosso.

Encontramo-nos em pleno mistério! Mas o nosso dever é

perscrutá-lo.

Durante a infame guerra alemã que suprimiu na flor da idade

uns quinze milhões de homens, com direito à vida, criados pelos pais, pelas mães, muitas vezes à custa de sacrifícios enormes,

recebi centenas de cartas acusando a injustiça e a barbaria das

instituições humanas, lastimando que o ódio pela guerra, que um grupo de amigos da humanidade prega há tanto tempo, não tenha

sido compreendido pelos governantes, revoltando-se contra

Deus, que permite essas pavorosas destruições, e declarando as suas existências despedaçadas para sempre, pelos lutos

irreparáveis.

Mais do que nunca, o problema atroz dos destinos ergue-se

diante de nós.

Será verdadeiramente insolúvel? O véu não poderá afastar-se,

levantar-se mesmo ligeiramente?

Ah! as religiões, apesar de terem todas por origem essa

necessidade das nossas almas, esse desejo de conhecer, a dor de

ver diante de si o cadáver mudo de um ente querido, não nos deram as provas que prometiam. As mais belas dissertações

teológicas nada comprovam. Não são frases que queremos, são

fatos demonstrativos. A morte é o maior problema que tem ocupado o pensamento dos homens, o problema supremo de

todos os tempos e de todos os povos. Ela é o fim inevitável para

o qual nos dirigimos todos; faz parte da lei das nossas existências sob o mesmo título que o do nascimento. Tanto uma como outro

são duas transições fatais na evolução geral, e entretanto a morte, tão natural como o nascimento, parece-nos contra a natureza.

A esperança na continuação da vida é inata na alma humana;

é de todos os tempos e de todos os países. A cultura das ciências

nada tem com essa crença universal, que repousa em aspirações

pessoais e não se apóia em bases positivas.

Eis aí um fato cuja averiguação tem seu valor.

O sentimento não é uma quantidade omissível, igual a zero,

seu coeficiente científico.

As duas comunicações já reproduzidas pertencem a uma série

começada há muito tempo e que os meus leitores conhecem. O

número das cartas recebidas, aceitas e inscritas nesta coleção de

documentos, de observações, de pesquisas, de perguntas motivadas, eleva-se, no meu registro, desde o inquérito

começado em 1899 (v. minha obra O Desconhecido e os

Problemas Psíquicos, página 95) até julho de 1919, à cifra de 4.106, à qual devo acrescentar aproximadamente 500 recebidas

antes do inquérito. Poderia citar aqui algumas centenas, análogas

às duas precedentes. Eis aqui outra que há de, sob outro aspecto, surpreender mais de um leitor. É uma súplica veemente que me

foi endereçada de La Rochelle, em 15 de agosto de 1904. É um

pouco grosseira, mas publico-a integralmente, como as anteriores.

(CARTA 1.465)

“Grande irmão,

Meus olhos sofrem de cataratas, mas é preciso que lhe

escreva. Sou um céptico, um zombeteador empedernido, mas necessito crer em alguma coisa. Uma terrível catástrofe,

irreparável, acaba de destruir quatro existências. Minha

filha, cujo encanto, índole e graciosidade haviam seduzido toda a cidade de Rochefort, em 1902, desde as mães das

rivais às próprias rivais para o casamento, acaba de seguir

para o manicômio em Niort, onde vai aguardar a morte... Foi uma agonia de dezoito meses para a mártir e para sua pobre

mãe, que a levou a Paris, Bordéus, Saujon, onde

especialistas ambiciosos mostraram a incapacidade radical de sua pretensa ciência. E aqui estou sozinho com meu filho,

vítima da mesma catástrofe. A idéia do suicídio persegue-me. O meu cérebro repete o estribilho: “sua filha está

doida”. E penso nas misérias gerais, no imenso logro que é a

vida para a maioria das criaturas. Trazemos ao nascer a tara

dos nossos ascendentes (com que direito se metem nisto?).

Qual será a nossa personalidade paralisada, afundada na espessa massa carnal? Pelo seu jogo molecular, pelo

exemplo da educação dos parentes, pela linha de vida

obrigatória, pelas condições da situação física e moral dos pais, essa ganga seria então a poderosa diretriz da

personagem que acaba de encarnar-se ou antes de fundir-se

num agregado de que será escrava por toda a vida. Que quer dizer tudo isso?

As asneiras e as imbecilidades declamadas nos púlpitos da igreja acabaram por me revoltar. Apenas quero crer em

qualquer coisa de aceitável. Os espíritas, com sua

credulidade ingênua, são também tolos. Serviram-me páginas de Pitágoras, Buda, Abeilardo, Fénélon,

Robespierre, que não têm senso comum. É grotesco.

Há trinta e três anos que não lia. O drama que me feriu levou-me a ler alguns livros nos quais esperava encontrar o

que procuro.

Enfim, eis “O Desconhecido”!

Confesso-lhe que o li religiosamente. Admito em princípio as manifestações e aparições que o senhor assinala,

principalmente as que foram entendidas por animais, como por exemplo a história do gato da Dra. Maria de Tilo (página

166). O medo do gato, que viu o fantasma, parece ser uma

excitação de natureza elétrica. Mas o senhor, meu grande irmão, por que não vê aí senão moribundos?

Nada prova que o último suspiro, o último pensamento humano daquele que se vai sejam a causa de manifestações,

produzidas sem ciência dele. Não se tratará, pelo contrário,

dum primeiro passo no além, no momento da ruptura carnal?

Pertenço seguramente à grande multidão dos seus amigos

desconhecidos, daqueles que simpatizam com o senhor. Eles esperam agora um livro definitivo que concluirá as suas

investigações psíquicas. Os Espíritos? Os médiuns? Que tem verificado cientificamente com o seu método de astrônomo,

de matemático, para o qual 2 e 2 são 4 e não 5? Numa

palavra, com a sua autoridade unanimemente reconhecida, a

que ponto chegou?

Queremos sabê-lo! É a um homem como o senhor (isto

sem lisonjas) que cabe esclarecer tantas inteligências ávidas, sedentas. Não se decidirá? Tem a obrigação de nada poupar

para isso. Que serviço prestará, escrevendo este livro leal e

concludente! Basta de prédicas evangélicas, de dissertações de médiuns, de nevroses e de subterfúgios. Suplicam-lhe que

diga o que sabe!”

Compreender-se-á que eu não revele a assinatura desta carta, cujo autor é um alto funcionário do Estado.

Compreender-se-á também que não tenha publicado esta obra

há mais tempo, aguardando que ela estivesse à altura do grave

assunto de que trata.

Já havia sido principiada quando recebi esta súplica, em

1904; fora-o mesmo em 1861, como se pode verificar pelas minhas “Memórias”. Estas obras não se redigem em um ano.

De resto, não é um livro só que tive de compor em resposta a

esses pedidos; é uma dezena! Sairão um dia à luz? Trabalhando

neles há um quarto de século, estão em via de conclusão.

Mas comecemos por este.

Os leitores das minhas obras muito me auxiliaram nesta

pesquisa, enviando-me, desde há muito, observações de natureza

a preparar uma solução reclamada talvez com demasiada

confiança.

Possam os nossos esforços dar em resultado que seja

projetada alguma luz nas trevas seculares do problema da morte!

* * *

Na minha infância, durante as lições de Filosofia e de Instru-

ção Religiosa dadas na sala de estudo, ouvia freqüentemente um

discurso periódico, tendo por tema estas quatro palavras: Porro unum est necessarium; em português: “uma só coisa é necessá-

ria”. Esta coisa única era a salvação da nossa alma. O orador, o professor, falava-nos das guerras de Alexandre, de César, de

Napoleão, e concluìa: “De que serve ao homem conquistar o

Universo, se acaba perdendo a alma?”

Descreviam-nos também as labaredas do inferno e aterravam-

nos com quadros medonhos onde os danados eram torturados pelos demônios num fogo inextinguível que os queimava sem

consumi-los – e isto eternamente. Sejam quais forem as crenças,

esse argumento, tomado como texto, tem o seu valor. É incontes-tável que o único ponto realmente capital para nós é o de saber o

que nos está reservado depois de soltarmos o último suspiro. To

be or not to be! – Ser ou não ser! – A cena de Hamlet no cemité-rio repete-se todos os dias. A vida do pensador é a meditação da

morte.

Se as existências humanas não conduzem a nada, que comé-

dia é esta? Quer a encaremos de frente ou quer afastemos a sua imagem, a morte é o desenlace supremo da vida. Não querer

estudá-la é uma puerilidade infantil, porque o precipício está

diante de nós e nele cairemos, um dia, inexoravelmente. Imagi-narmos que o problema é insondável, que nada podemos saber,

que perdemos o nosso tempo – e com curiosidade um pouco

temerária – procurando ver claro, é uma desculpa ditada por preguiça absurda e por temor injustificado.

O aspecto fúnebre da morte provém principalmente do que a

cerca, do luto que a acompanha, das cerimônias religiosas que a

envolvem, do “Dies irae”, do “De profundis”. Quem sabe se o desespero dos sobreviventes não daria lugar à esperança, se

tivéssemos a coragem de examinar esta última fase da vida

terrestre, esta transformação, com o mesmo cuidado que consa-gramos a uma observação astronômica ou psicológica? Quem

sabe se às preces dos agonizantes não sucederia a serenidade do

arco-íris depois da tormenta?

É difícil não desejar resposta ao formidável ponto de interro-

gação que se ergue diante de nós, quando pensamos em nosso

próprio destino e quando a morte cruel nos arrebata um ente querido.

Como não perguntar se tornaremos a encontrar-nos ou se é

eterna a separação? Existe um Deus bom? A injustiça, a maldade

dominam a marcha da Humanidade, sem nenhum respeito pelos

sentimentos de coração com que nos dotou a Natureza? Que será

essa Natureza? Tem ela uma vontade, um fim? Haverá mais

espírito, justiça, bondade, idéias, em nossos ínfimos cérebros do que no Universo imenso? Quantos problemas associados ao

mesmo enigma!

Morremos; nada mais certo. Quando a Terra onde estamos

tiver dado umas cem voltas ao redor do Sol, nenhum de nós, caros leitores, será já deste mundo.

Devemos temer a morte por nós ou pelos que amamos?

O terror da morte é uma palavra sem sentido.

De duas coisas uma: ou morremos definitivamente, ou conti-

nuamos a existir para além do túmulo. Se morrermos inteiramen-

te, nada saberemos, jamais, acerca disso e, por conseqüência, não o sentiremos. Se continuamos a existir, o assunto merece exami-

nado.

Que o nosso corpo acaba, um dia, de viver, não há dúvida al-

guma; ele se dissociará em milhões de moléculas que se incorpo-rarão, em seguida, em outros organismos, plantas, animais e

homens; a ressurreição dos corpos é um dogma obsoleto que

ninguém pode aceitar. Se o nosso pensamento, a nossa entidade psíquica, sobrevivem à decomposição do organismo material,

teremos a alegria de continuar a viver, pois que a vida consciente

continuará também sob outra forma de existência, superior a esta, sendo o progresso a lei da Natureza e manifestando-se em

toda a história da Terra, único planeta que podemos estudar

diretamente.

Sobre este grande problema podemos dizer com Marco Auré-

lio: “Que é a morte? Considerando-a em si mesma, e separando-a

das imagens de que a cercamos, vê-se que não passa de simples

obra da Natureza. Ora, quem tem receio de uma obra da Nature-za é uma criança.”

Bacon repetiu o mesmo pensamento quando disse: “A pompa

da morte assusta mais do que a própria morte.”

Escrevia ainda o sábio imperador romano: “O que temos a

fazer é esperar a morte de coração plácido e não ver nela mais do

que uma dissolução dos elementos que compõem cada ser. Isto é

conforme à Natureza: ora, nunca é meu o que é conforme à

Natureza.”

Mas o estoicismo de Epicteto, de Marco Aurélio, dos árabes,

dos muçulmanos, dos budistas, não nos satisfaz. Queremos saber. Além disso, afirmar que a Natureza nunca procede mal é

uma proposição discutível. Todo homem que pensa não pode

deixar de ser perturbado, nas suas horas de meditações pessoais, por esta perspectiva: “Que será feito de mim? Morrerei inteira-

mente?”

Disse-se, não sem razão aparente, que havia nisso, da nossa

parte, obra de ingênua vaidade. Atribuímo-nos uma certa impor-tância; imaginamos que seria um desastre se cessássemos de

existir; supomos que Deus deve ocupar-se de nós e que não

somos, na Criação, uma quantidade que se possa desprezar. Decerto, sob o ponto de vista astronômico, não somos grande

coisa e mesmo a Humanidade inteira não tem também grande

importância. Não devemos portanto raciocinar hoje como no tempo de Pascal; os sistemas geocêntrico e antropocêntrico

caíram.

Átomos perdidos sobre um átomo igualmente perdido no in-

finito! Mas afinal existimos, pensamos, e desde que os homens pensam, sempre se preocuparam com as mesmas questões, às

quais as religiões mais diversas pretenderam responder, sem

nenhuma delas o ter conseguido.

O mistério diante do qual tantos altares e tantas estátuas de

deuses foram levantados conserva-se ainda tão formidável como

nos tempos dos assírios, dos caldeus, dos egípcios, dos gregos,

dos romanos, dos cristãos da Idade Média. Os deuses antropo-morfos e antropófagos foram derruídos. As religiões desaparece-

ram, mas a religião fica: pesquisa as condições da imortalidade.

Somos aniquilados pela morte ou continuamos a existir?

Francis Bacon (mais popular e mais célebre do que Roger

Bacon, mas que não possuía o seu gênio) havia previsto, ao

expor os fundamentos do método científico experimental, o triunfo progressivo da observação e da experiência, a vitória do

fato judiciosamente comprovado sobre as idéias teóricas, para

todos os domìnios dos estudos humanos, menos o das “coisas

divinas”, do “sobrenatural” que abandonou à autoridade religiosa

e à fé.

Isto era um erro (partilhado ainda atualmente por um certo

número de sábios). Não há razão valiosa para não estudar tudo, para não sujeitar tudo ao critério da análise positiva, e nunca se

há de saber senão o que se aprendeu. Se a Teologia se enganou

quando pretendeu que esses estudos lhe eram reservados, a Ciência enganou-se identicamente, desdenhando-os como indig-

nos dela ou alheios à sua missão.

O problema da imortalidade da alma não recebeu ainda solu-

ção positiva da ciência moderna, mas também não recebeu, como por vezes se pretende, uma solução negativa.

Em geral se pensa que o enigma da esfinge de além-túmulo

está fora da nossa alçada e que o espírito humano não tem o

poder de penetrar este segredo... Entretanto, não há outro assunto que lhe toque de mais perto do que este. Como não havemos de

interessar-nos pela nossa própria sorte?

O estudo perseverante deste grande problema leva-nos a pen-

sar hoje que o mistério da morte é menos obscuro e sombrio do que se acreditava até agora e que ele pode iluminar-se, aos olhos

do nosso espírito, de certas claridades reais e experimentais que

não existiam há meio século. Não deve causar admiração o fato de se ver as pesquisas psíquicas ligadas às pesquisas astronômi-

cas. É o mesmo problema. O universo físico e o universo moral

são um apenas. A Astronomia foi sempre associada à Religião. As ignorâncias da ciência antiga, baseada nas aparências enga-

nadoras, tiveram suas conseqüências inevitáveis nas crenças

errôneas de outrora; o céu teológico deve harmonizar-se com o céu astronômico, sob pena de decadência. O dever de todo

homem honesto é o de procurar lealmente a verdade.

Na época atual, de livre discussão, a ciência pode estudar

tranqüilamente, em plena independência, o mais grave dos problemas.

Havemos de lembrar-nos, não sem azedume, de que durante

os séculos intolerantes da Inquisição essas pesquisas do livre pensamento levaram os seus apóstolos ao cadafalso. Milhares de

homens foram queimados vivos pelas suas opiniões: a estátua de

Giordano Bruno faz-nos relembrar deles na própria Roma...

Passaremos nós diante dela ou diante da de Savonarola, em

Florença, ou da de Étienne Dolet, em Paris, sem sentirmos um calafrio de horror contra a intolerância religiosa? E Vaníni,

queimado em Tolosa? E Miguel Servet, queimado por Calvino

em Genebra? etc., etc.

Afirmou-se o que se ignorava; foi imposto silêncio aos pes-

quisadores. Eis o que atrasou o progresso das ciências psíquicas.

Sem dúvida esse estudo não é indispensável à vida prática. Em

geral os homens são estúpidos. Não há um que pense, entre cem. Vivem na Terra sem saber onde estão e sem a curiosidade de o

perguntarem a si mesmos. São brutos que comem, bebem, go-

zam, se reproduzem, dormem e se ocupam principalmente de ganhar dinheiro. Tive a grande satisfação, durante uma carreira

já longa, de difundir entre as diversas classes da Humanidade

inteira, em todos os países e em todas as línguas, as noções essenciais dos conhecimentos astronômicos e estou em situação

de apreciar a estatística dos seres que se interessam por conhecer

o mundo que habitam e por formar uma idéia rudimentar das maravilhas da Criação. Nas dezesseis centenas de milhões de

seres humanos que povoam o nosso planeta existe aproximada-

mente um milhão nestas condições, isto é, um milhão de homens que lêem as obras de Astronomia por curiosidade ou por outro

qualquer motivo. Quanto aos que estudam e se iniciam pessoal-

mente na ciência, pondo-se a par das descobertas pela leitura das revistas especializadas e anuários, o seu número calcula-se em

cinqüenta mil, em todo o mundo, sendo seis mil franceses.

Pode concluir-se que há um ser humano entre mil e seiscentos

que sabe, de modo vago, em que mundo habita, e um em cento e sessenta mil que o conhece bem.

Quanto ao ensino primário e secundário, escolas, colégios,

liceus (laicos ou culturais), em matéria astronômica, o resultado

é este: nada ou quase nada. Em psicologia positiva, nada igual-mente. A “ignorância universal” é a lei da nossa Humanidade

terrestre desde o seu nascimento simiesco.

As deploráveis condições da vida em nosso planeta, a obriga-

ção de comer, as necessidades da existência material, explicam a

indiferença filosófica dos habitantes da Terra, sem desculpá-los

inteiramente; pois milhões de homens e mulheres dispõem de

tempo suficiente para distrações fúteis, para ler folhetins e romances, jogar as cartas, sentar-se à mesa dos cafés, preocupar-

se com os negócios alheios, continuar a história antiga da palha e

da viga, espiar e criticar em torno de si, fazer politicagem, en-cher as igrejas e os teatros, sustentar as lojas de luxo, fatigar as

costureiras e as modistas, etc.

A ignorância universal deriva do pobre individualismo huma-

no que se basta a si mesmo. Viver pelo espírito não é necessário a ninguém ou pouco menos. Os pensadores constituem a exce-

ção. Se essas investigações nos levam a ocupar melhor o nosso

espírito, a saber o que viemos fazer na Terra, poderemos estar satisfeitos com tal trabalho, porque, realmente, a vida da Huma-

nidade terrestre parece bem obtusa.

O habitante da Terra é ainda tão estúpido e tão animal que até

agora, e em toda parte, foi a força brutal quem fundou o direito e que o manteve; que o principal ministério de cada nação é o

ministério da guerra; e que os nove décimos dos recursos finan-

ceiros dos povos são consagrados às matanças periódicas inter-nacionais.

E a morte continua a reger soberanamente os destinos da

Humanidade.

Na realidade, a soberana é ela... O seu cetro nunca exerceu

um poder dominador com violência tão feroz e tão selvagem como nestes últimos anos. Derrubando milhões de homens nos

campos de batalha, fez surgir milhões de pontos de interrogação,

dirigidos ao destino.

Estudemos este fim supremo. É assunto digno da nossa aten-

ção.

* * *

O plano desta obra é traçado pelo próprio fim a que visa: Cer-

tificar-se das provas positivas da sobrevivência. Nela não se encontrarão nem dissertações literárias, nem belas frases poéti-

cas, nem teorias mais ou menos cativantes, nem hipóteses, mas

unicamente fatos observados, com suas deduções lógicas.

Morremos inteiramente? Eis a questão. Que fica de nós? Di-

zer, pensar que a nossa imortalidade consiste em nossos descen-

dentes, em nossas obras, no progresso que podemos trazer à Humanidade, é puro gracejo. Se morremos de todo, nada sabe-

remos dos serviços que prestamos e, por outro lado, o nosso

planeta acabará e a Humanidade perecerá. Tudo será, pois, aniquilado.

Para saber se a alma sobrevive ao corpo é necessário saber

primeiro se ela existe, independentemente do organismo físico.

Devemos, pois, estabelecer esta existência sobre as bases cientí-ficas da observação positiva, e não sobre belas frases ou em

argumentos ontológicos com os quais as teologias de todos os

tempos se contentaram até agora. E em primeiro lugar teremos de dar-nos conta da insuficiência das teorias fisiológicas geral-

mente aceitas e classicamente ensinadas.

CAPÍTULO II

O Materialismo – Doutrina errônea,

incompleta e insuficiente

“Desconfiemos das aparências.”

Copérnico

Todos conhecemos a “Filosofia Positiva” de Augusto Comte

e a sua judiciosa classificação das ciências, descendo gradual-

mente do Universo ao Homem, da Astronomia à Biologia.

Ninguém desconhece também Littré, continuador de Augusto

Comte. O seu “Dicionário” encontra-se em todas as bibliotecas e

as suas obras foram difundidas por toda parte. Conheci-o pesso-

almente.4 Era um homem eminente, sábio, enciclopedista, pensa-

dor profundo, aliás materialista e ateu convicto e absolutamente

sincero. A estética do seu rosto não correspondia à beleza de sua

alma. Era difícil vê-lo sem pensarmos em nossa origem simiesca, e entretanto o seu espírito era da mais alta nobreza e o seu cora-

ção de uma generosidade rara.

Morava perto do Observatório; sua esposa era muito devota:

ele mesmo a acompanhava, aos domingos, à missa de S. Sulpí-cio, por meiga e pura bondade e sem entrar na igreja. Le Dantec,

ateu e materialista, que lhe sucedeu, teve exéquias religiosas para

não magoar sua mulher, muito religiosa também, de quem se pode deplorar este último gesto. Preferir-se-ia que as companhei-

ras da vida dos grandes homens pensassem como seus maridos.

Este professor de ateísmo era igualmente muito bom. Tudo isto é bastante paradoxal. O mesmo se deu com Jules Soury, esse

devorador de padres “sepultado por eles, entre preces litúrgicas”.

A lógica não é deste mundo. Mas as doutrinas nem sempre orientam as obras. Pode-se ser católico praticante e, ao mesmo

tempo, mentiroso, explorador do próximo, assim como se pode

ser materialista e perfeito homem de bem.

Conheci ainda o excelente Ernesto Renan que, por nobre sin-

ceridade e para se libertar lealmente de toda hipocrisia, recusara

o sacerdócio para o qual o levavam os seus estudos teológicos.

Esses eminentes espíritos são respeitáveis nas suas honestas

convicções, que devemos respeitar como eles respeitaram as dos

outros; mas podem-se discutir as suas idéias, e de resto nunca

eles tiveram pretensões de infalibilidade.

Littré ocupou-se das questões psíquicas que temos em mira

estudar neste livro. Tomaremos os seus argumentos, assim como

os de Taine, seu êmulo, por base das afirmações materialistas

modernas. Não temamos combatê-las face a face.

Na sua obra A Ciência sob o Ponto de Vista Filosófico encon-

tram-se num capìtulo sobre a “fisiologia psíquica” as seguintes

declarações:

“Talvez pareça insólita a expressão fisiologia psíquica.

Poderia escolher a de psicologia para designar o estudo das faculdades intelectuais e morais. Eu próprio já a empreguei

muitas vezes e, devido ao uso comum que dela se faz, quan-

do o texto não deixar nenhuma obscuridade no meu pensa-mento, empregá-la-ei ainda. A raiz grega que a compõe é, de

fato, apropriada à Teologia e à Metapsíquica, mas também

pode ser adaptada à Fisiologia, dando-lhe o sentido de con-junto das faculdades intelectuais e morais, locução muito

longa e complexa para ser substituída com vantagem por

uma expressão mais simples.

Entretanto, sendo certo que a Psicologia foi na sua origem

e ainda é o estudo do espírito, considerado independente-mente da substância nervosa, não devo nem quero servir-me

de expressão que pertence a uma filosofia muito diferente

daquela que empresta o seu nome às ciências positivas. Nes-tas ciências não se conhece nenhuma propriedade sem a ma-

téria, não porque a priori se tenha a idéia preconcebida de

que não existe qualquer substância espiritual independente, mas porque a posteriori jamais se encontrou a gravitação

sem corpo pesado; o calor sem corpo quente; a eletricidade sem corpo elétrico; a afinidade sem substâncias de combina-

ção, vida, sensibilidade; pensamento sem ser vivo, sensível e

pensante.

Julguei necessário fazer figurar a palavra fisiologia no tí-tulo deste trabalho. Bem podia servir-me da de fisiologia ce-

rebral, mas esta envolve assunto mais vasto. O cérebro pos-sui diversas formas de ação de que não pretendo ocupar-me,

limitando-me à parte que ele tem na impressão de que resul-

ta a noção do mundo exterior e do eu.

Eis o motivo pelo qual escolhi a locução fisiologia psíqui-

ca, ou mais concisamente psicofisiologia. Psíquico, isto é, relativo aos sentimentos e às idéias; fisiologia, isto é, forma-

ção e combinação destes sentimentos e destas idéias em re-

lação à constituição e à função do cérebro. Não tenho a pre-tensão de introduzir uma nova expressão na ciência: tudo

quanto aqui pretendo é, de uma parte, limitar nitidamente o

meu assunto e de outra inculcar que a descrição dos fenôme-nos psíquicos, com sua subordinação e seu encadeamento, é

pura fisiologia e o estudo de uma função e de seus efeitos.

Os progressos realizados pela Psicologia, pelo menos a que deriva da escola de Locke, que rompeu com as idéias inatas,

aproximaram-na da Fisiologia. Quanto mais esta se deu con-

ta da extensão do seu domínio, menos se assustou com os anátemas da Psicologia que interditava as altas especula-

ções. Hoje não resta dúvida de que os fenômenos intelectu-

ais e morais são fenômenos pertencentes ao tecido nervoso; que o caso humano não é senão um anel, embora o mais

considerável, de uma cadeia que se prolonga, sem limite

bem nítido, até aos últimos animais; e que, sob qualquer títu-lo que se proceda, contanto que se empregue o método des-

critivo, de observação e de experiência, ser-se-á um fisiolo-

gista.

Não concebo uma fisiologia onde a teoria dos sentimentos

e das idéias, no que ela tem de mais elevado, não ocupe grande lugar.”

5

Esta é a base do sistema materialista da alma. Convido o lei-tor a pesar escrupulosamente esse gênero de raciocínio.

Não devemos admitir a existência da alma “porque não se co-

nhece nenhuma propriedade sem matéria, porque jamais se

encontrou a gravitação sem corpo elétrico, afinidade sem subs-tâncias de combinação, a vida, a sensibilidade, o pensamento,

sem ser vivo, sentindo e pensando.

Ora, só há neste raciocínio uma petição de princípio, fundada

sobre a palavra “propriedade”.

Assimilar o pensamento à gravitação, ao calor, aos efeitos

mecânicos, físicos, químicos, dos corpos materiais é igualar duas

coisas muito diferentes, que estão precisamente dentro da ques-

tão: o espírito e a matéria.

A vontade de um ser humano, mesmo a da criança, é pessoal,

consciente, ao passo que a gravitação, o calor, a eletricidade, são

impessoais, inconscientes, conseqüências de certos estados da

matéria, fatais, cegas, essencialmente materiais por si mesmo. É grande a diferença entre os dois objetos comparados: o dia e a

noite.

O próprio raciocínio científico erra pela base. O calor, por

exemplo, nem sempre provém de um corpo quente: o movimen-to, que não tem temperatura alguma, produz calor. O calor é um

modo de movimento. A luz é também um modo de movimento.

A natureza da eletricidade continua desconhecida.

Confesso que não sei explicar como um homem do valor de

Littré, chefe da Escola Positivista, tenha aceitado esse raciocínio,

sem perceber que não havia nele mais do que uma petição de

princípio, quase um trocadilho, pois esta argumentação baseia-se na palavra “propriedade”. O que seria preciso provar positiva-

mente é que o pensamento é propriedade da substância nervosa,

que o inconsciente pode produzir o consciente, o que é, em princípio, contraditório.

Não se ousaria comparar um pedaço de pau com um pedaço

de mármore ou de metal, e compara-se tranqüilamente o espírito,

a razão pensante, o sentimento da liberdade, da justiça, da bon-dade, a vontade, com uma função da substância orgânica! Taine

assegura que o cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis. Parece que nestas inteligências a sede do raciocí-

nio é feita, de antemão, com a mesma cegueira que a dos teólo-

gos. Não haverá nisto idéia preconcebida, convicção sistemática?

Deixemos as palavras vãs, no começo desta discussão. Que é a

matéria? É, na opinião geral, o que nossos sentidos distinguem, o que se vê, o que se toca, o que se pesa. Pois bem! as páginas

seguintes vão demonstrar que existe no homem outra coisa além

daquilo que se vê, se toca ou se pesa; que há no ser humano um elemento independente dos sentidos materiais, um princípio

mental pessoal, que pensa, que quer, que atua, que se manifesta a

distância, que vê sem olhos, escuta sem ouvidos, descobre o futuro ainda inexistente, revela fatos ignorados. Supor que esse

elemento psíquico, invisível, intangível, imponderável, é uma

propriedade do cérebro é proclamar uma afirmação sem provas, um raciocínio contraditório em si mesmo, como se se dissesse

que o sal pode produzir açúcar e que os peixes podem ser cida-

dãos da terra firme. O que queremos mostrar aqui é que a própria observação positiva (não temos outro método além do de Littré,

Taine, Le Dantec e outros professores do Materialismo, e repu-

diamos as teorias bizantinas de raciocínios sobre palavras, puras divagações) é, dizemos, que a observação dos fatos e a experiên-

cia provam que o ser humano não é somente um corpo material

dotado de várias propriedades, mas também um ser psíquico, dotado de propriedades diferentes das do organismo animal.

Como puderam imaginar intelectuais eminentes, tais como

Comte, Littré, Berthelot, que a realidade é circunscrita ao círculo

de impressão de nossos sentidos, tão limitados e imperfeitos? Um peixe poderia acreditar que nada existe fora da água; um cão

que fizesse uma classificação dos conhecimentos caninos classi-

ficá-los-ia não pela vista, como os homens, mas pelo olfato; um pombo correio observaria especialmente o sentido de orientação;

uma formiga o sentido antenal, etc.

O espírito sobrepuja o corpo; os átomos não regem; são regi-

dos. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Universo inteiro, aos mundos que gravitam no espaço, aos vegetais, aos animais.

A folha da árvore é organizada, um ovo fecundo é organizado. Essa organização é de ordem intelectual.

O espírito universal está em tudo; ele enche o mundo, e isto

sem cérebro.

É impossível analisar o mecanismo do olho e da visão, do

ouvido e da audição, sem concluir que os órgãos visuais e auditi-

vos são construídos com inteligência. Esta conclusão deriva com maior evidência ainda da análise da fecundação de uma planta,

de um animal, de um ser humano. A evolução progressiva do

ovo feminino fecundado, o papel da placenta, a vida do embrião e do feto, a criação deste pequeno ser no seio da mãe, a trans-

formação orgânica da mulher, a formação do leite, o nascimento,

a amamentação, o desenvolvimento físico e psíquico da criança, são outras tantas manifestações irrecusáveis de uma força diretriz

inteligente, organizando tudo e dirigindo as mínimas moléculas

com a mesma ordem que as esferas planetárias ou siderais na imensidade dos céus.

Esse espírito não procede de um cérebro. Disse-se, com ra-

zão, que se Deus fez o homem à sua imagem, o homem por seu

lado lhe pagou na mesma moeda.

Se os besouros imaginassem um criador, esse criador seria

para eles um grande besouro.

O Deus antropomorfo dos hebreus, dos cristãos, dos muçul-

manos, dos budistas, nunca existiu. Deus, Jeová, Júpiter, não são

mais do que palavras simbólicas.

Se a geração é admiravelmente organizada sob o ponto de

vista fisiológico, está longe da perfeição no que respeita às

sensações da maternidade. Para que sofrimentos? Para que as

dores atrozes do fim? A Igreja vê nisso o castigo da culpa de Eva. Que gracejo! Adão e Eva existiram? As fêmeas dos animais

não sofrem? A Natureza pouco se preocupa com as épocas

dolorosas da mulher e com a brutalidade da expulsão; peca certamente por falta de sensibilidade; “o bom Deus” não é meigo

para as suas criaturas; nem sequer é humano, e as irmãs de

caridade são melhores do que ele. Problema grave, apesar da certeza da existência do espírito na Natureza. Não compreende-

mos Deus, é evidente. Que prova isto? A nossa inferioridade espiritual.

Que o espírito, a inteligência, a ordem mental existem em tu-

do é inegável. A ciência experimental detém-se no seu caminho

quando ensina que todos os fenômenos do Universo se reduzem,

em última análise, ao dualismo – matéria e movimento, ou

mesmo ao monismo – matéria e propriedades. A História Natu-

ral, a Botânica, a Fisiologia Animal, a Antropologia, apresentam à observação um elemento distinto da matéria e do movimento: a

vida.

O fisiologista Claude Bernard não nos mostrou já que a vida

não é um produto das moléculas materiais? Além disso, o Uni-verso manifesta-se-nos como dinamismo, pois o movimento é

inerente aos próprios átomos, e esse dinamismo não é de ordem

material, porque há nele a organização de tudo: seres e coisas.6

A doutrina que faz do pensamento uma função cerebral, ou

que vê entre o trabalho do cérebro e o do pensamento um parale-

lismo, uma equivalência, é totalmente insuficiente, podemos

dizê-lo com o psicólogo Bergson.

Ensina-se que as recordações são acumuladas no cérebro sob

a forma de modificação impressa em tal ou tal grupo de elemen-

tos anatômicos. Se desaparecem da memória é porque os ele-

mentos anatômicos, sobre que repousam, são alterados ou destru-ídos. As impressões deixadas pelos objetos exteriores subsistiri-

am no cérebro, como na placa sensibilizada ou no disco fonográ-

fico. Essas comparações são verdadeiramente superficiais. Se a recordação visual de um objeto, por exemplo, fosse uma impres-

são causada por esse objeto sobre o cérebro, não haveria a recor-

dação de um só objeto, mas de milhares de milhões deles, pois o objeto mais simples e mais estável muda de forma, de dimensão,

de matizes, segundo o ponto de que se avista, a não ser que eu

me condene a uma fixidez absoluta, contemplando-o. A menos que os vossos olhos se imobilizem nas suas órbitas, imagens

inúmeras, de modo algum sobrepostas, desenhar-se-ão alterna-

damente em vossa retina e se transmitirão ao vosso cérebro. O que será, tratando-se da imagem visual de uma pessoa, cuja

fisionomia muda, cujo corpo é móvel e de quem o vestuário e

tudo quanto a rodeia varia cada vez que a vemos? É incontestá-vel, portanto, que a nossa consciência guarda em reserva uma

imagem única, ou quase única, uma recordação praticamente invariável do objeto ou da pessoa, prova evidente de que houve

outra coisa e bem diferente de uma ação mecânica de registro.

Outro tanto se pode observar quanto à recordação auditiva. A

mesma palavra articulada por pessoas diferentes, ou pelo mesmo

indivíduo, em momentos diferentes, em frases diferentes, dá-nos fonogramas que não coincidem entre si: como seria, pois, a

recordação comparável a um fonograma? Esta única considera-

ção bastaria para tornar suspeita a teoria que atribui as moléstias da memória das palavras à alteração ou à destruição das próprias

recordações, registradas automaticamente pela película cerebral.

Mas vejamos, com o mesmo autor, o que se dá nessas molés-

tias:

“Ali, onde a lesão cerebral é grave e onde a memória das

palavras é atacada profundamente, acontece que uma excita-

ção mais ou menos violenta, uma emoção, por exemplo, faz

reaparecer repentinamente a recordação que parecia para sempre perdida. Seria isto possível se a recordação fosse de-

positada na matéria cerebral alterada ou destruída? As coisas

produzem-se de preferência como se o cérebro servisse para lembrar a recordação e não conservá-la. O afásico torna-se

incapaz de reencontrar a palavra quando tem necessidade de-

la: parece andar à volta, não possuir força suficiente para pôr o dedo no ponto preciso; no domínio psicológico, com efei-

to, o sinal externo da força é sempre a precisão. Mas a re-

cordação parece estar aí; e às vezes, depois de substituir por perífrases a palavra que procurava em vão, o afásico empre-

ga-a numa delas.

Reflitamos agora no que se dá na afasia progressiva, isto é, quando o esquecimento de vocábulos se vai agravando

sempre. Em geral, as palavras desaparecem então numa or-dem determinada, como se a doença conhecesse a gramática;

eclipsam-se primeiro os nomes próprios, depois os nomes

comuns, em seguida os adjetivos e finalmente os verbos constituiriam outras tantas camadas sobrepostas, por assim

dizer, e a lesão atingi-las-ia sucessivamente. Sim, mas a en-fermidade pode derivar das causas mais diversas, tomar as

formas mais variadas, começar num ponto da região cerebral

interessada e progredir em qualquer direção: a ordem do de-

saparecimento das recordações fica sendo a mesma. Seria is-

to possível se a moléstia atacasse as próprias recordações?

Se a recordação não foi armazenada no cérebro, onde se conserva? A pergunta “onde” terá de resto um sentido quan-

do se refere a outra coisa que não seja um corpo?

Os clichês conservam-se numa caixa, os cilindros fonográ-

ficos nas estantes; mas por que razão as recordações, que não são coisas visíveis e tangíveis, necessitariam de um con-

tinente e como poderiam tê-lo? Essas recordações existem

noutra parte que não seja no espírito? Ora, o espírito humano é a própria consciência, e consciência significa, primeira-

mente, memória.” 7

Podemos dizer, com o eminente pensador, que tudo ocorre como se o corpo fora simplesmente utilizado pelo espírito. Por conseguinte, não há motivo para supor que o corpo e o espírito

sejam inseparavelmente ligados um ao outro.

Eis aqui um cérebro que trabalha. Eis ali uma consciência que

sente, que pensa e que quer. Se o trabalho do cérebro correspon-desse à totalidade da consciência, se houvesse equivalência entre

o cerebral e o mental, a consciência poderia seguir os destinos do

cérebro e a morte ser o fim de tudo; pelo menos, a experiência não diria o contrário e o filósofo que afirma a sobrevivência teria

de apoiar a sua tese em qualquer construção metafísica, base

geralmente frágil. Mas, se a vida mental ultrapassa a vida cen-tral, se o cérebro se limita a traduzir por movimentos uma pe-

quena parte do que se passa na consciência, a sobrevivência

então se torna tão provável que a obrigação da prova caberá mais ao que nega do que ao que afirma, pois a única razão que possa-

mos ter para admitir uma extinção da consciência depois da

morte é a de que vemos o corpo desorganizar-se, e esta razão desvaloriza-se se a independência, pelo menos parcial, da cons-

ciência para com o corpo é, também, um fato de experiência.

Bergson, apesar de “metafìsico”, parece mais “positivo” do

que o físico Littré. O espírito não é a matéria. Não está demons-trado que a alma seja função do cérebro, propriedade da substân-

cia cerebral, destinada a morrer com ela.

Pergunta-se mesmo como é que um raciocinador da enverga-

dura de Taine, por exemplo, que aprecia no seu justo valor a

concepção e a composição de um trabalho, o seu plano, a sua execução, e que escreveu precisamente um livro especial sobre a

Inteligência, pode atribuir a criação de uma obra filosófica à

secreção de uma combinação molecular das partes materiais constitutivas de um cérebro. A ação do espírito pessoal é aí tão

evidente e irrecusável que é preciso uma verdadeira auto-

sugestão sistemática para obscurecê-la.

O cérebro é o órgão do pensamento, sem dúvida alguma, e

ninguém o contesta. Mas contrariamente ao que outrora ainda se

admitia, a totalidade do cérebro não é necessária ao pensamento

nem à vida.

Aos exemplos extraídos das doenças da memória, que aca-

bamos de relembrar, poderíamos acrescentar muitos outros que

levam à mesma conclusão. O meu sábio amigo Edmond Perrier

apresentou à Academia das Ciências, na sessão de 23 de dezem-bro de 1913, uma observação do Dr. Robinson, respeitante a um

homem que viveu um ano, quase sem sofrimento, sem nenhuma

perturbação mental aparente, com o cérebro reduzido ao estado de “papas”, formando vasto abcesso purulento. Em julho de

1914, o Dr. Hallopeau fez, na Sociedade de Cirurgia, a exposição

de uma operação praticada no Hospital Necker numa rapariga caída do Metropolitano. Na trepanação, verificou-se que notável

porção de matéria cerebral estava reduzida a papa. Fez-se a

limpeza, drenou-se, fechou-se; a doente restabeleceu-se. Em 24 de março de 1917, na Academia das Ciências, o Dr. Guépin

mostrou, operando um soldado ferido, que a ablação parcial do

cérebro não impedia as manifestações da inteligência. Outros casos idênticos poderiam ser citados. Às vezes restam bem

modestas parcelas: o espírito serve-se engenhosamente do que

pode.

Se os anatomistas não encontram a alma na ponta de seus es-

calpelos, quando dissecam os corpos, é porque lá não está.

Quando os médicos, os fisiologistas não vêem em nossas facul-dades psíquicas senão propriedades da matéria cerebral, enga-

nam-se grosseiramente. Há também no ser humano outra coisa

mais do que a substância branca ou cinzenta do cérebro.

Pode-se objetar que, em geral, a faculdade de pensar parece

acompanhar o estado do cérebro e que ela enfraquece com a idade, como com o próprio cérebro acontece. Mas não seria o

instrumento, o corpo, que enfraqueceria, e não o espírito? Muitas

vezes, nos grandes labutadores do pensamento, o espírito man-tém-se íntegro até ao último dia da vida. Todos os meus contem-

porâneos conheceram em Paris escritores como Victor Hugo,

Lamartine, Legouvé; historiadores como Thiers, Mignet, H. Martin; eruditos como Barthélemy-Saint-Hilaire (1805-1895);

sábios como Chevreuil (1786-1889), que mostraram até a uma

idade muito avançada a virilidade e a juventude de suas almas.

Homo sapiens, o homem pensante: eis o título pelo qual cer-

tos fisiologistas definem há muito tempo a espécie humana.

Podiam, porventura, criar esta designação para agregados de

átomos materiais formando um cérebro?

Uma associação química de moléculas de hidrogênio, de car-

bono, de azoto, de oxigênio, etc., poderia pensar?

A Biologia é uma ciência recente. A biologia determinista é

uma filosofia. É próprio desta filosofia considerar os fenômenos

mentais e psíquicos como efeitos de reações fisiológicas. Ora, as explicações fisiológicas não são, sob a forma de expressões

figuradas, senão confissão de incompetência. Considera-se a

invenção de uma palavra como descoberta e a narração hipotéti-ca de um fato como explicação!

A sensação e o princípio vital conservam-se tão misteriosos

como nos séculos passados, apesar das descobertas modernas

sobre a origem puramente físico-química dos movimentos mus-culares. Não se pode deixar de reconhecer em cada um de nós,

ao lado, ou melhor, acima dos fenômenos fisiológicos, um

princípio intelectual ativo, autônomo, sem o qual nada se explica e com o qual tudo se compreende.

Digamos desde já, além disso, que as manifestações normais

e bem conhecidas da alma, de que acabamos de falar, desapare-cem diante das que vamos pôr em evidência nos capítulos se-

guintes.

A Medicina teria grande interesse em tomar em linha de con-

ta estas considerações, agindo não somente sobre o organismo

físico, mas também sobre o dinamismo intelectual. Um certo número de doenças rebeldes aos processos farmacêuticos pode

ser curado pela ação mental. Temos, de resto, como testemu-

nhos, as curas pelo magnetismo, pela sugestão, e os pretensos milagres da fé religiosa, desde o templo de Epidauro e o culto de

Esculápio até Lourdes e seus concorrentes. Os glóbulos homeo-

páticos da vigésima solução não atuam um pouco por persuasão? A fé move montanhas.

O espírito não é o corpo nem emanação dele, afirmando-se

como muito diferente. A vontade do homem é apreciada por toda

gente. A perseverança nesta vontade, boa ou má, o espírito de sacrifício, o heroísmo, o desprezo da dor, a insensibilidade

orgânica dos mártires que desafiaram os suplícios mais atrozes, a

abnegação, a dedicação, as virtudes e os vícios, a caridade e a inveja, a amizade e o ódio, não são outras tantas provas da

independência da alma relativamente ao cérebro?

Há seres que em nada pensam. Encontram-se alguns deles pe-

la Terra.

Mas, em geral, o homem, mesmo o mais inculto, sente que

existe qualquer coisa mais elevada que comer, beber e acasalar-

se, que este mundo efêmero dos sentidos não é o seu próprio fim,

sendo somente a manifestação de um princípio superior de que não vemos senão a sombra confusa. É este sentimento que as

religiões quiseram atender.

Se estudarmos o corpo humano e as suas funções naturais,

somos forçados a reconhecer que, apesar dos encantos que oferece às nossas sensações, é, em última análise, um objeto

assaz vulgar, quando nele se considera somente a matéria. A

verdadeira nobreza está no espírito, no sentimento da inteligên-cia, no culto da Arte e da Ciência; e o valor do homem não

reside no seu corpo tão pouco duradouro, tão mutável, tão frágil, mas na sua alma que se mostra, nesta vida, dotada da faculdade

de existir.

Esse corpo não é, aliás, uma massa inerte, um autômato; é um

organismo vivo. Ora, a organização de um ser, de um homem,

um animal, uma planta, atesta a existência de uma força organi-

zadora, um espírito na Natureza, um princípio intelectual que

rege os átomos e que não é propriedade deles. Se houvesse somente moléculas materiais desprovidas de direção o mundo

não caminharia, um caos qualquer subsistiria indefinidamente,

sem leis matemáticas, e a ordem não regularia o Cosmos.

Na teoria mecânica do Universo, o conjunto das coisas é um

efeito fatal das combinações inconscientes; a criação é um nada

intelectual que vem a ser alguma coisa e acaba por pensar! Pode-

se imaginar hipótese mais absurda em si, e mais contrária à observação?

A misteriosa Natureza pôs espírito em tudo e mostra-se mes-

mo dotada de uma malignidade geralmente insuspeita. Que é a

garridice da moça que a leva a tornar-se mulher, a sofrer no seu belo corpo, a perpetuar a espécie humana, a ser feliz com a

dolorosa maternidade? Que é o amor, esse laço adorável? Que é

o sofrimento dos corações? Que é o sentimento? A muda lingua-gem da Natureza não se faz ouvir bastante? Que é a construção

de um ninho por dois pássaros... a ave choca alimentada pelo

companheiro... o biscato levado pelos pais aos pequenos famin-tos? Que são a galinha e os seus pintainhos? Haveis refletido já

sobre a primeira palpitação do coração num ovo, numa criança?

Haveis analisado algum dia a fecundação das flores? Não ver nisso uma ordem raciocinada, uma intenção, um plano, um

intuito geral, uma finalidade, uma organização que nos domina a

todos; não ver na vida o fim supremo da organização dos mun-dos, é não ver a luz em pleno dia.

Aonde nos conduz essa força misteriosa? Ignoramo-lo. Ao

passo que a vida nos impõe suas leis, o planeta em que habita-

mos leva-nos pelo espaço com a velocidade de 107.000 quilôme-tros por hora, joguete ele mesmo das forças diretrizes do sistema

do mundo e de 14 movimentos diferentes. Somos átomos pen-

santes sobre um átomo móvel, um milhão de vezes menor que o Sol que é um milhão de vezes menor do que Canopo, o qual, por

sua vez, é um átomo da nossa gigantesca nebulosa estelar, que não é senão um universo, cercado de outros até ao infinito.

Imensidade sem limites! Movimentos prodigiosos! Velocidades

assombrosas!

A força parece mesmo inerente ao átomo, pois não se nota em

parte nenhuma átomo imóvel. Um ser vivo que não possuísse em si mesmo a sua força diretriz não poderia viver, cairia em ruínas,

como edifício abandonado.

Renan e Berthelot, esses dois amigos inseparáveis, disserta-

vam às vezes sobre o problema que aqui nos interessa. Um e outro pareceram sem esperança de uma vida futura, mas com

sentimentos um pouco antagônicos. Em 25 de agosto de 1892,

Berthelot escrevia a Renan, que definhava dia a dia e morreu um mês depois: “Consolemo-nos, vendo crescer nossos netos; é a

única sobrevivência que nos é dado conhecer de ciência certa”.

Esse modo de dizer não encerra, no seu espírito, uma negação absoluta e respondia, sem dúvida, a algumas preocupações do

autor da Vida de Jesus.

Em 20 de julho precedente, Renan havia escrito a Berthelot:8

“O ato mais importante de nossa vida é o da nossa morte.

Esse ato cumprimo-lo, geralmente, em circunstâncias detes-táveis. A nossa escola, cuja essência é a de não carecer de

iludir-se, tem, creio eu, nessa hora solene, vantagens particu-

lares.

Trabalho atualmente na correção das provas do meu quar-

to e quinto volume de Israel. Quisera rever tudo. Se um ou-tro interviesse nisto, sentiria algumas impaciências no fundo

do purgatório: a maior parte dos melhoramentos que tencio-

no fazer ninguém entretanto, salvo o Eterno e eu, os conhe-cerá. Seja feita a vontade de Deus! In utrumque paratus.”

O filósofo, o antigo teólogo, está preparado. Subsiste a sua crença em Deus. Pode-se ser anticlerical e deísta (como Voltai-

re). Renan não estava longe de admitir uma sobrevivência inde-terminável.

Segundo seu genro, o Sr. Psichári, que lhe assistiu à morte,

Renan teria declarado que nada subsistiria dele, nada, nada,

nada. Foi esta a impressão da sua hora derradeira. Acerca da sobrevivência da alma, cem outros grandes espíritos tiveram o

mesmo cepticismo. Preocupavam-se com ela, todavia. Esta

opinião é oriunda unicamente da nossa ignorância. Ptolomeu

nada conhecia de mais estúpido do que a hipótese do movimento da Terra, “soberanamente ridìcula”.

Que é o pensamento? Que é a alma? O sobrenatural não exis-

te; e a alma, se existe individualmente, é tão natural como o

corpo.

Chega-se enfim a admitir a unidade de força e a unidade de

substância.9

Tudo é dinamismo. O dinamismo cósmico rege os mundos.

Newton deu-lhe o nome de atração. Mas essa interpretação é

insuficiente: se só houvesse atração no Universo os astros forma-riam um único bloco, pois ela há muito tempo os teria reunido;

há, além disso, o movimento. O dinamismo vital rege os seres;

no homem que evolucionou, o dinamismo psíquico é constante-mente associado ao dinamismo vital. No fundo, todos esses

dinamismos formam um só: é o espírito na Natureza, surdo e

cego para nós no mundo imaterial e mesmo no instinto dos animais, inconsciente na maior parte das obras humanas, consci-

ente em um pequeno número delas.

Já escrevi em Urânia (1888): “Aquilo a que chamamos maté-

ria esvai-se quando a análise científica crê agarrá-la. Encontra-mos como sustentáculo do Universo, e princípio de todas as

formas, a força, elemento dinâmico. O ser humano tem por

princípio essencial a alma. O Universo é um dinamismo inteli-gente incognoscível.”

Escrevi também em As Forças Naturais Desconhecidas

(1906): “As manifestações psìquicas confirmam o que sabemos

de outra parte, que a explicação puramente mecânica da Nature-za é insuficiente e que há outra coisa mais no Universo do que a

pretensa matéria. Não é a matéria que rege o mundo: é um ele-

mento dinâmico e psíquico”.

O progresso realizado nas observações psíquicas depois da

data em que estas linhas foram compostas confirmou-as de

sobejo.

Uma força mental regula silenciosamente, soberanamente, os

instintos dos insetos, assegurando-lhes a existência e a perpetui-

dade, como regula também o nascimento de um pássaro e a

evolução dos animais superiores, inclusive o próprio homem.

É esse dinamismo que leva o inseto lagarta a tornar-se massa

informe na crisálida e depois em borboleta. É ele que do orga-nismo de médiuns especiais emite uma substância, transforman-

do-se em órgãos vivos de duração efêmera, mas reais, dinamis-

mo que cria instantaneamente materializações transitórias.

Afirmamo-lo: o Universo é um dinamismo. Uma força invisí-

vel e pensante rege mundos e átomos. A matéria obedece.

A análise das coisas mostra em tudo a ação de um espírito

oculto. Esse espírito universal está em tudo, regula cada átomo,

cada molécula, mesmo impalpáveis, imponderáveis, infinitamen-te pequenos, invisíveis, constituindo pela sua agregação dinâmi-

ca as coisas visíveis e os seres; e esse espírito é indestrutível,

eterno.

O Materialismo é doutrina errônea, incompleta e insuficiente,

que nada explica a nosso contento.10

Admitir só a matéria dotada

de propriedades é hipótese que não resiste à análise. Os “positi-

vistas” laboram em erro; existem provas “positivas” de que a hipótese da matéria, dominando e regendo tudo, pelas suas

propriedades, está à margem da verdade.

Não adivinharam o dinamismo inteligente que anima os seres

e mesmo as coisas.

Podemos dizer, com o Dr. Geley, que os fatores clássicos são

impotentes para resolver a dificuldade geral de ordem filosófica

relativa à evolução que do menos faz sair o mais.11

O materialismo, tão difundido, consciente ou inconsciente-

mente, em todas as classes da sociedade, não é senão teoria de aparência, a superfìcie das coisas não analisadas. “Quod terra

immobilis, in medio coeli, si ego contra assererem terram move-

ri...”, escrevia Copérnico na primeira página de sua obra imortal, na dedicatória ao papa. E ele prova que o que se julgava demons-

trado é absolutamente falso. Devemos hoje proceder da mesma forma para com a fisiologia psíquica.

É pelo próprio método experimental que lhe demonstraremos

a fraqueza. Vamos pôr em evidência o erro absoluto do materia-

lismo clássico. Toda a fisiologia psíquica oficial é errônea,

contrária à realidade. Há no ser humano outra coisa mais do que

moléculas químicas dotadas de propriedades: há um elemento

não material, um princípio espiritual. O exame imparcial dos fatos vai comprová-lo e vê-lo-emos mesmo atuar independente-

mente dos sentidos físicos.

CAPÍTULO III

Que é o homem? Existe a alma?

“Devemos procurar a verdade com

plena independência de espírito, livres

de toda idéia preconcebida.”

Descartes

Verificamos que as teorias materialistas não estão inteiramen-

te demonstradas. Não assentam em base tão sólida quanto se imagina; têm lacunas; deixam de lado muitas coisas inexplica-

das; estão longe de poderem ser comparadas, como se pretende,

a teoremas geométricos, a certezas matemáticas. Está pois a questão inteiramente aberta ao nosso livre exame.

Antes de procurar saber se a alma sobrevive à dissolução do

corpo, é indispensável indagar, primeiro, se realmente nossas

almas existem. Discutir a duração de uma coisa que não existisse seria perder tempo ingenuamente. Se o pensamento fosse produ-

to do cérebro extinguir-se-ia com ele.

Esta noção só se pode adquirir pela observação científica po-

sitiva, pelo método experimental. Entretanto, até hoje a Psicolo-gia tem sido mais uma convenção de palavras, de meditações

teóricas, de hipóteses, do que outra coisa.

É tradição que não seguiremos aqui. Vamos procurar deter-

minar a natureza da alma, por observações práticas, e conhecer as suas faculdades.

É lamentável que essas faculdades sejam quase ignoradas a-

inda. A nova psicologia deve ser firmada sobre a Ciência. Lem-

bremo-nos da origem da palavra metafísica, “depois da fìsica” na classificação de seu fundador, Aristóteles.

Foi demasiadamente esquecida essa circunstância.

Para continuar a viver depois da destruição do corpo é neces-

sário existir espiritualmente. O nosso espírito subsiste individu-almente? Temos uma alma? Para falar com mais exatidão, o

homem é uma alma? Eis a primeira questão a resolver, o primei-

ro ponto a estabelecer.

Já apuramos que os materialistas, os positivistas, os ateus, os

negadores do espírito na Natureza, laboram em completo erro, pensando e ensinando que não há no Universo senão a matéria e

suas propriedades, e que todos os fatos da Humanidade se expli-

cam por esta teoria, ao mesmo tempo erudita e vulgar. Eis aqui uma hipótese inexata. Mas é preciso provar a tese contrária.

Que é a alma? Donde provém mesmo esta palavra? Que sig-

nifica?

A crença na alma foi estabelecida até agora sobre dissertações

metafísicas e sobre pretensas revelações divinas não comprova-das. A religião, a fé, o sentimento, o desejo, o temor, não são

provas.

Como se apresentou ao espírito dos homens a noção da alma?

A palavra alma e seus equivalentes em nossas línguas moder-

nas (espírito, por exemplo), ou nas línguas antigas, como anima, animus (transcrição latina do grego), spiritus, atma, alma (vocá-

bulo sânscrito ligado ao grego, vapor), etc. Implicam todas a

idéia de sopro; e não há dúvida de que a idéia de alma e de espírito exprimiu primitivamente a idéia de sopro nos psicólogos

da primeira época. Psyche, mesmo, provém do grego, soprar.

Esses observadores, identificando a essência da vida e do

pensamento com o fenômeno da respiração, e, por outra parte, da decomposição do corpo morto, do corpo privado de sopro,

privado da alma, com a crença nas aparições dos mortos, isto é, a

vida persistente daqueles cujo cadáver aí jazia, inanimado, ou, o que é mais, dissolvido e reduzido a cinzas, imaginaram que o

sopro, a alma, era alguma coisa que abandonava o corpo na hora

do decesso, para ir viver em outra parte da sua própria vida.

Ainda hoje o último suspiro designa a morte.

Se uns admitiam esta persistência da vida sob forma invisível,

outros só viam nisso uma impressão de sentimento, de saudade,

de afeição dos sobreviventes, e desde a origem dos diversos grupos humanos vemos duas teorias distintas e mesmo opostas

compartilharem as opiniões: o Espiritualismo e o Materialismo.

Mas tanto uns como outros raciocinam superficialmente.

O sentido das palavras alma e espírito deve ser mudado, dis-

cutido, examinado. Há distinções fundamentais a determinar. As

propriedades do organismo vivo e os elementos psíquicos são essencialmente diferentes.

Em geral, os homens pensam, com uma convicção perfeita,

que só há no mundo uma única realidade incontestável, a reali-

dade dos objetos, da matéria, isto é, do que se vê, do que se toca, do que cai sob a apreciação dos sentidos. O resto para eles não

passa de abstração, quimera, coisa nenhuma.

Este modo de ver tem por si a imensa maioria dos sábios e de

toda a gente. Mas as maiorias e os sábios podem errar, e é o que se dá.

A Física, a própria Física, ensina-nos que a afirmação de apa-

rência, mesmo quando tem toda a força da evidência mais irre-

sistível, deve ter-se por suspeita e, direi como o meu saudoso amigo Durand de Gros, verificada severamente. Há nada mais

patente do que a marcha do Sol e do céu inteiro por cima de

nossas cabeças? Esta evidência tem sido proclamada em todos os tempos e lugares pelos olhos humanos. Haverá outra mais impo-

nente? Entretanto não passa de uma ilusão, como a Astronomia

demonstrou.

Quantas vezes os doutrinários, raciocinando sobre a única ob-

servação aparente, se mostram superficiais na sua crítica do

conhecimento, julgando ver o fato experimental no ponto em que

o mostram: “O Sol é um disco luminoso que gira sobre nossas cabeças, de leste a oeste, desde que nasce até que desaparece”:

eis aí uma verdade observada, e que o testemunho unânime dos

homens proclamou durante milhares de anos. Como é possível, entretanto, que a Ciência ouse afirmar que esta “verdade, firma-

da pela observação”, é um erro irrecusável? E como é possível

que todo o mundo saiba hoje que isto é um erro?

O que se pode afirmar rigorosamente, o que é um fato de ver-

dadeira observação e que se compreende bem não é aquele que

se enuncia dizendo: “O Sol é um disco..., etc.”; é o fato que se deveria enunciar, assim: “Tenho a sensação de um disco brilhan-

te que designo pelo nome de Sol, fazendo-me tal sensação apare-

cer o mesmo disco como movendo-se de leste para oeste..., etc..”

É nesses termos que o experimentador deve limitar a afirma-

ção da sua experiência, se quiser manter-se nos domínios estritos

da afirmação experimental, isto é, da certeza absoluta.

E esse disco mesmo não é mais do que uma falsa aparência,

pois o Sol é um globo.

Consideremos as sensações e as percepções, todavia não as

confundamos com a realidade. Esta precisa de ser demonstrada.

Vejo um relâmpago; um tiro de canhão ressoa ao meu ouvido. Rigorosamente, devemos pensar: “Tenho a sensação de haver

ouvido um tiro de canhão”. Entretanto, os fisiologistas desco-

nhecem muitas vezes esta distinção essencial. O que eles nos apresentam como fatos observados não são muitas vezes, a rigor,

senão fatos conjeturados; não são observações, são induções

extraídas da observação, sem que eles se dêem conta dessa operação do seu espírito. Tenho a sensação de um disco lumino-

so de certo diâmetro aparente, caminhando no céu do nascente

para o poente; eis o que é absolutamente verdadeiro, o que posso afirmar com segurança, segundo o princípio estabelecido pela

doutrina experimental da certeza. Mas se digo: “Um disco cami-

nha no céu..., etc.”, afirmo mais do que sei, estou sujeito a enga-nar-me; e a prova é que estou em erro, neste caso.

Seria supérfluo multiplicar os exemplos em apoio desta tese.

Sentimos tal e tal sensação; temos tal e tal idéia; tal e tal emoção;

eis o único conhecimento imediato e certo, a única verdade propriamente experimental e digna de crença absoluta.

A noção de objeto supõe, pois, uma sensação, uma percepção,

uma concepção. Mas que é tudo isso? Outros tantos atributos do

próprio objeto? Não. Essa sensação, essa concepção provam que, em face da coisa sentida, percebida, concebida, há uma coisa que

sente, percebe, concebe.

Falando rigorosamente, o fato de sentir, perceber, conceber,

constitui só por si um fato absolutamente fundamental, o único que nos impõe a observação imediata.

Raciocina-se assim desde as discussões de Berkeley (1710) e

mesmo desde as de Malebranche (1674). Tal raciocínio não é de ontem.

12

Só julgamos o Universo, as coisas, os seres, as forças, o espa-

ço, o tempo, pelas nossas sensações, e tudo o que podemos

pensar sobre a realidade está na nossa idéia, em nosso espírito, em nosso cérebro. Mas é um raciocínio singular concluir daí que

as nossas idéias constituem a realidade. Essas impressões têm

uma causa e essa causa é exterior aos nossos olhos, aos nossos sentidos. Somos espelhos que se dão conta das imagens recebi-

das.

O idealismo puro de Berkeley, de Malebranche, de Kant, de

Poincaré, vai demasiadamente longe no cepticismo; mas não percamos nunca de vista o seu princípio.

É urgente, na verdade, protestar contra a aparência vulgar e

proclamar que o mundo exterior não é o que nos parece ser. Se

não fôssemos dotados de olhos e de ouvidos, ele parecer-nos-ia diferente. A retina poderia ser de conformação diversa, o nervo

óptico poderia vibrar, perceber as vibrações, não entre 380 e 760

trilhões de vibrações por segundo, do vermelho extremo ao violeta extremo, mas para além do infravermelho ou do ultravio-

leta, ou ser substituído por nervos que recebessem as radiações

elétricas ou as ondas magnéticas ou as forças invisíveis que nos são desconhecidas. Para esses seres (que talvez existam em

outros mundos) o Universo seria diferente do dos nossos siste-

mas científicos.

Incorreríamos portanto em erro, tomando as nossas sensações

como realidades. A Natureza real é outra, não a conhecemos;

mas o espírito deve estudá-la.

Sinto, penso: tal é a nossa única certeza, imediata, realmente

experimental, aquela que merece esse qualificativo. Desse fato primitivo, o único de observação real, de certeza indubitável, um

grande fato secundário deriva por via de indução: o fato de uma

causa da qual procedem esta sensação e este pensamento.

Essa causa desdobra-se em dois fatores: o sujeito e o objeto,

isto é, o que sente e pensa, o que é sentido e pensado.

Certos filósofos da escola idealista, como Berkeley, no século

XVII, e H. Poincaré, no século XX, chegaram a pretender que apenas existe o sujeito pensante, que somente as nossas sensa-

ções são experimentadas por nós e que o objeto, o mundo exteri-

or, poderia muito bem não existir. É um exagero contrário ao dos

materialistas radicais e também errôneo.

O que é certo, irrecusável, é que sabemos que pensamos e que

ignoramos a verdadeira realidade, a essência das coisas e do mundo exterior, do qual as nossas percepções só nos comunicam

a aparência.

Supor que conhecemos a realidade é anticientífico. Sabemos

que os nossos sentidos nos revelam apenas uma parte dela e isso mesmo à maneira de prismas modificando a realidade. Se o

nosso planeta estivesse constantemente coberto de nuvens, não

conheceríamos nem o Sol, nem a Lua, nem os planetas, nem as estrelas, e o sistema do mundo ficaria ignorado, de sorte que o

saber humano seria condenado a irremediável falsidade. Ora, o

que conhecemos nada é comparado com o que ignoramos; o nosso próprio nervo óptico não é senão intérprete parcial.

A ilusão é a base pouco sólida das nossas idéias, das nossas

sensações, das nossas crenças. A primeira e a mais sentimental

dessas ilusões é a imobilidade da Terra. O homem sente-se fixado no centro do Universo e tudo imaginou conseqüentemen-

te. Apesar das demonstrações da Astronomia, por mais que

procuremos perceber, tocar a verdade, não o conseguimos. Suponhamos que nos encontramos no declínio de um belo dia de

verão; o ar é calmo, o céu puro e tudo está absolutamente tran-

qüilo em redor de nós. E entretanto estamos, de fato, num auto-móvel que corre no seio dos céus com velocidade vertiginosa.

A Humanidade vive em profunda ignorância e não sabe que a

nossa organização natural nada nos revela da realidade. Os

nossos sentidos enganam-se em tudo. Só a análise científica esclarece o nosso espírito.

Assim, por exemplo, nada sentimos dos movimentos formi-

dáveis do planeta, sobre o qual pousamos os pés. Parece-nos

estável, imóvel, com direções fixas; alto, baixo, esquerda, direi-ta, etc. Entretanto, corre no espaço, leva-nos à velocidade de

107.000 quilômetros por hora, no seu curso anual ao redor do Sol, o qual se desloca também através da imensidade, de tal sorte

que a trajetória da Terra não é uma curva fechada, mas uma

espiral sempre aberta, e que o nosso globo errante não passou

duas vezes pelo mesmo caminho desde que existe.

Ao mesmo tempo, este globo gira sobre si mesmo em vinte e

quatro horas, de sorte que o que chamamos o alto, a certa hora, é o baixo doze horas mais tarde. Esse movimento diurno faz-nos

percorrer 305 metros por segundo na latitude de Paris, 465

metros no Equador.

O nosso planeta é o joguete de 14 movimentos diferentes, dos

quais nenhum nos é sensível, mesmo os que nos tocam de perto,

por exemplo o das marés da crosta terrestre, que eleva o solo

duas vezes por dia sob os nossos pés, à altura de 30 centímetros! Nenhum ponto de mira fixo nos permite observá-lo diretamente.

Se não houvesse costas, as marés do oceano também não seriam

visíveis.

Apercebemo-nos, mesmo, do ar que respiramos, do seu peso?

A superfície do corpo humano suporta um peso de ar de 16.000

kg, contrabalançado exatamente pela pressão interior. Não se

suspeitava do peso do ar antes de Galileu, Pascal e Torricélli. A Ciência comprova-o; a Natureza não no-lo faz sentir.

Esse ar é atravessado por eflúvios variados que ignoramos. A

eletricidade tem aí um papel perpétuo, do qual só percebemos a

manifestação durante as trovoadas ou nas violentas rupturas de equilíbrio. O Sol envia-nos constantemente radiações magnéticas

que, a 150 milhões de quilômetros de distância, atuam sobre a

agulha magnética sem que os nossos sentidos revelem esta ação. Só algumas organizações delicadas sentem esses eflúvios elétri-

cos e magnéticos.

A nossa vista só distingue o que chamamos luz, pelas vibra-

ções do éter compreendidas entre 380 trilhões por segundo (vermelho extremo) e 760 (violeta extremo); mas as vibrações

lentas do infravermelho, abaixo de 380, existem e atuam na

Natureza, assim como as vibrações rápidas, acima de 760, do ultravioleta, invisíveis à nossa retina.

O nosso ouvido não percebe o que chamamos sons senão a

partir de 32 vibrações por segundo, para os mais graves, até 36.000 (os silvos mais agudos).

O nosso olfato não sente o que chamamos odores senão a

uma grande proximidade e somente para determinado número de

emanações. O olfato dos animais difere do olfato humano.

De resto, na Natureza, fora de nossos sentidos, não há de fato

nem luz, nem som, nem cheiro; fomos nós que criamos essas

palavras correspondentes às nossas impressões. A luz é um modo

de movimento, como o calor, e há tanta “luz” no espaço à meia-noite como ao meio-dia, isto é, nas mesmas vibrações etéreas

atravessando a imensidade dos céus. O som é outro modo de

movimento, e só é um ruído para o nosso nervo auditivo. Os odores provêm de partículas em suspensão no ar, que afetam

especialmente os nossos nervos olfativos.

São esses os três únicos sentidos que, em nossa organização

terrestre, nos põem em relação com o mundo exterior ao nosso corpo. Os outros dois, o tato e o paladar, só atuam por contato.

É pouco, e não nos dão, em todos os casos, o conhecimento

da realidade.

Há ao redor de nós vibrações, movimentos, etéreos ou aéreos,

forças, coisas invisíveis que não percebemos. É esta uma afirma-ção de ordem absolutamente científica e incontestavelmente

racional.

Podem existir à nossa volta, não somente coisas, mas também

seres invisíveis, intangíveis, com os quais os nossos sentidos não nos põem em comunicação. Não digo que existam, mas digo que

podem existir, e que esta afirmação é o corolário rigorosamente

científico e racional das demonstrações precedentes.

Estando verificado que os nossos órgãos de percepção não

nos revelam o que existe e nos dão indicações falsas ou erradas

(movimento da Terra, peso do ar, radiações, eletricidade, magne-

tismo, etc.), não podemos pensar que a única realidade seja representada pelo que vemos e somos mesmo convidados a

admitir o contrário.

Podem existir em torno de nós seres invisíveis. Quem teria adivinhado os micróbios antes de sua descoberta? Entretanto, é

por milhares de milhões que pululam e representam papel consi-

derável na vida de todos os organismos.

As aparências não nos revelam a realidade. Há uma única rea-

lidade apreciada diretamente por nós: é o nosso pensamento. E o

que há de mais insofismavelmente real no homem é o espírito.

As minhas obras precedentes conduzem já a esta conclusão.

Esta de agora é destinada a prová-la com maior evidência ainda.

Que os leitores me perdoem o eu haver repetido aqui o que

publiquei no Lúmen,13

em 1867, e em As Forças Naturais Des-conhecidas, em 1907, mas era indispensável relembrar essas

noções.

Henri Poincaré, idealista e não “espiritualista”, apesar do cep-

ticismo da sua conversação, escreveu a seguinte página a respei-to dos últimos anos do sábio francês Poitier, professor da Escola

Politécnica:

“O mal a que sucumbiu foi demorado e cruel. Ficou doze

anos estendido num leito ou numa poltrona, privado do uso de seus membros e muitas vezes torturado pela dor. A inva-

são do mal era lenta e contínua, as crises, de ano em ano, e-

ram mais freqüentes. Por fim, seu corpo não era coisa algu-ma, e na cama de onde não podia sair só se lobrigavam dois

olhos. Sua alma era mais forte do que o poder cego de uma

enfermidade brutal; ela não vergou. Fazia-se conduzir à Es-cola Politécnica ou à Escola de Minas. Tudo o que outrora

havia amado continuou a interessá-lo cada vez mais nos

momentos de repouso que o sofrimento lhe deixava. E nesse corpo de dia para dia mais imobilizado, a inteligência man-

tinha-se sempre luminosa, tal qual fortaleza cujas muralhas

caem aos pedaços sob os obuses inimigos e que a energia do chefe mantêm ainda temível! Algumas semanas antes de

morrer pedia-me livros de Matemática para empreender um

estudo novo para ele. Até ao seu último dia mostrou-nos que o pensamento é mais forte do que a morte.”

14

Não, quem escreveu estas linhas não foi espiritualista, mas professor de cepticismo. Isto prova que a verdade se impõe por si

mesma e resplandece inapagável, como Sírio no meio da noite estrelada.

De resto, Henri Poincaré afirmou-me muitas vezes e pesso-

almente, em nossas numerosas e longas conversas, que, duvidan-

do da própria realidade do nosso mundo exterior, só acreditava no espírito. Era excessivo. Existe alguma coisa mais do que o

espírito. Não devemos exagerar.

Afinal, sabemos bem que o sentimos em nós mesmos. En-

quanto componho este livro, concebo um plano, distribuo os capítulos, sinto rigorosamente, exatamente, sem parcialidade de

sistema, sem qualquer dogma, simplesmente, diretamente, que só

eu faço este trabalho, o meu espírito e não o meu corpo. Tenho um corpo. Não sou eu que pertenço ao corpo. Esta consciência

de nós é a nossa impressão imediata, e é sobre as nossas impres-

sões que podemos e devemos meditar; elas são a base de todos os nossos raciocínios.

Como se ousa afirmar que a definição do ser humano cabe

nestas palavras: “um tecido de carne em redor de um esquele-

to”..., ou nestas: “uma combinação de moléculas de oxigênio, de azoto, de carbono”..., ou ainda nestas: “um homem é constituído

por 6 quilos de ossos, 15 de albumina e fibrina e 50 de água”...,

ou, por último: “é um feixe de nervos”!...

Preferimos a definição de Bonald: “O homem é uma inteli-

gência servida por órgãos”.

Declaremo-lo: o homem é essencialmente espírito, quer o

saiba ou quer o ignore. Não possui cada um de nós o sentimento

da justiça? Uma criança, justamente castigada por uma falta, não sabe que mereceu o castigo e, injustamente castigada, não se

revolta? Donde vem a consciência moral? O homem teve por

antepassados os animais das épocas geológicas terciária, secun-dária e primária, evoluídos gradualmente dos répteis aos símios.

Não foram os seus cérebros que criaram a consciência moral e

principalmente o sentimento da justiça inata na criança. Pode-se pretender que proveio dos antepassados e depois da educação.

Mas donde veio esta educação? É o mundo do espírito.

Não há um padrão entre este mundo intelectual, espiritual,

moral, e as operações físico-químicas da substância cerebral.

A vontade é, certamente, uma energia de ordem intelectual.

Tomemos um exemplo entre mil. Napoleão quer conquistar o

mundo e tudo sacrifica a esta ambição. Examinai todos os seus

atos, mesmo os menores, desde a campanha do Egito até Water-

loo. Nem a Fisiologia, nem a Química, nem a Física, nem a Mecânica explicarão essa personalidade, essa continuidade de

idéias, essa perseverança, essa teimosia. Vibrações cerebrais?

Não é suficiente. No fundo do cérebro há um ser pensante do qual esse cérebro não é senão o instrumento. Não é o olhar que

vê. Não é o cérebro que pensa.

O estudo de um astro, no telescópio, não se pode atribuir legi-

timamente nem ao instrumento, nem ao olhar, nem ao cérebro, mas ao espírito do astrônomo que procura e encontra.

A vontade humana bastaria por si só para provar a existência

do mundo psíquico, do mundo pensante, diferente do mundo

material visível, tangível.

A ação de uma vontade manifesta-se em tudo. Podem-se fazer

sobre isto observações muito simples:

Estou sentado numa poltrona, as mãos nos joelhos; com a di-

reita entretenho-me em levantar um por um os dedos da esquer-

da; eles caem naturalmente; mas se quiser que eles não caiam, não cairão. Quem mandou neste caso sobre os músculos? Sim-

plesmente a minha vontade. Há pois aqui uma força mental que

atua sobre a matéria. Esta força é associada ao meu cérebro, bem entendido. Mas, afinal, é uma idéia, e essa idéia age sobre a

matéria. A causa inicial não é o cérebro, cujas vibrações não são

mais do que efeitos.

O homem que exercita a sua vontade é o obreiro do seu desti-

no.

Consideremos agora especialmente o pensamento no homem.

É a demonstração perpétua da existência da alma. Quando

meditamos, quando dizemos simplesmente eu penso ou eu

quero, quando calculamos um problema, quando exercitamos o nosso poder de abstração e de generalização, afirmamos a exis-

tência da alma.

O pensamento é o que o homem possui de mais precioso, de

mais pessoal, de mais independente. Sua liberdade é inatacável.

Podeis torturar o corpo, encarcerá-lo, dirigi-lo pela força materi-

al: nada podereis contra o pensamento. Tudo o que fizerdes, tudo

quanto disserdes, não o forçará. Ele ri-se de tudo, desdenha tudo,

domina tudo. Quando quer iludir, quando a hipocrisia mundana

ou religiosa o obriga a mentir, quando a ambição política ou comercial o faz revestir de máscara enganadora, conserva-se o

mesmo e sabe o que quer. Não é isso a prova flagrante da exis-

tência do ser psíquico independente do cérebro?

Não é a matéria, não é um conjunto de moléculas que pode

pensar. É tão infantil, tão ridículo admitir que o cérebro sente e

pensa, como atribuir às pilhas geradoras de eletricidade do

telégrafo a geração das idéias expressas no telegrama.

O espírito, o pensamento, a direção mental, não são nem a

matéria, nem a força. A Terra que gravita em torno do sol, a

pedra que cai, a água que corre, o calor que dilata ou comprime

os laços entre os átomos, representam-nos, de uma parte, a matéria, e de outra parte a energia. O pensamento, o raciocínio, a

direção, segundo uma intenção determinada, são outra coisa. Há

ali um princípio muito diverso.

Todos conhecem os versos clássicos de Vergílio, no magnífi-

co canto sexto da Eneida:

Spiritus intus alit, totamque infusa per artus,

Mens agitat molem, et magno se corpore miscet.

“Tudo quanto existe no Universo é penetrado pelo mesmo princípio, alma animando a matéria, que se mescla com este

grande corpo.”

O poeta exprimiu a verdade. O Universo é dirigido pelo espí-

rito, e quando estudamos esse espírito no homem, verificamos que ele não é nem a energia psíquica nem a matéria. Utiliza-se

dos dois e rege-os freqüentemente à sua vontade.

As provas da existência da personalidade humana são inúme-

ras; seria necessário um volume especial para expô-las. Cada um de nós, além disso, as terá já apreciado muitas vezes.

Temos todos os dias essas provas sob os olhos: o estoicismo

na adversidade, a energia desenvolvida para fugir da miséria, a

dedicação às causas nobres, o sacrifício da vida à salvação da pátria, a vontade de vencer, o apostolado científico ou religioso,

o martírio pela vitória do que se crê ser a verdade. Não haverá

em tudo isto outras tantas manifestações da existência da alma?

Como seria possível que as secreções materiais do cérebro,

análogas, como se pretende, às dos rins ou do fígado, possam produzir personalidades intelectuais?

Uma demonstração muito original da “realidade da alma pelo

estudo dos efeitos do clorofórmio e do curare sobre a economia

animal” foi apresentada há já muito tempo (em 1868) sob esse título, por um sábio distinto que eu conheci naquela época, o Sr.

Ramon de la Sagra, membro correspondente do Instituto (Aca-

demia das Ciências Morais e Políticas), falecido em 1871, na ilha de Cuba.

A inspiração dos vapores de éter ou de clorofórmio elimina a

sensibilidade geral, de modo que as pessoas mergulhadas nesse

estado fisiológico extraordinário podem ser submetidas, sem sofrimento, às mais graves operações. E não só os pacientes

eterizados ou cloroformizados não sentem dor alguma enquanto

os instrumentos cortantes separam, cortam, torturam os tecidos, os nervos; não somente se conservam por inteiro insensíveis às

lacerações, às feridas, às chagas que, no estado normal, lhes

arrancariam gritos de padecimento e de pavor, mas muitas vezes acontece que a alma, nesse sono surpreendente, experimenta

sensações agradáveis, esquisitas, deliciosas.

Ramon de la Sagra mostra esse fenômeno como demonstra-

ção científica da existência da alma. A alma e o corpo não são certamente a mesma coisa, pois neste caso estão patentemente

separados; graças à influência do éter ou do clorofórmio, a alma

continua a pensar individualmente, enquanto o corpo é torturado pelo ferro. Esses dois elementos do agregado humano estão aqui

como que desunidos pelo agente anestésico. O sábio espanhol

havia observado que sua mulher, nos momentos de insensibilida-de, sob a ação do clorofórmio, guardava o pensamento intacto e

que a inteligência não era nela afetada. Conversava tranqüila-

mente com o cirurgião Verneuil, enquanto ele lhe cortava as carnes e os nervos com o bisturi. E contava depois ao marido que

as suas idéias tinham sido agradáveis em vez de dolorosas. Recordemos também que a dor foi suprimida pelo hipnotismo na

escola de Nancy.

A distinção da alma e do corpo, a sua própria separação, são

observadas em diversas circunstâncias e em certos estados de

hipnose, de sonambulismo, de magnetismo, de desdobramento da personalidade, etc. As hipóteses fisiológicas apresentadas

para explicar essas manifestações da individualidade psíquica,

independe do organismo, são de todo insuficientes. A nossa concepção atual da vida e do pensamento está em vésperas de

ruir.

Tudo nos prova que a alma humana é uma substância distinta

do corpo. Ao contrário da sua etimologia, a alma não é um “sopro”; é uma entidade intelectual.

Quantas palavras, de resto, já mudaram de sentido, como a

eletricidade, por exemplo, que deriva da palavra ambar.

Vamos fixar esta personalidade pela averiguação de faculda-

des supranormais, que nada têm de comum com as propriedades da matéria.

CAPÍTULO IV

Faculdades supranormais da alma,

desconhecidas ou pouco estudadas, provando

a sua existência independente do organismo material

– Pressentimentos. – Adivinhações. – Premonições.

– Sensações em sonhos. – Chamadas misteriosas.

“Quando eu era criança falava como

criança, raciocinava como criança; mas,

quando me tornei homem, libertei-me de tudo o que conservava da criança.”

S. Paulo (I Coríntios, XIII, 11)

Supor-se que num estudo qualquer pode ser alcançada a cer-

teza, fora das matemáticas puras, é ser-se um pouco ingênuo; de

nada temos a certeza; nossos sentidos, nossos métodos de obser-

vação, nosso entendimento não são suficientes para descobrir a realidade absoluta. A mais positiva ciência, a Astronomia, atinge

a certeza nas suas medidas; é uma ciência exata, como a Aritmé-

tica, a Álgebra, a Geometria. Sabemos que o nosso planeta gira em torno do Sol, em 365 dias, 6 horas, 9 minutos, 9 segundos, a

149.500.000 quilômetros de distância; que o Sol é 1.301.000

vezes maior do que ele e 322.000 vezes mais pesado; que Marte gravita a 228 milhões de quilômetros do Sol, num ano de 686

dias, 23 horas, 30 minutos, 40 segundos e que se move sobre si

mesmo em 24 horas, 37 minutos, 22 segundos, etc. A Física, a Química, a Zoologia, a Botânica, a Geologia estão longe dessa

precisão; na mesma situação se encontram a Fisiologia humana e

a Medicina, e a Psicologia ainda mais.

Todo o ensino psicológico das escolas e dos tratados clássicos

deve ser completado e mesmo reformado.

Não tendo as faculdades normais da alma – o entendimento, o

raciocínio, a vontade, objeto do ensino clássico, cujas manifesta-ções são habituais e permanentes – estabelecido a prova indiscu-

tível da independência da alma para com o cérebro e a certeza da

sobrevivência, acabamos de colocar o problema sob novo aspec-

to e devemos ir mais longe. O homem é, em primeiro lugar, um ser pensante. O pensamento é um fato. Ao lado desse fato pri-

mordial, não poderemos apurar se certas faculdades da alma,

desconhecidas ou pouco estudadas, não nos oferecerão assuntos de investigação cuja análise cuidadosa nos ajude a dissipar uma

ignorância muito duradoura, a esclarecer o problema da nossa

constituição psíquica, a aumentar o nosso saber ainda tão limita-do e a fixar enfim uma ciência psicológica aceitável, correspon-

dendo aos nossos desejos, depois de tantos discursos estéreis

num mesmo quadro e tantas dissertações inúteis ao redor de um mesmo círculo? Talvez que a Humanidade pensante seja apta

para se libertar da sua prisão.

Que a alma existe em si mesma, independentemente do cor-

po, é o que o capítulo precedente nos incita a estudar experimen-talmente. Se existe, como um átomo de ferro, de oxigênio, de

hidrogênio ou de rádio, por exemplo (átomo que seria dotado da

faculdade de pensar, átomo psíquico), ela sobrevive à desagrega-ção orgânica, atravessa mesmo, no curso da vida corporal, as

modificações materiais do cérebro assim como das idéias. O

princípio anímico fica; só a forma é perecível.

Acabamos de reconhecer, pelas considerações precedentes, a

probabilidade da existência pessoal da alma, fisiologicamente

estabelecida. Podemos ir mais além e pôr em evidência essa

existência pessoal pelas manifestações de faculdades da alma que não podem ser atribuídas às propriedades materiais do

cérebro, às combinações orgânicas, químicas, mecânicas, facul-

dades intrínsecas.

A vontade, prova especial da individualidade do espírito, será

examinada no capítulo seguinte, assim como outras faculdades

demonstrativas. Mas quero primeiro assinalar certas faculdades

inexploradas ou pouco estudadas, faculdades metapsíquicas, na feliz expressão de Charles Richet; por exemplo, o poder mental

de sentir as coisas desconhecidas, ou, antes, de pressentir.

Que é o pressentimento? Qual é a natureza desta faculdade da

alma, muitas vezes tão certa?

Neste estudo, há muito tempo começado, reuni, comparei,

discuti centenas de observações.

Alguns dos meus leitores hão de lembrar-se de que, no curso do ano de 1899, empreendi um inquérito analítico sobre as

faculdades da alma e suas manifestações, de que publiquei os primeiros resultados na minha obra O Desconhecido e os Pro-

blemas Psíquicos. Vinte anos decorreram e continuei a receber

de um grande número de observadores notas que tenho procura-do verificar o melhor possível, visto que, apesar da memória

mais fiel e da mais incontestável lealdade, as recordações se

modificam inevitavelmente e tornam os testemunhos mais ou menos suspeitos. Devemos pois empregar a maior severidade na

aceitação desses fatos, muitas vezes extraordinários. Outro

excesso seria rejeitá-los de antemão. A verdade fica no meio dos extremos, é preciso não esquecermos que

Pode às vezes não ser a verdade aceitável.

Conseguiram-se observar, na obra que mencionei, pressenti-mentos que tiveram determinada causa; por exemplo: à pág. 124, um colegial lamentando-se dolorosamente, na hora em que seu

pai morria longe dele; à pág. 324, um estudante de Medicina

encontrando um doutor que não via há muito e no qual acabava de pensar; à pág. 326, uma senhora oprimida por grande mal-

estar, na hora em que seu pai morria separado dela; à pág. 332,

um operário abandonando o seu trabalho e correndo para junto de sua mulher que vinha de ser derribada por um carro; à pág.

333, um homem deixando os seus amigos numa festa, a fim de

voltar para casa, onde encontrou seu filho atacado de crupe e cercado de quatro médicos, etc. Esses pressentimentos provi-

nham de transmissões, quando não de pensamentos e de chama-

das, pelo menos de ondas psíquicas. Vamos estudá-las especial-mente neste lugar.

* * *

O pressentimento, de que se vai ler a narrativa, é particular-

mente digno de meditação. Convido os meus leitores mais recal-citrantes a examiná-lo em todos os sentidos.

O Sr. Constans, Ministro do Interior e Presidente do Conse-

lho, jantando um dia comigo no meu observatório de Juvisy,

assim como a Sra. Constans, contou-me o seguinte fato com ele ocorrido:

Era em 1889, na época de sua grande luta contra o General

Boulanger 15

e contra o partido boulangista da revisão da

Constituição francesa. Certo dia, de manhã, foi-lhe entregue, no gabinete ministerial, um livro entre a sua correspondên-

cia. Com pressa de dirigir-se ao Conselho de Ministros, ati-

rou o volume para cima de uma mesa, pedindo à Sra. Cons-tans para o examinar, e saiu. A Sra. Constans, que a sua cri-

ada de quarto penteava, colocou o livro nos joelhos e procu-

rou abri-lo, pensando tratar-se de um missal enviado por sua prima. Mas, três dias antes, havia recebido “algumas infâ-

mias” que a tornaram cautelosa. Quando, com muito cuida-

do, chegou a entreabrir o tomo, pareceu-lhe ver uma “porca-ria”. Entregou-o logo à criada, dizendo-lhe: “Leve isto para

a sala de espera; é ainda uma infâmia...”

Apenas a serva acabava de sair, a Sr. Constas, despentea-da, seminua, correu para a sala, gritando: “Não o abra, não

lhe toque!” (Por que?).

Mandou chamar o Sr. Cassel, Diretor da Segurança Geral,

e recomendou-lhe que examinasse o objeto, pressentindo al-gum mistério. O Sr. Cassel, mexendo no livro, viu cair pe-

quenas partículas esbranquiçadas sobre a mesa. Chegou-lhes

lume e elas arderam. Compreendeu o perigo, tomou o volu-me de baixo do braço e partiu para a Prefeitura, dirigindo-se

ao laboratório do Sr. Girard. Uma hora depois o Sr. Cassel

voltava, dizendo à Sra. Constans que o livro continha dina-mite em quantidade suficiente para fazer voar a parte do Mi-

nistério em que o ministro residia. A Sra. Constans desmai-

ou e esteve doente oito dias.

Foi esta a narrativa que me fizeram, à mesa, o Sr. e a Sra. Constans, diante de uma dúzia de pessoas.

A esposa do ministro havia adivinhado o perigo; mais ainda,

havia-o sentido com intensidade, a tal ponto que correu, meio

vestida, até à sala de espera do Ministério, para evitar que os

empregados abrissem o pacote.

Não há aqui uma espécie de visão interna do espírito que não

se relaciona, de resto, com a vista normal? Poderíamos comparar esta impressão ao faro canino. Mas que abismo entre as duas

sensações! Haver suspeitado de uma ameaça explica-se, dadas as

circunstâncias; mas haver sentido violentamente o perigo imi-nente?

Volvidos dias, o meu amigo Girard, Diretor do Laboratório

da Prefeitura de Polícia, confirmou-me a sua análise especial da

carga de dinamite.

Nesse mesmo jantar, a Sra. Constans comunicou-me um outro

pressentimento, não menos digno de atenção, experimentado

também por ela.

Dentro do meu princípio de tudo verificar por inquéritos do-

cumentados, consegui obter a confirmação do fato que se vai ler, pelo clínico que a ele foi associado, o Dr. Rességuet, de Tolosa,

médico da família Constans, nesta carta que foi transcrita textu-

almente como as precedentes:

Carta do Dr. Rességuet

(CARTA 980)

“Tolosa, 16 de março de 1901.

Caro grande mestre:

Cumpro o dever de responder às suas perguntas, a respeito do pressentimento da Sra. Constans sobre a sua recusa de

tomar um remédio enviado pelo farmacêutico. Eis o caso,

que eu conto impessoalmente, como um historiador:

A Sra. Constans tinha vinte e três anos; vivia em Tolosa;

um dia teve uma angina. O Dr. Rességuet, morador ainda em Tolosa, foi chamado para a tratar. Mandou-lhe pincelar a

garganta com ácido clorídrico diluído. A mãe da Sra. Cons-

tans deu-lhe o frasco que continha o suposto ácido; mas a doente, muito fraca, recusou-se a aplicá-lo, dizendo que iam

matá-la! ... e que aquele líquido não era ácido clorídrico... Após algumas tentativas infrutíferas, o médico quis provar à

sua doente que o medicamento era bom. Pôs no frasco um

fósforo, que imediatamente se carbonizou. Era ácido sulfúri-

co!...

Eis do que me lembro. Não guardei outros pormenores na

memória, mas não esqueci que houve um erro grave do far-macêutico, numa das minhas receitas, e que a Sra. Constans,

num pressentimento seguro, entendeu que devia repelir o

emprego do remédio.

Procurei obter outros pormenores e não o consegui; sei

porém que se tratava de uma angina, segundo os meus livros de apontamentos daquela época. A minha receita devia ser

aviada em dois frascos, sendo um para cauterização e outro

para uso interno, e o erro do farmacêutico consistiu numa troca de rótulos; mas afirmo ter conservado a lembrança do

feliz pressentimento que salvou a Sra. Constans dos efeitos

terríveis da ingestão de um cáustico.

Permita-me agora que lhe diga, senhor e grande mestre,

que pertenço ao número daqueles que muito admiram os seus doutos e interessantes escritos sobre a pluralidade dos

mundos e que sou, de há muito, um seu discípulo na teologia

científica que vem salvar as aspirações religiosas da Huma-nidade contra o materialismo.

Digne-se aceitar a homenagem de meu profundo e sincero reconhecimento, homenagem bem merecida.

B. Rességuet”.16

Aqui temos duas observações de pressentimentos experimen-

tais incontestáveis e de que a fisiologia materialista não dará certamente nenhuma explicação. Poderia ajuntar uma centena de

observações análogas, demonstrando a existência de faculdades

internas ainda desconhecidas e a estudar para a nossa instrução pessoal.

Não há aqui nem ato de raciocínio, nem transmissão de pen-

samento, nem telepatia. É uma espécie de adivinhação. A trans-missão de pensamento, a telepatia serão objeto de capítulos

especiais. Entramos na análise de todo um mundo desconhecido

e devemos distinguir com cuidado a natureza intrínseca dos

fenômenos.

Teremos de estudar fatos idênticos nos capítulos da vista sem

a intervenção dos olhos, da telepatia e da previsão do futuro. Limitemo-nos por agora a esses restritos pressentimentos no

estado de vigília, sem nos ocuparmos por enquanto do que

acontece nos sonhos.

Já contei algures que Delaunay, Diretor do Observatório de

Paris, tinha o pressentimento de que a água lhe seria fatal e se

recusou sempre a viajar por mar. Um dos seus parentes, o Sr.

Millaud, porém, em 1872, pediu-lhe que descansasse dos seus trabalhos, durante uma semana. Dirigiram-se ambos a Cherburgo

e afogaram-se quando voltavam de visitar a baía, em virtude de o

navio se voltar, impelido pela ventania. Nas suas Confissões (tomo IV, pág. 425), Arsène Houssaye narra a seguinte história

análoga.

Sua irmã Cecília havia fugido da invasão prussiana de 1870,

retirando-se para uma cidade da beira-mar.

“Um dia propuseram-lhe um passeio pelo oceano, mas lo-

go minha irmã gritou: “Não, não quero andar sobre as on-

das”. Perguntaram-lhe a razão disso e ela contou que uma

vez, em Toulon, ao subir para um barco, uma italiana que lia as sinas a aconselhara a ficar em terra: “Carìssima senhora, o

mar far-vos-ia mal”. Minha irmã não fez caso da profecia e

deu-lhe cinco francos; mas apenas chegou ao mar, uma raja-da de vento atirou-a à água, sendo salva da morte. No dia

seguinte, a cigana apresentou-se no hotel da sub-prefeitura.

Não quiseram recebê-la, mas minha irmã dirigiu-se-lhe. A velha sibila fitou-a e vaticinou-lhe que o mar lhe seria fatal.

Eis por que não quis refugiar-se na Inglaterra, onde era esperada por uma das suas amigas.

Em vez de um passeio pelo mar, decidiram um passeio por terra firme.

Era 10 de outubro; o prefeito, sua mulher, sua filha, duas sobrinhas e minha irmã dirigiram-se alegremente à ponta de

Penmarc’h, promontório eriçado de rochedos ciclópicos.

Penmarc’h quer dizer cabeça de cavalo, porque todos os bre-

tões têm a linguagem figurada de Chateaubriand. O mar vem

arrebentar aí com fragor de tempestade; tudo são abismos e turbilhões; de sorte que de baixo da cabeça de cavalo está a

furna do inferno. O prefeito levou, portanto, as mulheres,

moças e belas à ponta de Teul-an-Ifern, para que elas vissem o medonho espetáculo do mar em fúria. Todas iam risonhas

ao chegarem ao rochedo, como se entrassem num camarote

da ópera. Enquanto se sentavam aqui e ali, o prefeito fumava um charuto, próximo da porta do atelier de um pintor de ma-

rinhas. As mulheres chamaram-no para que ele contemplasse

a esplêndida vista do mar sitiando o rochedo. Nada temiam, porque o assalto das vagas detinha-se muito longe delas.

Eram horas de voltar, mas minha irmã, empolgada pela áspera beleza do espetáculo, pediu cinco minutos mais de

espera. De repente, um vagalhão, uma dessas ondas terríveis

que surgem como um raio, salta, escala o rochedo e arrasta para o mar as cinco damas espavoridas.

O prefeito empalidece, vendo o turbilhão e uma sombri-nha atirada para junto dele.

Um único grito: Minha mãe! Corre como para combater as vagas, mas a onda já descera, levando a sua colheita. E de-

pois, mais nada! Só o mar que abrandou, cantando o De Pro-

fundis, com o seu ramalhete de mulheres no seio.

O oceano ciumento guardou minha irmã na voragem, sem

a lançar à praia. Nada reapareceu dela, nem o seu corpo es-belto, nem os seus cabelos destrançados pelas ondas, nem o

seu guarda-sol, nem o seu leque. Só ficou dela o grito: “Mi-

nha mãe!”

Foi um pombo branco que me trouxe esta notícia lúgubre.

Ai de mim! Os pombos do cerco de Paris não traziam nunca boas notìcias.”

Os pressentimentos, as advertências desta ordem são demasi-adamente numerosos para serem fortuitos, e não deve surpreen-

der-nos o interesse que há em procurar explicá-los. Fazem parte dos nossos fenômenos psíquicos a estudar. Uma coincidência do

acaso, sim; mas dez, vinte, cem, mil? Não! Não há nenhuma

superstição na análise desses mistérios.

Esta outra narrativa mostra-nos um homem perfeitamente

ponderado que, achando-se de visita em casa de amigos onde devia passar e noite e que ficava situada a 20 quilômetros da sua,

experimenta a sensação de uma desgraça indeterminada e, mu-

dando de projeto, volta logo para a sua vivenda, onde encontra a mãe jogando as cartas, deitando-se em seguida como de costume

e aparecendo-lhe, depois, no fim dessa noite, para o avisar de

que morre, na mesma hora em que, de fato, morria da ruptura de um aneurisma, num quarto do outro extremo da moradia. Há

aqui dois fatos distintos: 1º- sensação a distância de uma desgra-

ça imprevista e iminente; 2º- aparição na hora da morte.

Eis a carta:

(CARTA 814)

“Caro mestre:

Importa aos conhecimentos que revela ao mundo que eu lhe comunique o que me aconteceu, há cinco anos, sem que

disso possa duvidar, apesar do seu severo método de obser-

vação. Em primeiro lugar vou dizer-lhe quem sou.

Atualmente (1899) tenho 35 anos, gozo de boa saúde,

nunca tive alucinações e fui sempre céptico no que diz res-peito a visões e pressentimentos.

Sou proprietário e moro na minha herdade. Ocupo-me da gestão de minhas terras e sou também funcionário ao serviço

do Estado. Sou semsky matchalmik – o que se pode traduzir

por administrador e juiz territorial – no distrito de Kolm, província de Pskoff.

Às 7 horas e meia da manhã, em 20 de abril de 1894, mi-nha mãe, Olga Nikoloiewna Arboussoff, falecia. Nada dei-

xava prever essa morte, pois minha mãe contava 58 anos e

gozava saúde. Eu morava com ela na propriedade que habito ainda: aldeia Tnoukovo, distrito de Kolngdepskof.

No ano de 1894, o dia 20 de abril (dia do falecimento de minha mãe) caía na semana de Páscoa (estilo antigo), e a 19

estava eu de visita em casa de amigos para cumprimentá-los

na ocasião dessa festa.

Viviam a 20 quilômetros da minha herdade e freqüente-mente eu passava a noite com eles, voltando a casa no dia

seguinte. Dispunha-me a fazer o mesmo desta vez. Entretan-to, um pressentimento indefinível impediu-me de me demo-

rar e, apesar de instantes rogos, pus-me a caminho já de noi-

te. Durante a marcha não me sentia bem, atormentava-me o pressentimento de uma desgraça próxima. Só experimentei

alguma tranqüilidade quando, ao chegar a casa, encontrei al-

guns amigos jogando as cartas com minha mãe.

Ela sofria de violentas enxaquecas e, quando eu lhe per-

guntei como estava, respondeu-me que a cabeça lhe doía um pouco. Ao retirar-me para o meu quarto, dei-lhe as boas noi-

tes, como de costume, e não tardei a adormecer.

A minha casa é vasta e o meu quarto era bastante afastado do de minha mãe; separavam-nos duas paredes de pedra.

No dia seguinte (20 de abril) acordei, coberto de suor frio e todo trêmulo pelo pesadelo terrível que me havia acometi-

do. A bem dizer, não era um pesadelo, era uma visão. No momento de acordar, às 7 horas e meia precisas (pois con-

sultei logo o relógio), vi minha mãe distintamente aproxi-

mar-se da minha cama. Beijou-me na testa e disse-me:

– Adeus, eu morro, eu morro!

Dispunha-me a levantar-me e a ir ao seu quarto, quando ouvi de repente grande alvoroço na casa. Toda gente corria.

A camareira de minha mãe precipitou-se na minha alcova, chorando e gritando:

– A senhora acaba de falecer!

Segundo a versão dos criados, parece que minha mãe se

havia levantado, nesse dia, pelas 7 horas, dirigindo-se ao quarto dos netos. Beijou sua netinha, voltou à sua câmara,

ajoelhou diante dos ícones para recitar, como costumava, as rezas da manhã. Quando se prosternava ante as imagens sa-

gradas, faleceu repentinamente. A morte fora motivada pela

ruptura de um aneurisma: congestão fulminante.

Foi, pois, exatamente às 7 horas e meia, a hora da minha visão, que ela morreu.

Eis, caro mestre, o fato que entendo dever comunicar-lhe.

Se desejar fazer-me algumas perguntas, apressar-me-ei a responder a elas, no interesse das suas preciosas pesquisas

tão documentadas. Parece-me, de resto, que já lhe escrevi

uma vez.

Alexis Arboussoff

Kolm, governo de Pskoff (Rússia).” 17

Há aqui duas coisas notáveis a interpretar para nossa instru-

ção.

Seja qual for a narrativa do observador – que pode variar, nas

expressões, segundo sua memória – e seja qual for a ortografia

das línguas estrangeiras, os fatos existem em si.

Em primeiro lugar, o relato é cientificamente admissível. Ele

vem de um homem refletido, na força da vida e do raciocínio, e o nosso dever é considerá-lo com o cuidado com que considerarí-

amos uma observação astronômica, meteorológica, química ou

outra qualquer observação positiva.

Dois fatos, dizíamos nós, merecem examinados.

O Sr. Aléxis Arboussoff, de 30 anos de idade, em 1894, vi-

vendo com sua mãe, que contava 58 anos, vai visitar amigos a 20

quilômetros da sua herdade, na intenção de aí passar a noite e

voltar no dia seguinte. Ora, nessa mesma noite, é assaltado por doloroso pressentimento que o impede de pôr em execução o seu

projeto: sentiu-se forçado a regressar apressadamente a casa. Ao

chegar, ficou surpreendido por não encontrar a explicação do seu pressentimento, vindo encontrar tudo tão sossegado como habi-

tualmente. Alguns amigos jogavam as cartas com sua mãe.

Seria interessante determinar de que proveio a causa desta

sensação telepática.

Não parece que seja da parte da mãe, pois ela parecia tranqüi-

la acerca de sua saúde, apesar da enxaqueca de que sofria. Co-

nhecemos circunstâncias em que se fizeram chamadas dolorosas, física ou mentalmente, sendo ouvidas ao longe sob uma forma

qualquer. Neste caso, adivinhamos principalmente uma intuição

no espírito do filho. A comunicação psíquica entre os dois seres

não é, todavia, duvidosa, e implica uma previsão singular do futuro. A Sra. Arboussoff ia falecer dentro de poucas horas, sem

que nem ela nem seu filho nisso pensassem. Mas há em nós

alguma coisa mais do que a consciência normal aparente. Seja qual for o seu nome: “inconsciente”, “subconsciente”, “sublimi-

nal”, essa coisa existe. Disso é que não podemos sair.

Pois bem: tal coisa é o nosso ser íntimo, transcendente, per-

manente, anterior ao nosso corpo material e que não depende dele; é a nossa alma, cujas faculdades são desconhecidas da

ciência clássica.

Vejamos agora o segundo ponto.

O narrador, proprietário e juiz territorial, deita-se e adormece

no sono do homem honrado e satisfeito com a sua sorte. Mas, no dia seguinte, acorda coberto de suor, sobressaltado por terrível

pesadelo. Que seria? Sua mãe, falecida repentinamente no seu

quarto, muito distante, separado do dele por dois outros compar-timentos, aproxima-se do leito, beija-o na fronte e diz-lhe: “A-

deus! Eu morro!”

A ação pessoal da moribunda não é duvidosa, neste caso. É

preciso que o seu espírito tenha atuado sobre o do filho, a ponto de representar-lhe a sua imagem. Não devemos concluir disto

que qualquer coisa de material ou semimaterial, um corpo etéreo,

vestido como a defunta, se transportasse do quarto da mãe para o do filho; uma tal interpretação não é necessária. Mas, esta mãe,

contudo, mostrou-se realmente ao filho, anunciando-lhe a sua

morte. É esse o fato incontestável que não podemos negar.

Não existe aqui a prova da existência de um espírito no orga-

nismo humano, espírito pensante, afeição, personalidade mental?

A observação é tão positiva e irrecusável como a de um bólido,

um raio, um fenômeno físico verificado com exatidão.

Essa mãe agiu em espírito sobre o filho, e a ação psíquica do

seu cérebro traduziu-se pela sua imagem.

A observação seguinte oferece certa analogia com a prece-

dente e põe também em evidência uma faculdade da alma supra-normal a estudar:

“Minha mãe faleceu em 4 de outubro de 1888, em sua ca-

sa, a 5 quilômetros de Ozark (Missouri). Tinha 58 anos. Eu

morava então em Fordland, a 28 quilômetros da habitação de minha mãe. Havia dois meses que não a via, escrevia-me,

porém, todas as semanas.

Na noite da sua morte, assistíamos, eu, minha mulher e um filhinho de um ano, a uma cerimônia religiosa. Pelas 10

horas da noite, antes dessa cerimônia acabar, enquanto a congregação cantava, experimentei o desejo de ver minha

mãe, pensamento que me foi sugerido por pessoas que pare-

ciam sentir muito calor, recordando-me que minha mãe so-fria de sufocações durante as quais carecia de ar. Nos seus

rostos pareceu-me ver minha mãe sofrendo. De repente, fui

assaltado por uma vontade impulsiva e tão violenta de correr para ela que confiei meu filhinho a uma vizinha e deixei a

igreja sem avisar minha mulher, que estava em outro ponto

do templo. Acelerei a marcha para tomar o comboio, mas perdi-o. Com a impaciência de chegar sem demora perto de

minha mãe, segui a pé pela via-férrea, num percurso de 11

quilômetros, e, tomando depois outro caminho, entrei na vi-venda materna pelas 3 horas da manhã. Tinha mais de quatro

horas de marcha.

Minha mãe acabava de expirar! Bati, ninguém respondeu. Consegui abrir a porta e encontrei minha irmã, que o barulho

acordara. Perguntei-lhe onde estava nossa mãe e ela respon-deu-me:

– Está no seu leito.

– Ah! ela morreu! – exclamei.

Era verdade. Dirigimo-nos à sua cama; tinha morrido al-gumas horas antes, certamente! Deitara-se às 10, sentindo-se

melhor que de costume e combinando com minha irmã le-vantar-se cedo para ir a Ozark.

Tomás Garrison.”

Um inquérito a que procedeu a Sociedade Inglesa de Investi-

gações Psíquicas tornou públicos os pormenores da verificação

dessa narrativa pela irmã do narrador, sua mulher e vizinhos.18

Eis, pois, um homem que, sem causa conhecida, sem razões

normais, abandona um ofício religioso em que tomava parte,

entrega o filhinho de um ano a uma vizinha, não previne sua

mulher, e anda quilômetros a pé, de noite, para ir ver sua mãe que acabava de falecer!

Que o espírito da agonizante impressionou o seu, parece-me

indubitável. Foi também o espírito do narrador que sentiu esta

emoção tão imperiosa como incompreensível. Por parte da mãe, foi tal ação consciente ou inconsciente? Não o sabemos. Mas,

que houve entre mãe e filho uma comunicação psíquica, uma

correspondência mental, não se pode deixar de admitir. É o que classificamos de faculdades supranormais pertencentes à alma,

fora dos sentidos físicos.

Continuemos o nosso livre exame.

Devemos incluir o fato que se segue na categoria dos pressen-

timentos trágicos? Ele é, em qualquer caso, dos mais extraordi-nários.

Em centenas e milhares de fenômenos psíquicos desta ordem,

só nos sentimos embaraçados na escolha, para certificar a exis-

tência, no homem, de faculdades desconhecidas e de enigmas a resolver. Aqui temos um, por exemplo, de observação bastante

recente, que me foi contado de viva voz pela pessoa com quem

se deu:

“Uma senhora que vivia em Paris (Sra. Marichal, rua Cus-

tine, 20, XVIII Distrito) acordou na noite de quinta-feira, 26

de março de 1914, sob a impressão de terrível pesadelo.

Uma espécie de espectro, vago, sem forma, chegou-se perto de sua cama, apertou-lhe os braços e murmurou entre amea-

ças terríveis:

– Teu marido ou tua filha – um dos dois – tem de morrer. Escolhe!

– Escolher entre meu marido e minha filha? É impossível?

Nem um nem outro – respondeu, toda trêmula.

– É preciso que escolhas – replicou a aparição –. Um dos dois há de morrer. Decide! Qual deve ser sacrificado?

Presa das mais dolorosas angústias, a paciente debateu-se longamente, sem poder decidir. Louca de dor, nega-se a res-

ponder. Que sofrimento indizível lhe apertava a alma! Adi-vinha-se. Seu marido, de 46 anos, gozando de perfeita saúde,

estava ao lado dela. Sua filha, que a acompanhava quando

me contou essa alucinação singular, é, no momento em que escrevo estas linhas (junho de 1918), uma bela rapariga de

17 anos. Compreende-se o estado de agitação da Sra. Mari-

chal. Sentia por ambos afeição idêntica.

Finalmente, vencida por vontade mais forte que a sua, e

insistindo a visão em receber uma resposta, acabou por con-fessar a si própria que o amor materno deve dominar tudo e

que sacrificaria seu esposo de preferência à sua filha.

Volvidos 5 dias, o Sr. Marichal, a quem ela não tinha con-tado o seu pesadelo e que nunca estivera doente, sentia-se

cansado, ao voltar do seu escritório (cabos submarinos) e deitava-se. O médico, chamado na quarta-feira, não desco-

briu nenhum sintoma de moléstia e diagnosticou uma gripe

ligeira. Na quinta-feira o seu estado agravou-se. No sábado, o condenado estava morto. O coração parara de súbito, se-

gundo declaração do médico. Nenhum indício de doença

cardíaca havia sido observado nele.”

Interroguei, juntas e separadamente, a Sra. Marichal e sua fi-lha para confrontação dessa história singular, e, na minha opini-

ão, não há dúvida alguma quanto à autenticidade.

Podemos acrescentar este sonho premonitório aos 76 análo-

gos publicados em O Desconhecido e os Problemas Psíquicos. Mas, que forma sinistra! E como explicá-lo?

A maneira mais simples é supor que o Sr. Marichal devia

morrer naquela data, sem que desconfiasse do seu estado de

saúde. Quando morremos, não é, em certas circunstâncias, senão ao cabo de uma doentia evolução, de que não nos apercebemos.

Julga-se gozar saúde: um mal desconhecido enfraquece-nos

gradualmente. O subconsciente da esposa, muito sensitiva, pode

ter percebido inconscientemente esse estado mórbido e o desfe-

cho fatal... A nossa personalidade psíquica é dotada de faculda-

des ainda pouco analisadas.

É esta uma hipótese explicativa, mas não passa de hipótese.

Se a aceitássemos, seria preciso, para completá-la, adivinhar

como essa intuição tomou o aspecto de aparição anunciadora.

Outra hipótese: o mundo invisível em que vivemos não conte-

rá seres tão invisíveis como as forças que governam a Natureza –

a atração, a eletricidade, o magnetismo solar e planetário, etc., seres, espíritos, pensamentos que poderiam possuir uma consci-

ência rudimentar, assim como a faculdade de ver o que se passa

num organismo vivo, e manifestar-se? É esta uma hipótese ousada, mas que nos ajudaria a compreender a observação que

acabamos de relatar, assim como muitas outras inexplicadas. Um

ser invisível tornado visível teria, por assim dizer, imposto à Sra. Marichal o jogo da carta obrigada. Todos temos visto prestidigi-

tadores que nos apresentam um baralho de cartas, convidando-

nos a escolher uma delas, “livremente”. Ora, escolhemos sempre a carta que eles querem (com exceção das substituições). O

espírito que imaginamos teria sabido e visto que o condenado

devia morrer em breve prazo e forçaria a própria esposa à desig-ná-lo.

Imaginando esta hipótese, confesso que me parece pouco ve-

rossímil; mas não é inaceitável. Ela lembra, sob outro aspecto, o

anjo guardião que a religião cristã nos designa como sendo o companheiro invisível do crente. Que isto seja ou não aplicável

ao caso, o fato a explicar aí está diante de nós e inatacável.

Não poderemos admitir também, por uma série bastante rica

de observações concordantes, que a atmosfera, ou melhor, o éter, contém um elemento psíquico ainda não descoberto? A compo-

sição química do ar, em que entram o oxigênio e o azoto, só foi

descoberta no século XVIII. Julgava-se conhecer inteiramente esta composição, quando há vinte anos se descobriram elementos

sutis ignorados, o néon, o crípton, o árgon, o xènon. É possível que existam outros mais tênues ainda e de essência superior.

Cada segundo uma alma humana abandona um corpo. Aniquilar-

se-á? Nada o prova. O número dessas almas é de 86.000 a

100.000 por dia, pouco mais ou menos um milhão em dez dias,

dez milhões em cem dias, 36 milhões por ano. Pensar, como

Victor Hugo, que “está tudo cheio de almas”, talvez não seja só uma ficção poética. Quem sabe se este elemento psíquico não

estará em jogo na explicação dos fenômenos que estudamos?

Todavia, no caso que aqui nos interessa, a primeira hipótese

parece-nos a mais provável, sobretudo se refletirmos que o nosso ser mental pode exteriorizar-se, sair de nós, tomar forma alheia

ao nosso eu consciente, e mesmo conversar conosco, como

acontece nos sonhos. Trata-se justamente de um sonho, primeiro inconsciente, e que ao despertar se tornou alucinatório.

Vê-se, por isto, quanto é complexo o problema que estuda-

mos. Este exemplo, que acabo de apresentar entre mil, visa

unicamente, por enquanto, justificar o título deste capítulo: “Faculdades da alma desconhecidas ou pouco estudadas”. Ele

tem o número 4.033 no inquérito a que já aludi.

Uma história que de alguma forma se relaciona com a da Sra.

Marichal foi relatada no Ainslee’s Magazine, de março de 1892, pelo Dr. Minot Savage. Ei-la:

“Num arrabalde de Nova Iorque, morava um moço que

acabava de terminar os seus estudos no estrangeiro, na Uni-

versidade de Heidelberg. Seu temperamento era muito ima-ginativo. Alto e robusto, gozava da fama de atleta. Seus es-

tudos preferidos eram as matemáticas, as ciências físicas, a

eletricidade. Chegava do estrangeiro e, tanto quanto se podia avaliar, dispondo de excelente saúde. Vivia então com sua

mãe na casa de campo que ela possuía naquela região. Tinha

por hábito dar um passeio todos os dias, depois do jantar, fumando o seu cachimbo. Uma noite, voltou tranqüilamente

e deitou-se sem nada dizer a ninguém. No dia seguinte de

manhã foi ao quarto de sua mãe antes de ela se levantar, pas-sando-lhe brandamente a mão pelo rosto para a despertar;

depois exclamou:

– Mãe, tenho uma coisa triste a comunicar-te. É preciso

que te armes de coragem para poderes suportar a minha má notícia.

Ela ficou, naturalmente, atônita e perguntou-lhe aonde queria chegar.

– Mãe, sei o que digo; morrerei em breve.

Perturbada e angustiada, como bem se pode imaginar, pe-diu ao filho que se explicasse.

– Ontem à noite – respondeu ele –, quando fazia o meu passeio, apareceu-me um Espírito e começou a andar a meu

lado. Fui prevenido. Devo morrer.

Muito impressionada, a mãe mandou chamar um médico e contou-lhe o fato. Ao cabo de atento exame, o clínico nada

encontrou de anormal no estado do moço e garantiu que tudo o que lhe acontecera não passava de um mau sonho, pura a-

lucinação em que não devia pensar mais, e que, dentro de

alguns dias, a mãe e o filho se ririam dos seus sustos imagi-nários.

No dia seguinte o rapaz não se mostrava tão bem disposto como de costume, e o médico, reclamado pela segunda vez,

zombou novamente dos seus receios.

Ao terceiro dia, o estado do doente agravou-se, o doutor teve de voltar e foi então obrigado a diagnosticar um caso de

apendicite. O enfermo foi operado e faleceu 48 horas depois. Cinco dias apenas haviam decorrido entre a visão e a mor-

te.”

Tem-se por hábito substituir, inconsideradamente, esses fe-nômenos pela palavra alucinação, imaginando-se, assim, resolver o problema. Isto não é sério.

Nos inúmeros documentos desse inquérito, ser-me-ia fácil

encontrar outros, de natureza diversa dos precedentes, mostrando

a extensão do domínio desconhecido que temos de explorar. Ao acaso, encontro uma carta bem diferente da precedente comuni-

cação e não menos curiosa. Foi-me endereçado de Constantino-

pla, em 22 de setembro de 1900. É a seguinte:

(CARTA 943)

“Senhor professor:

Cumpro o dever de lhe assinalar dois casos observados por mim para o inquérito científico experimental a que con-

sagra lealmente tantas horas ocupadas no desenvolvimento da instrução geral.

Um homem do meu conhecimento estava, certo dia, em minha casa, em Constantinopla, pelas 11 horas e meia da

manhã, e dizia-me:

– Não sei qual a razão disto; mas, durante toda a manhã tem-me perseguido o pensamento de que minha tia faleceu

em Gênova.

Perguntei-lhe então se sabia que ela estivesse doente, e ele

respondeu-me que tinha cortado as relações, havia dez anos, com sua família e nenhuma notícia recebera. Enquanto con-

versávamos e eu procurava provar-lhe que tal pressentimen-

to era imaginário, o seu criado chegou e entregou-lhe um te-legrama de Gênova, no qual o avisavam da morte repentina

de sua tia, naquela manhã.

Esse mesmo homem, na noite de 31 de julho passado, a-cordou em sobressalto e disse à sua mulher:

– Mataram o rei da Itália.

A esposa, julgando que ele estivesse a sonhar, nada repli-cou. No dia seguinte falou-lhe no caso, mas ele respondeu

que não se tratava de um sonho e que havia proferido aque-

las palavras sem saber como nem por que.

Da janela, avistava-se o porto, e ele disse a sua mulher:

– A melhor prova de que o rei da Itália não morreu é que os navios ancorados içaram as suas bandeiras.

Uma hora depois voltou à janela e observou que desta vez os navios tinham as bandeias a meia-haste. Surpreendido

com tal mudança, procurou informações, e em breve soube que, durante a noite, o Rei Humberto fora assassinado. So-

bressaltado por esta coincidência, acaba de vir consultar-me,

como médico alienista, perguntando-me se essa visão não denota algum sintoma grave para o seu cérebro! Tranqüili-

zei-o, mas não me esqueci de tomar nota do fato, tanto mais

que esse homem perfeitamente equilibrado é digno de fé a

todos os respeitos.

Aguardando a sua resposta, peço-lhe que desculpe a ousa-dia de me dirigir ao senhor sem ter a honra de o conhecer

pessoalmente, e que aceite as minhas respeitosas homena-gens.

Dr. L. Mougeri

Médico alienista do Real Hospital Italiano

– Rua Cabristan, 20, Constantinopla.”

Aí têm, como se vê, dois casos análogos de telepatia, apesar

de diferentes: 1º- uma morte percebida a distância, de Constanti-

nopla a Gênova, em estado de vigília; 2º- assassinato do rei da Itália, conhecido durante o sono.

A percepção dos dois acontecimentos não é duvidosa. Será a

explicação igual para ambos? No primeiro, há probabilidades de

uma corrente particular entre a tia e o sobrinho; no segundo uma transmissão em ondas esféricas gerais. É difícil decidir. Em

virtude dessa dificuldade é que o número de observações tem

valor real.

Agradeci ao probo médico esta comunicação que juntarei a

tantas outras. Ninguém tem o direito de duvidar de tais fatos.

Não querer ver em tudo senão ilusões é insensato, é negar o Sol

ao meio-dia. O ser humano é ainda para nós um mistério inex-plorado, a ciência das escolas seguiu um rumo errado até hoje, e

quem procurar a verdade deve, de agora em diante, convencer-se

de que existem faculdades desconhecidas da alma, as mais importantes, para serem descobertas, determinadas e explicadas.

É opinião minha que devemos estudar tudo sem parcialidade.

Francisco Sarcey teve um dia a gentileza de me transmitir uma

carta, que acabava de receber, sobre quiromancia, datada de 22 de março de 1899, e que começava assim:

(CARTA 841)

“Ninguém mais do que eu, talvez, admira o seu bom sen-so, os princípios excelentes que professa e os conselhos pru-

dentes que espalha nas suas crônicas. Mas não se pode saber

tudo e o alto bom senso que é o seu atributo (coisa rara) não

lhe permite, concordo, sondar o que parece insondável à

primeira vista. O senhor é nisso diametralmente oposto a Flammarion, que possui o verdadeiro bom senso científico:

ele nada rejeita sem prévio exame.

22 de março de 1899.

A. de M.”

Esta carta continua por uma dissertação sobre a quiromancia,

que não entra aqui em discussão. Se reproduzi este trecho, é simplesmente para lembrar o cuidado que devemos ter em não

desdenhar nada, com o fim de conseguirmos, sem obstáculos

criados por idéias preconcebidas, determinar o que há já de verdadeiro, de real, nos fenômenos psíquicos. Sarcey foi tanto

mais amável em comunicar-me a mencionada carta quanto ele

não acreditava absolutamente nesses fenômenos.

E, no entanto, como são numerosos! Como são irrecusáveis

tais fenômenos! Não os desprezemos mais.

Nem sempre é fácil averiguar e discutir as faculdades supra-

normais da alma. O seguinte caso, que me comunicaram de

Cette, em 20 de janeiro de 1912, foi um dos que me provaram quanta razão tive em convidar, pela imprensa, as pessoas que

haviam experimentado essas impressões a trazê-las ao meu

conhecimento, no interesse do progresso da nossa instrução geral:

(CARTA 2.220)

“Certa noite, saì do Grande Café, em Cette, deixando ali

um dos meus bons amigos, cheio de saúde; era meia-noite em ponto. Deitei-me de muito bom humor e adormeci no

sono do justo, disposto a gozar um descanso bem ganho.

De repente, às 3 horas da manhã, acordado por terrível pe-sadelo, ergui-me na cama. Vi o meu companheiro com o

crânio aberto, agonizante, dizendo-me adeus e beijando-me. Era horroroso! Ainda tenho esta visão clara na memória. Es-

pavorido, vesti-me e esperei o dia, contando que as distra-

ções do vai-e-vem fariam desaparecer do meu cérebro o hor-

rível pesadelo que o atormentava.

Às 7 horas da manhã saí de casa. Vinham avisar-me de que o meu lastimado amigo Théaubon, ao visitar uma amiga,

havia saltado por uma janela, devido a circunstâncias que não interessam ao caso, e fendido o crânio, morrendo instan-

taneamente. Atordoado, abatido e sempre sob a impressão de

meu pesadelo, quase desmaiei.

O que relato é a expressão da verdade, pois tenho tanta

veneração e respeito pelo grande sábio que no senhor admi-ro, que não lhe diria uma coisa que não fosse rigorosamente

exata.

Louis Périer

Empregado na Municipalidade de Cette.”

Como interpretar esta visão?

Foi o espírito do narrador que vislumbrou o desastre, a dis-

tância? Ou, pelo contrário, foi o indivíduo que veio mostrar-se?

Conhecemos tão grande número de exemplos a distância que

a primeira explicação parece a mais exata.

Entretanto, o autor não viu o desastre, viu o seu amigo com o

crânio aberto, agonizando e beijando-o.

Mas, por outra parte, se a morte foi instantânea e num mo-

mento tão trágico, como supor que ele pensasse no amigo?

Não é provável, mas é possível, afinal, pois tinha-o deixado

três horas antes.

Vê-se quanto a questão é complexa.

Aqui temos agora um caso muito notável de sensação telepá-tica de acidente a distância, por uma mulher sobre o marido,

extraído dos Phantasms of the Living. Trata-se do Dr. Ollivier,

médico em Huelgoat (Finisterra). Escreve ele:

“Em 10 de outubro de 1881 fui chamado para um serviço

médico na aldeia, a três léguas de minha casa. A noite, mui-

to escura, tinha-se fechado. Tomei um caminho estreito do-

minado por árvores que formavam abóbada. A escuridão era

tão cerrada que nem sequer via para guiar o meu cavalo.

Deixava o animal dirigir-se por seu próprio instinto. Eram

aproximadamente 9 horas; o trilho que eu seguia nesse mo-mento estava semeado de grossas pedras redondas e apresen-

tava declive muito intenso. O cavalo ia a passo, lentamente.

De repente, as patas dianteiras do animal tropeçaram e ele caiu com as ventas no solo. Fui projetado naturalmente por

cima da sua cabeça, o meu ombro bateu na terra e fraturei a

clavícula.

Nesse momento, minha mulher, que se despia e se prepa-

rava para deitar-se, teve a sensação íntima de que eu acabava de sofrer um desastre; um tremor nervoso apoderou-se dela;

pôs-se a chorar e chamou a criada:

– Venha depressa, tenho medo, aconteceu uma desgraça a meu marido; morreu ou está ferido.

Até que regressei, reteve a criada perto de si e não cessou de chorar. Queria mandar um homem à minha procura, mas

ignorava a que localidade eu tinha ido. Cheguei a casa pela 1 hora da manhã. Chamei a serva para me dar luz e desapare-

lhar o meu cavalo.

– Estou ferido – disse-lhe –, não posso mexer o ombro.

Estava confirmado o pressentimento de minha esposa.

A. Ollivier

Médico de Huelgoat (Finisterra).”

Tenho, na minha coleção, um certo número de fatos idênti-

cos, sensações de desastres, de acidentes a distância. Menciona-rei mais adiante um deles, quase igual a este e experimentado

três quartos de hora antes.

A existência real da alma manifesta-se pelos testemunhos de

faculdades psíquicas que não podem ser atribuídos à matéria e que por enquanto não estudamos suficientemente. O homem não

conhece ainda a sua verdadeira natureza. É dotado de faculdades

apenas suspeitadas, que serão desenvolvidas pela sua evolução gradual. As escolas de ensino clássico seguiram um trilho errado.

Vê-se, toca-se, analisa-se, disseca-se, no organismo humano,

somente o que há de mais aparente, mais superficial, mais gros-

seiro. O que ele possui, intimamente, de sutil ainda é ignorado e seria no entanto o mais essencial a conhecer.

O estudo analítico experimental das faculdades da alma deve,

doravante, substituir as idéias da metafísica antiga e as palavras

que as representam. O pretenso conhecimento da alma consistia, efetivamente, em palavras.

Há pouca coisa de real nas expressões que satisfizeram os se-res durante séculos e que nada ensinaram. Para o futuro, impõe-

se outro método. Esse exame das faculdades da alma humana

vai-nos levar a compreender, o mais exatamente possível, as observações positivas que as revelam e que porão em evidência a

realidade de fatos paradoxais muito contestados ainda, como

estes:

a vontade atuando sem a palavra e à distância;

as transmissões psíquicas – telepatia;

a vista sem os olhos, pelo espírito;

a previsão do futuro;

as manifestações de defuntos, tanto no momento da morte

como depois.

Observações diversas e independentes concorrem para afir-mar que há no homem um elemento psíquico ativo, diferente dos sentidos materiais.

Entramos aqui num mundo imenso, mais novo que o de Cris-

tóvão Colombo quando descobriu as pretensas Índias ocidentais.

É do seu cérebro que o indivíduo magnetizado pode tirar o

que diz, quando fala de coisas que não conhece, visita casas por ele ignoradas, trata de questões que lhe são alheias, responde a

perguntas formuladas em línguas desconhecidas, ouve o pensa-

mento e não as palavras, sente o que pensa uma pessoa próxima ou afastada, ou transporta o seu espírito a distância, descrevendo

cenas que nunca viu?

Deixemos de fundamentar os nossos juízos nas aparências

materiais, na Fisiologia clássica.

Em geral, não se ousa encarar de face o desconhecido, apre-

sentamo-lo, na pedra, como um problema, uma equação, porque

somos levados a pensar que sabemos tudo (!) e que não merece exame o que está fora do quadro da Ciência.

Há muito tempo, aí por 1865, era eu quase o único, em Fran-

ça, a asseverar a conexão entre a atividade solar e as oscilações

diurnas da agulha magnética. Os astrônomos, entre os quais o Sr. Faye, o mais célebre com Le Verrier, diziam que eu errava. Para

eles as correlações apontadas eram apenas obra do acaso.

A sentença de Képler, comparando o Sol a um ímã: Corpus

Solis esse magneticum 19

era a minha, humilde discípulo; os físicos não a admitiam. Proclamava-se que o Sol não podia ser

magnético, porque o magnetismo duma barra de ferro suprimia-

se quando esta se aquecia.

Ora, o Sol, apesar de seus 6.500 graus, é um foco magnético,

e hoje (1919) achou-se o meio de medir até o magnetismo indi-

vidual das manchas.

É assim que a Ciência se transforma por si mesma. Estamos

longe de conhecer, seja como for, a realidade.

Acerca das observações constantes que cada um pode fazer

quanto à diferença entre a realidade e a aparência, acabo de

encontrar a seguinte nota, que escrevi no meu Observatório de

Juvisy, em 13 de novembro de 1917:

“Por esta fria manhã, o disco solar é dum vermelho arden-

te. A atmosfera está impregnada de bruma semitransparente.

Bela paisagem de inverno, apesar de numerosas árvores con-

servarem ainda a sua folhagem verde. Muitas dessas árvores são amarelas e roxas. Outras já não têm folhas. Se, devido às

condições atmosféricas, o Sol se mostrasse sempre assim

vermelho, pensaríamos que era essa a sua cor normal. Nin-guém o teria visto branco.

Acontece justamente o mesmo com outras coisas. As nos-sas impressões são a base natural dos nossos juízos.

É provavelmente a centésima vez que vejo assim o Sol e que faço as mesmas reflexões. Com todas as nossas sensa-

ções pode acontecer o mesmo.”

Transcrevendo essa nota, acrescentar-lhe-ei o que já disse muitas vezes, durante cinqüenta anos: Se a atmosfera fosse mais

opaca ainda, ou constantemente coberta de nuvens, o sol e as estrelas teriam ficado invisíveis, o sistema do mundo seria

desconhecido e a espécie humana conservar-se-ia na mais abso-

luta ignorância da realidade.

Que devemos pensar dos seres sensitivos? Eles são mais nu-

merosos do que se imagina. Goëthe e Schumann foram tipos

notáveis. Falaremos adiante de Goëthe, a respeito dos “duplos”.

Assinalemos, de passagem, uma observação telepática curiosa de Schumann. Numa carta de 1838 a Clara Wiek, diz ele o seguinte:

“Devo contar-vos um pressentimento que tive e que me

perseguiu de 24 a 27 de março, enquanto andei ocupado com

as minhas novas composições.

Havia nelas um certo trecho que me obsediava e em que

alguém parecia dizer-me, do fundo do coração, Ach Gott (Ai, meu Deus). Enquanto compunha, via coisas fúnebres,

esquifes, rostos aflitos... quando acabei, procurei um título.

O único que me acudiu foi Leichenphantasie (Fantasia fúne-bre). Não é extraordinário? Estava de tal maneira perturbado

que me vieram as lágrimas aos olhos, sem saber por que;

não pude encontrar a razão dessa tristeza. Chegou,então, uma carta de Teresa e tudo se explicou. A cunhada noticia-

va-lhe que seu irmão Eduardo acabava de falecer.”

Schumann deu o título de Nachtstücke (Noturno) a essa série que quis primitivamente denominar Leichenphantasie.

20

Os pressentimentos revestem todas as formas. Seu exame

formaria enorme volume.21

Mencionarei ainda um dos mais

extraordinários, experimentado por Lady Eardley, distinta dama

de Além-Mancha, que assim o transmitiu ao Sr. Myers:22

“Quando rapariga, na idade de 16 anos, tive um ligeiro a-

taque de sarampo. Morava com meus avós. Após dois ou

três dias de cama, disseram-me que poderia tomar um banho

quente. Satisfeita e sentindo-me melhor, dirigi-me ao quarto de banho, fechei a porta e despi-me; mas, no momento de

entrar na água, ouvi uma voz dizendo-me: “Abre a porta”. A

voz era nítida, bem exterior, e entretanto parecia vir de mim

mesma. Não posso afirmar se era de homem ou de mulher.

Surpreendida, olhei em torno de mim: naturalmente não vi ninguém. Segunda vez ouvi: “Abre a porta”; comecei a ter

medo, julgando de mim para mim: “estou doente ou louca”;

mas não me sentia mal. Decidi não pensar mais nisso e já es-tava no banho, quando ouvi uma terceira vez – e creio que

uma quarta – as mesmas palavras! Dei um pulo, abri a porta

e reentrei na banheira... Nessa ocasião, desmaiei e caí na á-gua. Mas, felizmente, pude agarrar ao mesmo tempo a cam-

painha pendurada perto da banheira. A criada de quarto acu-

diu, declarando ter-me encontrado com a cabeça debaixo d’água. Tomou-me nos braços e levou-me dali. A minha ca-

beça bateu contra a porta e logo recobrei os sentidos. Se essa

porta estivesse fechada, ter-me-ia, de certo, afogado.”

Que singularidade! Que voz seria aquela? Donde vinha? Pro-vavelmente da própria menina, que teria pensado num possível

delíquio. Quanta variedade nesses avisos incompreensíveis! Sim,

a alma humana é dotada de faculdades desconhecidas da ciência atual.

A nossa mentalidade psíquica, em geral submergida pelo nos-

so ser material, manifesta-se evidentemente em certos exemplos

históricos bem conhecidos, mas mal explicados pelo cego cepti-cismo fisiológico das escolas modernas. Lembremos, entre

outros, na vida de Joana d’Arc, estes fatos:

“Joana disse ao soldado de Chinon, que a injuriava quando

ela entrou no castelo: “Ah! tu renegas Deus e, no entanto, estás prestes a morrer!” Na mesma tarde o soldado afogava-

se acidentalmente.

Noutras ocasiões, e a maior parte das vezes – é a própria Joana quem o afirma – era ela prevenida pelas “suas vozes”.

Em Vaucouleurs, sem nunca o ter visto, dirige-se diretamen-te ao Senhor de Beaudricourt: “Reconheci-o – explica ela –

graças à “minha voz”; foi ela que me disse: “Ei-lo!”

Em Chinon, levada à presença do rei, Joana não vacila em conhecê-lo no meio de trezentos cortesãos entre os quais ele

se ocultava, com um trajo emprestado. Solicitou-lhe uma

audiência íntima, em que lhe lembrou, para convencê-lo da

sua missão, os termos da prece mental que ele havia dirigido a Deus, só, no seu oratório, sobre a sua contestada legitimi-

dade.

Foram ainda “as vozes” que a informaram de que a espada de Charles Martel estava escondida na igreja de Santa Cata-

rina de Fierbois; que a acordaram em Orleães, quando, esgo-tada de cansaço, ela se deitara, ignorando o ataque da basíli-

ca de Saint-Loup; que a preveniram de que seria ferida por

uma seta, em 7 de maio de 1429, no ataque de Tournelles.

No cerco de Orleães, ela avisa Glandale de que perecerá

“sem sangue” dentro de três dias, e com efeito, na tomada de Tournelles, Glandale cai no Loire e se afoga. Etc., etc.”

De onde provinham essas vozes? Dela mesma, segundo todas as probabilidades. Mas tocavam de perto o mundo invisível.

Joana d’Arc foi um tipo raro desses seres sensitivos dotados

de faculdades supranormais; e muitos outros se aproximam mais ou menos de tal estado.

As manifestações da alma começam apenas a ser estudadas

pelo método experimental; devemos consignar que nesta ordem

de fatos não podemos quase nunca experimentar, mas somente observar, o que restringe consideravelmente o campo dos estu-

dos. E as condições da vida orgânica terrestre são tão grosseiras

que nos encontramos pouco mais ou menos na situação de um homem que tivesse observações astronômicas a fazer numa

região em que o céu permanecesse constantemente anuviado.

Essas condições excepcionais são tanto mais lamentáveis

quanto o problema da alma, sendo o mesmo que o da sobrevi-vência, é, sem dúvida, a mais interessante e a mais importante

das questões, pois trata-se de nós mesmos, da nossa natureza

íntima, de nossa imortalidade ou da nossa extinção.

Estudaremos nos próximos capítulos fatos incontestáveis de

vista sem os olhos, pelo espírito, assim como a visão de aconte-

cimentos futuros, que ainda não existem, e teremos aí também

provas evidentes das faculdades transcendentes da alma.

Que haverá de mais inacreditável – e no entanto de mais cer-

to! – do que ver o futuro com exatidão e ver também o que se

passa à distância de mil quilômetros?

A faculdade de ver o futuro será estudada neste livro, em ca-

pítulo especial. Que é o tempo? Como se produz o futuro?

Os problemas que merecem a nossa atenção são tão numero-

sos e tão vastos que nunca se acaba de elucidá-los e a nossa

curiosidade se renova constantemente pelo estudo. As vulgarida-des diárias da vida não bastam aos seres intelectuais, porque eles

sabem que viver intelectualmente é viver duplamente, e gostam

de viver pelo pensamento. Continuemos o nosso estudo compa-rativo.

Um mestre-escola erudito, o Sr. Savélli, de Costa (na Córse-

ga), escrevia-me, em 1912:

(CARTA 2.230)

“É evidente que essas questões interessam aos leitores no

mais alto grau, e estou certo de interpretar o desejo deles,

rogando-lhe que prossiga no seu ensino.

A questão da natureza do tempo deve ser bem difícil de resolver. Um matemático notável respondeu a um investiga-

dor que lhe pedia que explicasse tal assunto: “Falemos de outra coisa.” Entretanto, julgo do meu dever oferecer ao seu

exame algumas observações muito perturbadoras e de que se

não pode duvidar:

1º – Uma noite, pelas 11 horas, meu pai, voltando para sua

casa com um amigo, ouviu, com surpresa, gritos angustio-

sos. Mulheres choravam e gritavam. Pensaram que acabava

de dar-se um desastre, que talvez houvesse morrido alguém. Procuraram o prédio donde vinham os lamentos e pararam;

mas às vociferações seguiu-se silêncio completo. No dia se-

guinte, à noite, às mesmas horas, passando de novo em fren-te da mesma casa, meu pai ouviu os mesmos gemidos. Desta

vez eram reais. Uma criança, que na véspera estava de saú-de, acabava de falecer quase repentinamente com um ataque

de difteria. Esse fato ocorreu em Ville-de-Paraso, localidade

vizinha daquela em que sou mestre-escola.

2º – O Sr. Napoleôni, sargento aposentado, contou-me o

seguinte fato:

– Regressávamos, à meia-noite, quando, ao passarmos em

frente de duas casas insuladas, no meio do maior silêncio, ouvimos grandes pancadas com intervalos regulares. Tínha-

mos a impressão de que se batia com um martelo em madei-

ra sonora. Confesso que se me eriçaram os cabelos e que en-trei em casa muito impressionado por esse fenômeno inex-

plicável. Dois dias depois o acaso quis que me encontrasse

no mesmo lugar em que os ruídos estranhos me haviam im-pressionado e escutei-os novamente: era o marceneiro da al-

deia que pregava o caixão do pastor que morrera na véspera.

3º – No dia em que os bandidos Massoni assassinaram o

Dr. Malaspina, de Costa, meu tio Costa Michel-Ange, que ainda vive, e que era então (1850) aluno do Liceu de Bastia,

teve a impressão de ser agarrado por um abraço invisível

que lhe tolhia todos os seus movimentos. A avó materna de meu tio era a irmã do Dr. Malaspina.”

Desses três fatos, os dois primeiros são premonições 23

e o terceiro é uma sensação telepática, como as que se podem ler às

centenas na minha obra O Desconhecido e os Problemas Psíqui-cos. São inexplicados – e inexplicáveis no estado atual da Ciên-

cia. Mas são irrecusáveis e confirmam-se uns pelos outros;

estudando-os, esclarecemos o nosso próprio conhecimento, ainda tão pouco adiantado, pois que o que mais ignoramos é a nossa

própria natureza. Não os desdenhemos, portanto.

Começamos a conceber as transmissões telepáticas pela des-

coberta da telegrafia sem fios: mas nada nos põe ainda no rastro da explicação dos fatos premonitórios, tão difíceis de admitir,

embora inegáveis. A principal dificuldade está na contradição

que parece impor-se entre a vista dos acontecimentos vindouros, tal como o verificaremos aqui com segurança, e o nosso senti-

mento do livre arbítrio.

Sem nos preocuparmos, neste momento, com os casos parti-

culares, e para nos cingirmos à questão de princípio, direi desde

já que não podemos doravante duvidar de que os acontecimentos futuros foram vistos e descritos de antemão, em certas circuns-

tâncias, exata e explicitamente, e a tal afirmação julgo poder

acrescentar, em segundo lugar, que este fato de observação deve conciliar-se com o livre arbítrio.

O tempo não é o que nos parece. Não existe em si mesmo. A

eternidade é imóvel e atual. Um dia, certo cardeal francês, muito

ligado com o Papa Leão XIII, discutiu comigo esta questão, durante o passeio que fizemos num jardim de Nancy, e sustenta-

va que as premonições não se conciliavam com o livre arbítrio.

– Acreditais na existência de Deus? – perguntei-lhe.

– Espero que o senhor não duvidará disso – respondeu ele.

– Pensais como todos os teólogos e como Cícero, assim como

o vosso predecessor, o bispo d’Hipônia, que Deus conhece o futuro?

– Sim, certamente.

– Admitis também o livre arbítrio e a responsabilidade dos

cristãos?

– Sim.

– Então, que diferença existe entre os fatos premonitórios e

esta doutrina? – retorqui.

Enquanto ao tempo, o passado já não existe, o futuro ainda

não existe: só existe o presente. Ora, que é o presente: A hora

atual? Não. O minuto atual? Não. Um segundo? Não. Um déci-

mo de segundo? Não. Um centésimo de segundo? Também Não. Um milésimo de segundo? Ainda é muito para um eletricista.

Mas, enfim, aceitemo-lo, se assim quereis. Eis, pois, o presente,

a realidade. Confessai que não é muito substancial.

Não existindo o tempo em si mesmo e não sendo medido em

nosso espírito, a não ser pelas nossas sensações, o encadeamento

dos acontecimentos é como um presente que se desenrola, e esse desenrolar não impede a vontade humana de nele representar o

seu papel.

O problema não deixa, todavia, de ser, ao mesmo tempo,

muito complexo e muito curioso. Essa visão do futuro será

provada especialmente nos capítulos VIII e IX.

Repetimos que vivemos no meio de um mundo do qual só

conhecemos a aparência, e mal podemos adivinhar-lhe as reali-

dades internas. Há entre estas realidades e as nossas almas

analogias, relações, trocas ainda desconhecidas.

Terminarei este capítulo com uma carta recebida no momento

em que classificava os documentos manuscritos desta obra. Ela

emana de um espírito eminente, cujo caráter é friamente positi-

vo, antigo aluno da Escola Politécnica, engenheiro-chefe de Pontes e Calçadas, membro perpétuo da Sociedade Astronômica

de França, e que julga com exatidão os grandes ou pequenos

acontecimentos. Eis essa carta:

(CARTA 4.041)

“Governo Marroquino

Obras públicas

Engenheiro-chefe

Tanger, 6 de julho de 1918.

Meu caro mestre.

Já que estudou muito particularmente As forças naturais desconhecidas, peço licença para levar ao seu conhecimento,

sem comentários nem pedido de explicações, dois fatos, dos

quais um ocorreu ontem e o outro há um ano, e cujo interes-se para mim está em que posso garantir a sua autenticidade,

pois fui deles o único autor.

Primeiro fato: Possuo, para as minhas observações do céu, um pêndulo elétrico de Leroy, o qual, como sabe, se move

por meio de uma pilha durante quatro anos, detendo-se so-mente quando a referida pilha se esgota; esse pêndulo en-

contra-se no meu gabinete de trabalho, há três anos e meio, e

nunca esteve parado.

Ontem eu tinha alguns amigos em casa e fazia-se música numa sala que não era aquela em que se encontra o pêndulo.

De repente, vi o meu relógio e verifiquei que marcava 11

horas e 40 minutos; não sei por que, em seguida, e pela pri-

meira vez desde que possuo o referido pêndulo, lembrei-me

de que a pilha estava carregada apenas para mais alguns me-ses e que teria de substituí-la por outra, pois era possível que

ela não chegasse aos quatro anos de marcha. Em seguida não

pensei mais nisso.

Meia hora depois, como os meus amigos tivessem saído,

entrei no meu gabinete de trabalho e qual não foi a minha surpresa quando vi o pêndulo elétrico, em movimento havia

três anos e meio, parado exatamente nas 11 horas e 40 minu-

tos! De resto, a pilha não estava esgotada e bastou dar um impulso ao balanceiro para que o pêndulo continuasse a mo-

ver-se.

Parché-Banès.”

Assim como o observador, não encontro nenhuma explicação para este fato singular, a não ser a de que o nosso espírito perce-

be certas coisas por faculdades ainda desconhecidas. Podería-

mos supor que, tendo o pêndulo parado realmente, o sábio enge-nheiro foi surpreendido, inconscientemente, por esta parada e,

também inconscientemente, olhou para o relógio e pensou no

aludido pêndulo, tudo isso por acaso!... Mas não; a sensação foi experimentada numa outra sala, onde as pancadas do pêndulo se

não ouviam. Além disso, que é o acaso? Um véu perante expli-

cações desconhecidas. Por que se deteve o pêndulo, se não estava esgotada a pilha? Grão de areia? Falta de lubrificação?

Fadiga elétrica? Outras hipóteses ainda? Para a correspondência

psíquica a interpretar, essas explicações não satisfazem.

Eis o segundo fato apontado na mesma carta:

“Há um ano, no leve sono do fim duma noite, vi em sonho

uma pessoa de Tunes que mal conhecia, por havê-la encon-

trado duas vezes durante oito anos que passei na Tunísia.

Havia nove anos que eu já não residia naquela região e, por-tanto, dez a quinze que eu não via pessoa em que, repito,

nunca tinha pensado; era para mim um indiferente, com o qual não mantinha relações. Tornava-se, pois, extraordinário

que a sua lembrança me acudisse em sonho.

Ora, nessa manhã mesmo, uma hora depois da minha che-gada ao escritório, entregaram-me o cartão de visita dessa

pessoa que, viajando em Marrocos e recordando-se, tão va-gamente como eu, de me ter visto em Tunes, vinha saber, de

passagem, se eu continuava ainda aqui. Na hora em que tive

o sonho, o navio que trazia o indivíduo mencionado a Tan-ger estava no porto, mas eu nem sequer disso desconfiava e

ainda menos que esta personagem estivesse a bordo.

Não sei se estas duas anedotas o interessarão, mas assegu-ro-lhe a sua autenticidade absoluta.

Sabe também que sou um “cientista” e que relaciono as minhas sensações.

Se se calcular a probabilidade de que um desses fatos, ou ainda a reunião dos dois, seja produzida pelo acaso, achar-

se-á que ela é infinitamente pequena.

Parché-Banès.”

Para este segundo caso, temos um começo de explicação pe-

las ondas etéreas, das quais falaremos adiante, no capìtulo “Te-

lepatia”.

O que devemos aceitar, sem a menor dúvida, é que à ciência

do futuro caberá explicar as faculdades da alma, desconhecidas

ainda pela ciência atual ou insuficientemente estudadas.

As páginas seguintes vão tratar desses estudos, introduzindo-

lhes as distinções necessárias: vontade atuando por sugestão mental; telepatia e transmissões psíquicas a distância; visão sem

os olhos, pelo espírito; visão do futuro.

Esses documentos positivos demonstrarão, todos eles, a exis-

tência espiritual da alma independente das propriedades físicas dos sentidos.

A alma e o corpo são duas substâncias distintas, dotadas de

atributos diferentes.

CAPÍTULO V

A vontade agindo sem a palavra

e sem qualquer sinal, à distância

– Magnetismo. – Hipnotismo.

– Sugestão mental. – Auto-sugestão.

“A ciência é obrigada, pela lei eterna da honra, a encarar de frente

todo problema que a ela francamente

se apresenta.”

Sir William Thomson

Entre as diversas manifestações do nosso ser psíquico, uma

das mais notáveis é, seguramente, a ação da vontade humana sem o concurso da palavra ou de algum sinal, e a distância.

A vontade é uma faculdade essencialmente imaterial, diferen-

te do que se entende geralmente por propriedades da “matéria”.

Podeis atuar sobre o cérebro de outra pessoa pela tensão de

vosso espírito. Num teatro, numa igreja, a alguns metros atrás dela, podereis obrigá-la a voltar-se sem que suspeite da vossa

ação, sem conhecer a vossa presença. A experiência é muito

vulgar e, excluindo os casos provenientes do acaso, ainda fica um número respeitável de averiguações certas. Acontecerá o

mesmo pelo que respeita a uma pessoa desconhecida.

Tratando-se de individualidade do conhecimento do operador,

já relacionada com ele, a averiguação é incomparavelmente mais freqüente. Nem por isso prova menos a ação da vontade a distân-

cia.

A crítica materialista alegará que se trata aqui da ação de um

sentido ignorado pertencente ao cérebro e que tal ação não prova a sua origem espiritual. É fácil replicar à objeção. O cérebro é

um órgão material. É sempre a história do aparelho elétrico. Atrás do aparelho, no fundo do cérebro, há uma personalidade.

Quando falo, é porque penso falar; a linguagem é efeito e não

causa. Imaginar um aparelho, um cérebro dotado de uma perso-

nalidade mental responsável, voluntária, caprichosa, raciocinan-

te, refletida, é criar uma hipótese sujeita à demonstração. Não teremos nós a nossa própria sensação para nos revelar a verdade?

No exercício dos cinco sentidos – a vista, a audição, o olfato,

o paladar, o tato – o movimento vibratório vai do mundo exterior

ao cérebro, transmitindo-se pelos nervos óptico, auditivo, olfati-vo, tátil; na vontade atuando a distância, na transmissão do

pensamento, o movimento mencionado vai, pelo contrário, do

cérebro ao mundo exterior. No fundo do cérebro existe a causa ativa, o espírito.

Têm-se escrito obras completas sobre a sugestão mental, e os

exemplos que a comprovam são inúmeros. Nas experiências

realizadas por Charcot, na Salpêtrière, e pelo Dr. Luys, na Chari-té, eu mesmo observei, outrora, muitos. Um dos casos mais

notáveis é talvez ainda o das experiências de Pierre Janet, no

Havre, numa excelente camponesa, mãe de família e não nevro-pata. O que ele lhe ordenava, a muitos quilômetros de distância,

recebia-o ela mentalmente, obedecendo-lhe com uma precisão

absoluta e sem que disso pudesse ser avisada por outra qualquer maneira.

24

Indica a vontade uma personalidade psíquica, uma individua-

lidade, um espírito, uma alma? É esta interpretação mais certa do

que a das propriedades físico-químicas pertencentes à matéria cerebral? Existe o eu? Exposta a questão, cabe resolvê-la.

Vamos verificar que, nos fatos, observados rigorosamente, de

sugestão mental, de ordens transmitidas de um ser a outro pelo

pensamento, sem palavras, sem gesto, pela pura vontade, mani-festa-se, com evidência, a personalidade humana.

As experiências muito conhecidas do Dr. Ochorowicz permi-

tem que o leitor faça o seu juízo imparcialmente, com conheci-

mento de causa.

O clínico referido tratava uma senhora padecente de hístero-

epilepsia, cuja enfermidade já antiga se complicava com acessos

de mania suicida.

Essa dama, de 27 anos, forte e bem constituída, aparentava

perfeita saúde. O seu temperamento ativo e alegre aliava-se a

uma extrema sensibilidade moral interior, isto é, sem sinais

externos. Caráter franco por excelência, profunda bondade,

propensão para o sacrifício. Inteligência pouco vulgar, muito prendada, sentido de observação, por vezes falta de vontade,

indecisão penosa, depois firmeza excepcional; a menor fadiga

moral, uma impressão inesperada de pouca importância, agradá-vel ou desagradável, reflete-se sobre os vasos motores, ainda que

lenta e insensivelmente, e motiva um ataque, acesso ou síncope

nervosa.

Prossegue o Dr. Ochorowicz:

“Uma noite, terminado o seu ataque (incluindo a fase do

delírio), a doente adormece tranqüilamente. Acordando de

súbito e vendo-nos sempre perto dela, a mim e à sua amiga,

pede-nos que partamos, que nos não cansemos inutilmente por ela. Tanto insistiu nisso que, para lhe evitarmos uma cri-

se nervosa, saímos. Descia a escada vagarosamente (ela mo-

rava no 3º andar) e parei algumas vezes, aplicando o ouvido, turbado por mau pressentimento (dias antes havia-se ferido

bastante). Já no pátio, parei ainda uma vez, pensando se de-

via partir ou não. De repente, abriu-se a janela com fragor e vi que o corpo da doente se debruçava sobre o peitoril, num

movimento rápido. Precipitei-me para o lugar onde ela podia

cair e maquinalmente, sem ligar ao fato a menor importân-cia, concentrei a minha vontade com o fim de me opor à

queda. Era uma insensatez; imitava com isto os jogadores de

bilhar que, prevendo que vai falhar a carambola, tentam de-ter a bola com gestos ou palavras.

Entretanto, a doente, já inclinada para o vácuo, parou e re-cuou lentamente, em movimentos bruscos.

A mesma manobra repetiu-se cinco vezes seguidas, até que a doente, fatigada, ficou imóvel, as costas apoiadas con-

tra a janela sempre aberta.

Não me podia ver; eu estava na sombra; era noite. Nesse momento, a Srta. X., amiga da enferma, acudiu a prendeu-a pelos braços. Ouvi-as debaterem-se e subi depressa as esca-

das para socorrê-las. A doente tinha um acesso de loucura.

Não nos reconheceu, tomando-nos por ladrões. Não conse-

gui retirá-la da janela senão fazendo-lhe a pressão dos ová-

rios que a forçou a cair de joelhos. Procurou morder-me em diversos momentos, e só depois de muito lutar, vinguei con-

duzi-la ao leito. Por fim adormeci-a.

Caída em sonambulismo, as suas primeiras palavras foram estas:

– Obrigada e perdão!

Contou-me então que queria a todo transe atirar-se pela janela, mas que sempre que isso tentava se sentia detida por

uma força que partia de baixo.

– Como assim?

– Não sei...

– Suspeitava da minha presença?

– Não. Era justamente porque o julgava longe que eu que-ria realizar o meu intento. Parecia-me entretanto, por mo-

mentos, que o senhor estava a meu lado ou atrás de mim, e que se opunha a que eu caìsse.”

Eis outra experiência do mesmo autor.

“Tinha por costume adormecer a doente de dois em dois

dias e deixá-la mergulhada em sono profundo, enquanto to-

mava as minhas notas. Adquirira a certeza, depois de dois meses de experiência, de que não se mexeria antes que eu

me aproximasse dela para provocar o sonambulismo, propri-

amente dito. Mas nesse dia, depois de fazer algumas anota-ções e sem mudar de posição (conservava-me a alguns me-

tros dela, fora do seu campo visual, com o meu caderno nos

joelhos e a cabeça apoiada na mão esquerda), fingi que es-crevia, fazendo correr a pena, mas, interiormente, concentrei

a minha vontade numa ordem dada mentalmente.

1 – levantar a mão direita.

(Olhava a doente através dos dedos da mão esquerda, a-poiada na fronte.)

1º minuto: ação nula.

2º minuto: agitação na mão direita.

3º minuto: aumento da agitação; a doente franze as so-brancelhas e levanta a mão direita.

Confesso que esta experiência me comoveu mais do que qualquer outra. Recomeço:

2 – Levantar-se e dirigir-se para mim.

Reconduzi-a ao seu lugar sem nada dizer.

Ela carrega as sobrancelhas, agita-se, levanta-se devagar e,

dificilmente, avança para mim, de mão estendida.

3 – Tirar a pulseira da mão esquerda e entregar-ma.

Ação nula.

Ela estende a mão esquerda, levanta-se e dirige-se para a Srta. X e depois para o piano.

Toco-lhe no braço direito e, provavelmente, puxo-o um pouco na direção do seu braço esquerdo, concentrando o

meu pensamento na ordem dada.

Ela tira a pulseira, parece refletir e entrega-ma.

4 – Levantar-se, aproximar a poltrona da mesa e sentar-

se ao nosso lado.

Franze as sobrancelhas, levanta-se e caminha para mim.

– Devo ainda fazer alguma coisa? – diz ela.

Procura..., toca no tamborete, remove uma xícara de chá, recua, toma a poltrona, puxa-a para a mesa com um sorriso

satisfeito e senta-se, muito cansada.”

Todas essas ordens foram dadas mentalmente e sem gestos, sem uma palavra.

Há na obra de Ochorowicz 41 experiências da mesma ordem,

em seguida a esta.

Os meus leitores já conhecem as que publiquei em O Desco-

nhecido, no capítulo VI, que trata da ação psíquica de um espíri-

to sobre outro.

As experiências concludentes feitas sobre a ação da vontade e

a sugestão mental não podem ser atribuídas à matéria, a combi-

nações químicas, a movimentos mecânicos: elas têm como fonte

um pensamento, uma causa mental, um princípio espiritual

agindo sob forma ainda desconhecida, mas da qual a telegrafia e a telefonia sem fios representam imagem a interpretar.

Esses fatos de sugestão mental foram estudados, há muito

tempo, pos Mésmer, e antes dele por Van Helmont. Eis, entre

outras, uma experiência notável relatada por uma testemunha judiciosa, o sábio Seifert, que depois de tratar Mésmer de charla-

tão (sob a influência, principalmente, dos fatos a que nos vamos

referir) aceitou por fim a sua teoria.

A cena passa-se em 1775, na Hungria, num velho castelo

do Barão Horetcky de Horka. Mésmer, tratando o barão pelo

magnetismo, socorria ao mesmo tempo outros doentes que

vinham consultá-lo. Seifert julgava tudo isso uma blague.

Um dia trouxeram-lhe os jornais; num deles, encontrou

uma narrativa sobre Mésmer, segundo a qual ele provocava convulsões em alguns epilépticos, apesar de escondido num

quarto próximo e movendo apenas um dedo na direção dos

doentes.

Seifert chega ao castelo com o jornal na mão e encontra

Mésmer cercado de fidalgos. Perguntou-lhe se era exato o que dele contava a gazeta e Mésmer respondeu afirmativa-

mente. Então, muito nervoso, Seifert exige, ou pouco menos,

uma prova experimental da ação através de um muro.

Mésmer conservou-se de pé, a três passos da parede, en-

quanto Seifert se colocou à entrada da porta entreaberta, a fim de poder observar o magnetizador e o magnetizado ao

mesmo tempo.

Mésmer fez primeiro diversos movimentos retilíneos de um lado para o outro, com o dedo indicador da mão esquer-

da, na direção presumida do enfermo, que começou logo a queixar-se, apalpando as costas e parecendo sofrer.

Seifert perguntou-lhe:

– Que sente?

– Não estou bem.

Seifert, pouco satisfeito com esta resposta, exige uma des-crição mais clara dos seus males.

– Parece-me – diz o paciente – que tudo oscila em mim de través, à direita e à esquerda.

Para evitar perguntas, ordena-lhe que declare as mudanças que o seu corpo ia experimentando, sem esperar as suas or-

dens nesse sentido. Alguns minutos depois, Mésmer fez mo-vimentos ovais com o dedo:

– Agora tudo dá voltas em redor de mim, como num círcu-lo – disse o doente.

Mésmer detém-se e o doente declara, no mesmo instante, que nada mais sente. E assim de seguida, Todas essas decla-

rações se correlacionavam perfeitamente, não só com os

momentos de ação ou dos intervalos, mas ainda com o cará-ter das sensações que Mésmer queria provocar.”

25

Vi realizar as mesmas experiências pelo meu saudoso amigo, Albert de Rochas, na Escola Politécnica de Paris, pelo Dr. Ba-

rety, em Nice, e por outros investigadores. A ação da vontade a distância não é duvidosa, como o sabem os que estudaram esse

assunto.

Van Helmont, grande médico e grande sonhador do século

XVII, já havia apresentado a mesma questão antes de Mésmer e é muito explícito nesse ponto. Ele acredita que todo homem é

capaz de influir nos seus semelhantes a distância, mas que ge-

ralmente essa força se conserva adormecida em nós e abafada pela “carne”. Para ter bom êxito, carece de certa concordância

entre o operador e o paciente. Este último deve ser sensível e

exercitado na sua sensibilidade, a qual vai ao encontro da ação sob a influência de sua imaginação interior. Diz Van Helmont:

“É principalmente na cavidade do estômago que esta ação

mágica se faz sentir, pois tal sensação nesse lugar é mais de-

licada do que nos dedos e mesmo nos olhos. Às vezes o pa-ciente nem pode até suportar a aposição da mão no sítio

mencionado.”

Adiei até agora o trabalho de desvendar um grande misté-rio; é que existe no homem uma tal energia que, por sua úni-

ca vontade e pela sua imaginação, ele pode atuar fora de si, exercer influência durável num objeto muito distante. Só es-

se mistério esclarece suficientemente muitos fatos difíceis de

se compreender e que se prendem, com o magnetismo de to-dos os corpos, ao poder mental do homem e à sua domina-

ção do Universo.” 26

Van Helmont viveu de 1577 a 1644. Se abrirmos a obra de Kírcher, Magnes, sive de Arte magnética, publicada em Roma em 1641, no capítulo sobre o magnetismo animal, encontramos

exemplos de “simpatia e antipatia”, da “faculdade magnética dos

membros humanos”, das aplicações à medicina do “magnetismo da imaginação” e do “magnetismo da música”.

Essas experiências psíquicas não são de hoje. Elas remontam

a Jesus Cristo, a Pitágoras, e mais longe ainda.

Mas que vem a ser sugestão mental?

Os magnetizadores pensam que a sua vontade concentra o

“fluido” e em seguida o projeta exteriormente numa direção aproximativa, como um pacote de ópio. Esse fluido é tão inteli-

gente e tão amável que corre muito, encontra o seu caminho,

contorna as paredes e atinge o indivíduo sugestionado. Invade-o, e desde que ele está convenientemente saturado, declara-se o

sono, tanto ao longe como de perto. É claro! tão claro como a

antiga explicação da ação do ópio, o qual adormecia “porque possuía uma virtude soporífera”, dizia Molière.

Mas, para isso, “seria preciso provar primeiro que o fluido

existe, escreve a tal respeito Ochorowicz, pois que pode ser

projetado, que sabe encontrar, em seguida, o seu caminho e, por fim, que se deterá exatamente no sistema nervoso do sugestiona-

do”. Parece-me prudente limitarmo-nos à expressão força psí-

quica que propus antes de 1865.27

A ação psíquica de um espírito sobre outro não é duvidosa,

seja qual for o modo de transmissão.

As idéias viajam? Elas transmitem-se, por vibrações, no éter.

Sabemos já que as idéias derramam por toda parte o seu correla-

tivo dinâmico, isto é, ao redor da emissão. Não é uma substância

que se transporta, é onda que se propaga. A ação é geral, mas

mantém-se mais ou menos insensível, antes de encontrar um meio análogo e todas as condições necessárias para a transfor-

mação reversiva. A onda parte de uma vontade A; um cérebro B

reúne essas condições; a idéia correspondente atua nele, que adormece, se o seu magnetizador assim o ordenar.

Poder-se-ia objetar que com todos os cérebros sensíveis que

se encontrassem no círculo da ação se haveria de dar o mesmo.

Não se dá, porque todos os cérebros não são regulados nem se encontram em relação com o operador. Essa relação consiste no

fato de a tensão dinâmica do sugestionado corresponder à do

operador.

Propôs-se, para explicar a transmissão do pensamento e a su-

gestão mental, a hipótese da transmissão por indução, semelhan-

te à de uma corrente elétrica sobre outra, sem contato material,

ou às das ondas hertzianas, como na telegrafia sem fios.

A ação mental a distância pode ser consciente ou inconscien-

te.

O que os psicologistas propunham com timidez, há trinta a-

nos, como casos de observação a discutir, e dos quais mais de

um céptico, certo de seu saber, sorria com desdém, não se discu-te hoje, porque vemos produzirem-se transmissões análogas na

prática da telegrafia sem fios, de mais recente invenção, que

vamos resumir:

Nessa telegrafia, talvez ainda mais maravilhosa do que os fe-

nômenos telepáticos, utilizam-se as ondas hertzianas produzidas

pela descarga oscilante de poderoso condensador, alimentado por

potente gerador de energia elétrica. Essas ondas propagam-se no espaço com a velocidade de 300.000 quilômetros por segundo,

28

irradiam da antena ligada ao aparelho transmissor e são recebi-

das, a distância, por meio de outra antena.

A antena consiste essencialmente em um ou muitos fios per-

feitamente isolados eletricamente de qualquer contato com

objetos exteriores, e em comunicação somente com o aparelho transmissor ou receptor.

As ondas hertzianas não atuam sobre nós; nenhum dos nossos

sentidos pode percebê-las. É preciso, pois, um aparelho especial

para ouvi-las; esse aparelho é um detector. Neste a onda hertzia-na transforma-se, por assim dizer, e torna-se sensível ao nosso

ouvido por meio de um receptor telefônico.

Essas ondas são afastadas uma das outras – como as ondas

encíclicas produzidas na superfície da água pela queda de um corpo sólido – por uma certa distância chamada extensão de

onda, a qual se pode fazer variar no posto transmissor por meio

de dispositivos especiais. Ora, para obter na recepção a maior intensidade possível e nitidez perfeita de som é necessário que os

aparelhos receptores sejam uníssonos ou estejam de acordo com

os aparelhos transmissores. Na T.S.F. diz-se que os aparelhos devem ser sintonizados. Esse fenômeno é idêntico ao da resso-

nância em acústica.

Tal acordo faz-se, no posto receptor, intercalando entre a an-

tena e o detector uma bobina de self-indutor, com cursor regula-dor.

Encontram-se por essa forma as posições correspondentes ao

som máximo do posto que se quer receber e, nas montagens de

precisão, consegue-se perfeitamente eliminar os outros postos que enviam as suas mensagens ao mesmo tempo, mas com

extensões de ondas diferentes. Essas ondas agem sobre o apare-

lho receptor em posições diversas dos cursores das bobinas de self e em capacidades variadas dos condensadores.

As diferentes transmissões enviadas com extensões de ondas

várias percorrem o espaço simultaneamente, sem que nenhum

ouvido as possa perceber; mas interceptam-se as mensagens que se quiser, regulando o cursor, e ouve-se o que se pretende ouvir,

excluindo o resto, como duas pessoas conversando juntas se

ouvem entre si.

Esta moderna invenção da telegrafia sem fios – e agora da te-

lefonia sem fios – ajuda-nos a compreender o modo de transmis-

são do pensamento a distância.

A Ciência fará ainda outras descobertas que modificarão as

nossas interpretações. O certo é que se procede erradamente,

negando-se o que não se pode explicar. Mesmo sem essas inven-

ções da Física contemporânea, a vontade humana poderia exer-

cer-se a distância e provar-nos assim que existe, servindo-se do

cérebro como aparelho.

Um dia, durante a guerra alemã de 1914-1918, comunicava-

me do meu observatório de Juvisy com a Torre Eiffel, pela

telegrafia sem fios, quando fui surpreendido por uma conversa

entre dois interlocutores situados não sei em que ponto. A voz era tão clara como num salão ou numa sala de conferências. Essa

telefonia sem condutor, então desconhecida, pareceu-me mais

surpreendente e mais estupenda do que a transmissão dos peque-nos choques telegráficos do sistema Morse, porque era uma

transmissão pelas ondas hertzianas através do éter, a distâncias

em que o som não podia ser ouvido e, como no telefone (nin-guém pensa nisto), não é a palavra que se transmite, mas uma

onda elétrica que se transforma em palavra!

Sabemos, por outro lado, que a transmissão de pensamentos

entre duas pessoas mais ou menos afastadas uma da outra é experimentalmente certa.

Sabemos também, pelas observações telepáticas, que o espíri-

to de um moribundo, a distância, atua às vezes com tal intensi-

dade que o cérebro ao qual o seu pensamento é destinado se impressiona a ponto não só de ouvi-lo, mas ainda de vê-lo, sob

forma reconstituída por essa sensação, e às vezes com acompa-

nhamento de ruídos formidáveis.

Há nisso, para nossa contemplação filosófica, todo um novo

aspecto do Universo de que não se suspeitava há apenas trinta

anos.

A matéria inerte desaparece sob a radiação invisível da ener-

gia; o que existe, na vida cósmica, é a energia, a força etérea, o movimento.

Escrevi em O Desconhecido (no final do capítulo VI):

“A nossa força psìquica dá sem dúvida origem a um mo-

vimento etéreo, que se transmite ao longe como todas as vi-brações do éter, e se torna sensível para os cérebros em har-

monia com o nosso. A transformação de uma ação psíquica

em movimento etéreo, e reciprocamente, pode ser análoga à

que se observa no telefone, onde a placa receptiva, idêntica à

placa de transmissão, reconstitui o movimento sonoro

transmitido, não pelo som, mas pela eletricidade. Mas isto são apenas simples comparações.

A ação de um espírito sobre outro, a distância, sobretudo em circunstâncias tão graves como a da morte, e da morte

repentina em particular, a transmissão do pensamento, a su-

gestão mental, a comunicação a distância, não são mais ex-traordinárias do que a ação do ímã sobre o ferro, a atração da

Lua sobre o mar, a transmissão da voz humana pela eletrici-

dade, a revelação da constituição química de uma estrela pe-la análise da sua luz, e todas as maravilhas da ciência con-

temporânea. Apenas as transmissões psíquicas são de ordem

mais elevada e podem colocar-nos no caminho do conheci-mento do ser humano.”

Estas linhas datam de 1899. O mesmo podemos hoje pensar exatamente, reforçando ainda estas comparações, confirmadas e

desenvolvidas pelas descobertas recentes da telegrafia sem fios, e sobretudo pela transmissão da palavra, na telefonia sem fios.

Uma ação da vontade, agindo unicamente pelo pensamento,

manifesta-se na seguinte experiência realizada pelo meu colega e

amigo, o Sr. Schmoll, sobre sua mulher:

“Em 9 de julho de 1887, por um tempo quente e tormento-

so, fazia eu a sesta balouçando-me numa rede suspensa na

sala de jantar e lendo uma brochura do Sr. Edmund Gurney.

Eram três horas da tarde. Perto de mim, minha mulher des-cansava numa poltrona e dormia profundamente. Vendo-a

assim, ocorreu-me a idéia de ordenar-lhe mentalmente que

despertasse.

Olhei-a fixamente e, concentrando toda a minha vontade

numa ordem imperiosa, gritei-lhe pelo pensamento: “Acor-da” Quero que acordes!” Passados três ou quatro minutos

sem nada conseguir – pois ela continuava a dormir sossega-

damente –, renunciei à experiência sem a menor surpresa do seu mau êxito. Entretanto, volvidos alguns minutos mais, re-

comecei a experiência, sem obter melhor resultado do que da

primeira vez. Continuei, pois, a ler depressa, esquecendo por

completo a minha tentativa infrutífera.

De repente, dez minutos mais tarde, minha mulher desper-tou, esfregou os olhos e, fitando-me de modo sobressaltado e

mesmo aborrecido, disse-me:

– Que me queres? Por que me acordas?

– Eu? Não te disse nada.

– Disseste, sim! Estiveste a atormentar-me para que eu me levantasse.

– Gracejas! Não abri a boca.

– Então, teria eu sonhado? – exclamou, numa hesitação –

Espera! É verdade, lembro-me agora; sonhei isto simples-mente.

– Vejamos. Que é que sonhaste? Talvez seja interessante! – acudi eu, sorrindo.

– Tive um sonho bem desagradável... – recomeçou ela – Achava-me na Praça de Courbevoie. Fazia muito vento e o

tempo estava pesado. De súbito, vi uma forma humana (não

sei se homem ou mulher) envolvida num lençol branco, rolar pelo declive. Esforçava-se inutilmente por levantar-se; quis

correr em seu socorro, mas uma influência de que não dava

conta, e que só compreendi depois, impediu-me de o fazer. Eras tu que querias que eu abandonasse absolutamente as

imagens de meu sonho. “Vamos, acorda”, gritavas, com for-

ça; mas eu resistia e tinha a consciência de lutar com vanta-gem contra o despertar que me querias impor. Entretanto,

quando acordei, há pouco, a tua ordem: “Vamos! acorda!”

ainda soava aos meus ouvidos.

Minha mulher ficou espantada quando soube que eu lhe

havia ordenado, realmente, pelo pensamento que acordasse. Não sabia que livro eu lia, e os problemas psíquicos nunca

tiveram grande interesse para ela. Nunca fora hipnotizada

nem por mim nem por outros.

A. Schmoll

6, Rua de Fourcroy, Paris.”

Possuo muitas observações do mesmo gênero nos meus do-

cumentos. Certamente que nem tudo se explica. Por que motivo

haveria dez minutos de intervalo entre a ordem e o resultado? O Sr. Schmoll tem o hábito do método científico. A ele se devem

excelentes observações acerca do Sol; foi meu colaborador na

fundação da Sociedade Astronômica de França, em 1887. Esse fato não pode ser posto em dúvida, nem atribuído a uma coinci-

dência fortuita.

Ver, pelo pensamento, no pensamento, é freqüente nos so-

nâmbulos, como se pode verificar nas obras de Deleuze, Du Potet, Lafontaine, Charpignon.

O último é até muito afirmativo nesse ponto:

“Temos formado em diversas ocasiões, em nosso pensa-

mento, imagens fictícias, e os sonâmbulos que interrogamos

vêem essas imagens. Obtivemos muitas vezes uma palavra, um sinal, uma ação, segundo uma pergunta mental. Outros,

dirigindo aos sonâmbulos perguntas, em línguas estrangeiras

ignoradas dos magnetizados, obtiveram respostas que indi-cavam não o conhecimento do idioma, mas o do pensamento

daquele que interrogava, pois se o experimentador falava

sem compreender, o sonâmbulo era incapaz de apanhar o sentido da pergunta.

O fato de se adormecer a distância um indivíduo e de se lhe sugerir, nesse estado, atos de que ele se desempenha da

mesma forma que sob a influência de uma sugestão verbal,

foi muitas vezes experimentado com êxito pelos antigos magnetizadores.”

O meu amigo de há cinqüenta anos, o Dr. Macário, conta 29

que uma tarde o Dr. Gromier, depois de haver adormecido pela

magnetização uma senhora histérica, pediu ao marido dessa mulher licença para fazer uma experiência, e eis o que se deu:

Sem uma palavra, o Dr. Gromier levou-a para o mar, men-

talmente, bem entendido; a doente manteve-se quieta en-

quanto o mar esteve calmo; mas, depois que o magnetizador lhe inculcou o pensamento de terrível tempestade, a doente

pôs-se a gritar desesperadamente, agarrando-se aos objetos

que a cercavam; a voz, as lágrimas, a expressão da fisiono-

mia, denotavam terror profundo. Então, fiz abrandar suces-

sivamente as vagas, sempre pelo pensamento, diminuindo com lentidão o movimento do navio, e a calma voltou ao es-

pírito da sonâmbula, apesar de conservar a respiração ofe-

gante e de um tremor nervoso lhe agitar os membros. “Não me torne a levar ao mar – exclamou ela pouco depois –; te-

nho muito medo, e o miserável comandante não me queria

deixar subir ao tombadilho!”

“Essa exclamação surpreendeu-me tanto mais – diz o Dr.

Gromier –, quanto eu não tinha pronunciado uma única pa-lavra que lhe pudesse indicar a natureza da experiência que

tencionava fazer.”

Essa faculdade, a transmissão do pensamento – observa o Dr. Macário –, explica um grande número de fenômenos de

sonambulismo, que sem ela seríamos levados a atribuir as influências de ordem sobrenatural; explica, por exemplo, a

aptidão para as línguas que se observa algumas vezes, ao

que se afirma, em alguns sonâmbulos, isto é, a faculdade de compreenderem o que se lhes diz num idioma por eles igno-

rado, ou de responderem com expressões pertencentes a uma

língua que não conhecem, pois, se é exato que o sonâmbulo percebe o nosso pensamento, pouco importa que se lhe fale

grego, latim ou árabe, visto não serem aos vocábulos que ele

atende. Lê em nosso pensamento, e conseguintemente deve compreender da mesma forma que se lhe falassem na lin-

guagem materna. Os fatos confirmam essa teoria. O Sr.

Gromier, já citado, fez por diversas vezes perguntas em lín-gua desconhecida do sonâmbulo. Este não compreendeu i-

mediatamente; mas, persistindo a vontade do magnetizador,

acabou por entender, respondendo convenientemente à inter-rogação que lhe era formulada. E quando o magnetizador se

lhe dirigia em linguagem que ela mesmo ignorava, isto é, por expressões de que não conhecia o sentido, o sonâmbulo

nada respondia, devido ao fato de o magnetizador aludido

não ligar nenhum sentido às palavras que pronunciava.”

Reuni, pela minha parte, testemunhos irrecusáveis dessa compreensão, muito contestada, das línguas desconhecidas do

sugestionado.

Outra forma de transmissão experimental do pensamento

consiste em fazer, fora da vista do magnetizado, um desenho que

este deve reproduzir.

Essas experiências são numerosas (ver O Desconhecido, capí-

tulo VI).

O fenômeno da transmissão do pensamento é fato averiguado

e aceito hoje pela unanimidade dos psicólogos que se dão ao

trabalho de submetê-lo a estudo consciencioso e profundo, e só

espíritos pertinazes e superficiais podem persistir em contestá-lo, depois de tantas experiências e provas decisivas.

A telepatia consiste essencialmente no fato de uma impressão

física intensa, manifestando-se em geral de forma imprevista

numa pessoa normal (isto é, não sujeita a perturbações funcio-nais ou a alucinações), seja durante o estado de vigília, seja

durante o sono, impressão que se encontra em concordância com

um acontecimento ocorrido a distância.

Observamos que, na telepatia espontânea, aquele que recebe a

impressão está geralmente em seu estado normal, ao passo que

quem a envia atravessa um estado de crise anormal: acidente,

angústia, desfalecimento, letargia, morte, etc.

As observações anteriores comprovam a ação da vontade hu-

mana sem a palavra, sem a colaboração dos sentidos físicos.

A ação do espírito sobre a matéria, de há muito estudada, não

se mostra talvez com tanta evidência como nos fenômenos

produzidos pela auto-sugestão sobre certas perturbações da circulação do sangue, tais como rubores, congestão cutânea,

vesicação, hemorragias, cicatrizes sanguinolentas, etc. Que a

alma seja diferente do corpo, que ela o dirija, que o espírito atue sobre a matéria, que o pensamento, a idéia, mesmo a mais sutil,

produzam efeitos materiais, que a imaginação mental baste em certas condições para criar órgãos ou alterá-los, é o que se torna

evidente por tão numerosos e variados exemplos, que é impossí-

vel conservar a menor dúvida sobre esse ponto capital. Podemos notar, entre esses exemplos, os estigmas marcados sobre a pele,

com afluxo sanguíneo, só pela idéia, a fé, a convicção. Eis aí S.

Francisco de Assis, alma mística, de piedade extraordinária, que

renuncia ao mundo material, retira-se para uma floresta, consa-gra-se à prece, reúne alguns homens piedosos aos quais dá, por

humildade, o nome de Irmãos Menores (franciscanos), vai pregar

na Síria, no Egito, volta à Itália, submete-se a jejum rigoroso, a uma vida ascética, em virtude da qual é vítima de visões (imagi-

nárias) nas quais, entre outras, lhe aparece um Serafim de asas

matizadas que o fascina e lhe imprime no corpo os sinais da crucificação de Jesus: seus pés e suas mãos são varados por

pregos, o seu flanco abre-se como se houvesse recebido um

ferimento de lança e esses estigmas persistem.

É evidente que há nisto ação psíquica da alma sobre o orga-

nismo, e esse fato é de importância tal, sob o ponto de vista da

fisiologia materialista, que foi negado redondamente. “Lenda

religiosa” dizia-se: “É exagerado; não é verdade.” Como isto se deu em 1220, atribuía-se à credulidade da Idade Média. Que o

atesta? perguntava-se: são devotos, crentes que tudo aceitam de

olhos fechados.”

Ora, este exemplo de um santo canonizado, ao qual foi atribu-

ído mais de um milagre, não é único no gênero. O estudo que

pretendo realizar nesta obra forneceu-me muitos outros.

O poder da vontade, da força mental, da alma, da idéia, da au-

to-sugestão, a manifestação da ação do espírito sobre a matéria, patenteiam-se com toda a evidência nos fenômenos fisiológicos

dos estigmatizados. Negaram-se esses fenômenos, viu-se neles

apenas fraude, velhacaria, credulidade. Era um erro. Tais estig-mas produzem-se, realmente. Formam-se buracos na palma das

mãos desses alucinados, nos pés, nas costas, e as chagas, ima-

gens das do Crucificado, sangram, na realidade. Esses exemplos são numerosos, incontestáveis e sobejamente verificados.

Eis alguns deles:

Uma rapariga, nascida em 16 de outubro de 1812, em Kaltom

(Tirol), próximo de Botzen, Maria Mari, era dum misticismo igual ao de S. Francisco de Assis.

Admiravam-na tanto na sua aldeia que fez sua primeira co-

munhão aos dez anos, e com tal fervor, escreve um seu biógrafo,

“que, apenas recebeu o pão eucarìstico, possuída das doçuras

celestes além das forças naturais, caiu desfalecida nos braços de

sua mãe e desmaiou.” De ano para ano, a sua devoção foi mais ardente. Passou a vida em preces, em adoração, comungou

constantemente, fez voto de castidade.

Há justamente, em Kaltom, um convento de S. Francisco,

com irmãs da Ordem Terceira (não claustrado), onde se fez inscrever o nome de Teresa, em honra da mística Santa Teresa.

Aos 18 anos, seu corpo sofre e é feliz oferecendo seus sofrimen-

tos a Deus. Vítima privilegiada, tem êxtases quase diariamente, lança-se de joelhos à beira do leito e aí fica, insensível, dias

inteiros, as mãos erguidas, os olhos levantados para o céu, con-

templando extaticamente o divino Crucificado. A partir de 2 de fevereiro de 1834, festa da Purificação, os estigmas aparecem-

lhe nas mãos, nos pés, no tronco, atestados por sua família, pelo

seu confessor, pelo seu médico, pelo bispo primaz de Trento, que procede a um inquérito em nome do governo, e por numerosas

pessoas mais. O sangue goteja todas as sextas-feiras, dia em que

assiste pelo pensamento, com convicção absoluta, à paixão de Jesus Cristo.

Um caso análogo de estigmas foi atestado, no Tirol igualmen-

te, em Maria Dominica Lazzári, nascida em 16 de março de

1815, em Capriana de Fiemme, próximo de Cavaléri, a dez horas de Trento, visionária extática, sujeita a freqüentes convulsões.

Desde os 19 anos ela sentia e apresentava chagas da Paixão que

contemplava por visão interna. O sangue gotejava das mãos, dos pés, do lado, do peito, como nos estigmas de S Francisco, e,

além disso, da fronte, marcada pela coroa de espinhos, donde

corria, principalmente às sextas-feiras, com abundância tal, que lhe banhava o rosto (Relatório do cirurgião, Dr. Dei-Cloche).

Uma terceira “virgem do Tirol”, célebre na mesma época,

Crescenzia Nieklutsch, nascida em 15 de junho de 1816 em

Cana, que residiu em Meran, Trento e Verona, apresentou os mesmos sintomas, era extática como as duas precedentes. Foi

aos 19 anos que os estigmas lhe apareceram nas mãos (na festa de Pentecostes, 7 de junho), dias depois nos pés, em seguida na

fronte e finalmente no lado do peito. De todas estas chagas corria

grande quantidade de sangue, principalmente às sextas-feiras.30

Sempre que procurarmos conhecer esses exemplos de auto-

sugestão, encontramo-los em número muito maior do que se pensa.

O poder da imaginação mostra-se, com particular evidência,

nos estigmas de Catarina Emerich. Como não ver aí a idéia

atuando sobre a matéria?

Apesar dos médicos, que disso nada compreendiam, e apesar

dos doutores em ciências físicas e naturais, que negavam tudo

com superioridade, os estigmas de Catarina Emerich são tão

verídicos como as folhas dos olmos sob as quais esses cientistas peroravam.

Examinemos o caso curioso. Extraio este documento de uma

obra em três volumes que me entregou, em janeiro de 1889, a

Sra. Sofia Funck-Brentano, “sobrinha do escritor das visões, Clemente Brentano de la Roche”.

31

Ana Catarina Emerich nasceu na aldeia de Flamske, próximo

da pequena cidade de Coesfeld, na Westphalia, em 8 de setembro

de 1774. Mostrou, desde a sua primeira infância, uma piedade extraordinária.

“Um dia – diz ela –, procurava meditar sobre o primeiro

artigo do sìmbolo “creio em Deus, o Pai todo Poderoso”

(contava então 5 ou 6 anos). Apresentaram-se aos olhos de minha alma quadros do Universo: a queda dos anjos, a cria-

ção da Terra e do paraíso, a de Adão e Eva e a sua desobedi-

ência; tudo me foi mostrado.

Imaginei que todos viam estas coisas da mesma forma que

se vêem os objetos que nos cercam.”

(A sua imaginação era precoce!)

Eis agora o que ela conta do começo de suas visões. Foi a-proximadamente quatro anos antes de sua entrada no convento, e por conseqüência em 1798, aos 24 anos de idade.

Ajoelhada diante de um crucifixo, na capela dos jesuítas

de Coesfeld, rezava com todo o fervor de que era capaz, en-

tregue a uma contemplação cheia de doçura, “quando de re-

pente, afirma ela, vi o meu noivo celeste sair do tabernáculo,

na figura de um moço todo cercado de esplendor. Segurava na mão esquerda uma coroa de flores, e na direita uma coroa

de espinhos, e ofereceu-mas à escolha. Pedi a coroa de espi-

nhos, que ele mesmo pôs na minha cabeça e que eu enterrei com minhas mãos até à fronte. Depois desapareceu e eu sen-

ti desde logo dores violentas em torno da cabeça. Imediata-

mente apareceram feridas, como picadas de espinhos, das quais escorria sangue”. Para que o seu sofrimento se manti-

vesse ignorado, Ana Catarina lembrou-se de descer mais a

sua touca sobre a fronte.

Entrou no convento de Dulmen em 1802 e daí em diante

teve uma vida de êxtases.

Um dia, apareceu-lhe o seu noivo celeste e fez sobre ela o

sinal da cruz. Logo o seu peito ficou marcado por dupla cruz vermelha, de três polegadas de comprimento e meia polega-

da de largura. Em 29 de dezembro de 1912, estava ela na

cama, os braços em cruz, imóvel, extática. O seu rosto queimava. Contemplava a paixão do Redentor e na sua prece

implorava a graça de partilhar tantos sofrimentos. De súbito,

baixou sobre ela uma luz, no centro da qual distinguia Jesus-Cristo crucificado, com suas cinco chagas resplandecentes

como sóis. O coração de Ana Catarina estava hesitante entre

a dor e a alegria; à vista dos estigmas sagrados, o seu desejo de sofrer as dores do Filho de Deus foi tão violento que lhe

pareceu, revestindo forma sensível, penetrar nas chagas do

Salvador. Bem depressa de cada uma delas jorraram três raios de um vermelho púrpura, terminados em setas, que lhe

vararam os pés, as mãos e o lado do peito. Das feridas pro-

duzidas gotejava sangue.

Desde então ela sofreu todas as dores internas e externas

do Cristo na paixão.

A autenticidade desses fatos não se pode negar. Foram verifi-cados por inúmeros visitantes da Alemanha e de outros países.

Como tal acontecimento se tornasse conhecido na ocasião em

que os franceses acabavam de estabelecer o seu governo, o

prefeito de Munster e um oficial de polícia dirigiram-se a Dul-

men para se certificarem da realidade das coisas. Verificaram que esses fatos – fisiológicos ou de outra natureza – desconcer-

tavam qualquer explicação científica. O prefeito enviou oito

médicos e cirurgiões militares a visitar a vidente, dando-lhes ordem para empregarem todos os recursos da arte, no intuito de

cicatrizarem as chagas; elas, porém, de novo se formaram todas

as sextas-feiras.

Poderíamos comparar muitos outros exemplos análogos,32

como os de Santa Teresa, Santa Catarina de Ricci, Arcângela

Tardero, Santa Gertrudes, Santa Lidwina, Santa Helena da

Hungria, Santa Ozana de Mântus, Santa Ida de Lovaina, Santa Cristina de Strumbélen, Santa Joana da Cruz, Santa Lúcia de

Márni, Santa Catarina de Siena, Pascthis e Clarisse de Cógis,

Catarina de Ranconioso, Verônica Giulâni, Colomba Schanolt, Madalena Lorger, Rosa Serra,

33 e mesmo com os de vários

homens piedosos; mas, não pretendemos escrever uma obra

sobre esse assunto e limitamo-nos a acrescentar, aos casos pre-cedentes, o de Luísa Lateau, a célebre estigmatizada de Bois-

d’Haine (Bélgica), estudada em 1869 pelo professor Delboeuf,

da Universidade de Liège, um dos que mais atraíram a atenção dos sábios contemporâneos.

Na sexta-feira, 24 de abril de 1868, doze dias depois da Pás-

coa, Luísa Lateau, de 18 anos (nascida em 30 de janeiro de

1850), entrada na nubilidade cinco dias antes, doente e lânguida havia mais de um ano, extática, de imaginação ardente e mística,

viu aparecer o seu primeiro estigma, o do lado esquerdo; na

sexta-feira seguinte aparecia-lhe outro estigma no pé esquerdo, e foi na terceira sexta-feira que ela observou os cinco estigmas no

seu corpo. Esses estigmas da coroa de espinhos apenas sangra-

ram cinco meses mais tarde.

Tais fatos, dizíamos precedentemente, em completa oposição

com a fisiologia comum, que considera o pensamento como

propriedade material do organismo, são forçosamente negados pelos professores clássicos. Em 1877, o notável Herr Dr. Profes-

sor Virchow, falando dos estigmas de Luísa Lateau, proclamava

enfaticamente este dilema: Embuste ou milagre, suprimindo o

milagre, com razão, e não admitindo senão o embuste. Ora,

podemos afirmar, em nome da ciência livre, que não há no fato mencionado nem embuste nem milagre.

Tenho o gosto de contar bastantes primaveras para haver sido

contemporâneo da criação de Lourdes, em 1858, e ter conhecido,

por testemunhas que habitavam aquela região, a história amorosa da Sra. P. e do Tenente G. (saído de Saint-Cyr em 1857, então

colocado no Regimento nº 42 de Infantaria, em Lourdes, morto

depois no posto de major no Tonkim), que deu origem ao inci-dente da gruta da pequena Bernadette Soubiroux – uma pobre de

espírito – na quinta-feira gorda daquele ano, incidente cujas

conseqüências foram maravilhosas, apesar da primeira recusa do honesto pároco de Lourdes, o Padre Peyramale (confessor da

Sra. P.), em admitir a aparição da Virgem.34

O meu amigo,

Comandante Mantin, nascido como eu em 1842, atualmente em Pau, ainda vive para o afirmar, assim como outros contemporâ-

neos: o Capitão de G., o Sr. Pelizza. Os “milagres” de Lourdes,

aos quais tenho assistido, assim como milhares de outras teste-munhas, são certamente uma das manifestações mais curiosas e

evidentes do poder da idéia, da exaltação mental, da fé.

O mesmo se deu com os de Nossa Senhora de la Sallette, que

floresceram durante uns vinte anos, apesar da sentença do Tribu-nal Civil de Grenoble, de 15 de abril de 1855, provando que essa

Virgem, aparecida a duas crianças em 19 de setembro de 1846,

era a Srta. de la Merlière, representando voluntariamente a comédia. A água de la Salette também curava, o que verifiquei,

com meus próprios olhos, na diocese de Langres, em 1854.

Esses diversos milagres, produzidos pela auto-sugestão, fo-

ram observados, tanto na antigüidade como em nossos dias, e tanto entre os pagãos como entre os cristãos. Pode ver-se, no

museu de Dijon, ex-votos oferecidos pelos romanos à deusa

Sequana, à nascente do Sena, encontrados no templo erigido a esta divindade, num vale que visitei ainda há pouco, perto da

aldeia de Saint-Seine. Conta o Dr. de Sermyn, além disso, que foram descobertas, não há muito tempo, nas escavações feitas

pelo Sr. Cawadias, nas ruínas do templo do Asclépios, estelas

com inscrições comemorativas das principais curas milagrosas

que então se deram, as quais representam os arquivos sagrados.

Essas estelas são do século III e IV antes de Jesus-Cristo. Depre-ende-se daí que naquela época os sacerdotes ao serviço de As-

clépios, no santuário, nenhum remédio prescreviam, ao contrário

do que se acreditava geralmente. Era o deus que curava. Os doentes viam-no operar em seus corpos com grande afoiteza. As

pessoas saradas declaravam ter avistado a divindade quando ela

vinha abrir-lhes o ventre, arrancar-lhes os tumores e explorar-lhes os intestinos.

Assim, por exemplo, um homem que tinha um cancro no es-

tômago, conta que foi a Epidaure, adormecendo e tendo uma

visão. “Pareceu-lhe que o deus ordenava aos criados que o acompanhavam que o agarrassem e segurassem bem, enquanto

ele lhe abriria o ventre. O homem, apavorado, fugiu, mas os

criados alcançaram-no e dominaram-no. Então, Asclépios abriu-lhe o abdômen, praticou a excisão do cancro e libertou o doente,

depois de lhe haver cosido a abertura do ventre com cuidado.

Volvidos instantes o homem acordou e achou-se curado.”

Vê-se que é sempre, e em toda parte, a mesma coisa. É a vi-

são que opera, que age sobre o corpo do enfermo como agiria um

cirurgião em nossos dias.

Todos os doentes que vão a Lourdes desejam sarar e levam,

conseguintemente, no cérebro a imagem da cura; mas são poucos os que saram, porque nem todos são dotados de uma organização

nervosa suficiente para ver os seus desejos transformados em

realidade e atuar como teria atuado um ser sobre-humano, dotado de faculdades maravilhosas.

O ardor da convicção religiosa é um Proteu que muda de

forma, que se torna Apolo, Asclépios, Jesus, o Diabo, a Virgem

Maria, um bom ou um mau Espírito, segundo as convicções, as idéias preconcebidas do eu consciente.

Acrescentarei que talvez não seja unicamente a auto-sugestão

em jogo; forças psíquicas ambientes influem por vezes. É todo um mundo a descobrir.

Continuemos o estudo da vontade.

O que se não deve negar de futuro é que a vontade possa atu-

ar a distância, sem a palavra, sem comunicação telegráfica ou

telefônica material, pela sua própria energia. Pode-se mesmo aparecer. Será a alma que se desloca e muda de lugar? Será uma

ação sobre o cérebro produzindo alucinação verdadeira? É esta a

questão e o nosso dever é o de examiná-la livremente, sem parcialidade. Vamos resolvê-la experimentalmente com exem-

plos.

Entre diversas observações instrutivas, vou pôr aqui sob os

olhos dos meus leitores o seguinte fato referido pela Sra. Russell, de Balgaum (Índia), esposa do inspetor da Instrução Pública na

Presidência de Bombaim. Eis essa experiência muito notável:35

“Eu vivia na Escócia e minha mãe e minhas irmãs estavam

na Alemanha. Morava em casa de uma amiga muito querida e todos os anos ia à Alemanha ver os meus parentes. Acon-

teceu que durante dois anos não pude visitar minha família,

como tinha por costume. Resolvi de repente partir sem que os meus soubessem de tais intenções. Não tinha ido vê-los

no começo da primavera e faltava-me o tempo para avisá-los

por carta. Também não queria prevenir por telegrama, com receio de assustar minha mãe. Veio-me a idéia de querer,

com todas as minhas forças, aparecer a uma das minhas ir-

mãs, de modo a avisá-la de minha chegada, e pensei nisso com a maior intensidade possível, não concentrando, creio

eu, o meu pensamento mais de dez minutos. Tomei um va-

por em Leith, num sábado à tarde, em fins de abril de 1859, e desejei fazer a minha aparição nesse mesmo sábado, às

seis horas da tarde.

Cheguei a casa pelas seis da manhã de terça-feira seguinte. Entrei sem ser vista, pois a porta estava aberta. Meti-me no

quarto. Uma das minhas irmãs estava de costas para a porta; voltou-se, ouvindo passos, e quando me viu, olhou-me fixa-

mente, ficou muito apática e deixou cair o que tinha na mão. Não havia pronunciado uma só palavra. Então falei:

– Sou eu; por que estás assim assustada?

Ela respondeu-me:

– Pensei ver-te como Stinchen te viu no sábado.

(Stinchen é outra minha irmã).

Respondendo às perguntas que eu lhe formulava, contou-

me que no sábado à tarde, pelas seis horas, minha irmã me tinha visto distintamente entrar, por uma porta, no quarto

onde ela estava, abrir a porta de um outro quarto onde estava

nossa mãe, e fechar essa porta atrás de mim. Correu para quem supunha ser eu, chamando-me pelo nome, e ficando

absolutamente pasmada quando não me viu com minha mãe,

que não podia compreender o nervosismo de minha irmã. Procuraram-me por toda parte, e naturalmente não me en-

contraram.

A irmã que me tinha visto (isto é, em aparição) saíra na manhã da minha chegada. Sentei-me num degrau da escada,

para me dar conta, quando voltasse, do que sentiria ao avis-tar-me. Quando levantou os olhos e me viu sentada na esca-

da, pronunciou o meu nome e quase desmaiou. Minha irmã

nunca viu nada de sobrenatural, nem antes nem depois; e não renovei estas experiências desde esse momento. Nem as

renovarei, pois aquela de minhas irmãs que foi a primeira a

avistar-me, quando cheguei realmente a casa, caiu bastante doente, devido à comoção que havia experimentado.

J. M. Russel.”

Quando tratarmos da duplicação dos vivos, voltaremos a este

assunto. Consignemos apenas, neste momento, que o inquérito feito pela Sociedade Inglesa de Pesquisas Psíquicas e a respeita-

bilidade da signatária, assim como a de sua família, que confir-

mou o que ela disse, não permitem duvidar da autenticidade da narração. Como as outras, ela prova que a vontade atua a distân-

cia.

As interrogações precedentes podem também aplicar-se ao

seguinte caso, afirmado pelo pastor Dutton, de Leeds (Inglater-ra):

36

“No meado de junho de 1863, passeava eu, de dia, na

grande rua de Huddersfield, quando vi aparecer diante de

mim, à distância de poucos metros, um amigo querido, que

tinha motivos para julgar gravemente enfermo, em sua resi-

dência de Staffordshire.

Dias antes alguns amigos me tinham informado da sua do-

ença. Como ele se aproximasse mais, foi-me fácil examiná-lo; e notando que a sua cura havia sido rápida, não duvidava

de que não fosse, realmente, o meu amigo. No momento em

que nos encontramos, olhou-me com expressão triste e en-ternecida e, com grande surpresa minha, não pareceu ver que

eu lhe estendia a mão, nem respondeu ao meu afetuoso

cumprimento, e continuou o seu caminho tranqüilamente. Fiquei intrigado e incapaz de falar ou de andar durante se-

gundos. Não me certifiquei de que tivesse proferido qual-

quer palavra, mas ficou-me no espírito esta impressão muito nìtida: “Precisava tanto de ver-te e não aparecias”.

Quando tornei a mim, voltei-me para olhar ainda a figura que se afastava, mas tudo se havia dissipado. O meu primei-

ro ímpeto foi o de telegrafar, pois veio-me a idéia, que pus

logo em execução, de verificar se o meu amigo estava real-mente vivo ou morto, apesar da quase certeza de que esta úl-

tima hipótese era a verdadeira. Quando cheguei a sua casa,

no dia seguinte, encontrei-o vivo, mas num estado semi-consciente. Havia perguntado por mim diversas vezes, o seu

espírito tinha-se apegado provavelmente ao pensamento de

que eu não iria vê-lo.

Tanto quanto pude apurar, ele devia dormir na hora em

que me apareceu, na véspera. Disse-me depois que lhe pare-cia ter-me visto, sem saber onde nem como. Não posso ex-

plicar-me como o meu amigo me apareceu vestido nem co-

mo estava naquele momento. O meu espírito achava-se mui-to preocupado com outros assuntos, nessa ocasião, e não

pensava nele. Posso acrescentar que viveu ainda alguns me-

ses.

W. E. Dutton.”

Sendo o autor interrogado se tivera outras alucinações, decla-

rou que esta fora a única.

Todos esses fatos de magnetismo, hipnotismo, transmissão

mental, auto-sugestão, “duplicação de vivos”, que acabamos de

tocar de leve para afirmar simplesmente aqui o princípio de sua realidade, e aos quais voltaremos, estabelecem, sem dúvida, a

ação do espírito sobre o organismo físico e levam-nos a concluir

que a alma existe independentemente do corpo.

Continuemos o nosso estudo experimental.

Mas, antes de prosseguir, queria responder à objeção que a-

code naturalmente ao espírito analítico do método científico.

Pode-se pensar que as coincidências não têm o valor que lhes

atribuímos, visto que, em cada caso observado, mil sonhos e mil pressentimentos não têm qualquer seguimento.

Esta objeção seria aceitável se não se tratasse, nesse caso, de

sensações especiais, de fatos precisos, de pormenores circuns-

tanciados, de incidentes imprevistos, às vezes de cenas contem-pladas e tão reais como se tivessem sido fotografadas. Não se

pode aplicá-la, por exemplo, ao pressentimento da Sra. Constans,

recusando, a despeito das ordens do médico, tomar uma poção que a teria envenenado, nem aos de Delaunay e da Srta. Houssa-

ye, afogados, nem à morte dramática da Sra. Arboussoff, nem à

marcha noturna do Sr. Garrison, correndo para junto de sua mãe que estava moribunda e residia a 28 quilômetros de distância,

etc., todos relatados nas páginas anteriores.

A nossa convicção acerca das transmissões psíquicas vai aliás

fortificar-se gradualmente pelos próprios fatos, em absoluto característicos.

CAPÍTULO VI

A telepatia

– As transmissões psíquicas a distância.

– Vista e audição telepáticas.

Nada de frases! Fatos.

Se a ação da vontade, sem auxílio da palavra e de qualquer

sinal, é uma manifestação da existência pessoal da alma, a tele-patia e as comunicações mentais a distância constituem outras

provas não menos demonstrativas.

As percepções instantâneas e inesperadas de desastres, doen-

ças, mortes, pressentidas a dezenas, centenas e milhares de quilômetros de distância, contam-se em tão elevado número que

pertencem hoje normalmente à bagagem habitual dos estudos

psicológicos. Negadas ou incompreendidas durante séculos, elas constituem para o futuro um capítulo quase clássico desses

estudos.

Os meus leitores conhecem-nas e não quero repetir o que já

publiquei sobre esse assunto;37

limitar-me-ei a relembrar, em princípio, este fenômeno importante de telepatia, porque ele

prova a existência da alma, pondo simplesmente sob os seus

olhos alguns novos fatos bem característicos.

Em O Desconhecido, capítulo VIII – “A visão a distância, em

sonho, de fatos atuais”, creio ter dado provas incontestáveis,

pelos autênticos exemplos apresentados, principalmente a vista e

a audição, pelo escritor Pierre Conil, de seu tio moribundo; a vista da cabeça ensangüentada de seu irmão, por um capitão de

mar e guerra, ao entrar em Marselha; a vista de um navio que

trazia seu pai e sua mãe, pelo engenheiro Palmero; a vista de uma rapariga que caía de uma janela, pelo Sr. Martin Halle; a

vista e a descrição de um cancro operado pelo Dr. Cloquet, etc.;

ao todo, 49 comprovações de transmissões telepáticas de vista a distância ou no interior do corpo, sobre as quais não insistiremos

aqui, com esta conclusão: “A vista a distância, em sonho e em

sonambulismo, não mais pode ser negada.” Leu-se, entre outros,

o episódio bem conhecido da princesa de Cônti vendo, em sonhos, que uma ala do seu palácio, em que seus filhos estavam

deitados, longe dela, ia desabar e precipitando-se para salvá-los.

Mais fatos vão passar à nossa vista, confirmando ainda tal a-

firmação.

Aqui temos um, bem curioso, dos mais pessoais – e dos mais

indiscretos – entre um vivente acordado e uma pessoa adormeci-

da, que me foi comunicado, em agosto de 1904, pelo Sr. A.

d’Argy, Comissário da Marinha, reformado, da Rochelle (rogan-do-me que não revelasse os nomes).

(CARTA 1.068)

“A Sra. S., da Rochelle, morava, em 1887, na Vendea com

sua família. Era noiva do Sr. F. Afeição recíproca muito in-tensa. Ativa correspondência.

Uma noite, pelas 11 horas, a Sra. S. acorda, ao ser chama-da com desespero pelo seu nome de batismo. Reconheceu

instantaneamente a voz; sentiu o sopro de uma respiração no

seu rosto. Estendeu a mão maquinalmente para certificar-se, crendo numa presença real. Nada sente, nada adivinha. As-

sustada, chama sua mãe, que dormia em quarto contíguo, e

conta-lhe essa alucinação. Ao mesmo tempo, tem a sensação de uma desgraça que acaba de ocorrer, nos Baixos Pirineus.

Escreve ao seu noivo no dia seguinte e não recebe resposta.

Outras cartas suas têm a mesma sorte. Passam-se alguns me-ses sem qualquer notícia. Por acaso, a Sra. S. é informada de

que o seu amigo foi levado para uma prisão na mesma noite

em que ela despertou, sobressaltada – para se evitar o escân-dalo em uma pequena cidade –, por motivos muitos graves.

Um médico que o acompanhava afirmou que o infeliz, aflito,

ao ver os seus projetos de felicidade destruídos, chamava a sua noiva com voz desesperada.

As relações romperam-se definitivamente. O Sr. T., en-trando depois em uma outra família, morreu há três ou qua-

tro anos.

A presente narrativa é escrupulosamente exata.

Argy.”

Esta comunicação de vivo para vivo lembra outras, também

observadas com segurança, entre as quais a de uma senhora (Sra. Wilmot) que foi visitar seu marido a bordo de um navio, e reali-

zando a visita com efeito (O Desconhecido, capítulo VIII, caso

XXXVIII), e centenas de transmissões telepáticas da mesma ordem.

Os testemunhos variados de comunicações análogas entre vi-

ventes, a distâncias consideráveis, são inúmeros. Entre os que me

foram assinalados por observadores idôneos, citarei particular-mente o seguinte, proveniente de um confrade da imprensa

científica, o Sr. Warrington Dawson, atualmente adido à embai-

xada americana de Paris, o qual dirigia, em 1901, uma agência americana de grandes jornais parisienses. Eis a sua carta, de

dezembro de 1901 (Paris, rua Feydeau, 18):

(CARTA 1.003)

“Caro mestre:

É para mim um dever levar ao seu conhecimento um caso

bastante singular de telepatia que acaba de se dar comigo e que pode contribuir para o adiantamento das suas importan-

tes e perspicazes investigações.

Na terça-feira passada, 8 de outubro, estava no meu escri-tório, rua Feydeau, 18, escrevendo um artigo sobre a sua jo-

vem colega a Srta. Klumpke,38

astrônoma do Observatório; mas tive de interrompê-lo por falta de notas acerca de uma

entrevista que ela me havia concedido. Lembrando-me de

que essas notas se achavam em uma gaveta da minha banca de trabalho, em meu domicílio, rua de Varenne, 32, fui bus-

cá-las. Subi ao meu quarto andar, deixando, como de costu-

me, o chapéu sobre a mesa, na sala de espera. Dei-me conta então de que não havia ninguém nos meus aposentos, quan-

do a criada devia lá estar, na minha ausência. Tive um mo-vimento de despeito, dizendo: “Isto há de acabar”; depois,

lembrando-me de que minha mãe devia voltar a Paris dentro

em breve e que trataria disso melhor do que eu, não dei mais

importância ao caso e dirigi-me para o meu gabinete de tra-

balho, atravessando um corredor estreito, e sentando-me à minha secretária, carregada de papeladas, sobre a qual esta-

va colocada uma lâmpada.

Eram duas horas da tarde, do dia 8, e estou certo disto porque enviei naquela noite, para a América, o artigo sobre a

Srta. Klumpke, do qual lhe remeto cópia impressa, em data de 8 de outubro.

Pode ler, nesse artigo, que ela lhe deve a sua iniciação as-tronômica e que, com as suas obras, foi o senhor o seu pri-

meiro mestre.

Qual não foi a minha surpresa, ao receber, pelo correio da América, na semana seguinte, uma carta de minha mãe, con-

tando-me os fatos que venho de expor, tais como foram vis-tos por uma nossa amiga, a Sra. George M. Coffin, de Nova

Iorque! A carta de minha mãe é de 11 de outubro e datada de

Nova Iorque, e o sobrescrito tem o carimbo postal da mesma data; foi, portanto, três dias depois do incidente que a carta

entrou no correio, e como são precisos oito dias para uma

carta chegar de Paris a Nova Iorque, não haveria modo al-gum de tornar conhecidos esses fatos em menos de três dias,

salvo por carbograma, mas ninguém se lembraria de gastar

um franco e vinte e cinco cêntimos por palavra para porme-nores de somenos importância. Minha mãe escrevia na sex-

ta-feira, 11 de outubro, e dizia ter visto a Sra. Coffin na

quarta-feira, isto é, no dia 9. Fato curioso: A Sra. Coffin, procurando ver-me às 2 da tarde, hora de Nova Iorque, viu,

não o que eu fazia naquele momento, mas o que fazia na

véspera, duas da tarde, hora de Paris.

Verificará, pela leitura da carta, que a Sra. Coffin come-

çou por descrever os aposentos. Esses aposentos nunca fo-ram fotografados e a Sra. Coffin só viu minha mãe, pela

primeira vez, depois de sua volta da Europa, alguns momen-tos apenas antes de descrevê-los, sem poder conhecer a dis-

posição dos mesmos. isto poder-se-ia explicar pela sugestão,

pois que minha mãe os conhecia; mas, com seus hábitos pa-

risienses, nem sequer pensaria em designá-los senão como

um quarto andar, por estarem quatro andares acima do rés-

do-chão, ao passo que para uma habitante de Nova Iorque, que não conhece sobreloja e que chama rés-do-chão ao pri-

meiro andar, os nossos aposentos ficariam num sexto andar,

como diz a Sra. Coffin.

Deduz-se desse fato que a Sra. Coffin viu bem os aposen-

tos. Além disso, é a única vez, há perto de um ano, que me acontece ir para casa àquela hora. O que também prova a e-

xatidão, que é familiar à Sra. Coffin nas visões a distância, é

a surpresa que teve quando avistou a estufa de porcelana, objeto ignorado na América.

Há longos anos que minha família conheceu a Sra. Coffin. Temo-nos divertido muitas vezes a pedir-lhe para ver o que

se passa em casa de pessoas que nos interessam, ou para

responder às perguntas que fazíamos em pedacinhos de pa-pel fechados, que ela pegava sem os ler. As suas respostas

foram sempre claras e exatas, quando foi possível verificá-

las.

Aceite, etc.

Francis Warrington Dawson.”

Esta carta era acompanhada por uma outra da mãe do Sr. Dawson, datada de Nova Iorque, a 11 de outubro, descrevendo

com exatidão, sob o ditado da Sra. Coffin, os aposentos de Paris,

no “sexto andar”, a visita feita a esses aposentos pelo Sr. Daw-son, a sua irritação pela ausência da criada, a colocação de seu

chapéu sobre uma mesa, a busca dos seus papéis, o arranjo do

escritório, a sua instalação para escrever, numa palavra, todas as particularidades do que ele tinha feito em Paris.

Essa vista a distância, muito minuciosa, é absolutamente es-

pontânea e incontestável. Mais curioso ainda é que a visão se

refere à véspera, e não ao dia e ao momento, de modo que houve um duplo fenômeno de telepatia, no espaço de no tempo.

As transmissões telepáticas entre vivos não são tão raras co-

mo se supõe quando as ignoramos. Eis aqui uma delas que é digna de atenção.

O comandante T. W. Aylesbury, residente em Sutton, conda-

do de Surrey (Inglaterra), escrevia em dezembro de 1882:

“Caì de um barco, aos treze anos, quando o meu navio

chegava à ilha de Bali, a este de Java, e quase morri afoga-do. Após diversos mergulhos, voltando à tona d’água, cha-

mei minha mãe, o que não deixou de divertir a tripulação do

barco, e me valeu, depois, mais de uma vez, as suas zomba-rias. Volvidos meses, de volta à Inglaterra, contei a história

a minha mãe e disse-lhe logo:

– Quando estava debaixo d’água, avistei-vos a todas, sen-tadas nesse mesmo compartimento e trabalhando em qual-

quer coisa de cor branca. Vi todas: minha mãe, Emília, Elisa e Ellen.”

Ora, a mãe confirmou esta narração, dizendo-lhe: “Ouvi-te chamar-me e mandei Emìlia ver à janela.”

A hora, considerando a diferença de longitude, correspondia

àquela em que foi ouvida a voz.

Uma outra carta do comandante completa a história:

“Vi as feições delas (de minha mãe e minhas irmãs), o

quarto e a mobília, sobretudo as janelas venezianas de forma

antiga. Minha irmã mais velha estava sentada ao lado de mi-

nha mãe.

Quanto à hora em que ocorreu o acidente, foi pela madru-

gada. Lembro-me de que um barco havia soçobrado na vés-pera, sendo atirado à praia. O oficial deu-nos ordem para ir-

mos procurá-lo logo de manhã, mas não me lembro exata-

mente da hora. A situação era terrível e os vagalhões furio-sos. O nosso barco virou-se da popa para a proa. Nunca me

vi tão próximo da morte e, no entanto, já passei por muitas

situações perigosas; mas esse acidente produziu tal impres-são no meu espírito que não posso esquecer nenhum dos

seus pormenores nem as zombarias dos marujos:

– Rapaz, por que chamavas tua mãe? Pensavas que ela po-dia tirar-te das garras do diabo?”, etc., e outras expressões

que não posso referir.”

Por outra parte, o inquérito foi confirmado por esta carta da irmã do comandante:

“Lembro-me distintamente do incidente; fez-me tal im-

pressão que jamais o esquecerei. Uma tarde, estávamos sen-tadas e trabalhávamos tranqüilamente. Ouvimos primeiro

um débil grito: “mãe!” Entreolhamo-nos e dissemos:

– Ouvistes? Alguém grita: mãe!

Acabávamos apenas de dizer isto quando a voz exclamou ainda seguidamente: Mãe! Mãe! O último grito denotava ter-

ror, era um grito de angústia. Levantamo-nos todas e a ma-

mã disse-me:

– Vai à porta e vê o que é isso.

Corri para a rua e investiguei durante alguns minutos, mas estava tudo em silêncio e não se via ninguém; a tarde era be-

la, não corria vento. A mamãe ficou perturbada e triste com esse incidente.”

39

Estes casos de transmissões de pensamentos entre vivos nada têm de comum com a vida normal e estão fora da ação dos

nossos sentidos físicos. Evidentemente, é o espírito que neles atua.

Seria fácil citar muitos exemplos, principalmente, entre ou-

tros, o de uma jovem amazona que, debruçando-se demasiada-

mente para abrir uma cancela, caiu do cavalo e soltou um grito que foi ouvido por cinco pessoas, a sete quilômetros de distân-

cia.40

Recebi cartas ferozes de damas de bons princípios, inspiradas

visivelmente por seus diretores espirituais, censurando-me por não acreditar nos dogmas cristãos e por aceitar os “contos ridìcu-

los da telepatia, das sensações a distância e dos anúncios de

mortes”, e notarei neste momento, sobretudo, uma delas quase injuriosa, escrita por uma senhora de Salins, e que chegou pelo

mesmo correio que me trouxe as que se seguem (são as cartas

913 e 914 de minha coleção). Elas contradizem-se e completam-se singularmente.

A carta 913 afirma ser tudo falso na telepatia, e que eu não

mereço desculpa por tomar essas histórias a sério. “Foi-me

impossível continuar a leitura do vosso livro O Desconhecido, por tal forma ele é ridículo! É verdadeiramente grotesco!”

A carta 914 dizia:

“Cumpro o dever de concorrer com uma contribuição pes-

soal para o estudo que o senhor empreendeu, na sua impor-

tante obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, capi-tal para a Ciência futura.

Morava em Aurillac no inverno de 1878, tendo deixado em Saint-Servan (Ille-et-Vilaine) minha mulher e minha fi-

lha.

Em 22 de dezembro, entrando num café, pelas 8 horas e meia, senti irresistível angústia. O sofrimento foi tão inten-

so, que saí e voltei para casa, escrevendo a minha mulher uma carta que começava assim:

“Domingo, 22 de dezembro, 9 horas.

Estava no café, com os meus companheiros do costume, quando me levantei de repente e saí, apesar de muito instado

para ficar. Havia escutado um apelo irresistível. Devias pen-

sar em mim, chamar-me com veemência, com angústia tal-vez. Era aflição? Era perigo? Oh! dize-me o que querias na-

quele momento! Voltei, pois, para casa todo angustiado, to-

do comovido. Chamavam-me urgentemente; precisava de estar só e de escrever-te para te confiar a minha aflição...”

A continuação da epístola é inútil para o caso.

Ao receber esta comunicação, no dia 24 pela manhã, mi-nha mulher ficou espantada. Escreveu no alto da minha carta

estas palavras: “Dia do acidente de bebê”.

Eis o que se tinha passado em Saint-Servan:

No dia 22, pelas 8 horas da noite, minha filhinha, de seis semanas de idade, foi deitada com uma botija d’água quente

aos pés. Sua mãe deitou-se também pouco depois. Passados alguns instantes, a criança rompeu em gritos dolorosos, veri-

ficando-se que, como a botija deixasse escapar a água, lhe

queimara os pés, torcendo-se a inocente em convulsões.

Minha mulher perdeu a cabeça e somente sossegou depois da visita do médico, que certamente demorou ainda uma ho-

ra.

A coincidência dos fatos e a sua perfeita concordância pô-

de ser fixada graças ao sobrescrito de minha carta – 22 de dezembro, 9 horas.

Havia jantado, como de costume, das 7 para as 8 horas; no café joguei uma partida de cartas: o tempo material para ir

do café, a 150 metros do meu aposento, para casa e para me

instalar a escrever, tudo prova que a chamada foi ouvida por mim, pelas 8:30, pouco mais ou menos.

A criança fora deitada às 8 horas e as queimaduras produ-ziram-se aproximadamente às 8:30, pois, se isso se desse

mais tarde, a água esfriada não teria determinado a empola

instantânea que se verificou. Minha mulher não se recorda, atualmente, se o seu pensamento, naquele instante, se dirigiu

para mim com angústia, nem se me chamou. Está convenci-

da de que sim, mas as suas recordações não são nítidas.

Ainda assim, a observação da minha carta de 22 de de-

zembro parece-me das mais rigorosas.

Acrescentarei que a natureza do meu espírito, e a de mi-

nhas ocupações, me leva sempre para o estudo das realida-des científicas, de preferência aos fatos de ordem misteriosa

do mundo psíquico. Nunca mais tive impressões da mesma

natureza.

Gigon

Subintendente de 1ª classe.”

Não oferecerá esta curiosa história a maior analogia com a do

Sr. Arboussoff (cap. IV) e com a do Sr. Garrison e também com a do Dr. Ollivier? Faculdades supranormais da alma. Continue-

mos.

Aqui temos ainda fatos de transmissão telepática do pensa-

mento de que é impossível duvidar. Extraí-os de uma carta que

me foi endereçada de Passavant (Haute Saône) pelo Dr. Poirson,

da Faculdade de Paris.

(CARTA 3.482)

“Remeto-lhe a relação de três fatos de natureza um pouco

diferente, mas que lhe podem ser úteis para os seus estudos

sobre os fenômenos psíquicos. Garanto-lhe a sua autentici-

dade, pois tenho por costume, nesta ordem de assuntos, atri-buir importância apenas ao que observo pessoalmente.

a) Há dois meses pouco mais ou menos, achando-me em

Belfort, arrabalde de França (sic), lembrei-me de repente e

com singular insistência de um dos meus confrades do Jura, no qual não penso nem uma vez por ano, pois só tive com

ele relações profissionais há treze anos e nunca mais o vi.

Passados alguns minutos, encontrava-me frente a frente com ele, numa encruzilhada, e como ele viesse de bicicleta, por

uma rua perpendicular, era-me impossível tê-lo avistado an-

tes, e de longe. Eis aqui um fato: Não o explico, mas surpre-endeu-me.

b) Médico profissional, posso ser chamado freqüentemen-

te de noite. Pela minha porta passa bastante gente. Se apare-

ce qualquer pessoa que deve puxar a campainha, desperto sozinho quando ela está ainda a uns vinte metros de minha

casa. Sei de antemão que ela vai tocar.

Isto já eu o verifiquei, não uma vez, mas uma centena de vezes, nos últimos doze anos. Para ser ainda mais fiel, devo

dizer que, se não durmo, o que me acontece muitas vezes, sou de todo incapaz de vaticinar se um transeunte vai ou não

parar; acrescentarei também que, se durmo profundamente,

depois de uma jornada exaustiva, o fenômeno não se produz.

c) Conto na minha clientela uma rapariga histérica de

quem obtenho o sono hipnótico e a sugestão com extraordi-

nária facilidade. Acontece-me muitas vezes determinar-lhe a

hora do despertar e do levantar, o que ela observa com exa-tidão rigorosa. Para quem pratica um pouco o hipnotismo,

isto nada tem de extraordinário. Mas eis um fato que o é e

muito:

Um dia, o marido dessa mulher, impaciente porque ela a-cordasse, lembrou-se de adiantar os ponteiros do relógio co-

locado na mesa de cabeceira. Devendo esperar ainda uma e meia hora, às 6:30 da manhã pôs o relógio nas 7:30, hora fi-

xada. Ficou surpreendido ao ver que ela se erguia de repen-

te, no mesmo momento em que o ponteiro marcava 7 horas. Este homem veio informar-me de tal fato. Fiquei incrédulo e

quis verificá-lo, o que consegui, efetivamente, diversas ve-

zes.

Devo esclarecer que esta pessoa, adormecida ou de olhos

fechados, lê facilmente a hora no meu relógio, mesmo quan-do a faço variar, mas com a condição de que veja eu mesmo

os ponteiros. Da mesma forma, ela diz com facilidade o no-

me de um objeto que apanho atrás dela, contanto que o tome nas minhas mãos.

Tudo isso são fatos a explicar: deixo-lhe o cuidado de in-

terpretá-los. Poderiam ser confirmados pelos interessados, se

não fossem de espírito um pouco retrógrado quanto ao nosso ponto de vista. Consideram-me um tanto feiticeiro e teriam

receio de se verem implicados nessas histórias.

Pode fazer da minha carta o uso que lhe convier; autorizo-o mesmo a publicar o meu nome, pois não temo absoluta-

mente os gracejos dos ignorantes e desejo os dos imbecis.

Sou, etc.

Passavant (Haute Saône), 9 de outubro de 1916.

Dr. Poirson.”

O primeiro desses três casos não é muito raro, e é um dos que

nos convidam a considerar a transmissão de cérebro a cérebro como onda etérea. O segundo conduz à mesma conclusão. O

terceiro mostra-nos uma sugestão operando, apesar de um sub-

terfúgio. A transmissão do pensamento é evidente, sobretudo na experiência do relógio ao qual o doutor faz variar os ponteiros.

Que se encontre bastante amiúde, por acaso aparentemente, uma

pessoa em quem se pensa, é um fato conhecido de toda gente.

Por toda parte se deparam exemplos. Entre outros, o Dr. Foissac

menciona 41

algumas dessas coincidências que o surpreenderam particularmente. Não são raras, apesar de pouco analisadas até

hoje. Elas provam as radiações psíquicas.

As vistas e as audições telepáticas são mais características.

Entre as numerosas observações que me foram comunicadas,

citarei a seguinte, de vista a distância num acidente – que não teve conseqüências graves – pessoalmente experimentado pela

Sra. Barthés, viúva do Dr. Barthés, de Ivry (carta de 12 de feve-

reiro de 1919). O fato passou-se em 1874, na Rumânia:

(CARTA 4.075)

“O doutor tinha partido, a cavalo, para o seu serviço e a

esposa fora passar a tarde em casa de pessoas amigas. De

repente, durante uma conversação qualquer, viu seu marido cair do cavalo, na estrada, e soltou um grito de pavor. Ri-

ram-se dela, naturalmente. Mas, quando o doutor voltou à

noite, sua mulher, ainda sob a influência da visão, pergun-tou-lhe, com grande espanto do cavaleiro, se estava ferido.

Ele contou-lhe que, depois de uma subida muito rude, mete-

ra o cavalo a passo e enfiara as rédeas no braço, para fazer um cigarro. De súbito, o animal tropeçou, caindo sobre os

joelhos, e atirou-o ao chão, onde se feriu no rosto, no ombro

e no braço. O médico, a par da telepatia, não se mostrou sur-preendido com a visão.”

Narrarei outra sensação a distância da mesma natureza.

Lombroso publicou a seguinte carta que lhe foi dirigida pelo

seu colega da Universidade, o professor De Sânctis:

“Achava-me em Roma, sem minha família, que ficara no

campo. Como a casa fora saqueada no ano anterior, meu ir-mão ia lá dormir. Uma tarde, avisou-me que iria ao Teatro

Costânzi. Fiquei sozinho e, ao começar uma leitura, senti-me

de repente tomado de pavor. Procurei reagir e principiei a despir-me, mas continuei atormentado com a idéia de que

meu irmão corria perigo, com um incêndio no teatro. Apa-

guei a luz e, cada vez mais angustiado, reacendi-a contra

meus costumes, disposto a esperar, acordado, o regresso de

meu irmão. Estava apavorado como uma criança. Meia hora depois da meia-noite, ouvi abrir a porta, e imaginem a minha

surpresa quando meu irmão me contou o pânico produzido

por um começo de incêndio que havia coincidido exatamen-te com a hora de minha inquietação!”

Um caso de telepatia bem notável é o que me foi relatado pe-lo Dr. Quintard, na Sociedade de Medicina de Angers.

42

“Uma criança de menos de sete anos, Ludovico, era dota-

da para o cálculo, faculdade análoga à do célebre Inaudi.43

O pai do pequeno acabou por observar: 1º- que ele pouca aten-

ção prestava à leitura dos problemas que lhe apresentavam;

2º- que a presença da mãe era condição expressa para bom êxito da experiência. Ela devia ter sempre sob os olhos ou

no pensamento a solução pedida.

Daí deduziu que o filho não calculava, mas que adivinha-va, ou antes, que sua mãe lhe transmitia seu pensamento, do

que quis certificar-se. Para isso, pediu à esposa que abrisse um dicionário e perguntasse ao rapaz qual a página que ela

fitava, ao que ele respondeu logo: “é a página 456”, o que

era exato. Recomeçou dez vezes e dez vezes obteve resulta-do idêntico.

Uma frase escrita num caderno, qualquer que fosse a sua extensão, logo que estivesse sob os olhos maternos, era repe-

tida pela criança, mesmo quando interrogada por um estra-

nho.”

Todas essas observações contribuem para nos demonstrar as

comunicações de espírito para espírito.

Uma vista, em sonho, a distância, e uma audição formal fo-

ram-me relatadas por um dos meus correspondentes, o Sr. Mau-

rício Rollinet, informado pelo Sr. Doutaz, pároco de Domdidier,

cantão de Friburgo (Suíça). Ei-la, um pouco resumida:44

“Era em meados de novembro de 1859. Tinha então 18

anos. Deitei-me e adormeci.

Há quanto tempo me embalava nos braços de Morfeu? Ig-noro-o. De repente, apresentou-se ao meu espírito uma visão

estranha. Vi o rosto contristado de meu velho e querido pai, dirigindo-se da casa paterna para mim. Essa casa ficava à

distância de 24 quilômetros da cidade que habitava, perto de

Friburgo: “Venho dizer-te, meu caro José, com imensa afli-ção, que tua pobre irmã Josefina está moribunda em Paris.”

Despertado por essa visão, disse comigo: “Ora, é um so-nho!” e adormeci de novo.

Eis, porém, que a mesma visão se me apresenta ainda, como anteriormente, com a mesma aparência lamentável e

as palavras: “Meu caro José, etc.; mas tua mãe não sabe a-

inda da triste notícia.”

Desta vez, pensei eu, saltando da cama, não se trata de um

sonho; e, sob a penosa impressão de dolorosa realidade, ves-ti-me e consultei o meu relógio: era meia hora depois da

meia-noite.

No dia seguinte, fui para o liceu. Precisando de alguns ob-jetos que estavam no meu quarto, abordei a casa, guardada

por um porteiro idoso. Veio o bom velho para mim com um pacote na mão dizendo-me:

– Um senhor que chegou de sua terra encarregou-me de lhe entregar isto, com a maior urgência, da parte de seu pai.

Abri logo o pacote, no qual encontrei uma carta de meu pai, escrita à pressa, e que dizia:

“Caro José. É com imenso desgosto que venho dizer-te: tua pobre irmã está à morte em Paris... mas tua mãe não sabe

da triste notícia. O telegrama chegou-me pelas 10 horas da

noite e julguei preferível não avisar tua mãe por enquanto. São agora 11 horas. Depois da meia-noite, o nosso deputado

partirá para o grande Conselho. Juntarei a minha carta ao

pacote que tua querida mãe preparou para esta ocasião. Pro-cura reunir-te a nós, sem falta, amanhã de noite... Na minha

idade, não posso cumprir este doloroso dever. Tomarás o meu lugar!...”

Esta narração é acompanhada do seguinte certificado, assina-do pelo narrador:

“O abaixo assinado afirma em sua consciência que a nar-

rativa é perfeitamente exata e que guarda recordação precisa desse acontecimento, como se fora de ontem.

Domdidier, 18 de abril de 1918.

Jos. Doutaz, Cura.”

É impossível invocar aqui o acaso de uma coincidência for-

tuita entre este sonho e o acontecimento, e somos obrigados a

admitir que o pensamento do pai foi levado ao filho no próprio texto da carta que lhe dirigia.

45

Vê-se que tudo concorre para provar o valor absoluto da tese

aqui sustentada: a ação da alma, independente do corpo.

A seguinte sensação telepática foi relatada pelo Dr. Foissac

(Chance et Destinée, pág. 599), e passou-se com ele próprio. Não se cogitava então da importância destes fatos. Escreve o Dr.

Foissac:

“Quando eu era estudante de Medicina e interno no Hospi-

tal Dupuytren, sonhei que via meu pai atacado por uma en-fermidade que o levava ao túmulo. Despertei muito pertur-

bado, procurando dominar a minha inquietação, dizendo-me

a mim mesmo que havia deixado meu pai, no domingo ante-rior, de perfeita saúde; estava numa quarta-feira. Convenci-

me de que era uma verdadeira infantilidade ter receio de um

sonho e resolvi não fazer caso dele. Mas a imagem de meu pai moribundo continuava sempre presente no meu pensa-

mento, e para me libertar dessa obsessão, apesar de enver-

gonhado da minha fraqueza, segui para Saint-Germain, onde encontrei meu pai atacado da congestão pulmonar que o ar-

rebatou em cinco dias.”

A telepatia toma todas as formas.

Não é muito raro ver os jornais diários receberem os ecos de

observações desse gênero. O Daily Telegraph de 23 de agosto de 1906 publicou, entre outras, a narração de uma sua correspon-

dente, relatando que sua filha, uma pequenita de três anos, que

orava todas as noites, recusou uma vez rezar pelo êxito feliz da

viagem de sua avó, a caminho da Rússia para a Inglaterra.

– Não – dizia ela –, não rezarei hoje para que minha avó che-

gue de boa saúde, porque ela já chegou.

– Que dizes?

– Sim, eu vi o navio no porto, e ela está bem.

A correspondente acrescenta que tomou nota da data e que,

quando recebeu notícias de sua mãe, verificou que tinha real-

mente chegado, como a criança viu no seu sonho, na véspera do

dia em que ela se recusara a pronunciar a prece habitual. Observa a mesma correspondente que essa faculdade de vista a distância,

em sonho, existe na sua família e que ela mesmo viu, certa noite,

a explosão a bordo do “Great Western”, de que seu marido zombou quando ela lha contou, mas que foi forçado a reconhecer

a veracidade no dia seguinte, à chegada dos jornais.

Foi-me comunicada por uma amiga de longa data, a Sra. Do-

belmann, uma vista telepática, em sonho, de Estrasburgo a Paris, nos seguintes termos:

(CARTA 2.320)

“Não sei, caro mestre, se lhe fiz menção de um caso de te-

lepatia que me aconteceu em janeiro de 1901. Vivíamos já em Paris. Em fins de janeiro fomos chamados a Estrasburgo,

eu e meu marido, para o enterro de minha pobre mãe. Nos-

sos filhos não puderam acompanhar-nos, devido às leis de exceção. Bastante impressionada pelas muitas saudades, pela

temperatura, pelas tempestades de neve, tinha sonhos notur-

nos agitados. Uma noite, principalmente, senti uma angústia aguda e sonhei que via meu filho mais novo apertado entre

duas fileiras de tábuas que sobre ele haviam caído, não po-

dendo desprender-se e chamando: “Mamã!” Falei disso a minha irmã, ainda sob a impressão desse pesadelo, mas nem

eu nem ela ligamos importância ao caso.

Alguns dias depois, de regresso a Paris, a criada disse-nos, ao avistar-nos:

– O Sr. Juliano está muito melhor, já foi trabalhar.

– Então, esteve doente?

– Sim, teve de ficar alguns dias em casa, por se ter ferido numa perna. Ele não vos escreveu?

Quando meu filho chegou, respondeu às perguntas que lhe fizemos. Havia sofrido um acidente, em virtude de um mon-

tão de pranchas que sobre ele caíra: mas que era inútil assus-

tarmo-nos, pois nada de grave acontecera.

– Eu já o sabia – disse-lhe –; com isso sonhei uma noite;

mas, fato curioso, não reconheci a tua oficina; estavas entre pranchas, sem poderes levantar-te, num grande pátio desco-

nhecido em que o Sol brilhava.

– É exato – respondeu-me ele –, o Sol brilhava naquele di-a, e isto me aconteceu no pátio do vizinho, que descreves

bem, sem nunca o teres visto. Mas não me recordo de haver-te chamado.

Meu filho ter-me-ia chamado em sonho, de noite? É pos-sível; costumava sonhar em alta voz.

Devo acrescentar que foi a única vez que semelhante coisa me aconteceu.

Valérie Dobelmann

Rua Linné, 12, Paris.”

Vê-se que a variedade esmalta todas essas narrações sinceras, singelas e autênticas.

Documentam-se umas com as outras para nos provar que a

anatomia não encerra a realidade.

Eis ainda outro exemplo de vista a distância, em sonho, de

um incidente preciso.

Uma pessoa de minhas relações, a Sra. Izouard, de Marselha,

onde sua família é muito conhecida há mais de meio século,

contou-me um sonho muito curioso que, a meu pedido, resumiu

em algumas linhas, na carta seguinte:

(CARTA 1.021)

“13 de dezembro de 1901.

“Caro mestre:

Morava em Marselha, quando o acontecimento se deu em Sorgues, pequena cidade do Departamento de Vaucluse. Vi,

em sonho, uma amiga, nas mãos de um homem que lhe cor-tava a sua bela cabeleira e acordei muito impressionada.

Volvidos meses, soube que a senhora em quem vi fazer esta desagradável operação tinha de fato não só os cabelos

cortados, mas a cabeça inteiramente rapada, em conseqüên-

cia de grave doença. Meu sonho ocorreu no mesmo momen-to dessa doença; por tal motivo, conservei inesquecível re-

cordação dele.

V. Izouard.”

Não há distância para o espírito. Tem-se formulado a questão de saber se a alma dos videntes se transporta para o lugar visto,

se a pessoa avistada atua a distância sobre o vidente, ou também

se não existe simultaneidade de sensação das duas partes. Mas o que é o espaço para o pensamento?

Ver um desastre, a doença, a morte a distância, não é fato tão

raro como parece. Teremos ocasião de examinar adiante um

certo número de casos de vistas de mortos, exatas e precisas. Citemos, a respeito de telepatia, a surpreendente observação

seguinte, extraída do livro de Mrs. Crowe, Os Lados Obscuros

da Natureza:46

“Uma certa Sra. H., residente em Limerick, tinha, há al-

guns anos, ao seu serviço uma criada que muito estimava,

chamada Nelly Hanlon. Era pessoa de confiança que rara-

mente solicitava licenças, e a Sra. H. estava, por isso, dis-posta a atendê-la quando Nelly lhe pediu, uma vez, que a

dispensasse para ir à feira que se realizava a algumas milhas

de distância. Mas o Sr. H., ao voltar a casa e conhecendo os desejos de Nelly, declarou que não podia ser atendida na-

quele dia, porque tinha convidados para o jantar, e que só a

ela podia confiar as chaves da adega, pois os seus quefazeres não lhe permitiriam voltar a tempo de ele mesmo ir buscar o

vinho.

A Sra. H., não querendo contrariar Nelly, a quem já tinha dado o seu consentimento, disse que ela mesmo se encarre-

garia disso, e a criada partiu de manhã, muito alegre, prome-tendo voltar à noite se lhe fosse possível, ou o mais tardar na

manhã seguinte.

Passou-se o dia sem incidente e ninguém pensou em Nel-ly. Quando foi necessário ir ao vinho, a Sra. H. tomou as

chaves e dirigiu-se para a porta da adega em companhia de uma criada que levava um cesto com garrafas.

Havia começado apenas a descer os primeiros degraus da escada, quando soltou um grito e caiu sem sentidos. Levada

para a cama, a serva que a acompanhava disse aos outros

criados, assustados, que ela e a ama tinham visto Nelly, em baixo da escada e inteiramente molhada. Quando o Sr. H.

chegou, repetiram-lhe a mesma história: ele ralhou com a

criada, pela sua tolice. A Sra. H., voltando a si depois de al-guns cuidados, abriu os olhos, suspirou profundamente e ex-

clamou:

– Oh! Nelly Hanlon!... – e, logo que pôde falar, confirmou os dizeres da criada: tinha visto Nelly, ao fundo da escada,

escorrendo água.

O Sr. H. fez tudo quanto lhe era possível para convencê-la

de que tudo aquilo era uma ilusão, mas debalde!

– Nelly – disse ele – voltará em breve e há de rir-se com o

caso.

Anoiteceu e amanheceu de novo, e Nelly não deu sinal de

si. Passaram-se dois ou três dias. Tiraram-se informações, apurando-se que Nelly fora vista na feira, donde partiu à noi-

te para voltar a casa. Desse momento em diante nada mais se

sabia a seu respeito. Afinal, o seu corpo foi encontrado no rio, ignorando-se, porém, como tinha ocorrido o desastre.”

Pode pensar-se que a criada, ao afogar-se, acidentalmente sem dúvida, se transportou em espírito para junto de seus pa-

trões, a quem era muito afeiçoada. Essa vista telepática é particu-larmente notável por sua precisão e sua clareza.

Às vezes, essas sensações telepáticas a distância tomam uma

forma simbólica que não se adivinha desde logo. Recebi a se-

guinte carta com a narração de um sonho que se deu no Berry, a 240 quilômetros de Paris:

(CARTA 671)

“Na noite de 29 para 30 de agosto de 1892, fui particular-

mente emocionado por um sonho. Uma jovem de minhas re-lações havia casado com um funcionário, cinco anos antes.

O casal morava em Neuilly, e o seu segundo filho, de quinze

meses, achava-se em estado melindroso, devido a uma ente-rite, tendo seus pais pouco esperança de salvá-lo.

A minha imaginação dirigiu-se, pois, para esse pequeno ser, que de resto, à força de cuidados, veio a sobreviver e é

hoje uma criança encantadora.

Assim, eis o meu sonho:

Estava no quarto da minha amiga; ela permanecia de pé, em traje caseiro, os cabelos quase soltos; dos seus olhos caí-

am lágrimas abundantes; de toda a sua pessoa se irradiava

profundo desespero. No entanto, tinha ao colo, como que maquinalmente e por hábito, uma criança cujo rosto e corpo

emagrecidos caíam no seu ombro. Essa criança, imagem do

sofrimento, vivia e soltava alguns débeis vagidos.

Em breve a minha atenção era atraída pela entrada de dois

homens que traziam um objeto atravancador que colocaram no meio do quarto. Primeiro, esse objeto pareceu-me um

caixão de criança, e fiquei perturbada ao pensar que o pe-

quenino enfermo ainda estava vivo nos braços de sua mãe. Passado certo tempo, julguei que o fúnebre caixão se alon-

gava muito vagarosamente, tornando-se capaz de encerrar

avultado corpo. Com efeito, não tardava que os dois homens instalassem nele um grande cadáver, coberto com um lençol

branco.

A jovem amiga redobrava de prantos, de soluços desespe-rados, e repelia com a mão que tinha livre os assistentes, que procuravam arrancá-la a esse triste espetáculo. Tudo recusa-

va: crianças, família. Não existia para si senão o querido

morto que lhe arrebatavam e que nada no mundo podia subs-

tituir, dizia ela.

Como tantos outros sonhos, o meu acabou em confusão, e

ao despertar só me restava uma impressão penosa, com a re-cordação bem nítida, entretanto, das minúcias da principal

cena. Disse à minha criada, enquanto arrumávamos o quarto,

que havia acontecido qualquer coisa em casa dos nossos a-migos, que ela bem conhecia. Pensava eu que o terceiro fi-

lhinho esperado chegaria antes do prazo.

No dia 1º de setembro pela manhã, meu marido entrou no quarto trazendo na mão uma carta tarjada e, muito emocio-

nado, parecendo-lhe que era joguete de uma alucinação, lia, ou antes balbuciava um convite para o enterro do nosso ami-

go falecido, em 30 de agosto, com trinta e seis anos.

O infeliz havia sucumbido a um ataque de cólera, vítima, em plena mocidade e ventura, do flagelo pouco mortífero do

verão de 1892, que se desenvolveu em algumas localidades situadas a oeste de Paris.

Durante as poucas horas que durou o desespero de salvar o doente, sua mulher (soube depois que foram estas as suas

aspirações) havia pensado no médico amigo que meu marido

era para eles, o qual, na sua idéia, teria encontrado um re-médio libertador.

Quem explicará esta misteriosa atração?

O fato bem real é que vi, em espírito, colocarem o nosso

amigo no caixão e que tudo se deu como acabo de narrar. O corpo, como medida de higiene, foi colocado no ataúde em

uma hora adiantada da noite, tendo-se dado a morte entre as

quatro e cinco horas da tarde.

Dun-sur-Auron (Cher), 6 de junho de 1899.

A. Féron.”

Como não nos convencerão todas essas observações, ao mesmo tempo variadas, positivas e concordantes?

A respeito da vista a distância, em sonho, recebi de um cor-

respondente (o Sr. Egisto del Panto, de Sesto Fiorentino, Itália)

esta curiosa nota:

(CARTA 1.013)

“Num trem de Tolosa a Paris viajei com um cavalheiro de

meia idade, de maneiras distintas, com o qual não tardei a

entabular conversação. Falamos acerca de filosofia, de so-cialismo, de religião, e ele deu-me a entender que era muito

crente, e que a isso o tinha levado uma grande infelicidade

que o ferira pouco tempo antes.

Declarou-me ser a primeira vez que revelava a pessoa es-

tranha a horrível desgraça que o atingira. Se bem me lembro, toda a sua família perecera numa inundação, em Tolosa.

Pois bem! Esse cavalheiro, que me pareceu ser um profes-

sor, declarou-me que poucos dias depois daquele doloroso acontecimento, tinha visto em sonho o lugar onde se achava,

debaixo d’água, o cadáver de um dos seus filhos afogados e

que, indo procurá-lo no dia seguinte, o encontrou exatamen-te nesse sítio. Não seria crível que uma excelente pessoa de

cinqüenta anos, de cultura superior, me tivesse contado, com

lágrimas nos olhos, uma história falsa.”

Eis um exemplo muito notável de vista a distância, em sonho, de um desastre inteiramente particular. Extraí-o da obra Phan-

tasms of the Living, tomo I, pág. 338, e da sua tradução francesa,

As Alucinações Telepáticas, pág. 107. O cônego Warburton, de Winchéster, escrevia em 16 de julho de 1883:

“Partira de Oxford para ir passar um ou dois dias com meu

irmão, Acton Warburton, advogado. Quando cheguei a sua

casa encontrei um aviso dele sobre a mesa. Desculpava-se por estar ausente, dizia-me que tinha ido a um baile para os

lados de West End e que tencionava estar de volta pouco de-

pois da uma hora. Em vez de ir para a cama, fiquei a dormi-tar numa poltrona. Exatamente à uma hora despertei sobres-

saltado, exclamando: “Por Júpiter! ele caiu!” Via meu irmão

saindo de uma sala para um patamar profusamente ilumina-

do e tropeçar no primeiro degrau da escada, caindo de cabe-

ça para a frente e amortecendo o choque com o auxílio dos

cotovelos e das mãos. Eu não conhecia a casa, nem sabia pa-ra que lado ficava. Não ligando importância ao incidente, re-

adormeci. Meia hora depois fui acordado pela chegada brus-

ca de meu irmão, que exclamou:

– Ah! estás aqui! Escapei de boa! Ia quebrando a cabeça.

Ao deixar o salão de baile, tropecei e despenhei-me pela es-cada.”

Tal é a narração do cônego, que declara, conjuntamente, que nunca sofreu de alucinações.

Parece-me que houve, nesse caso, não uma transmissão tele-

pática propriamente dita do irmão do narrador (o qual, entretan-to, podia ter pensado nele de repente e com intensidade), mas

antes uma vista sem os olhos provocada por essa comoção

telepática, tanto mais que o reverendo Warburton afirma em seguida que viu um patamar profusamente iluminado, um relógio

e mesas preparadas para refrescos, tudo conforme à realidade.

Publiquei um caso muito semelhante a este (queda numa es-

cada também) em O Desconhecido (capítulo VIII, caso XXXI), e um outro do mesmo gênero, no mesmo livro (capítulo VII, caso

XLVI).

Estudaremos especialmente este fato curioso da vista sem o-

lhos no capítulo seguinte. Ele demonstrará, com evidência ainda mais formal que os precedentes, a existência das faculdades

transcendentais da alma.

Essas vistas a distância, essas impressões telepáticas, obser-

vam-se também fora dos sonhos, ou pelo menos em espécies de entorpecimentos. Vamos ler, por exemplo, a seguinte observação

do advogado Richard Searle, comunicada à Sociedade de Pesqui-

sas Psíquicas, em 2 de novembro de 1883:

“Uma tarde, redigia eu um memorial, sentado à minha se-

cretária, no templo. Essa secretária está colocada entre uma

das janelas e a chaminé; a janela dá para o templo. De repen-

te, notei que olhava através da vidraça inferior, que estava à altura de meus olhos, e que via a cabeça de minha mulher,

caída para trás, com os olhos fechados e o rosto pálido e lí-

vido, como se estivesse morta.

Agitei-me na cadeira, procurei voltar a mim; depois levan-tei-me e olhei pela janela: só vi as casas em frente. Concluí

que havia adormecido. Dei algumas voltas pelo quarto, para despertar completamente, e voltei ao meu trabalho, sem mais

pensar no incidente.

Voltei para casa à hora do costume. Enquanto jantava com minha mulher, ela contou-me que havia merendado em casa

de uma amiga que morava em Gloucester Gardens e que ti-nha levado com ela uma menina (uma sobrinha que morava

conosco), mas que durante a merenda, ou pouco depois, a

criança caíra, ferindo-se no rosto. O sangue jorrara. Minha mulher acrescentou que desmaiara. Voltou-me ao espírito a

visão da janela e perguntei-lhe a que horas ocorrera o fato.

Respondeu-me:

– Às 2 horas e poucos minutos.

Fora naquele momento que eu vira a cena. Devo dizer a-inda que foi esta a única vez que minha mulher desmaiou.

Contei, nessa ocasião, a história a diversos amigos.

Richard Searle.”

Confirmando esse incidente, escreve o Sr. Paul Pierrard, 27,

Gloucester Gardens, em Londres:

“Pode ser interessante haver uma narração exata do fato

extraordinário que aconteceu na minha casa de Gloucester Gardens.

Senhoras e crianças estavam reunidas, uma tarde, em mi-nha casa. A Sra. Searle, de Home Lodge, Herne Hill, tinha

vindo com sua pequena sobrinha Luísa. Como as crianças

brincassem ruidosamente, correndo muito à volta de uma mesa, a pequena Luísa caiu da cadeira e feriu-se ligeiramen-

te. O receio de um acidente grave provocou viva emoção na

Sra. Searle, que desmaiou. No dia seguinte encontramos o Sr. Searle que nos contou que na véspera, de tarde, enquanto

examinava um negócio no seu escritório, 6, Pump Court, no

templo, sentira singular impressão e vira, distintamente co-

mo num espelho, a imagem de sua mulher desmaiada.

Essa visão coincidiu com o acidente. O fato é irrecusável.”

Parece que houve aqui comunicação instantânea entre os dois espíritos, do marido e da mulher.

A vista sem os olhos, a distância, pela telepatia, de fatos que

se dão a dez, vinte, cinqüenta, cem, duzentos quilômetros e mais não é duvidosa para os que estudam este assunto.

Aqui temos um exemplo, relatado em fevereiro de 1901, nos

Proceedings da Sociedade Inglesa de Pesquisas Psíquicas, que os

investigadores desses estudos já viram citado diversas vezes depois.

47 Trata-se de visão muito nítida, à distância de 230

quilômetros. O autor, o Sr. David Fraser Harris, autor de confe-

rências magistrais na Universidade de Santo André, relata-a nos seguintes termos:

“Há alguns anos um negócio urgente impediu-me de vol-

tar para casa, em Londres, no fim da semana. Pouco disposto

a passar o domingo em Manchester, fui, na tarde do sábado, a Matloch Bath, para o gozar aí tranqüilamente, e regressar

na segunda-feira pelo comboio da manhã.

Chegando ao meu destino, um pequeno hotel familiar pró-ximo à estação, pedi logo uma chávena de chá e entrei no sa-

lão para me aquecer, pois corria um dia de janeiro muito fri-o, caía neve com abundância e o termômetro marcava mui-

tos graus abaixo de zero.

Como era o único viajante que estava no hotel naquele momento, enquanto esperava pelo chá instalei-me mui con-

fortavelmente em boa poltrona, diante do fogo que me resti-tuía à alegria. Não eram horas ainda de acender o gás e, no

entanto, já não se via para ler. Estava de costas para a janela

e não pensava em nada de particular. Encontrava-me em per-feito estado de tranqüilidade e de passividade. De repente,

perdi a noção do meio em que estava. Em vez da parede e

dos quadros que nela se viam suspensos, achei-me em frente da fachada de minha casa de Londres; minha mulher, que es-

tava à porta, falava com um operário que tinha vassoura nas

mãos.

Parecia muito aflita e tive instantaneamente a certeza de que o homem estava em grande miséria. Não entendia a

conversa, mas um palpite dizia-me que o infeliz pedia a mi-nha mulher que o socorresse. Nesse momento o criado trou-

xe o chá; a minha visão dissipou-se, mas a impressão que

me deixou foi tão profunda e fiquei de tal modo convencido de ter visto alguma coisa de real, que depois de tomar o chá

escrevi a minha mulher, participando-lhe o que acabava de

acontecer-me. Pedia-lhe que se informasse a respeito desse homem e que o auxiliasse tanto quanto possível.

Ora, eis o que havia ocorrido em Londres: um rapaz batera à porta de minha casa (que dista 230 quilômetros do lugar

em que eu me encontrava), falara à criada e oferecera-se-lhe

para varrer, por dez centavos, a neve que atulhava o passeio e a soleira da casa. Enquanto o rapaz combinava esse servi-

ço, chegou um pobre diabo coberto de farrapos, que disse:

– Dê-me a preferência, por favor; este moço gastará pro-vavelmente os dez centavos que lhe derem em doces, ao

passo que eu preciso desse dinheiro para comprar pão. Te-nho mulher e quatro filhos, todos doentes, sem nada para a-

cender o lume e para lhes dar de comer...

A criada pediu ao homem que esperasse e foi avisar minha mulher, que veio falar com o infeliz. Repetiu que estivera

doente, que sua família se encontrava em profunda miséria, mas que antes de se dirigir à assistência pública, queria pro-

curar um trabalho qualquer.

Foi esta a cena que eu vira no momento exato em que se passava; era provavelmente a impressão que a miséria do

pobre homem produzira no espírito de minha mulher que se havia transmitido ao meu.

Eis como a história acabou: minha mulher prometeu ao homem que iria a casa dele, à noite, para ver o que poderia

fazer. O homem falara verdade. Minha mulher deu-lhe o que pôde em dinheiro, roupas, comida e combustível. Inútil seria

acrescentar a surpresa que lhe causara a minha carta, recebi-

da na segunda-feira de manhã. Alguns dias depois eu próprio

vi o homem; era o mesmo exatamente que tinha observado na minha visão. Encontrou mais tarde um emprego numa lei-

taria e veio distribuir leite no nosso quarteirão, durante mais

de dois anos.

David Fraser Harris.”

Não há, nesta observação positiva, prova absoluta da faculda-

de da alma que nada tem de comum com o olho material, a

retina, o nervo óptico e o cérebro? Não estará neste caso só o espírito em ação? Transmissão psíquica a distância, porque o

observador não só viu a cena, mas percebeu ainda a natureza da

conversa entre o mendigo e sua mulher.

As comunicações psíquicas, mentais, entre vivos, tomam de

quando em quando a forma auditiva, como já mencionamos.

Ouve-se uma voz, uma chamada urgente, e essa voz, essa cha-

mada corresponde a um desejo, a uma intenção, a um projeto, a uma espécie de ordem longínqua a que é prudente obedecer.

Eis aqui um caso absolutamente notável, experimentado pelo

Dr. Nicolas, Conde Gonemys, de Corfu:48

“Era médico militar do Exército grego, em 1869. Por or-

dem do Ministério da Guerra, fui destacado para a guarnição da ilha de Zante. Quando me aproximava da ilha, onde ia

desempenhar meu novo cargo (estava a cerca de duas horas

do litoral), ouvi uma voz interior dizer-me repetidas vezes em italiano: “Vai ver Volterra”.

Esta frase foi tantas vezes repetida que fiquei atordoado; apesar do meu bom estado de saúde, alarmei-me, acreditan-

do numa alucinação auditiva. Nenhum motivo tinha para

pensar no Sr. Volterra, morador em Zante, que não conhecia, apesar de o ter visto uma vez, dez anos antes. Procurei tapar

os ouvidos, conversar com meus companheiros de viagem.

Tudo foi inútil; a voz continuava a fazer-se ouvir da mesma forma. Enfim desembarcamos e eu fui direitinho para o hotel

e tratei de desfazer as malas, mas a voz continuou a ator-mentar-me. Pouco depois um criado entrou e preveniu-me

de que me procurava um cavalheiro que desejava falar-me

imediatamente.

– Quem é? – perguntei.

– O Sr. Volterra – responderam-me.

Ele entrou muito choroso e aflito, suplicando-me que o

acompanhasse para ver seu filho que estava doente.

Encontrei o moço sofrendo ataques de loucura, em delírio,

nu, fechado num quarto, abandonado por todos os médicos de Zante, havia cinco anos. Tinha um aspecto hediondo, que

se tornava ainda mais assustador com os acessos contínuos,

acompanhados de silvos, uivos, latidos e outros gritos de a-nimais. Umas vezes estorcia-se sobre o abdômen, como uma

serpente; outras, caía de joelhos em êxtase. De quando em

quando, falava e brigava com entes imaginários. Às crises violentas seguiam-se, em certas ocasiões, síncopes prolon-

gadas e completas. Quando eu abri a porta do seu quarto, ati-

rou-se furioso contra mim; mas fiquei imóvel e agarrei-o pe-lo braço, olhando-o fixamente. Depois de alguns instantes o

seu olhar perdeu a força, pôs-se a tremer e caiu, de olhos fe-

chados. Fiz-lhe passes magnéticos, e em menos de meia hora encontrava-se em estado de sonambulismo. A cura levou

dois meses e meio, durante os quais observei mais de um fe-

nômeno interessante. Depois do restabelecimento não teve mais recaìda.”

Uma carta do Sr. Volterra ao Conde Gonemys, em data de 7 de junho de 1885, de Zante, confirma completamente o que se

acaba de ler, relativamente à família Volterra. A carta referida termina assim:

“Antes da sua chegada a Zante, não tinha quaisquer rela-

ções com o senhor, apesar de ter passado alguns anos em

Corfu como deputado da Assembléia Legislativa. Nunca lhe tinha falado, nem dirigido uma palavra a respeito de meu fi-

lho.

Jamais havíamos pensado no senhor, nem pedido o seu auxílio, senão quando o fui ver à sua chegada a Zante, como

médico militar, suplicando-lhe que salvasse o doente.

Ao senhor em primeiro lugar, e depois ao magnetismo, devo a vida desse filho. Julgo da minha obrigação afirmar-

lhe o meu reconhecimento sincero e assinar-me

Seu muito afetuoso e grato

Demétrio Volterra (Conde Crissoplévri).

Assinantes adicionais:

Dionísio D. Volterra (Conde Crissoplévri).

Laura Volterra (esposa do Sr. Volterra).

Anastásio Volterra (o doente curado).

Testemunhas: G. Vassapoulos, Lorenzo Mercáti, Demétrio, Conde Guerino.”

Outro caso de audição a distância:

O Dr. Balme, de Nancy, tratava a Sra. Condessa de L., que

sofria de dispepsia. A enferma não faltava a nenhuma das suas consultas e nunca entrou na sua residência, situada fora

da cidade. Três dias depois de uma das suas visitas, em 19

de maio de 1899, ao entrar em casa e atravessar a sala de es-pera, ouviu ele estas palavras: “Como me sinto mal! Não es-

tá aqui ninguém para me socorrer?” Escutou, em seguida, o

choque de um corpo que caía. A voz era a da Sra. de L. Nin-guém em casa, segundo verificou, tinha visto ou ouvido esta

senhora. Retirou-se para o seu gabinete de trabalho, concen-

trou-se e, pondo-se em ligeiro estado de hipnose, transpor-tou-se para a casa da doente. Percebeu todos os seus gestos e

fatos e notou-os com minúcia.

A Sra. de L. veio visitá-lo e comunicou-lhe as suas im-pressões, que eram conformes, em todos os pontos, às do

médico. Este perguntou-lhe:

– Depois de se ter recolhido ao seu quarto, que procurava

a senhora ao seu derredor?

– Parecia-me que me fitavam – respondeu ela.

Este caso, que tem o mérito de haver sido registrado por ob-servador experimentado, levou o Sr. Primot às seguintes refle-

xões:

“Parece bem uma chamada telepática partida da sua doente –

chamada que explica a angústia desta e que se traduzia, para

quem a percebeu, por uma impressão de forma auditiva exercida

sobre o seu subconsciente – a que o Dr. Balme respondeu, colo-cando-a em estado de hipnose suficiente para tornar possível a

exteriorização do seu centro psíquico de percepção, por um

esforço de auto-sugestão e, por assim dizer, a sua excursão telestésica ao domicílio da sua cliente. Essa interpretação é

confirmada pelo fato de a enferma declarar que teve a sensação

da presença do médico. “Parecia-me, disse ela, que me fitavam.” Por outras palavras: houve, de uma parte, transmissão de pensa-

mento, ou de sensação, isto é, ação telepática, da doente ao

médico, e de outra parte, em resposta ao pensamento transmitido, exteriorização pelo médico, em estado de semi-sonambulismo, e

traspasse para perto da doente, do seu centro psíquico de percep-

ção, isto é, ação telestésica.

“Este termo de traspasse será exato e representará as condi-

ções reais do fenômeno? Talvez que o organismo psíquico nem

careça de se transmitir de um ponto para outro, para agir e sentir

eficazmente, apesar da distância. O que podemos afirmar com certeza é que os fatos ocorrem como se houvesse realmente

transmissão. No fundo, isto pouco importa, pois, interpretando-

os de qualquer maneira, eles são a prova patente e vivaz das faculdades e forças extraordinárias que pertencem ao organismo

psíquico.” 49

A audição a distância, que vou apresentar, é inadmissível se

não se quiser admitir como verdadeiro que o espírito, a alma, a nossa entidade psíquica (seja qual for o nome empregado) atua

fora do corpo e do alcance dos sentidos.

O Sr. Rod Fryer, autor da narração (Alucinações Telepáticas, pág. 293), escreve:

“Janeiro, 1883 – Ocorreu acontecimento estranho no ou-

tono de 1879.

Um dos meus irmãos estava ausente de casa, quando uma tarde, pelas 5 horas e meia, ouvi, admirado, chamarem-me

distintamente pelo meu nome. Reconheci com tanta clareza a voz de meu irmão que percorri toda a casa para encontrá-

lo; mas, não o encontrando e sabendo que estava a 40 milhas

de distância (64 quilômetros), acabei por acreditar numa ilu-são e não pensei mais nisso. Quando meu irmão voltou, seis

dias depois, contou-me que havia escapado de um acidente

bastante sério. Ao descer de um comboio, o pé escorregara-lhe, e tinha caído no cais...

– O que é curioso – disse ele – é que quando senti que ia cair chamei por ti.

Este fato não solicitou a minha atenção no momento, mas quando perguntei a que horas se tinha dado o desastre, indi-

cou-me um instante correspondente em absoluto àquele em

que eu o tinha ouvido.”

O Sr. John E. E. Fryer, a vítima do acidente, interrogado, es-creveu o seguinte:

“Newbridge Road, 16 de novembro de 1885.

Viajava em 1879 e tive de deter-me em Gloucester. Quan-do desci do comboio, caí e um empregado do caminho de

ferro ajudou-me a levantar. Perguntou-me se estava ferido, e

se alguém viajava comigo; respondi negativamente às duas perguntas e pedi-lhe que me dissesse por que se interessava

tanto por isso.

– Porque o senhor mencionou o nome de Rod – respon-deu-me.

Ao chegar a casa, contei o acidente e meu irmão pediu-me a hora e o dia em que ele ocorrera. Disse-me então que me

havia ouvido chamá-lo naquele momento. Estava certíssimo de que era a minha voz e que me procurara por toda a casa.”

É tal a coincidência que a correlação se impõe. Esta voz atra-vessou o espaço como no telefone.

São outros tantos fenômenos de telepatia, de transmissão psí-

quica, incontestáveis, que põem em evidência as faculdades

transcendentes da alma, diferentes do que aprendemos na psico-

logia fisiológica clássica: vista e audição a distância, por ondas

psíquicas.

Não voltarei ao que já escrevi a respeito da transmissão dos

pensamentos. O próprio fato da leitura do pensamento já foi

muitas vezes certificado por sérias experiências. Aqui temos

ainda uma dessas experiências, relatada pelo Dr. G. de Messimy e observada num indivíduo em estado de sonambulismo:

“A lucidez do meu sujet estendia-se até à própria leitura

do pensamento dos assistentes... Pedindo a doze pessoas da

sociedade para se colocarem diante dele..., aconselhamos a cada uma delas que pensasse numa flor escolhida livremen-

te, sem comunicar o nome a quem quer que fosse... voltan-

do-me então para o sujet, ordenei-lhe que nomeasse, em alta voz, a flor em que pensara cada pessoa, e ele nomeou-as to-

das, sem hesitação nem erro, lendo como num livro o pen-

samento humano.”

Trata-se de uma experiência entre cem do mesmo gênero.50

A transmissão do pensamento é tão certa como a transmissão

do calor, da luz, da eletricidade, do magnetismo solar.

A visão telepática produz-se sem o auxílio dos olhos. A dis-

tância, os obstáculos materiais não a prejudicam. O tempo é

muitas vezes para ela tão indiferente como o espaço. Vê-se um acontecimento presente, passado ou futuro. Este fato psicológico

põe em jogo uma faculdade do espírito independente do nosso

organismo.

Se à dedução aqui afirmada de que esses pressentimentos, es-

sas sensações telepáticas comprovam a existência da alma inde-

pendente do corpo, se objetasse a hipótese de que essas faculda-

des normais podem pertencer ao cérebro e não a um princípio mental, e não provam melhor a individualidade da alma que o

faro de um cão ou o instinto do pombo correio, responderíamos

que uma análise cuidadosa dos fatos conduz todo espírito livre a uma dedução contrária, porque se trata, neste caso, de exercícios

do pensamento e não do organismo físico. Estou aqui inteira-

mente num mundo invisível de ordem psíquica.

Que se atribuam essas percepções ao “inconsciente”, ao “sub-

consciente”, ao “subliminal”, o nome pouco importa: o que

sentimos aqui é uma entidade espiritual em ação, é a alma.

Não é nem a retina, nem o nervo óptico, nem seu confinante

no cérebro que estão em jogo. Todas as funções imagináveis de

uma substância cerebral qualquer não podem ler no espírito,

perceber um fato que se dá nos antípodas, ou uma cena que ainda não ocorreu.

Essas transmissões realizam-se pelo éter? Se se assemelham à

luz como fenômenos de ordem vibratória, diferem dela entretan-

to no que a luz diminui em razão do quadrado da distância, ao passo que o pensamento parece transmitir-se integralmente, com

a mesma intensidade. Um meio apropriado favorece a transmis-

são?

A teoria moderna das ondas etéreas está provada; mas estará

anulada realmente a antiga teoria newtoniana sobre as emissões?

Não se manifestam certas emissões? A ação repulsiva do Sol

sobre as caudas dos cometas não deporá em seu favor? As auro-ras boreais não têm por origem uma emissão solar? Os íons, os

elétrons, não atravessam o espaço?

Examinaremos, no capítulo seguinte, observações irrecusá-

veis da vista sem os olhos, pelo espírito, fora das transmissões telepáticas; mas é assaz difícil decidir, em muitos casos, se a

telepatia – a correspondência do pensamento – é inteiramente

estranha à vista a distância. Eis, entre cem também, uma vista de falecimento à qual o morto parece alheio; mas estamos próximos

da fronteira entre os dois domínios.

O autor da carta abaixo reproduzida relata-nos como ouviu,

em sonho, a morte de seu pai:

“Les Montiers, outubro de 1911.

Faz já dois anos que tenho a intenção de lhe comunicar o

fato seguinte, semelhante em muitos pontos aos que o se-nhor relata nas suas obras.

Peço-lhe a fineza de não revelar o meu nome.

Em janeiro de 1909, era tabelião em Saint-Martin des No-yers (Vendea) e acabava de adquirir o notariado de Moutiers

les Maufaits, onde moravam meus parentes e do qual me

tornei, mais tarde, proprietário.

Em 9 de janeiro de 1909 fui a Moutiers passar algumas horas com minha família, deixando-a de boa saúde. Dias de-

pois minha mãe mandou-me notícias suas e de meu pai. Pas-savam bem.

Na noite de 30 para 31 de janeiro sonhei que chegava à casa familiar. Na sala de visitas noto muitas pessoas debru-

çadas num leito improvisado. Afasto-as para abrir passagem

e vejo meu pai morto, deitado num colchão colocado sobre dois cavaletes.

Soluço, o que desperta minha mulher, deitada a meu lado. Ela acorda-me, perguntando-me o que tinha. Respondi-lhe:

– Não é nada; acabo de ter um sonho insensato; sonhei que meu pai morreu.

Adormecemos novamente sem inquietações, depois de eu verificar que eram 5 horas e meia da manhã.

No dia seguinte soube que meu pai, que se encontrara um pouco indisposto pelas 11 horas da noite anterior, falecera às

5 horas e meia, justamente no momento em que tive o sinis-

tro pesadelo; haviam-no deitado num leito igual ao que eu tinha visto em sonho, e na sala, como mo havia mostrado a

aparição.”

Qual foi o papel da telepatia nesta vista a distância? A nossa documentação é demasiadamente rica... A árvore da nossa ciência possui tal quantidade de ramos que cada um reclama

estudo especial.

Aqui temos um caso de vista a distância, de notável precisão,

por uma criança de sete anos, comunicada ao professor Richet pelo Dr. Jean, médico-ajudante durante a última guerra.

51

“Vai para dez anos, tratava eu, na minha aldeia, em Cogo-

lis (Var), um doente, rapaz de cerca de 7 anos de idade... Fui

chamado com urgência certa manhã para perto do pequeno enfermo. A mãe, assustada, contou-me que a criança tivera

de repente um acesso de delírio. Deitara como de costume e

tudo parecia ir bem, quando pelas 10 horas se levantou da

cama, apavorado por uma alucinação. Via água por toda par-

te e começou a pedir socorro, dizendo que seu pai se afoga-va. O pai estava ausente, tinha ido a Nice, onde vivia seu ir-

mão, e devia demorar-se aí alguns dias. Quando cheguei, o

pequeno estava tranqüilo, mas persistia em dizer que tinha visto seu pai afogar-se.

Um telegrama do irmão, em breve, chamava com urgência a viúva (pois o era com efeito) a Nice, e nesta cidade soube

ela que seu marido se afogara de manhã, pelas 10 horas,

procurando salvar seu irmão que, tomado de câimbras, corria risco de perecer no mar, e as suas últimas palavras haviam

sido: “Meus pobres filhos...”

Outro fato ainda: um mestre-escola do Departamento do Var, que me pede para não publicar o seu nome, escrevia-me:

(CARTA 2.217)

“De manhã, ao despertar, um homem das minhas relações

disse à mulher, deitada a seu lado:

– É preciso que me levante já; acabo de ver que ladrões entraram em nossa casa de campo. Eles comem e bebem;

vou lá.

Sua mulher exclamou:

– Mas estás doido! Como podes ver isso daqui? Torna a deitar-te, vamos!

– Não, não, eu vi!

Persiste na sua afirmativa, veste-se, pega numa espingar-da, corre à sua casa de campo e traz presos dois vagabundos

que lhe haviam arrombado a vivenda e os entrega à autori-

dade.

F., a S. (Var), 23 de janeiro de 1912.”

Qual é aqui a parte das transmissões de pensamentos? Sem

dúvida, os ladrões deveriam ter receio do dono e pensar em não

serem presos. Talvez se trate, também, de uma vista a distância,

sem ação telepática, e poderíamos inscrevê-la no capítulo se-

guinte. Tudo se prende nesta documentação.

Imagina-se, geralmente, que as observações de comunicações

telepáticas são modernas; é um erro. Pode-se ler, por exemplo, numa obra impressa em 1752 (Dissertações), de Langlet-

Dufresnoy, tomo II, 2ª parte, pág. 88) esta frase: “Nos sonhos, os

objetos dirigem-se para nós, nos lugares afastados, pela afinidade do espírito com o ar exterior. Há pessoas que, a cem léguas de

distância, souberam da morte dos seus amigos, no momento em

que eles morreram.”

Vemos por isto que os fatos consignados nos escritos de Pe-

trarca e outros observadores já estavam generalizados por certos

filósofos do século XVIII como fazemos hoje. Não admitimos as

suas interpretações; as nossas, sem dúvida, valem um pouco mais, mas não nos iludamos demasiadamente com o seu valor

intrínseco.

Imagina-se também que essas observações são raras, raríssi-

mas, duvidosas, incertas. É igualmente um erro. Há meio século que as minhas práticas me mostram que há, pelo menos entre

cada dez pessoas, uma que conhece, seja por si, seja por paren-

tes, um fato de telepatia, de premonição, de aviso de morte, de vista do futuro, numa palavra, de ação psíquica; mas, em geral, e

não sei por que, calam-se, escondem-nos, dissimulam-nos,

velam-nos como coisa inconfessável. Conseqüência de uma educação falsa e de receios imaginários.

A telepatia tem mais fundamento, uma base mais universal e

mais segura, que qualquer religião.

Os fatos sobre os quais se baseou a religião cristã nas suas

diferentes seitas (Catolicismo, Protestantismo, Ortodoxia, etc.) ou os que formam a base do Judaísmo, do Islamismo, do Budis-

mo e das outras religiões que a Humanidade professa, foram

menos comprovados, observados com menos cuidado, demons-trados menos nitidamente que os atos psíquicos que estudamos

nesta obra. Explica-se, pois, perfeitamente, que certas almas que desejam aproximar-se da Verdade se tenham dedicado aos

estudos positivos que prosseguimos neste livro, como outras

pessoas, às religiões.

Uma palavra mais:

Da mesma forma que a análise espectral da luz nos permite

hoje descobrir, nas ondulações luminosas, a constituição química

dos corpos situados na atmosfera, de astros distantes de nós milhares de milhões de quilômetros, não é impossível que uma

análise de radiações psíquicas permita entrar-se um dia em

comunicação com a vida e o pensamento dos seres que habitam essas longínquas paragens.

O fato, hoje verificado, da propagação do pensamento pela

sugestão mental a grandes distâncias indica a possibilidade de

uma espécie de irradiação da consciência humana, de um astro para outro, por meio de ondulações de especial sutileza.

CAPÍTULO VII

A vista sem os olhos, pelo espírito,

fora das transmissões telepáticas

– Lucidez. – Criptoscopia.

“Os fatos são mais úteis quando contradizem do que quando apóiam

as teorias aceitas.”

Humphry Davy

Se fatos incontestáveis, que provam a ação da vontade sem o

auxílio da palavra nem de qualquer sinal exterior, assim como a

transmissão do pensamento a distância, mostram que há em nós um ser mental que pensa, quer e leva sua ação além da periferia

dos sentidos orgânicos, as observações, não menos certas, da

vista sem os olhos irão oferecer-nos o mesmo testemunho, inde-pendente dos precedentes, mas confirmando-os e completando-

os.

Este assunto especial é por si tão rico e documentado que, a-

nalisando-o, há alguns anos, fui levado a consagrar-lhe uma obra inteira, que ainda não foi publicada. Escolherei alguns documen-

tos significativos, fora das transmissões telepáticas que acaba-

mos de examinar e que, no entanto, podem ser-lhes às vezes associados. Há aqui uma categoria curiosa de fatos especiais a

estudar.

É seguramente uma das mais interessantes faculdades desco-

nhecidas da alma, a ser examinada. Certas personalidades são dotadas delas em seu estado normal, fora dos sonhos ou do

sonambulismo natural ou artificial; mas é principalmente nesses

estados do sono que observamos a produção de tais fenômenos. Esta vista a distância, diretamente ou pela leitura do pensamento

num cérebro, parece-me um testemunho da existência em nós de um princípio lúcido imaterial, bem pessoal. Pretender que a

matéria cerebral segrega o pensamento é já singularmente auda-

cioso; mas acrescentar que o cérebro expede o pensamento para

ir procurar o dos outros homens, compreendê-lo e comentá-lo, ainda é mais extravagante. É confundir o efeito com a causa,

pois neste ponto, ainda, o pensamento se mostra como causa e

não como efeito. A sua atividade pessoal é evidente.

Se há um conjunto de palavras capaz de provocar um brado

de indignação no espírito do homem de ciência, é seguramente

este: a vista sem os olhos, pela fronte, pelo ouvido, pelo estôma-

go, pela ponta dos dedos, pelos pés, pelos joelhos, pela visão interior, através dos corpos opacos ou a longas distâncias quilo-

métricas. Que afirmação insustentável e que paradoxo!

A fronte, o estômago, as mãos, os pés, os joelhos não são ór-

gãos de visão: não é por aí que ela se opera; é o espírito que vê.

O biologista que conhece o maravilhoso aparelho óptico do

olho, tão perfeitamente adaptado à recepção das imagens, não

pode admitir que essas imagens sejam distinguidas sem esse

mecanismo apropriado, obra-prima da evolução orgânica secular, desde o olho rudimentar do trilobite das idades geológicas pri-

mordiais até o homem.

Pela minha parte, levei anos e anos sem querer empreender

nenhum exame desta questão, apesar das afirmações dos meus amigos psicólogos e das que eu tinha encontrado nas obras dos

magnetizadores. Um astrônomo é o último dos humanos disposto

a acolher o estudo de um tal problema e eu não podia deixar de pensar nos sonâmbulos das feiras e nos truques dos pretensos

leitores de pensamentos, cujos exercícios de salão nos divertem.

Entretanto, depois do meu inquérito de 1899 sobre os fenô-

menos psíquicos, fui levado a publicar, no capítulo VIII de minha obra O Desconhecido 49 observações dignas de fé sobre a

vista a distância, em sonho, e tomei o partido de estudar livre-

mente, e sem nenhuma idéia preconcebida, este assunto de tamanha importância. Julguei poder afirmar nesta obra a seguinte

declaração: “Pode-se ver sem os olhos, ouvir sem os ouvidos, não por hiperestesia do sentido da vista ou do ouvido, pois estas

observações provam o contrário, mas por um sentido interior,

psìquico, mental.”

A vista a distância e a lucidez são testemunhos irrecusáveis

dessa faculdade transcendente, pertencente à alma e não ao

arranjo molecular químico e mecânico do cérebro.

Abrimos os dicionários e nada encontramos nas palavras: Vis-

ta, segunda vista, dupla vista, penetração, senão o cepticismo

mais completo, na ignorância total dos fenômenos.

Os fatos que vamos apreciar confirmam as premissas publi-

cadas por mim há vinte anos. As objeções que alegamos para fazer intervir o erro, a ilusão, o embuste, a simulação, a fraude, a

empalmação e tudo quanto se possa imaginar, dissipam-se em

fumo e deixam brilhar, para o futuro, a verdade com toda a sua luz.

O mesmo se dá com a explicação pelo tato, que só se pode

admitir em certos casos especiais.

A tese que aqui sustento é capital, sob o ponto de vista filosó-

fico, pois tem por conseqüência a supressão do famoso princípio de Aristóteles, de Locke, de Condillac, e da escola sensualista:

nil est in intellectu quin prius fuerit in sensu (Tudo o que é

entendimento nos chega pelos sentidos). Ora, se se pode ver sem os olhos, é por um ato de faculdades psíquicas internas, por uma

forma desconhecida independente do sentido da visão normal. O

entendimento recebe assim conhecimentos que não vieram pelos sentidos.

Verificamos que muitos casos de vista a distância, ou de coi-

sas ocultas, não são leituras do pensamento no cérebro de ou-

trem; entretanto, também nesses casos, ler no pensamento ainda é uma vista sem os olhos. Não gosto muito de neologismos, e

parece que se criam excessivas palavras novas nas ciências

psíquicas, muito rudimentares ainda; mas, já que se trata aqui da vista de coisas ocultas aos nossos olhos, a palavra criptoscopia

está naturalmente indicada para definir este gênero de estudos.

O primeiro fato de observação positiva que chamou minha

atenção, de há muito, para este curioso assunto psicológico foi a narração circunstanciada da palavra “sonambulismo”, na célebre

Enciclopédia de Diderot e d’Alembert.

Esta narração tem a garanti-la uma testemunha que encontra-

mos neste lugar, sem surpresa: o arcebispo de Bordéus. Eis a

própria narrativa do enciclopedista:

“Esse prelado contou-me que, no seminário, tinha conhe-

cido um jovem eclesiástico sonâmbulo.

Desejoso de conhecer a natureza dessa doença, ia todas as noites ao seu quarto, quando o sabia adormecido, e observa-

va o que ocorria. Ora, esse eclesiástico levantava-se, tomava

papel, compunha e escrevia sermões.

Quando uma página estava acabada ele a lia em voz alta

do princípio ao fim (se se pode chamar leitura à ação efetua-da sem o auxílio dos olhos); se qualquer coisa lhe não agra-

dava, suprimia-a e escrevia por cima as correções, com mui-

ta precisão.

Vi o começo de um desses sermões, o de Natal. Pareceu-

me bem composto e corretamente escrito; mas, havia uma emenda curiosa. Tendo posto num perìodo “Ce divin en-

fant”, entendeu, na segunda leitura, que devia substituir a

palavra divin por adorable. Para isso, riscou o primitivo vo-cábulo e colocou o segundo exatamente por cima. Verificou

depois que o termo ce, em perfeita concordância com divin,

não concordava com adorable. Acrescentou, portanto, com muito jeito, um t a ce, para que se pudesse ler: “cet adorable

enfant”.

A testemunha ocular desses fatos, para certificar-se de que o sonâmbulo não se servia dos olhos, pôs um pedaço de car-

tão por baixo do seu queixo, a fim de esconder-lhe à vista o papel que estava sobre a mesa; o sonâmbulo continuou a es-

crever sem se aperceber disso.”

Cito esta observação, já antiga, principalmente para chamar a atenção dos meus leitores para os inúmeros fatos observados, desde essa época, sobre a vista a distância, independente do

órgão visual, pelos “sujets” em estado de sonambulismo natural

ou provocado. Ela data de 1778 e eu li-a em 1856 (na própria terra de Diderot).

Esses exemplos de vista na obscuridade por sonâmbulos não

são de uma tal raridade que os faça completamente ignorados.

Conhecem-nos muitas pessoas. Pessoalmente, tive ocasião de encontrar, em 1866, no castelo de Ciefmont (Haute-Marne), uma

rapariga de uns 20 anos, que, sem o saber, levantava-se muitas

vezes de noite e continuava, em plenas trevas, uma obra come-çada durante o dia – costura ou bordado. Se compararmos esta

faculdade visual à dos gatos, dos morcegos, dos mochos, das

corujas, neste caso não seria uma visão sem os olhos. Mas a retina desses animais é especial e alguns deles são cegos, durante

o dia. Não poderemos também perguntar – o anteparo interceptor

nada interceptando – se tais vistas não trespassariam os corpos opacos, como o olho fotográfico para os raios X? Isto seria já

uma hipótese pouco ousada. Vamos ver que ela se não aplica às

seguintes observações.

Demoremo-nos ainda um pouco no século XVIII. Realmente,

a Ciência é vagarosa na sua marcha.

Em 1785, ao tempo de Mésmer, o marquês de Puységur fez

curiosas e pacientes experiências sobre o sonambulismo artificial

produzido pelo magnetismo. Recordemos uma delas.

O marquês tinha magnetizado um rapaz de 14 anos, chamado

Amé. Eis o que ele escreve a esse respeito:

“À pergunta que lhe fiz sobre a parte do corpo que lhe do-

ía, respondeu-me que, havia um ano, carregando pedras so-

bre o estômago, se tinha molestado, e que havia seis meses se formara nesse sítio um tumor cheio de pus, que lhe cau-

sava as dores habituais.

Perguntei-lhe:

– Esperas curar-te em breve?

– Sim, senhor! – respondeu-me e, tomando a minha mão,

continuou: – Depois de amanhã, às quatro horas e meia da tarde, estarei curado.

Devido às suas indicações, só foi necessário magnetizá-lo duas vezes: no dia seguinte, pelas dez horas e meia, e ainda

uma outra.

Sofria de dores de cabeça. Perguntando-lhe de que deriva-va esse mal, respondeu:

– Do estômago.

– Há uma comunicação entre o estômago e o cérebro?

– Sim.

– Como é ela?

– É um canal.

– Qual é o seu caminho:

Como resposta, indicou o traçado do grande simpático es-querdo. Interrogado acerca da forma como via o seu mal,

exclamou:

– Pela ponta dos dedos.

– É necessário, pois, tateares-te para conheceres a tua do-ença?

– Sim.”

O rapaz deu no dia seguinte certas informações sobre “as propriedades magnéticas distintas dos diversos dedos da mão”.

Não temos de examinar aqui esta questão, mas escutemos Puy-ségur:

“Surpreendeu-me singularmente o que me disse esse moço

sobre as diferentes propriedades que a mão possui para fazer

sentir a um doente uma impressão maior ou menor. Mésmer afirmara a mesma coisa e certamente que esse jovem nada

sabia a tal respeito. Se este fenômeno se dá realmente, será

pela conformidade dos relatórios dos sonâmbulos que pode-remos adquirir uma certeza completa.

Quanto à visão dos sonâmbulos, é muito variável. Por e-xemplo, o pequeno Amé dizia que precisava de seus dedos

para ver, ou antes para sentir onde estava o seu mal. É o úni-

co que ofereceu esta particularidade; todos os outros, sem este recurso, conhecem-se bem e usam da palavra ver, em

vez de saber ou sentir tal e tal coisa. É preciso não esquecer

que nesta casa são campônios que falam. Quando tive ocasi-ão de pôr em estado de sonambulismo magnético pessoas

instruídas ou de certa educação, ouvi-as sempre queixarem-

se da pobreza da linguagem para exprimir as suas sensações

e servirem-se da expressão saber, estarem bem certas do que me diziam, sem encontrarem palavras bastante significativas

para exteriorizarem as suas idéias.

Seja qual for a espécie de sensação que a classe mais sim-ples dos homens designa pela palavra ver, em estado de so-

nambulismo, creio que os fenômenos da nossa visão, no es-tado natural, podem dar-nos ligeira apreciação dela. A nossa

visão não passa de sensação proveniente dos objetos exterio-

res: é pelo canal dos nervos que recebemos todas as sensa-ções; e, de todos os nossos nervos, é somente o que se cha-

ma óptico que, pela sua organização, nos pode causar a sen-

sação da visão.

Todos os objetos exteriores se apresentam também aos ou-

tros nervos; mas, salvo um fato imediato, não produzem ne-les o menor efeito. Se, pois, em estado de sonambulismo,

acontece o contrário, se o sonâmbulo, apesar dos olhos her-

meticamente fechados, caminha, lê, escreve, evita os obstá-culos que encontra e faz enfim tantas ou mais coisas do que

poderia fazer em estado natural, é preciso certamente que ele

veja, não pelo nervo óptico, pois que ele está fechado à vis-ta, mas por outros nervos tornados tão suscetíveis, que lhe

transmitam à alma uma sensação absolutamente análoga à da

visão. Como se opera esta visão? Quais são os nervos que a produzem neste estado singular? É o que não posso aventu-

rar-me a determinar; mas incontestavelmente existe este fe-

nômeno, pois sem ele os sonâmbulos não poderiam ver.

Ora, creio que ninguém pode negar-lhes esta proprieda-

de.” 52

Assim fala o marquês de Puységur, amigo de Mésmer. Vere-mos mais longe que essa assimilação de vista com o tato será

ensaiada por outros experimentadores, sem que, ao que parece,

duvidem das precedentes considerações.

Pela minha parte, não discutirei neste momento hipóteses ex-

plicativas; contentar-me-ei em dizer, como Newton: Hypotheses

non fingo. Examinemos primeiro os fatos, ainda hoje tão discuti-

dos.

Estas observações continuaram durante os 134 anos que nos

separam da época precedente. Muitas delas são mal verificadas, não têm interesse, estão cheias de erros; mas outras possuem um

valor irrecusável. Elas provam que existem processos de infor-

mação diferentes dos normais.

Os meus leitores já conhecem os exemplos desse gênero, pu-

blicados na minha obra O Desconhecido. Alguns são tão caracte-

rísticos que não posso deixar de resumi-los aqui.

Pode-se ler (pág. 496, XLIII) a observação anatômica incon-

testável da ablação do seio, operada pelo Dr. Cloquet na Sra. Plantin, a qual, magnetizada, nenhuma dor sentiu e conversou

tranqüilamente com o operador, enquanto sua filha, a Sra. La-

gandée, também magnetizada, via o interior do corpo de sua mãe falecida no dia seguinte e cuja autópsia provou até às minúcias a

exatidão da vista sem os olhos.

– Acredita – perguntou o doutor – que possamos manter por

muito tempo a vida de sua mãe?

– Não, extinguir-se-á amanhã muito cedo, sem agonia, sem

sofrimento.

– Quais são, pois, as regiões afetadas?

– O pulmão direito está contraído, desviado sobre si mesmo e

rodeado de uma membrana parecida com grude; flutua no meio

de muita água. Mas é principalmente neste sítio – disse a sonâm-bula, indicando o ângulo inferior da omoplata – que minha mãe

sofre. O pulmão direito já não respira, morreu; o pulmão esquer-

do está são; é por ele que minha mãe ainda vive. Há um pouco de água no envoltório do coração (o pericárdio).

– Como estão os órgãos do ventre?

– O estômago e os intestinos estão sãos; o fígado é branco e

descorado no exterior.

No dia seguinte, efetivamente, a doente faleceu e fez-se a au-tópsia. A Sra. Lagandée, adormecida, repetiu, com voz firme e

sem hesitação, o que já havia declarado aos Srs. Cloquet e Cha-

pelain. Este último levou-a então à sala contígua ao quarto onde

ia proceder à autópsia, e cuja porta foi fechada, e dali ela seguia

os movimentos do bisturi na mão do operador e dizia às pessoas

presentes:

– Por que se faz a incisão no meio do peito, desde que o der-

ramamento é à direita?

Verificou-se que as indicações da sonâmbula eram exatas e o

auto da autópsia foi escrito pelo Dr. Dronsart.

As testemunhas desse fato, acrescentava o narrador Brière de

Boismont, estão todas vivas; elas ocupam, no mundo médico, situação honrosa. As suas comunicações foram interpretadas de

diversos modos, mas nunca se duvidou de sua veracidade. Entre-

tanto, vi “sábios” graves rirem alto, quando ouviam essas “futili-dades”.

Temos, pois, aqui uma observação incontestável de vista sem

os olhos. Poderíamos associá-la à história de uma camareira,

posta em estado magnético, que, enquanto seu patrão descia à adega a procurar uma garrafa de vinho, gritou que ele havia

escorregado e caído na escada. Quando tornou a subir, já a

esposa conhecia todos os pormenores de sua viagem subterrânea e da sua queda, contados pela sonâmbula à medida que ocorriam

(O Desconhecido, capítulo VIII, caso XLV).

A mulher de um coronel de Cavalaria, magnetizada por seu

marido, ficou sonâmbula; durante o tratamento, uma indisposi-ção obrigou-o a pedir o auxílio de um oficial de seu Regimento,

por espaço de uns oito ou dez dias. Pouco tempo depois, durante

uma sessão de magnetismo, estando a dama em estado de so-nambulismo, o marido convidou-a a ocupar-se desse oficial, do

qual não tinha notícias.

– Ah! o infeliz – exclamou ela –. Vejo-o; está em X., quer

suicidar-se; pega uma pistola! Corre depressa!...

O coronel montou a cavalo e partiu, mas quando chegou o

suicídio estava consumado (Idem, caso XLVI).

Conhece-se também a história de uma rapariga operada em

1868, em Estrasburgo, pelo Dr. Koeberlé, que havia descrito a este cirurgião, muito incrédulo, com minúcias, um quisto que

tinha no ovário, e que foi encontrado pelo operador exatamente

no sítio indicado por ela.

As experiências muito diversas, numerosas, múltiplas, desde

a época de Mésmer até nossos dias, constituem verdadeira bi-

blioteca, sobre a qual não quero insistir. Mas, apesar de todas as reservas, discussões, negações e pugnas entre as academias de

Medicina de todos os países, estas experiências são instrutivas.

Tenho-as acompanhado, há mais de meio século, em diversas circunstâncias.

Continuo, nesta exposição, a ordem cronológica.

Quando eu tinha cerca de 20 anos, idade em que se imagina

que se vai conquistar o mundo, e em que se tem uma sede insaci-

ável de tudo saber e aprofundar, gostava muito de conversas com um homem bastante esquisito, o escritor Henry Delaage, sonha-

dor mìstico, ocultista iniciado da seita de S. Martinho, o “filóso-

fo desconhecido”, neto do ministro de Napoleão, Chaptal; a sua conversação era sempre agradável e muitas vezes instrutiva. Ele

estudava havia muito, e com grande atenção, os fenômenos do

magnetismo.

Eis alguns fatos que conhecia em primeira mão, e que ele

mesmo consignou nas suas obras:

“Alfonse Esquiros – menciona ele, entre outros –, diver-

tindo-se um dia a magnetizar sua própria mãe, perguntou-

lhe:

– Existe o azar? Ser-vos-ia possível, por exemplo, indicar

o número que sairá premiado numa loteria?

– Não o creio; seria muito difícil – respondeu ela.

– Experimenta!

Aqui a magnetizada pareceu violentar-se e com muitos es-forços deu uma resposta tardia e trabalhosa:

– Vejo um número – disse, afinal.

– Qual?

– O 89, é bom, vai ter prêmio.

– Não vê outros?

– Não.

– Por que?

– Deus não quer.

Com efeito, o número 89 saiu premiado na extração se-guinte.”

53

As fórmulas variam. Isto ocorria em 1848. Hoje não se diria “Deus não quer”, mas simplesmente: “Nada mais vejo.”

Talvez que o azar fosse o único fator em jogo neste caso; mas

veremos adiante, no capìtulo sobre “Conhecimento do futuro”, uma leitura premonitória de 4 números (!) pelo Barão Larrey.

Existe aqui uma probabilidade contra 2.555.189.

Delaage também relata a seguinte história que se deu em casa

da viscondessa de Saint-Mars, com o afamado Alexis, sujet perspicaz, então muito célebre, magnetizado por Marcillet:

“Victor Hugo assistia à sessão e, com a sua natural curio-

sidade, havia preparado em casa um pacote selado no meio

do qual se achava uma única palavra impressa em caracteres graúdos. O embrulho foi primeiro virado e revirado em to-

dos os sentidos pela sonâmbula, que um instante depois so-

letrou:

– P...o...l...i...poli. Não vejo a letra seguinte – acrescentou

ela –, mas vejo as que seguem: i...q...u...e..., oito letras, não nove..., t... politique, é isto mesmo; a palavra é impressa em

papel verde claro, o Sr. Hugo cortou-a numa brochura que

vejo em sua casa.”

Marcillet perguntou a Victor Hugo se isto era verdade e o po-

eta apressou-se a reconhecer a lucidez do sujet. A partir dessa época, a segunda vista tem em Victor Hugo um dos seus mais

ilustres defensores.

Presentemente, chamamos a este exercício leitura de pensa-

mento, e pensamos ter encontrado com isto uma explicação! Admitimos, se assim o quisermos, que seja uma transmissão de

ondas cerebrais: mas não é uma vista sem olhos.

Delaage, que relatou essa história no livro já citado, continua

com a seguinte, que também põe em cena um dos nossos con-temporâneos do século passado, que eu igualmente conheci:

Alfonse Karr, um dos homens cuja mistificação parece ab-

solutamente impossível, pois é proverbial na Europa a agu-

deza do seu espírito, contou o que lhe aconteceu com o so-nâmbulo Alexis:

“Tinha ido com alguns amigos jantar em casa de um deles. Ao deixar essa casa, cortei um ramo de azaléias brancas que

coloquei numa garrafa de champanha vazia. O amigo com

que tínhamos jantado disse ao sonâmbulo:

– Quer ir a minha casa?

– Sim.

– Que observa o senhor na minha sala de jantar?

– Uma mesa cheia de papéis, pratos e copos.

– Há também nela alguma coisa que lá deixei por sua cau-sa: procure vê-la.

– Vejo uma garrafa – disse Alexis – e nela há lume; não, não é lume, mas parece... a garrafa está vazia, mas há nela

qualquer coisa brilhante... Ah! é uma garrafa de champa-nha... tem em cima alguma coisa, que não é a sua rolha... é

mais delgada pela ponta que está dentro da garrafa do que

por fora. É branca, é como papel... assim... – desenhou uma garrafa com o ramo de azaléia e exclamou: – Ah! é uma flor,

um ramo de flores; lindos ramos.”

É difícil não aceitar que nestas duas experiências o sonâmbu-lo tenha visto a distância sem os seus olhos, seja no cérebro de Victor Hugo ou de Alfonse Karr, seja de outra maneira.

Continuemos um instante a leitura do pequeno livro de Dela-

age, que é quase um auto daquela época interessante. Registre-

mos os fatos de observação, sem nos preocuparmos com as teorias:

“A Presse de 17 de outubro de 1847 – escreve ele – publi-

cou longo artigo sobre uma sessão de magnetismo na qual o

sonâmbulo Alexis tinha lido, não somente livros fechados, através de muitas páginas, mas ainda cartas fechadas, de-

monstrando que o fluido magnético, iluminando duma clari-

dade sobrenatural o magnetizado, permitia à sua alma pene-

trar os corpos mais opacos com uma facilidade que deixava

a perder de vista tudo quanto a imaginação atribuía à magia.

Esta sessão, firmada com o nome de Alexandre Dumas, realizou-se na sua casa de campo em presença de homens

honrados que atestavam com a sua assinatura a verdade dos fatos relatados no auto.

O espanto foi geral. Dumas queria provocar por si próprio os fenômenos que acabava de testemunhar. Convencemo-lo

a magnetizar, ele mesmo, Alexis. O espírito do sonâmbulo

contou a história de um anel que lhe tinham apresentado, disse o dia e a hora em que o seu possuidor o havia adquiri-

do. Em seguida, semelhante a essas aves que atravessam in-

vencivelmente os ares, a sua alma, levada na asa de uma vontade estranha, descreveu com precisão admirável Tunes e

seus arredores, de que, em estado de vigília, só conhecia o

nome; numa palavra, vencera o espaço e o tempo.

Muitos jornais publicaram a narrativa dessas sessões; os

outros protestaram.

Não podendo atacar a probidade dos homens que atesta-

vam ter verificado tais prodígios com seus olhos, procura-ram torná-los ridículos, apresentando-os como criaturas ho-

nestas de quem se iludira a candura. Declararam que Robert

Houdin produzia as mesmas maravilhas todas as noites no Palais Royal, com o auxílio de hábil combinação. Infeliz-

mente o ilustre prestidigitador, em carta escrita anteriormen-

te ao Marquês de Mirville, reconhecia a impotência da sua arte para produzir esses prodígios e garantia pela sua honra

que esses fenômenos não provinham de qualquer sutileza de

prestidigitação engenhosa.

Eis o extrato dessa carta:

“Numa sessão, em casa de Marcillet, passou-se o seguinte

fato:

Abro um baralho de cartas, trazido por mim, do qual tinha marcado o invólucro, para não ser trocado... Embaralho-as.

Sou eu a dar. Dou, com todas as precauções de homem acos-

tumado às finuras da sua arte. Trabalho inútil. Alexis man-

da-me parar, apontando uma carta que eu acabava de colocar

à sua frente sobre a mesa:

– Tenho o rei – disse-me ele.

– Não o sabe, pois que não foi ainda marcado qual seja o trunfo!

– Vai ver – respondeu-me –; continue.

Efetivamente, tirei para trunfo o oito de ouros; e Alexis ti-

nha o rei de ouros! O jogo prosseguiu dessa maneira extra-vagante, pois ele dizia-me quais as cartas com que eu ia jo-

gar, apesar de as esconder por debaixo da mesa e tê-las se-

guras nas mãos. Alexis colocava uma carta das suas, sem voltá-la, diante de cada uma das minhas, e sempre essa carta

estava conforme com a que eu jogava.

Regressei, portanto, dessa sessão realmente maravilhado e convencido de que o azar ou a destreza não podem produzir

efeitos tão prodigiosos.

Queira aceitar, etc.

Paris, 15 de maio de 1847.

Robert Houdin.”

O célebre prestidigitador desforçava assim o magnetismo

das investidas de que era alvo constante, declarando publi-camente que a sua arte seria incapaz de realizar essas espé-

cies de milagres. Proclamava a sua convicção, obedecendo à

consciência.”

Assim fala Delaage. Certamente, o sonâmbulo via, e não com seus olhos, as cartas escondidas debaixo da mesa por um parcei-

ro prevenido, cujo valor crítico é indiscutível.

Estas reminiscências das recordações de Delaage não são fa-

lhas de interesse, apesar das suas idéias e das suas expressões obsoletas. Estava longe de partilhar todas as suas opiniões. Ele

escreve por exemplo (pág. 144): “No número das prerrogativas

perdidas pelo homem, após o pecado original, devemos citar em primeiro lugar a possibilidade de ficarmos em relação com os

espìritos.” Ora, quem pode aceitar hoje o pecado original? Mais

adiante declara inatacável o dogma da divindade de Jesus. Ele

era católico de muito boa fé, apesar do seu misticismo cabalísti-

co pouco ortodoxo.

Não falamos já hoje a linguagem daquela época (1847-1867),

não empregamos as mesmas palavras “fluido magnético”, “dia-

bo”, “alma levada na asa de uma vontade estranha”, “divinação

sobrenatural”, expressões caducas; mas estudamos os mesmos problemas.

A dificuldade neste estudo é conservar uma independência

absoluta e manter-se imparcial. Não é este, geralmente, o caso

que ocorre. Cada um concorre a este exame com idéias precon-cebidas que prejudicam a liberdade do raciocínio.

A respeito da leitura das cartas num baralho escondido, eis o

que se pode ler na obra de Podmore: Apparitions and Thought

Transference, publicada em 1894 e reimpressa em 1915 (é desta edição que traduzo):

“O célebre Alexis Didier pretendia ler com os olhos ven-

dados num envoltório de algodão, jogava uma partida de “é-

carté” designando as cartas postas na mesa, decifrava pala-vras dentro de envelopes fechados ou em livros que lhe le-

vavam, descobria o que se encerrava em embrulhos. Foi tão

grande o seu êxito que o afamado prestidigitador Robert Houdin visitou-o em 1847 e declarou-se convencido. Mas

Alexis era profissional e tinha um associado na pessoa de

seu magnetizador Marcillet. Não há sombra de dúvida de que todos estes fatos devem ser atribuídos ao exercício de

uma visão normal, operando em condições inusitadas e im-

perfeitamente compreendidas. É provável que nos exercícios desse gênero, os próprios sujets fossem, muitas vezes, in-

conscientes acerca do modo como lhes chegava o conheci-

mento, declarando-se com toda a boa fé senhores de poderes supranormais.”

54

Frank Podmore, autor psiquista bem conhecido, um dos fun-dadores da Society for Psychical Research, está convencido de

que todos os fenômenos, inclusive as aparições, se explicam pela transmissão do pensamento, e são todos conexos com esta teoria.

Para ele, Alexis recebia a comunicação do seu magnetizador

Marcillet ou do seu parceiro, os quais, sem trapaças, mas olhan-

do-o, transmitiam inocentemente as suas impressões cerebrais.

Um psiquista americano, tão conhecido como Podmore, Ja-

mes Hyslop, professor na Universidade de Colúmbia, ocupando-

se também desta partida de cartas, deu-lhe a seguinte interpreta-

ção:55

“Alexis Didier mistificou o próprio Robert Houdin, o

príncipe dos prestidigitadores e dos ilusionistas. Didier era

empregado de um homem que tinha a reputação de “gentle-

man”. Lia, aparentemente, cartas voltadas contra a mesa, frases de um livro fechado, etc. Mas, à falta de autos sobre

as cautelas tomadas para impedir a fraude, não temos real-

mente motivo para ver nisso qualquer coisa de extraordiná-rio: é simplesmente um exemplo da maneira por que se pode

iludir um público crédulo.”

Assim, Podmore e Hyslop imaginam que Victor Hugo, que estudava Alexis para se documentar, Alfonse Karr, de quem conheci o espírito crítico e perspicaz, Alexandre Dumas, Henry

Delaage, Robert Houdin, observaram mal e se deixaram iludir.

Na sua opinião, Marcillet via as cartas, lia as palavras e comuni-cava-as ao seu sujet, ou habilidosamente ou por transmissão de

pensamento inconsciente. Ora, não foi assim que se deram os

fatos. Supôs-se também que houve nisso prestidigitação. É uma conjectura inadmissível, segundo o próprio Robert Houdin.

A prestidigitação de que falo é de resto bem conhecida e tive

ocasião de vê-la muitas vezes, no meu próprio salão, pelos

sucessores de Robert Houdin, Cazeneuve e Jacobs. Neste caso, o prestidigitador ganha sempre ao seu adversário, sem nenhum

mistério de vista dupla, porque o baralho é preparado e as cartas

dispostas em uma certa ordem; é o prestidigitador quem as baralha, com muita habilidade, sem lhes alterar a ordem; é o

parceiro quem corta, mas o primeiro faz saltar o corte, e, final-

mente, tudo isto é muito simples para dedos esguios como os de Jacobs, e mesmo para dedos grossos como os de Cazeneuve. Vi,

no meu salão, bons observadores como o Almirante Mouchez,

Félix Tisserand, diretores do Observatório, o General Parmenti-

er, Hervé Faye, sábios eminentes que jogavam muito bem as

cartas, apesar dos seus títulos científicos (eu nunca soube jogar), estupefatos pelo parceiro, que rapidamente ganhava e pela certa,

conhecendo os seus jogos de antemão. Mas essa habilidade não

se pode fazer com um baralho trazido do estabelecimento e não aberto, e a afirmação de que Marcillet era o cúmplice de Alexis é

uma conjectura inaceitável para os que conheceram as faculda-

des de Alexis em hipnose (das quais podemos dar contas nas Memórias de Lafontaine).

É certo que os métodos de observação nem sempre foram ri-

gorosos e que as relações nem sempre foram bem ponderadas;

mas isso não é suficiente para rejeitar tudo e para não separar o joio do trigo. As faculdades supranormais de Alexis são incon-

testáveis.

Em resumo, para Podmore essas vistas sem os olhos depen-

dem da transmissão do pensamento; para Hyslop, o caso atual é muito duvidoso; os outros casos examinados por ele parecem-lhe

conjuntamente certos e inexplicáveis por nenhuma teoria, inclu-

sive a telepatia, e há uma tendência para atribuí-los a comunica-ções de almas de defuntos spiritistic elements are generally

associated with clairvoyant incidents.

Não quero inclinar-me a favor de nenhuma hipótese, porque

as observações ainda não são suficientes; a Ciência não se faz num dia e a Astronomia errou durante milhares de anos antes de

chegar à verdade. Parece-me que o que importa em primeiro

lugar é estabelecer a realidade absoluta dos fatos ainda tão discutidos. Não é impossível que, em muitos casos, estejam em

jogo a transmissão do pensamento subconsciente ou as ondas

telepáticas cerebrais.

A vista das cartas em estado de hipnose não é contestável,

apesar de todas as contestações. Foi muitas vezes verificada.

Encontra-se em diversos relatórios, merecedores de toda a confi-ança, a averiguação desses jogadores de cartas, de olhos venda-

dos radicalmente.

Nas suas Cartas sobre o magnetismo e o sonambulismo, pu-

blicadas em 1840, o Dr. Frapart escreve o seguinte a um amigo:

“Disse-lhe que o Sr. Ricard me havia prometido trazer

provisoriamente a minha casa Calyste, o seu melhor sonâm-

bulo, adormecê-lo diante dos meus convidados e fazê-lo jo-gar as cartas com os olhos vendados: em seguida, se estives-

se bem disposto, far-lhe-ia efetuar outras experiências tão

incompreensíveis quão maravilhosas.

Pois, ontem realizou-se a sessão prometida pelo Sr. Ri-

card, na presença de 60 pessoas, todas incrédulas, com exce-ção do Dr. Teste. Vou contar-lhe como se passaram os fatos.

Depois de adormecido ou parecendo-o estar – porque não conheço nenhum sinal incontestável do sono –, dois estra-

nhos puseram em cada um dos olhos de Calyste um pedaço

de algodão, e por cima um grande lenço de seda cujas ex-tremidades foram atadas junto do nariz. Verificou-se em se-

guida que a venda estava bem apertada, bem posta e que na

sua margem inferior – precaução importante – o algodão formava grosso barrete que impedia absolutamente a vista.

Logo oito baralhos intactos foram trazidos; tomou-se deles

um, ao acaso; rasgou-se o envoltório e começa-se a sessão. O Sr. Ricard não toca no seu sonâmbulo, não fala com ele e

coloca-se de modo a não perceber o jogo da pessoa que faz a

partida. Assim dispostas as coisas, corre tudo como entre dois hábeis jogadores bem acordados: o sonâmbulo designa

as cartas que tem na mão e as que seu adversário possui.

É este o fato. Repetiu-se com três pessoas, cada uma jo-gando duas partidas, de modo que umas cem cartas passaram

por diante de Calyste, que as designou e as viu sempre, pois jogava constantemente o que devia jogar.

Esta experiência será o resultado de uma pelotica?

Ora, estivemos de sobreaviso, tudo esquadrinhamos, apal-

pamos, analisamos!

A venda, por exemplo, nada deixava transparecer, porque

a sua preparação, já descrita, feita por incrédulos de mãos hábeis, era perfeita. As cartas não eram preparadas, pois os

envoltórios dos baralhos tinham o selo da administração. O sonâmbulo não podia reconhecer as cartas pelo tato, pois

que designava as do seu adversário sem nelas tocar. O mag-

netizador nenhum meio de comunicação tinha com o so-

nâmbulo, porque não falava, não se mexia, não tocava em Calyste e não olhava para as cartas.

Finalmente, ninguém, de maneira alguma, podia indicar a Calyste o seu próprio jogo e o do seu adversário, porque ca-

da um de nós guardava silêncio, numa expectativa um pouco

ansiosa, à qual se seguiu logo o espanto e a admiração.

Portanto, quer do lado da venda quer do das cartas do so-

nâmbulo, do magnetizador ou do próprio adversário, esta-mos absolutamente certos de que não fomos iludidos.”

Vê-se que esta experiência é anterior à de Robert Houdin, re-latada por Delaage. Poderíamos citar muitas outras, porque todas

se parecem no sentido que os negadores sem imparcialidade sustentavam sempre que os experimentadores são iludidos por

pessoas mais hábeis do que eles. As discussões inúteis far-nos-

iam perder tempo.

Um magistrado bastante céptico, o Sr. Séguier,56

apresentou-

se incógnito em casa de Alexis.

“– Onde estava eu do meio-dia às duas horas? – perguntou

ele.

– No seu gabinete... Ele está abarrotado de papéis, de ro-los de desenhos... e de pequenas máquinas... Há uma linda

campainha em sua escrivaninha.

– Não; não há campainha sobre minha secretária.

– Não me engano; o senhor tem lá uma... vejo-a... à es-querda da escrivaninha... sobre a secretária...

– Na verdade... vou tirar isso a limpo.

O Sr. Séguier correu a casa e encontrou sobre a secretária uma campainha que a Sra. Séguier havia aí posto, de tarde.”

Tal é esta singela narração. Vista a distância. Não havia, cer-tamente, neste caso, leitura no cérebro do inquiridor, nem suges-

tão de pensamento, o que parece ter-se dado no exemplo seguin-te.

Delaage conta depois que o Conde de Saint-Aulaire, diploma-

ta conhecido, depois de haver alcunhado o magnetismo de parvo-

íce, vinha de retratar-se. Havia apostado sobre a impossibilidade de Alexis ler uma nota bem escondida, e foi ele mesmo entregar-

lha dentro de um envelope diplomaticamente lacrado e selado.

“– Que está dentro deste sobrescrito? – perguntou o em-

baixador.

– Um papel dobrado em quatro.

– E no papel?

– Meia linha escrita.

– Podeis lê-la?

– Certamente. E quando a tiver lido, o senhor há de retra-tar-se de tudo quanto escreveu.

– Não creio!

– Tenho a certeza.

– Se o conseguir, prometo-lhe que de hoje em diante acre-

ditarei em tudo quanto quiser.

– Então, acredite desde já, porque o senhor escreveu estas

palavras: “não creio”.”

Explica-se facilmente a celebridade deste “vidente” e com-preende-se que Delaage tenha escrito o seu pequeno livro espe-

cial (1857): O sono magnético explicado pelo sonâmbulo Alexis.

Podemos ler nessa brochura algumas epígrafes curiosas:

“Absorvido, num sono fictìcio, o homem vê através dos

corpos opacos a certas distâncias.

Le Pére Lacordaire.”

E esta outra:

“Se existe no mundo uma ciência que torna a alma invisí-

vel, essa ciência é sem contradita o magnetismo.

Alexandre Dumas.”

Trata-se unicamente das faculdades de Alexis, nesta obra.

A lucidez do sonâmbulo Alexis, magnetizado por Marcillet,

foi apreciada por todos os que estudaram essas questões. Aqui

temos uma das suas mais notáveis revelações. É o testemunho quase oficial de um administrador do Monte-Pio, que, nesta

qualidade, foi vítima de um roubo, do qual foi descoberto e preso

o autor, graças às indicações do afamado sonâmbulo.

A narrativa desse fato encontra-se na carta que o próprio Sr.

Prévorst dirigiu ao jornal Le Pays, nos seguintes termos:

“Era em agosto de 1849; um dos meus empregados acaba-

va de desaparecer, apossando-se de importante quantia. As

ativas indagações da polícia não tinham dado nenhum resul-tado, quando um amigo meu, o Sr. Linstant, jurisconsulto,

foi consultar Alexis, sem me comunicar o seu projeto.

“A quantia roubada – disse o sonâmbulo – é muito impor-tante; eleva-se quase a 200.000 francos.”

Era exato. Alexis prossegue, dizendo que o caixeiro infiel se chamava Dubois, que o via em Bruxelas, no Hotel dos

Príncipes, onde se alojara.

Linstant seguiu para Bruxelas... À sua chegada, soube que

Dubois estivera efetivamente no hotel, mas que acabava de deixar a cidade, havia poucas horas.

Alexis declara então que via Dubois no Cassino de Spa, onde perdia muito dinheiro e que no momento de sua prisão

já nada teria.

Na mesma noite, o narrador parte, mas em Bruxelas foi re-tardado pelas formalidades administrativas necessárias à

captura do gatuno, e só chegou a Spa para ser informado de que Dubois havia deixado a cidade dias antes.

De volta a Paris, foi ter novamente com Alexis.

“Não teve paciência – disse ele –; há poucos dias, na ver-

dade, Dubois foi para Aix-la-Chapelle, onde continuou a jo-gar e perdeu muito; voltou novamente a Spa onde vai acabar

de perder o pouco que lhe resta.”

Escrevi imediatamente às autoridades de Bruxelas e de Spa. Alguns dias depois, Dubois foi preso em Spa. Havia

perdido tudo no jogo.” 57

Vê-se que o hipnotizado não somente sabia ler, com os olhos

fechados, num livro fora do seu alcance, mas que podia acompa-nhar de longe as peregrinações de um ladrão.

Alexis gozava de uma tal fama de vidente que o magnetizador

Lafontaine, tendo muitas vezes dissabores com os seus sujets improvisados, mandava-o vir de Lião para Paris, para assegurar

o bom êxito das suas representações.

Encontra-se a narração dessas verificações nas Memórias de

Lafontaine (tomo II, págs. 160-171). Elas confirmam mais ou menos o que já escrevemos.

O que nos surpreende ainda mais é que essa vista sem os o-

lhos esteja verificada há muito tempo, e que quase ninguém a

admita. A ignorância é universal. Não quero supor que haja nisto uma falta de lealdade.

O naturalista Sir Alfred Russel Wallace assinalou 58

14 ses-

sões do Dr. Edwin Lee, em Brighton, com Alexis Didier, em

casas particulares. Nessas sessões Alexis jogou as cartas com os olhos vendados, designando muitas vezes tanto as cartas dos seus

adversários como as suas; leu diversas cartas escritas pelos

visitantes e fechadas em envelopes, decifrou qualquer linha pedida, fosse o livro qual fosse, oito ou dez páginas além da

folha aberta, e descreveu o conteúdo de uma quantidade de

caixinhas, estojos e outros recipientes.

O Dr. Lee relata também a experiência do jogo de cartas do

célebre Robert Houdin com Alexis e acrescenta mais estas:

“Houdin tirou um livro do bolso e, abrindo-o, pediu a A-

lexis que lesse uma linha situada em certo nível particular,

oito páginas antes. O clarividente cravou um alfinete para marcar a linha e leu quatro palavras que foram encontradas

na linha correspondente, na nona página anterior.

Houdin classificou isso de “pasmoso” e no dia seguinte assinou esta declaração: “Não posso deixar de afirmar que

os fatos aqui relatados são escrupulosamente exatos; quanto

mais reflito neles mais acho impossível classificá-los entre

os truques que constituem a minha arte.”

Russel Wallace aponta ainda (pág. 90) outros fatos de visão certificados pelo Dr. Grégory, na sua obra Lettres sur le Magne-

tisme. Por exemplo, pessoas que se dirigiam para uma sessão, a fim de assistir aos fenômenos, compram em qualquer loja, à sua

escolha, algumas dúzias de divisas impressas, encerradas em cascas de nozes. Põem-se as cascas num saco; o clarividente tira

uma e lê a divisa fechada. A casca é quebrada e examinada; e

assim foram lidas corretamente dúzias de divisas. Uma delas continha 98 palavras.

Wallace acrescenta que, possuindo os depoimentos do Dr.

Grégory, do Dr. Mayo, do Dr. Lee, do Dr. Haddock e de cente-

nas de outras personalidades não menos qualificadas e honestas, afirmando fatos similares, não se pode supor que todas fossem

vítimas de fraudes impossíveis de descobrir, principalmente

tratando-se de médicos cépticos que vieram para diagnosticar e de um professor de prestidigitação tão perspicaz como Robert

Houdin. Ou cada uma das manifestações de vista transcendente,

relatada pelos observadores (e elas ascendem certamente a milhares) é o resultado de uma trapaça, ou temos a prova irrefu-

tável de que certas pessoas possuem um sentido interno a estu-

dar. Se a visão normal fosse tão rara como a dupla vista, seria tão difícil demonstrar a sua realidade como o é agora estabelecer a

existência dessa maravilhosa faculdade.

A evidência a favor dela é absolutamente concludente para

qualquer que a tenha examinado sem se deixar iludir pela idéia infantil de que podemos separar a priori o que é possível do que

é impossível.

Essas experiências foram repetidas cem vezes, principalmente

de 1820 a 1860. Basta ler as obras do Dr. Bertrand (pai de Jose-ph Bertrand, o célebre secretário perpétuo da Academia de

Ciências), de Pététin, do General Noizet, de Lafontaine, do Dr.

Comet e de numerosos experimentadores daquela época para nos convencermos do seu valor e da sua absoluta certeza. Um dos

mais ativos, o Dr. Frapart, teria desejado muito convencer um

pontífice da ciência oficial, o Dr. Bouillaud, professor da Facul-

dade de Medicina, adversário declarado, e dirigiu-lhe uma espé-

cie de mandato imperativo. O grande homem respondeu-lhe no

mesmo tom: que tinha o direito de ser incrédulo e que não admi-tia as ordens do energúmeno Frapart. E escreveu ainda ele:

“Quanto ao novo sujet magnético do qual me fala, e que

lhe parece destinado a conseguir a grande obra de minha

conversão, não me recuso a assistir aos seus milagres. Toda-via, se me acontecesse, depois de vê-los, responder-lhe com

a famosa doutrina de um filósofo da minha espécie: “creio

porque o senhor viu, mas se eu tivesse visto não acreditari-a”, se, repito, acontecesse eu responder-lhe assim, que pode-

ria objetar-me? A experiência que me anuncia não poderá

provar efetivamente uma impossibilidade física, tal como a da visão sem o auxílio dos olhos, e, como já o disse na Aca-

demia, quando se trata de fatos desta ordem, é preciso com-

portarmo-nos da mesma forma que a Academia de Ciências quando se lhe anuncia que se descobriu a quadratura do cír-

culo.”

Pode-se pensar que, com o caráter leal e agressivo de Frapart, a frase: “Se tivesse visto não acreditaria, porque é uma impossi-bilidade fìsica” não caiu no ouvido de um surdo. Por isso, meteu-

a a ridículo sem nenhuma consideração pelo caráter oficial do

douto professor, o qual replicou por sua vez:

“Aqui tem a minha última palavra: não acredito – e nunca

acreditarei – que se veja sem o auxílio dos olhos. Não é,

como o senhor diz, pelo fato de semelhante coisa ser extra-

ordinária que eu não creio e nunca crerei, mas porque é so-brenatural e, ainda mais, contra a Natureza. Creio, pelo con-

trário, em muitos fatos extraordinários. Se não creio neste,

não é porque o não compreenda, é porque é evidentemente, claramente, fisiologicamente impossível.”

A estes argumentos, Frapart responde, em 1838, como todo homem de bom senso responderia hoje:

“Não pertence a quem quer que seja, nem ao maior gênio,

traçar os limites do possível, porque o possível é infinito

como o espaço e o tempo; e apesar de o termos encerrado,

por assim dizer, em nossas teorias, ele ultrapassa-as e zomba

de nós. De resto, a experiência ensina-nos que o impossível de hoje será, talvez, a evidência de amanhã... Assim aconte-

ceu com a descoberta da América, com a palavra, com a cir-

culação do sangue, com o galvanismo, com a bússola, com a imprensa, com o pára-raios, com os aerostatos, com a vaci-

na, com os medicamentos infinitesimais, etc. E não nos diz a

razão que nada há de absolutamente falso senão o que é con-traditório, e de absolutamente verdadeiro senão o que é evi-

dente?...

Nestes termos, pode afirmar-se que é forçosamente impos-sível haver um triângulo sem três ângulos ou um pau sem

duas extremidades, porque estes fatos são contraditórios; mas não se pode dizer que é forçosamente impossível haver

um homem que leia pela nuca, um outro que ouça pelo epi-

gástrio, um terceiro que veja a cem léguas de distância, um quarto que vaticine o futuro, um quinto que seja insensível à

dor, um sexto que descreva o seu mal e o dos outros, final-

mente, um sétimo que possua o instinto dos remédios. Não, ninguém pode asseverar, sob pena de lesa-razão, que tais fa-

tos sejam evidentemente impossíveis, porque ninguém tem o

direito nem o poder de dizer ao possìvel: “Não irás até aí!”

Na verdade, esses fenômenos são muito extraordinários;

todavia serão mais surpreendentes, mais maravilhosos, mais inexplicáveis que os observados cada dia? Não é tudo misté-

rio, não é tudo maravilha da Natureza? Mas, há maravilhas

que correm as ruas, e outras que são pouco comuns. Julga-mos compreender as primeiras porque as vemos constante-

mente, negamos as últimas porque não as vemos senão raras

vezes; entretanto não se explicam nem umas nem outras; re-gistram-se, eis tudo.”

Esse raciocínio do Dr. Frapart, então incompreendido, era, sem dúvida, superior à cegueira do Dr. Bouillaud, apesar da

superioridade oficial deste sobre seu modesto confrade. A Aca-demia de Medicina, da qual ele representava a idéia dominante,

mantinha-se obstinadamente à margem da verdade.

O professor Bouillaud, que foi membro da Academia de Me-dicina, da Academia de Ciências e de todas as sociedades sábias

de maior crédito, era um tipo particularmente notável desses espíritos minúsculos encerrados em cérebros mais acanhados que

se possa imaginar. De uma religiosidade convicta, era, ao mesmo

tempo, absolutamente incapaz de raciocinar livremente. Foi a seu respeito que contei em O Desconhecido a história da invenção do

fonógrafo. Em 11 de março de 1878 assistia à sessão da Acade-

mia de Ciências, naquele dia, de hilariante memória, em que o físico Du Moncel apresentou o fonógrafo de Édison à douta

assembléia. Feita a apresentação, pôs-se o aparelho docilmente a

recitar a frase registrada no cilindro. Viu-se, então, um acadêmi-co de idade madura, o espírito penetrado e mesmo saturado das

tradições de sua cultura clássica, revoltar-se nobremente contra a

audácia do inovador, atirar-se ao representante de Édison e agarrá-lo pela gola, gritando: “Miserável! Não nos deixaremos

ludibriar por um ventrìloquo!” Este membro do Instituto chama-

se Bouillaud! O mais curioso ainda é que seis meses depois, em 30 de setembro, numa sessão análoga, ele timbrou em declarar

que, após judicioso exame a que procedera, ficara convencido de

que no fonógrafo não havia para ele senão ventriloquia e que não se podia aceitar a substituição do nobre aparelho da fonação

humana por um vil metal. Na sua opinião o fonógrafo não era

senão uma ilusão de acústica. Essa gente...

Ao carro do progresso é jungida por trás

e tudo atrasa, refreando a marcha e conseguindo esconder a luz com a peneira, pela influência de seus títulos oficiais sobre as

massas acarneiradas.

Esse grande homem era o médico de Arsène Houssaye, e po-

de-se ler nas Confissões deste escritor encantador que foi ele a

causa da morte de sua deliciosa esposa e de seu filho – e também

de sua segunda mulher.

É esse o raciocìnio “cientìfico” de certos sábios. Seria para

desejar que o título de membro do Instituto conferisse inteligên-

cia e abrisse o espírito dos seus membros. Essas críticas provo-

cadas por Bouillaud poderiam aplicar-se aos seus colegas da

Academia Chevreul e Babinet, no que toca ao problema psíqui-

co.

O meu saudoso amigo Dr. Macário escrevia, em 1857,59

que

“a vista através dos corpos opacos, a distâncias ilimitadas, não aceita pelos sábios e que é inexplicável e contrária a todas as leis

fisiológicas conhecidas, parece no entanto certa”; e apresentava

os seguintes testemunhos:

“O Dr. Bellenger convenceu-se por experiências repetidas.

Diversas vezes escreveu, em sua casa, sem testemunhas, fora

de todas as vistas, uma frase qualquer numa folha de papel

dobrada e redobrada, fechando-a em duplo, triplo envoltório, cuidadosamente lacrado, e o sonâmbulo leu através das fo-

lhas opacas a frase oculta e transcreveu-a no verso do enve-

lope.

Esse fenômeno já foi verificado, em 1831, pela Comissão

da Academia de Medicina. Lê-se, com efeito, no seu Relató-rio: “O Sr. Ribes, membro da Academia, apresenta um catá-

logo que tira do seu bolso. O sonâmbulo (era o Sr. Petit,

d’Athis, magnetizado pelo Sr. du Potet), depois de alguns esforços que parecem cansá-lo, lê muito claramente estas pa-

lavras: Lavater. É bem difícil conhecer os homens. Estas úl-

timas palavras eram impressas em tipo muito miúdo. Puse-ram-lhe debaixo dos olhos (fechados, bem entendido) um

passaporte; ele reconhece-o e designa-o sob o nome de pas-

sa-homem. Troca-se o passaporte por uma licença de uso e porte de armas, muito parecida com um passaporte, e apre-

sentam-lha do lado branco. O Sr. Petit pôde somente reco-

nhecer que se tratava de um documento parecido com o pri-meiro. Volta-se o papel, e então, após alguma hesitação, ele

diz o que é, e lê distintamente estas palavras: Pela lei, e à

esquerda: Licença de porte de armas. Mostra-se-lhe ainda uma carta aberta; ele responde não a poder ler, por não saber

inglês. Era, efetivamente, uma carta escrita naquela língua.

Todas essas experiências fatigavam muito o Sr. Petit; dei-

xaram-no descansar um instante; depois, como gostava mui-to de jogar, propuseram-lhe, para se distrair, uma partida de

cartas. Um dos assistentes, o Sr. Reynal, antigo inspetor da

Universidade, jogou com ele o “Jogo dos centos” e perdeu-

o.

Experimentou-se diversas vezes fazê-lo enganar, tirando ou trocando cartas, mas foi inútil.

Um estudante de Direito, Paul Villegrand, paralítico do lado esquerdo, posto em estado de sonambulismo pelo Dr.

Foissac, lia também com os olhos fechados. Os experimen-tadores, mantendo-lhe as pálpebras cerradas constante e al-

ternadamente, apresentaram-lhe um baralho novo. Rasgando

a cinta selada, embaralham-no e Paul reconhece fácil e su-cessivamente o rei de espadas, o ás de paus, o sete de ouros,

a dama de ouros e o oito de ouros.

Apresentam-lhe ainda, tendo ele as pálpebras fechadas pe-lo Sr. Segalas, um volume trazido pelo Sr. Husson. Lê no tí-

tulo: “História de França”; não pode ler as duas linhas in-termediárias e lê na quinta linha somente o nome d’Anquetil,

o qual é precedido da preposição por. Abre-se o livro na pá-

gina 89 e ele lê na primeira linha o número de suas... Deixa passar a palavra tropas e continua: no momento em que o

julgavam mais entretido com os divertimentos do carnaval,

etc.” 60

Estes fatos, nitidamente estabelecidos no relatório redigido em nome de uma Comissão da Academia de Medicina pelo Sr.

Husson, trazem em si a sanção da Ciência e da imparcialidade.

Mas, em rigor, poder-se-ia sustentar que os sonâmbulos surpre-enderam estas frases no pensamento dos experimentadores. Isto

pode ser verdadeiro para algumas das experiências acadêmicas;

mas esta explicação não se pode adaptar aos seguintes fatos, pois aqui nem mesmo os experimentadores conheciam a frase que

fizeram ler aos sonâmbulos:

“Recentemente, um dos meus amigos, o Dr. N., que é cer-

tamente incapaz de pretender mistificar, achava-se numa soirée onde estavam diversos artistas e homens de letras; to-

das essas pessoas se conheciam intimamente. Entre elas a-

chava-se Alexis, o célebre sonâmbulo. O Dr. Marcillet mag-netizou-o e eis o que se passou: O meu amigo Dr. N. foi

buscar ao próximo compartimento um livro cujas folhas ain-

da não estavam cortadas; depois, sem o abrir, pediu ao so-

nâmbulo que lesse tal linha de tal página. O sonâmbulo vaci-lou um instante, pareceu empregar um esforço e seguida-

mente reclamou uma caneta e reproduziu a linha indicada;

cortaram-se as folhas do livro, procurou-se a página e a linha designadas, e toda a gente, com pasmo, verificou que a ex-

periência tivera êxito perfeito; somente a frase estava escrita

em inglês no livro, e o sonâmbulo, transcrevendo-a, tradu-ziu-a em francês. Fato original! Esse mesmo sonâmbulo,

poucos minutos depois, não pôde ler a palavra Paris, escrita

em letras graúdas numa folha de papel dobrada em quatro.

Não se pode certamente apelar aqui para a transmissão do

pensamento, pois ninguém tinha aberto o livro cujas folhas nem sequer haviam sido cortadas.”

Assim falava o Dr. Macário, há mais de meio século. É, pois, conhecido há muito tempo aquilo de que somos acusados, às

vezes, de afirmar audaciosamente. Se mencionei esses fatos antigos, de 1850, 1840, 1830, e mesmo de 1786 (Puységur) e

1778 (Enciclopédia, tomo XXXI) foi para mostrar que os fenô-

menos psíquicos foram comprovados há muitos anos (podería-mos dizer desde vários séculos). Mas continuemos. A fonte é

rica.

Tive, pela parte que me toca, muitas ocasiões de ouvir narrar

experiências sobre “a vista sem os olhos” e de observá-las pesso-almente.

No decorrer do verão de 1865 residi, durante um mês de fé-

rias, em Sainte Adresse, na vertente do cabo de la Hève, a oeste

do Havre (Rue des Pecheurs nº 5) e morava em frente a mim um médico célebre, de nome um pouco astronômico: o Dr. Comet.

Sua mulher havia-lhe fornecido exemplos curiosos desta facul-

dade. Era acometida, em certos períodos, de acessos sonambúli-cos, durante os quais ela lia de olhos fechados, através dos

corpos opacos, designava os menores objetos que lhe apresenta-

vam, fechados na mão, adivinhava os pensamentos, percebia os atos improvisados que se passavam nos aposentos contíguos ao

seu, indicava com precisão os dias e horas em que devia ter

novos acessos e designava os medicamentos que a deviam curar.

Pode-se ler a história da cura da Sra. Comet por suas próprias

revelações hipnóticas, assim como a vista de seus órgãos inter-nos, nas Cartas sobre o Magnetismo do Dr. Frapart, que não

deixam a menor dúvida sobre a realidade destes fatos. As obser-

vações do Dr. Comet são acompanhadas de outras análogas, feitas pelo Dr. Alphonse Teste, também em sua mulher. Todos

esses estudos são de 1840. O autor escreve que serão necessários

50 anos para que a ciência oficial lhes reconheça o valor. Enga-nou-se. Em 1890 os preconceitos da ignorância antiga não esta-

vam dissipados e não o estão ainda.

O tempo foge depressa, de resto; e a Humanidade é lenta na

sua marcha. Disse, na primeira página desta obra, que tinha começado o presente estudo há mais de meio século. As linhas

que se acabam de ler e o ano de 1865 assim o comprovam.

* * *

Entre as numerosas experiências que podem auxiliar-nos na solução do problema que estudamos aqui, citarei uma bastante

curiosa relatada pelo Dr. Paul Gibier, ex-interno dos hospitais de

Paris, numa das suas obras.61

Realizou-se em abril de 1885, e reproduziu-a diversas vezes na presença de testemunhas que

indica. Essa leitura independente do órgão da vista foi consegui-

da em estado de hipnotismo (nome moderno do magnetismo e do mesmerismo). Eis o relato da observação:

“O sujet era uma rapariga de vinte anos, de origem judai-

ca. Depois de adormecida, e num estado intermediário de

abmaterialização que não era nem letargia, nem sonambu-lismo, nem tampouco êxtase falante, mas antes o que os

magnetizadores de profissão chamam sonambulismo lúcido,

punha-lhe uma pasta de algodão em cada olho e depois uma larga e espessa toalha ou um lenço de seda que se amarra-

vam atrás da nuca. A primeira vez que tentei a prova de que

vou falar fiquei bem surpreendido com o seu êxito; devo di-zer que naquela ocasião não tinha a experiência que adquiri

depois de numerosas investigações, nem tinha, devo dizê-lo

também, estudos sérios e contínuos sobre a questão.

Tomei na minha biblioteca o primeiro livro que me veio à mão: abri-o ao acaso. Suspendendo-o sobre a cabeça do su-

jet, sem olhar, a capa para baixo, a dois centímetros aproxi-madamente dos cabelos da rapariga hipno-magnetizada, or-

denei-lhe que lesse a primeira linha da página que se achava

à sua esquerda. Volvido um momento de espera ela respon-deu:

– Ah! sim, vejo, espere.

Depois continuou:

– A identidade reconduz à unidade, pois se a alma... – pa-rou e disse ainda – Não posso mais, basta; isto me fatiga.

Anuí ao seu desejo, sem insistir; voltei o livro. Era um vo-lume de Filosofia, e a primeira linha, menos duas palavras,

havia perfeitamente sido vista e lida pelo invisível abmateri-alizado da minha adormecida.”

É natural que não se aceitem estas afirmações senão com muita prudência. Eu mesmo, por muito tempo, atribuí o êxito

dessas experiências a simples embustes e verifiquei-o diretamen-te em minha própria casa, principalmente num dia em que uma

senhora da sociedade, muito elegante, fazendo o papel de mé-

dium, achou meios, pretextando uma enxaqueca, de descansar na minha biblioteca, aproveitando o ensejo para consultar uma obra

antiga que mencionou, depois, durante uma pretensa sonolência

(leitura a tal linha e tal página de tal obra). Mas é certo que não se trapaceia sempre, e não pode tratar-se disso nas experiências

de que acabo de oferecer uma seleção. Não sejamos cegos!

Reconhecer-se-á que são observações variadas e muito dife-

rentes, que todas comprovam o fato da vista pelo espírito, por uma faculdade mental independente da vista normal. Não falta

onde escolher para nos certificarmos desses fenômenos.

Comparemos ainda outras experiências.

Abramos, por exemplo, a obra muito documentada de Sir O-

liver Lodge referente à Sobrevivência Humana (pág. 110) e

citemos a curiosa comunicação espírita de Stainton Moses (que

abrevio):

“O Sr. Stainton Moses, professor no University College de

Londres, adquirira o hábito de escrever automaticamente, como médium, na solidão de cada manhã. Grande número

dos escritos assim conseguidos foram publicados e são co-

nhecidos dos que estudam esses problemas: mas o incidente seguinte é de caráter surpreendente e oferece exemplo singu-

larmente notável do poder da leitura a distância.

O texto que reproduzo foi conseguido pelo Sr. Stainton Moses quando estava em sessão na biblioteca do Dr. Speer e

que a sua mão escrevia automaticamente em conversa supos-ta com interlocutores invisíveis. Eis esse episódio.

Stainton Moses dirigindo-se ao pretenso Espírito: – Podes ler?

Resposta: – Não, amigo, não posso, mas Zacharias Legray e Rector podem.

Stainton Moses: – Há aqui qualquer desses Espíritos?

Resposta: – Vou procurar um.

(Espera-se algum tempo.)

– Rector está aqui.

Stainton Moses: – Pode ler?

Resposta (muda a letra): – Sim, amigo, mas dificilmente.

Stainton Moses: – Quer escrever a última linha do primei-ro livro da Eneida?

Resposta: – Espere...

“Omnibus errantem terris et fluctibus aestas.”

Stainton Moses verifica que a citação é exata, mas pensa

também que o Espírito podia conhecê-la e havê-la conserva-

do inconscientemente na memória.

Apresentou então uma outra pergunta:

– Pode ir à biblioteca ver o antepenúltimo volume da se-gunda estante e ler-me o último parágrafo da página 94? Não

sei qual é a obra e até ignoro o seu título.

Poucos momentos depois o Sr. Stainton Moses, escreven-

do sempre automaticamente, traçava as seguintes palavras:

“Provarei por uma breve narração histórica que o Papado

é uma novidade que se elevou gradualmente e se engrande-ceu desde os tempos primitivos do puro Cristianismo, não só

depois da idade apostólica, mas também depois da união de-

plorável da Igreja e do Estado por Constantino.”

O volume citado era uma obra extravagante e com título

bastante fantástico: Antipopopriestian, or attemp to liberate and purity Christianity from popery politikirkalaty and pri-

estule, de Roger.” 62

Se isto não é leitura pelo espírito, que será? Negar o fato veri-ficado experimentalmente é de todo impossível.

Agora, quem foi que leu? Seria o próprio Stainton Moses, in-

conscientemente? Mas como? Seria um espírito diferente dele,

guiando-lhe a mão? Limitemo-nos a verificar o fato. Não foi o

olho material, foi o espírito quem leu.

Lembremos aqui,63

a tal respeito, a experiência de Sir Willi-

am Crookes na leitura de frases desconhecidas tanto dele como

do médium. Esse médium (uma senhora) recebia comunicações

por meio de uma prancheta, à qual estava fixo um lápis, que deslizava no papel, dirigido pelas suas mãos. Escreve Crookes:

“Eu desejava descobrir o meio de provar que o que ela es-

crevia não provinha da ação inconsciente do seu cérebro. A

prancheta, como o costumava fazer, indicava que, apesar de ser movimentada pela mão e pelo braço dessa dama, era di-

rigida pela inteligência de um ser invisível, que tocava com

o cérebro da senhora como se fosse um instrumento de mú-sica e assim fazia mover seus músculos. Disse então a esta

inteligência:

– Vê o que está neste quarto?

– Sim – escrevia a prancheta.

– Vê este jornal e pode lê-lo? – acrescentei, pondo meu dedo sobre um número do Times, que se achava numa mesa,

atrás de mim, mas sem o olhar.

– Sim – respondeu a prancheta.

– Bem – exclamei –, se pode ver, escreva a palavra que cubro agora com meu dedo e acreditarei no que afirma.

A prancheta começou a mover-se lentamente e, não sem muita dificuldade, escreveu a palavra however. Voltei-me e

vi que era essa a palavra que estava coberta pela ponta de meu dedo.

Quando fiz esta experiência, evitei de propósito olhar o jornal, e era impossível à dama, mesmo que assim o quises-

se, ver uma única das palavras impressas, pois estava senta-

da a uma mesa e o jornal achava-se noutra mesa por trás de mim, encobrindo-o eu com o meu corpo.”

Essas leituras pelos médiuns parecem mostrar a ação de inte-ligências exteriores. Mas não nos apressemos a tirar conclusões.

Uma vista supranormal bem característica foi apreciada pelo

Sr. Maxwell, doutor em Medicina, procurador geral no Tribunal de Apelação de Bordéus, com um sujet muito sensível, a Sra.

Agullana, que ele acabava de magnetizar pessoalmente para

fazer experiências.64

A Sra. Agullana supunha estar fora de casa.

“Pedi-lhe – disse ele – para ver o que fazia um dos meus

amigos, M. B., muito conhecido dela. Eram 10 horas e 20 da

noite. Com grande surpresa minha, disse-me que via M. B.

em trajes menores, passeando de pés descalços sobre a pe-dra. Isto pareceu-me não ter nenhum sentido. Entretanto tive

ocasião de ver o meu amigo no dia seguinte. Apesar de estar

muito a par dos fenômenos, M. B. mostrou-se bastante sur-preendido e disse-me textualmente:

– Ontem eu não estava bem disposto; um amigo meu, que mora em minha casa, aconselhou-me a experimentar o mé-

todo Kneipp, e tanto insistiu que, para satisfazê-lo, ensaiei

pela primeira vez, ontem à noite, passear, de pés descalços, na pedra fria.”

* * *

A essas variadas observações acrescentarei a seguinte, muito

recente, do célebre físico americano Édisson, cujo valor crítico experimental ninguém pode contestar. Eis um relatório escrito

por ele:65

“A personagem de quem vou falar-lhe foi-me enviada por

um velho amigo que me disse, em forma de apresentação:

– Este homem, Reese, realiza certas coisas singulares. De-

sejo que o conheça. Talvez consiga explicar a sua faculdade.

Marquei-lhe uma entrevista. Reese chegou ao meu labora-

tório no dia indicado. Mandei chamar alguns dos meus ope-rários para realizar experiências com eles. Reese pediu a um,

que era norueguês, para passar ao quarto contíguo e escre-

ver, num pedaço de papel, o nome da filha mais nova de sua mãe, o lugar em que ela nascera e diversas coisas mais. O

norueguês obedeceu, dobrou o papel e guardou-o na mão fe-

chada. Reese revelou exatamente o conteúdo desse papel e acrescentou mais, que o rapaz tinha no bolso uma moeda de

10 coroas, o que era exato.

Depois de diversas experiências similares com outros em-pregados, pedi-lhe para fazer também outras comigo. Passei

então para outro compartimento e escrevi estas palavras: “Há alguma coisa de superior ao hidróxido de níquel para

uma bateria de matérias alcalinas?”

Procedia nessa ocasião a experiências com a minha bateria elétrica alcalina e receava bastante não estar no verdadeiro

caminho. Depois de haver escrito a frase mencionada, pro-pus-me um outro problema e apliquei toda a minha atenção a

resolvê-lo de forma a desnortear Reese, se ele procurasse ler

no meu pensamento o que havia escrito. Voltei em seguida ao quarto em que o tinha deixado. No momento em que eu

entrava, disse ele:

– Não, não há nada melhor que o hidróxido de níquel pa-ra uma bateria de matérias alcalinas.

Tinha lido com exatidão a minha pergunta.

Não pretendo de maneira alguma explicar esta faculdade. Estou convencido de que as necessidades da civilização pro-

duzirão qualquer grande descoberta por meio de homens do-tados desses dons. Os raros videntes da atual geração virão a

ser multidão nas gerações próximas. A inteligência normal

futura desenvolver-se-á e completará rapidamente a obra de inteligência normal de hoje.

Cerca de dois anos depois das experiências que acabo de contar, o porteiro do meu laboratório entrou e anunciou-me

que Reese estava na sala de espera e desejava falar-me. To-

mei um lápis e escrevi em letras microscópicas: “Keno”. Dobrei o papel e meti-o no bolso. Disse então ao criado para

introduzir Reese.

– Reese, tenho um pedaço de papel no meu bolso; o que está escrito nele?

Sem a menor hesitação, respondeu:

– Keno.

Volvidos tempos sobre a experiência do laboratório, o co-

nhecido alienista Dr. James Hanna Thompson organizou em sua casa uma sessão contraditória. Foi à sua biblioteca, es-

creveu várias perguntas em pedacinhos de papel e escondeu-

os. Reese ficou a conversar no salão até que Thompson vol-tasse e então lhe disse:

– No fundo da gaveta esquerda da sua secretária está um pedaço de papel no qual foi escrita a palavra Opsonic. De-

baixo do livro que está em cima da mesa há um pedaço de

papel com outra palavra, Ambiceptor. Numa outra pequena folha está escrita a palavra Antigen.

As designações que o vidente deu sem hesitação eram in-teiramente exatas. Thompson ficou estupefato e declarou-se

convencido.

Há alguns anos empreendi uma série de experiências para procurar transmitir o pensamento de uma pessoa para outra por todos os meios, mas sem nenhum resultado. Procurei re-

solver o fenômeno com o auxílio de aparelhos elétricos ade-

rentes à cabeça dos operadores. Quatro de nós ocuparam

quatro compartimentos diferentes, ligados pelos sistemas e-

létricos de que falei. Sentamo-nos depois nos quatro cantos

do mesmo quarto, aproximando gradualmente as nossas ca-deiras umas das outras, para o centro da sala, até que os nos-

sos joelhos se tocassem, contudo, não conseguimos nenhum

resultado.

Mas Reese não precisa de aparelho algum nem de nenhu-

ma condição especial para operar.”

Assim fala Édisson. Todos os experimentadores que têm es-tado em relações com Reese depõem no mesmo sentido, princi-

palmente o Sr. Schrenck-Notzing, que dele fez um estudo espe-

cial.

Um episódio curioso da vida desse “vidente” é a pendência

que teve com a Justiça, na qual, sendo acusado de embuste,

convidou, no começo da audiência, o juiz a escrever, ele mesmo,

algumas palavras em pedaços de papel e a guardá-los na mão, lendo integralmente as inscrições feitas pelo juiz. É inútil dizer

que foi absolvido.

* * *

Reuni centenas dessas comprovações da “vista sem os olhos”.

Uma das mais notáveis é, certamente, a do professor Grasset,

de Montpellier, o qual, tendo escondido quatro linhas escritas por ele num envelope opaco hermeticamente fechado, viu essas

linhas lidas a trezentos metros de distância, pelo sujet lúcido do

Dr. Ferroul (Anais das Ciências Psíquicas, 1897, pág. 722).

Há aí uma mina de que não se suspeita a riqueza. Assinalarei

ainda neste lugar a seguinte narrativa que me foi comunicada

pelo meu erudito colega da Sociedade Astronômica de França, o

Sr. H. Daburon, com esta profissão de fé:

“Não conheço matéria mais atraente do que o estudo da

alma empreendido na sua obra O Desconhecido, e desejo

como todos os leitores sedentos de verdade, que esta grande

obra continue. Por isso, parece-me interessante assinalar-lhe, se já o não conhece, um fato extraído da Correspondência

da Duquesa de Orleães, Princesa Palatina. Ei-lo:

“Há dez anos um fidalgo francês que foi pajem do mare-

chal d’Humières e que desposou uma das minhas açafatas,

trouxe com ele para a França um índio do Canadá. Um dia, durante a refeição, o índio pôs-se a chorar e fazer caretas.

Longueil (era este o nome do fidalgo) perguntou-lhe o que

tinha e se estava doente. O índio desatou em maior choro. Longueil insistiu com energia e o índio lhe disse:

– Não me obrigues a falar, pois isto é contigo e não comi-go.

Instado com mais veemência, acabou por declarar:

– Vi, pela janela, que teu irmão foi assassinado em tal lu-

gar, no Canadá.

Longueil pôs-se a rir e respondeu-lhe:

– Endoideceste.

O índio replicou:

– Não endoideci, não; escreve o que acabo de dizer e verás

que não me engano.

Longueil escreveu, e passados seis meses, quando chega-

ram os navios do Canadá, soube que a morte de seu irmão ocorrera no momento exato e no lugar em que o índio o ti-

nha visto pela janela. É uma história muito verdadeira esta.

Versalhes, 2 de março de 1719.”

A Princesa Palatina não tinha fama de ingênua na corte de seu marido, o Duque de Orleães, regente do Reino, e no tempo da

Regência Paris e Versalhes estavam certamente afastados de

qualquer misticismo. O fato aqui relatado deve ser tomado como autêntico. Como via “no ar” o vidente canadense? Como se lia

numa bola de cristal ou num copo d’água ou antes, era o espìrito

do adivinho que atuava. Parece que não se pode tirar outra conclusão destas observações.

Um escritor notavelmente céptico e irônico, que ridiculizou a

história do espectro de Plínio como o do assassínio de Cícero,

Gratien de Semur, publicou em 1843 um livro bastante divertido, com o título Tratado dos erros e dos preconceitos, no qual abria

exceção para uma sensação telepática ocorrida com pessoas da

sua roda (ele nem sequer desconfiava da futura criação desta

palavra e do valor de tais sensações). Aqui lhe temos a narração

e o comentário:

“Na infância, vimos por diversas vezes em nossa famìlia

uma senhora de seus quarenta anos que se chamava Sra. de

Saulce. Seu marido era um rico colono de São Domingos.

Na época da Revolução vieram estabelecer-se ambos em França. O Sr. de Saulce fez diversas viagens às ilhas, duran-

te as quais sua mulher ficava em Paris. A Sra. de Saulce era

excelente criatura, muito simples, nada nervosa, avessa a imaginações que impressionam facilmente. Durante a última

viagem de seu marido, estando uma noite jogando as cartas

em companhia de várias pessoas, exclamou de repente, cain-do de costas:

– O Sr. de Saulce morreu!

Acudiram-lhe, mostraram-lhe que semelhante visão era

certamente errada e ela voltou à razão. Todavia, quando es-tava só, não conseguia afastar inteiramente o pressentimento

que a angustiava e aguardava novas de seu marido, numa

temerosa ansiedade. Recebeu notícias favoráveis, mas ante-riores ao dia da sua visão. Finalmente, chegou uma carta de

São Domingos, tarjada de preto, e que não fora subscrita por

seu marido. A carta referida era de um colono e dirigida a uma terceira pessoa, para minorar a violência do choque. O

Sr. de Saulce havia sido assassinado pelos pretos, no mesmo

dia em que a Sra. de Saulce sentira o sinistro golpe. Esse duplo acontecimento, certificado por mais de vinte pessoas

de qualidade, foi um dos que maior impressão me causaram

quando eu era criança.

Só depois de dez anos tornamos a ver a Sra. de Saulce,

sempre vestida de luto eterno, ao qual se tinha consagrado.”

Que dizer depois de semelhantes fatos? acrescenta o narrador. Nada pode demonstrar a exatidão ou provar a falsidade; é preciso

crer ou não crer. Entretanto, pode-se apoiá-los em presunções

provenientes de exemplos análogos e que a autoridade de Sully pôs ao abrigo de qualquer contestação.

“É indubitável – diz Sully em suas Memórias – que Hen-

rique IV teve o pressentimento de seu fatal destino. Quanto

mais via aproximar-se a hora da sagração, mais sentia redo-brar em seu coração o temor e o pavor, abrindo-se inteira-

mente comigo, nesse estado de amargura e de prostração de

que eu o repreendia como de uma fraqueza imperdoável. As suas próprias palavras produzirão mais impressão do que tu-

do quanto eu possa dizer:

– Ah! meu amigo – exclamou –, quanto me desagrada esta sagração! Não sei por que, mas o coração anuncia-me que

me vai acontecer qualquer desgraça.

Sentou-se, ao pronunciar estas palavras e, entregue a toda

a tristeza de suas idéias, baita com os dedos na caixa dos seus óculos, sonhando profundamente.”

A declaração de Sully seria suficiente para se não duvidar do pressentimento que fez sentir ao coração de Henrique IV a ponta

do punhal que o devia assassinar; poderíamos entretanto apoiá-la em outras autoridades dignas do mesmo apreço. L’Estoile e

Basompierre, em suas Memórias, contam as mesmas particulari-

dades. Apressamo-nos, todavia, a acrescentar que os raros exem-plos de pressentimentos justificados não devem ser acolhidos

senão como exceções.66

É esta a narração de Gratien de Semur, e percebe-se que a

publicou com certo constrangimento. Essas recordações têm aqui o seu lugar. Ele é mais inclinado a negar tudo do que a tudo

aceitar. Os dois extremos são falsos. A razão incita-nos a seguir

uma via independente, a igual distância dos dois erros humanos habituais.

Outras observações, ainda, não menos curiosas:

O professor Grégory, de Edimburgo, havia visitado um

conhecido numa cidade distante 30 milhas (48 quilômetros),

encontrando aí uma senhora, que lhe era desconhecida, magnetizada ou hipnotizada pelo seu amigo. Deu-se o caso

de ela descrever, com precisão extraordinária, todos os por-

menores da sua casa. Ocorreu por isso a Grégory a idéia de tentar a seguinte experiência:

Pediu-lhe que se transportasse em espírito a Greenock, distante 70 quilômetros, onde estava seu filho. Ela encon-

trou-o, pintou-o exatamente, sem nunca o ter visto nem ter ouvido falar dele, e descreveu a quinta onde estava brincan-

do com um cão. Esse cão, disse ela, é um “terra-nova”, pre-

to, com duas manchas brancas. O rapaz e o cão pareciam di-vertir-se ambos, e o animal furtou-lhe o chapéu. Estava na

quinta um senhor, moço ainda, mas de cabelos brancos, clé-

rigo presbiteriano, lendo um livro. Pedindo-lhe Grégory que entrasse na casa, a vidente descreveu o salão, a sala de jan-

tar, a cozinha onde uma criada nova preparava a refeição e

onde havia um quarto traseiro de carneiro que tostava ao fo-go, mas ainda não assado. Também havia aí outra criada. O

cavalheiro chegou perto da porta, o rapaz continuava a brin-

car com o cão e depois foi para a cozinha, situada no andar superior, e pôs-se a comer.

O professor escreveu logo todos os pormenores e enviou-os ao amigo, que os reconheceu exatos na sua maior parte.

Não podia dar-se, observa ele, nenhuma transmissão de pen-

samento, pois não conhecia o lugar onde estava seu filho e para onde havia mandado a magnetizada.

67

Tenho muitas observações análogas às precedentes na minha mesa de trabalho. Mas é preciso deter-me. O resultado desta

pesquisa é a afirmação de que o ser humano pode ver sem os olhos, pelo espírito.

Confesso que, admitindo esta vista transcendente, estou em

desacordo com sábios que conheci pessoalmente e estimei com

sinceridade, entre outros, Alfredo Maury, do Instituto (v. as minhas Memórias). Ele não aceita esta faculdade. Não acredita

numa hiperestesia do sentido da vista, observada por ele em

sonâmbulos,68

o que existe, com efeito, mas não pode ser genera-lizado e não se aplica aqui inteiramente.

Decerto podemos, em determinados casos, assimilar esta fun-

ção da vida à faculdade visual dos animais noturnos, que vêem

muito bem durante a noite, como os gatos, as corujas, os morce-gos, as falenas, os répteis das cavernas, os peixes do fundo dos

mares.

A luz tem seus graus e parece não baixar jamais até zero.

Certos homens são nictalopes. O imperador Tibério estava

neste caso. Quando acordava, durante a noite, distinguia, no seu

quarto, todos os objetos; tinha olhos muito grandes: “Erat prae-grandibus oculis – lemos em Suetônio – qui, cum mirum est,

noctu etiam et in tenebris viderent; ab breve et cum a somno

potuissent deinde nebescebant.”

O abade Mussaud, professor no Colégio de La Rochelle em

1820, autor do curioso livrinho intitulado: Roman d’Optique,

relata que conheceu naquela cidade uma senhora cujos olhos

tinham esta propriedade e viam muito bem na escuridão, não só alguns instantes, como Tibério, mas muito tempo, distinguindo

mesmo um alfinete caído no chão. Também seus olhos eram

muito grandes. Todavia, esta faculdade visual não era permanen-te e só se manifestava em certas épocas de padecimentos e de

fraqueza.

Em 3 de janeiro de 1899, jantando em casa de meu amigo

Barthôldi, o grande estatuário, a filha do Dr. Chaillou, a Sra. Peytel, informou-me que sua prima, a Srta. Varanne, era dotada

dessa virtude. Uma noite, ouvindo-a falar em alta voz, verificou

que, sentada na cama e sem nenhuma luz, ela lia um panfleto de P. Louis Courier, que fora buscar à biblioteca do doutor. Era

sonâmbula.

Poderia indicar, nas minhas relações científicas, uma senhora

distinta e instruída, dotada de faculdades psíquicas extraordiná-rias, a Sra. d’Espérance, sócia da Sociedade Astronômica de

França, que, além dessas faculdades, via, escrevia e desenhava

em plena escuridão. Quando era criança, na época dos seus estudos clássicos, escrevera a sua composição, como sonâmbula,

durante a noite, sem dar por isso.69

A sua amiga e colega Sra. Hoemmerlé, tradutora de Carl du

Prel, conhece mais de um exemplo análogo.

O Dr. Liébault, que tratou muito desse assunto na sua douta

obra sobre O sono provocado e os estados análogos, parece

admitir somente uma hiperestesia do órgão da vista, e cita a esse respeito experiências feitas por ele, assim como por A. Bertrand,

Encontre, Macário, Archambault, Mesnet, em sonâmbulos que

liam na escuridão, graças à dilatação da pupila e à acumulação

da força de atenção no nervo óptico. Essa vista noturna pelos

olhos não é duvidosa, mas só se aplica a uma parte restrita do nosso problema, pois não corresponde nem à descrição de uma

casa longínqua ou de uma ação passando-se a mil quilômetros,

nem à leitura de um livro fechado, nem à maior parte dos nossos exemplos.

Os sujets magnetizados que vêem sem os olhos e imaginam

ver pela fronte, pelo epigástrio ou pelo pé iludem-se: é seu

espírito que vê.

Pretendem também ver pelo ouvido. Conta Lombroso que em

1892 teve de haver-se, na sua prática médica, com um fenômeno

que nunca testemunhara. Afirma ele:

“Tive de tratar a filha de alto funcionário da minha cidade

natal; esta personagem foi muitas vezes acometida, na época da puberdade, de violentos acessos histéricos, acompanha-

dos de sintomas que nem a Patologia nem a Fisiologia podi-

am explicar. Em certos momentos, seus olhos perdiam de todo a faculdade da vista e, em compensação, a doente via

pelos ouvidos. Era capaz de ler, com os olhos vendados, al-

gumas linhas impressas, que lhe apresentavam ao ouvido. Quando se lhe colocava uma lente entre a orelha e a luz so-

lar, sentia como que uma queimadura nos olhos e gritava

que a queriam cegar. Profetizava particularmente, com exa-tidão matemática, tudo o que lhe ia acontecer. Disse uma

vez que, dentro de um mês e três dias, sentiria o desejo irre-

sistível de morder. Observei-a com atenção, procurei distraí-la, atrasei todos os relógios da casa para iludi-la acerca da

hora e, apesar disso, no dia designado e na hora anunciada,

foi tomada da vontade de morder, acalmando-se somente depois de haver despedaçado com os dentes alguns quilos de

papel.”

Apesar de esses fatos não serem novos, eram entretanto muito singulares, e inexplicáveis pelas teorias fisiológicas e patológicas estabelecidas.

Temos muita razão em dizer que o novo mundo, que aqui ex-

ploramos, é ainda mais inesperado do que o de Cristóvão Co-

lombo! Quanto à vista pelo ouvido... Parece-me haver aí um fenômeno essencialmente psíquico, ao qual o nervo acústico é

tão estranho como o nervo óptico.

Por que seriam de preferência a fronte, o nariz, o queixo, o

estômago, o umbigo, a perna ou o pé que veriam e não o ser mental, dotado de um órgão interno, espécie de órgão de sonho

real? Os raios X penetram através dos corpos. Colocai-vos

inteiramente vestidos diante do “écran” radiográfico e o vosso esqueleto aparecerá nesse “écran”.

Qual é esta faculdade interior? Podemos atribuí-la ao cérebro,

ou devemos ver nela uma faculdade da alma independente da

anatomia orgânica. Assentemos ainda a questão.

O cérebro é, sem contradita, associado a todos os nossos pen-

samentos. O sentimento da virtude mais pura, o espírito de

sacrifício, a abnegação absoluta, a adoração mística da divinda-

de, tudo o que pudermos imaginar de mais desprendido da matéria, não é pensado pelo ser humano senão com auxílio do

cérebro. Mas o cérebro não é o autor dos pensamentos: é apenas

o instrumento. Se quero levantar o braço, se pretendo fazer um juramento, se tomo uma deliberação, é o meu espírito que atua.

A causa da ação está nele e não no sistema nervoso e muscular

que lhe obedece automaticamente.

É o nosso espírito que pensa, que quer, que ama, que procura,

que resolve. Não é a nossa carne molecular cerebral.

A vista sem os olhos exerce-se pelo espírito, pela alma. As

faculdades que aqui operam são ainda desconhecidas. Supus

primeiro que o cérebro poderia ser a causa produtora de todos esses fenômenos, que emitiria ondas invisíveis transmitindo-se a

distância, e que essas manifestações não provariam a existência

individual de nosso ser mental. Mas esta hipótese é de todo insuficiente, pois a ação pessoal do espírito revela-se com evi-

dência nessas análises.

Observamos anteriormente que diversos ensaiadores, e não

dos menores, atribuem esta faculdade supranormal de ler textos

ocultos a um espírito estranho que se comunicaria por meio do

médium experimentador. Isto não é inadmissível. Mas é ir procu-

rar bem longe, é retardar as dificuldades; e qual seria a natureza

desse espírito desconhecido?

Como os meus leitores sabem, já enunciei o mesmo em diver-

sas de minhas obras, a título de pura hipótese, claramente, pois

está longe de ser demonstrada. O método científico não tem por

princípio estabelecer explicações mais ou menos imaginárias; procura sempre manter-se no círculo do que é evidente. Mas é

forçado a confessar-se incapaz perante fatos incompreensíveis, e

depois de haver substituído a teoria fisiológica das alucinações pela negação dos fenômenos, não se declara satisfeito e vê-se

obrigado a procurar outra coisa.

Parece, entretanto, que o nosso espírito, tal como o conhece-

mos, nem sempre basta para uma explicação realmente satisfató-ria e que estão em jogo forças ocultas.

As minhas diversas obras estabeleceram, com argumentação

positiva, aceita geralmente, que o Universo é um dinamismo e

que os átomos são regidos por forças imateriais.

Franck Podmore, autor psíquico bem conhecido, do qual já

falamos, está convencido de que todos os fenômenos, incluídas

as aparições, se explicam pela transmissão do pensamento e se

relacionam todos com essa teoria. Confesso não perceber qual-quer transmissão de pensamento no ato de o seminarista de

Bordéus escrever o seu sermão em plena escuridão e com os

olhos tapados por um anteparo, ou na sonâmbula a descrever a moléstia interna e avistar, de um quarto fechado, as minúcias da

dissecação do corpo de sua mãe, ou em Alexis ao ler as cartas de

jogar antes de serem voltadas, e jogar partidas e ganhá-las sem-pre, apesar de ter os olhos vendados hermeticamente, ou num

sujet acompanhar um gatuno de Paris a Bruxelas e a Spa, ou na

experiência de Stainton Moses escrever uma frase inserta num livro que não conhece, ou na de Crookes sobre uma palavra

desconhecida adivinhada, etc.

Estamos longe de saber tudo. Não pretendemos tudo explicar.

“Conhece-te a ti mesmo”, dizia Sócrates. Deve ser esta ainda a

nossa divisa: Não conhecemos hoje melhor o nosso ser íntimo do

que era conhecido há dois ou três mil anos.

Ora, nossa alma não parece tão simples quanto no-lo ensi-

nam. O polipsiquismo não é uma palavra vã. Que são os desdo-

bramentos de personalidade? Que é o inconsciente, o subconsci-ente, o subliminal?

Um exemplo muito antigo e incontestável de vista a distância,

certificado por numerosas testemunhas cujas asserções foram

longamente discutidas, é-nos oferecido pelo historiador Filóstra-to, na sua vida de Appollônius de Tyane, contemporâneo de

Jesus-Cristo. Estando em Éfeso, viu, com sua vista interior, o

assassinato do imperador Domiciano, em Roma

Sabe-se como morreu esse extravagante e sanguinário tirano.

Foram os seus libertos mais queridos que, de acordo com sua

mulher, a imperatriz Domícia Longina, o assassinaram em sua

própria residência, julgando-o tão temível nas suas amizades como nos seus ódios. A visão de Appollônius deu-se no momen-

to em que se realizava o trágico atentado. Eis a narração de

Filóstrato, admiravelmente circunstanciada:

“Era meio-dia. Appollônius achava-se num dos pequenos

parques dos arrabaldes de Éfeso, discreteando sobre assun-

tos filosóficos graves, perante centenas de ouvintes. Num

dado momento, sua voz baixou como presa de súbita e pro-funda emoção. Continuou, todavia, sua dissertação, mas

mais devagar, visivelmente perturbado pela afluência de i-

déias que o desviavam daquelas a que devia dedicar-se.

Depois deteve-se completamente; parecia que lhe faltavam

as expressões, como quando um homem procura ver o êxito de um acontecimento. Finalmente exclamou:

– Tende coragem, efésios! O tirano foi morto hoje. Que digo eu? Hoje? Por Minerva! acabava de ser morto no pró-

prio instante em que interrompi o meu discurso.

Os efésios pensaram que Appollônius tinha perdido a ra-zão; desejavam vivamente que a sua revelação fosse verda-

deira, mas receavam que daquelas palavras lhes proviesse qualquer perigo.

– Não me surpreende – disse Appollônius – que não me acreditem por enquanto. A própria Roma não o sabe ainda

inteiramente. Mas vai sabê-lo, porque a notícia se espalha

pela voz de milhares de cidadãos, e isto exalta de alegria o

duplo destes homens... e o quádruplo... e todo o povo. O clamor ressoará aqui. Podeis não acreditar-me, até que che-

gue aos nossos ouvidos a narrativa do fato, e adiar até esse

instante o sacrifício que deveis oferecer aos deuses nessa o-casião; por minha parte, vou agradecer-lhes o que vi.

Os efésios continuaram incrédulos; mas, pouco depois, mensageiros vieram anunciar-lhes a boa nova e prestar tes-

temunho em favor da adivinhação de Appollônius, porque a

morte do tirano, o dia e a hora em que foi consumada, todos os pormenores eram conformes aos que os deuses lhe havi-

am mostrado quando proferia o seu discurso.”

Assim fala Filóstrato.

Não era preciso mais, naquela época, para que Appollônius

fosse considerado como um semideus. Invocou-se, de resto, o mesmo milagre ao ativo do Papa Pio V, quando foi santificado:

avista, de uma janela do Vaticano, a batalha de Lepanto, em 7 de

outubro de 1571, e exclama para os que o rodeavam:

– Vamos agradecer a Deus perante o altar; o nosso exército

acaba de alcançar uma grande vitória.

Esses exemplos de lucidez não faltam na História. Comines,

cronista de Luís XI, relata que na hora em que Carlos, o Temerá-

rio, foi morto na batalha de Nancy, o rei ouvia a missa na igreja de S. Martinho de Tours e que o capelão do rei, Ângelo Cato,

depois arcebispo de Viena, lhe disse, dando-lhe a beijar “A Paz”:

– Deus vos dá a paz; vosso inimigo, o Duque de Borgonha,

acaba de ser morto e o seu exército está em fuga.

Essas histórias de Appollônius, de Pio V, de Comines e cem

outras tiveram a sorte de todas as coisas humanas. No século

XVIII, negaram-se. No século XIX eram simples alucinações.

Hoje, segundo os fatos reunidos aqui, não nos é possível recu-sarmo-nos a admitir essa vista à distância, pois conhecemos com

exatidão grande número de casos análogos.

Essas observações, mais antigas e mais numerosas do que se

supõe, são ignoradas geralmente: os pensamentos viajam através

do espaço. Como? Emissão ou ondas? Do Sol à Terra circulam

partículas elétricas lançadas pelo astro central, produzindo os

fenômenos magnéticos, as auroras boreais, as perturbações telefônicas. São emissões. Um projétil disparado arrasta com ele

uma energia. A transmissão das ondas sonoras através da atmos-

fera ou das ondas luminosas através do éter, ondas que não são em si mesmo nem sonoras nem luminosas, provêm de uma fonte

de energia. Qual é a natureza dessas energias? Como se transmi-

te a gravitação através do espaço? Essa força é prodigiosa; ela sustenta todos os mundos: a Terra, que pesa 5.990 sextiliões de

toneladas; Júpiter, trezentas vezes mais pesado; o Sol, trezentas

mil vezes mais pesado do que o nosso globo.

Do maior ao menor, esses mundos agem e reagem todos uns

sobre os outros e Sírius, a 83.000 bilhões de quilômetros, exerce

influência longínqua sobre o nosso próprio planeta. Qual é a

natureza dessa telepatia física? Não existem ondas de gravitação. É possível que o pensamento não tenha medida comum com a

matéria, o espaço e o tempo, de que não podemos aliás formar

nenhuma idéia exata. As nossas células cerebrais mergulham no desconhecido. Andamos ligados inconscientemente a tudo o que

existe, a todas as forças naturais conhecidas e desconhecidas, por

uma rede inextricável de ondas e vibrações, e o próprio pensa-mento é um agente que atua através do espaço.

Não há nessas narrações nem imaginação, nem ilusão, nem

embuste.

São tão exatas como uma observação meteorológica ou astro-

nômica.

Têm, pois, estes estudos direito de cidade na Ciência.

O nosso ser espiritual, mental, pode ver sem os olhos do cor-

po.

Reuni, durante muitos anos, essas observações para me con-

vencer e, como suponho que os meus leitores são tão exigentes

como eu, insisto em mostrar-lhes a continuação de minhas pesquisas.

Só nos embaraça a escolha, para essas observações tão varia-

das como inegáveis. Eis aqui ainda uma outra que eu sentiria em não ajuntar às anteriores como prova não menos convincente da

nossa argumentação. Essa vista sem os olhos foi publicada pelo

Dr. Fanton, de Cannet (Alpes Marítimos) nos Anais das Ciências

Psíquicas, do mês de dezembro de 1910. Trata-se de uma senho-ra, nova, louca pela dança, que se tornou, após diversos aciden-

tes, abominavelmente histérica e sem-vergonha, além de grave-

mente enferma. Morava em Marselha e seu marido residia em Genebra.

Eis o fato:

“O Dr. Fanton, que a tratava (outubro de 1885), recebeu

um telegrama do marido dela, avisando-o da sua partida de

Genebra, de tarde, pelo comboio das 7 horas, o qual devia passar em Culoz às 9 horas, chegar a Lião às 10 horas e a

Marselha no dia seguinte, pelas 5 horas da manhã. Na reda-

ção do telegrama podiam-se adivinhar as palavras “ministro da guerra”, apesar de cobertas em parte por um borrão de

tinta.

Eram 7 horas da noite e o doutor foi chamado pela família da doente que se debatia numa crise violenta. Não se apres-

sou em atender a chamada e tomou a sua refeição, durante a qual, diz ele, lhe serviram uma omelette aux fines herbes.

A residência da cliente distava cerca de 350 metros da sua. “Ao chegar, diz ele, vi ao redor da doente oito pessoas, das

quais seis ainda vivem, que testemunharam os fatos seguin-

tes:

Acabava de dizer: “Ele não tem muita pressa. Enfim, re-

solve-se.” E pouco depois: “Está à porta, tocou a campai-nha.” Quando entrei no quarto, a doente acolheu-me com

grande risada e interpelou-me por esta forma: “Ah! quando o

chamo, o senhor nunca tem pressa de vir. Mandou dizer que não estava em casa e, no entanto, estava a jantar, comendo

uma omelette aux fines herbes.”

Prosseguiu: “É inútil que apresente desculpas. Sei o que fez. Dê-me antes o telegrama de Alfredo, que tem em seu poder e que ele bem poderia ter-me dirigido.” Um momento

depois, a doente disse em voz alta e clara o conteúdo do te-

legrama que estava no meu bolso e que ninguém conhecia,

entre as pessoas presentes. Esse lance ocorreu com tal rapi-

dez, eu fiquei de tal modo confuso, e as testemunhas tão

admiradas, que levei um momento a recuperar a serenidade antes de explicar à assistência que era exato tudo quanto a

doente dizia e de mostrar-lhe o telegrama que tinha recebido

meia hora antes.

Como podia a Sra. A., que não estava prevenida da volta

de seu marido e ainda menos das horas e do itinerário de sua viagem, conhecer o conteúdo do despacho telegráfico? É o

que procurávamos explicar-nos sem consegui-lo. De repente,

apoderou-se da enferma uma nova crise de riso mais jovial e estridente, interrompida por estas palavras: “Ele dorme, não

acorda! Não! não!” Seguidamente, o riso chegou quase a su-

focá-la e ela acabou, balbuciando, com bastante nitidez: “Ele dorme, fica no comboio, não chegará.” Eram nove horas.

De manhã, à hora da chegada do comboio que devia trazer seu marido, fui ao encontro dele com dois amigos nossos.

Recomendei muito particularmente às pessoas que ficaram

perto da doente que tomassem com cuidado nota de todos os pormenores que poderiam ocorrer durante a nossa ausência,

e por nossa parte propusemo-nos observar escrupulosamente

todos os nossos feitos e gestos. Chegamos à estação sem in-cidente. O marido não estava no comboio vindo de Lião, e

voltamos para perto da minha cliente.

Pouco depois de nossa saída, um telegrama enviado de Grenoble avisava-nos de que o marido só chegaria à tarde,

por ter perdido o comboio...

Deixei a doente pelas 11 horas.

De tarde fui à procura do marido antes que ele visse al-guém e, sem preveni-lo, interroguei-o: soube por ele que às

9 horas da noite passara em Culoz sem acordar, numa carru-agem que foi enviada para Chambery e só nesta cidade des-

pertou. Verificando que, com esta mudança de direção, não poderia chegar a Marselha senão com 7 horas de atraso, ti-

nha telegrafado. Fi-lo repetir essa narração diante de diver-

sas pessoas que haviam permanecido perto de sua mulher na

noite anterior e foi-nos fácil verificar, pela narrativa que lhe

fizemos por nossa vez, que ela o tinha acompanhado durante

a sua viagem, fazendo-nos assistir às suas peripécias.”

O Dr. Fanton, que relata estes fatos, não conhecia então o as-

sunto que aqui estudamos, da vista sem os olhos a distância, e ficou realmente admirado. Hoje sabemos que essa faculdade da

alma é inegável; pode-se ver pelo espírito, não pelo nervo óptico da retina.

Vamos ouvir também o Dr. Osty sobre certos fatos recentes,

estudados por ele:

“No mês de fevereiro de 1914 a Sra. Camille, adivinha

profissional em Nancy, deu, em sono hipnótico, indicações que permitiram encontrar o corpo do Sr. Cadiou, desapareci-

do desde 30 de dezembro, sem que nenhum indício tivesse

fornecido previamente a menor indicação. Isso foi muito comentado nos jornais. Os policiais e os magistrados mos-

traram-se descontentes. Os “espìritos fortes”, os finórios,

aqueles cuja superior inteligência brilha no olhar, não trepi-daram um instante em acusar a sonâmbula de ser uma com-

parsa para pelos interessados “para iludir a Justiça”.

O professor Bernheim, entrevistado por um repórter do Matin, declarou que não existia a adivinhação.

– Nunca pude obter – disse ele – no curso do meu longo tirocínio, fenômenos de vista a distância ou de adivinhação;

toda a minha educação científica se insurge contra a existên-cia de semelhantes fenômenos e contesto-lhes a veracidade

até mais séria verificação...

Entretanto, nada era mais certo do que essa revelação hip-nótica.

70

Volvido um mês, em 19 de março de 1914, desaparecia o Sr. André Rifaut, guarda do castelo de Boursault. Procurou-

se nas matas e nos lagos do Marne, que transbordara. Os po-liciais e a brigada móbil de agentes fizeram pesquisas ativas

e o inquérito judiciário não deu resultado. Como a família

Cadiou, os irmãos Rifaut recorreram a diversos sonâmbulos que, de comum acordo, declararam que o guarda havia sido

morto a pancadas e atirado à água. A Sra. Camille, que foi

uma das três, falou assim, em 24 de março, segundo Le

Journal:

– Procurais um parente. Vejo-o. Depois de trocar papéis

com um homem que envergava uma farda, caminha de noite por uma estrada deserta. Um pouco mais longe há um rio;

aproxima-se de sua casa. Chega um homem e, com uma cla-

va, atira-lhe uma pancada à cabeça. O infeliz cai. O seu as-sassino pega-lhe e vai atirá-lo no rio. Vejo o corpo. Será en-

contrado dentro de alguns dias, bem longe daquele sítio.

Em 12 de abril o corpo do Sr. Rifaut foi apanhado por pescadores que o viram à tona d’água, em Jaulgonne (Ais-

ne). O Dr. Petit, médico legista, concluiu formalmente por uma morte violenta. Segundo as suas observações, o guarda

do castelo de Boursault foi assassinado a pancadas; a caixa

craniana havia-lhe sido fendida e o infeliz morrera antes de ser atirado à água.”

71

O seguinte fato é talvez ainda mais demonstrativo:

“Em 18 de março de 1914, o Dr. Osty recebia uma carta

comunicando-lhe que, numa pequena povoação do Cher, um

ancião de 82 anos, Sr. Etienne Lerasle, havia desaparecido e que todas as pesquisas para encontrá-lo foram infrutíferas.

Uma pessoa lúcida, a Sra. Morel, residente em Paris (que ti-

ve pessoalmente ocasião de interrogar), a quem o doutor le-vara um lenço que pertencera ao Sr. Lerasle, seguiu-lhe o

passeio através de um bosque e viu o morto sobre o solo no

ponto onde se tinha detido, cansado, esgotado, e aliás dis-posto a morrer. Era a 2 de março. Havia 15 dias que sua fa-

mília, a gente da povoação, 80 homens, a pedido do inten-

dente municipal, haviam explorado a floresta sem nada en-contrarem. Graças às indicações pormenorizadas da vidente,

seguiram-se as pistas apontadas por ela e encontrou-se o ca-

dáver, na posição em que a vidente o tinha visto: ele enca-minhara-se para ali, batendo com a bengala, como era seu

costume, e estendeu-se perto de uma grande árvore e de um

regato, para não mais se levantar.72

A Sra. Morel nunca tinha ouvido falar nem do bom velho nem daquela região do Cher. A sua faculdade psíquica, que

aqui assinalamos como uma das provas da existência do nosso elemento mental independente do organismo físico,

pôde atingir o velho a sair de casa, ver o passado e sentir o

acontecimento. Tudo isso não estava encerrado, de certo, nas dobras do lenço; mas esse lenço serviu para estabelecer a

comunicação entre a vidente e o homem que se pretendia

encontrar. Não há aqui nem telepatia nem transmissão de pensamento. Ninguém sabia nada. Há aqui vista a distância,

sem os olhos, como em todos os exemplos narrados neste

capìtulo.”

Trata-se, neste caso, de fatos observados que não se podem confundir com as banalidades ordinárias das “videntes extralúci-

das” e das cartomantes. Não sejamos exclusivos em nada e

examinemos tudo. Vê-se sem os olhos. A criptoscopia deve ser aceita como um novo ramo da árvore da Ciência.

Sabe-se que um cego pode ver, ler, desenhar, pintar? Eis um

exemplo observado em 1849, na povoação de Saint-Laurent-sur-

Sèvres (Maine et Loire), por um médico que indica as testemu-nhas que o presenciaram.

Um clínico da região tinha ido visitar, naquele povoado, dois

conventos, um de homens, outro de mulheres:

“Fomos recebidos, escreve ele, de um modo muito cordial

pelo Padre Dalain, superior do primeiro (o de homens), e que também possuía autoridade sobre o segundo (o de mu-

lheres). Depois de visitarmos os dois conventos, ele nos dis-

se:

– Quero agora, meus senhores, mostrar-lhes uma das coi-

sas mais curiosas do mosteiro das mulheres.

Mandou trazer um álbum onde admiramos, efetivamente,

aquarelas de grande perfeição. Eram flores, paisagens e ma-rinhas.

– Estes desenhos tão perfeitos – disse-nos – são de uma de nossas jovens religiosas que é cega.

E eis o que ele nos contou acerca de um encantador rama-lhete de rosas, das quais um botão era azul:

– Há tempos, estando presente o Sr. Marquês de La Ro-chejaquelein e outros visitantes, chamei a religiosa cega e

pedi-lhe para se sentar a uma mesa e desenhar qualquer coi-sa. Diluíram-se-lhe cores, deram-lhe papel, lápis, pincéis, e

ela começou logo a aquarelar o ramalhete que estão vendo.

Durante o seu trabalho colocaram por diversas vezes um corpo opaco, cartão ou tabuinha, entre os seus olhos e o pa-

pel e nem por isso o pincel deixou de deslizar com a mesma

regularidade. Observando-lhe que o ramalhete era um pouco escasso, ela disse: “Pois bem! vou fazer sair um botão deste

ramo.” Enquanto trabalhava nessa retificação, trocaram-lhe

a cor carmim pela azul; não deu pela troca, e aí está por que os senhores vêem um botão azul.

O Sr. Abade Dallain, acrescenta o narrador, era tão notá-vel pela sua ciência, a sua grande inteligência, como pelo

seu alto sentimento religioso, e nunca encontrei alguém que

me despertasse mais simpatia e veneração.” 73

Pela linguagem da jovem cega, é certo que ela via; de outro modo não teria dito: “Vou pôr um botão neste ramo.” O que não

é menos certo é que ela não via pelos olhos, pois que prosseguia

no seu trabalho apesar do obstáculo que lhe opunham; via pela vista da alma, feita abstração da vista do corpo. Ora, se é assim

que os sonâmbulos vêem, por que não veria um cego em condi-

ções análogas?... Não estava ela em estado de sonambulismo acordado?

Quanto à cor azul posta em lugar da vermelha, pode não ter

prestado atenção senão à colocação do botão, ou não observá-la,

ou não vê-la como cor.

* * *

Diante de todos esses fatos não se deve negar mais dora em diante a possibilidade da vista sem os olhos, tanto através dos

corpos opacos como através do espaço e do tempo, pelo orga-nismo humano.

74

Os negadores divertem-nos quando afirmam doutoralmente

que não há nisso senão ilusões, erros, mistificações, alucinações

e outras parvoíces; que eles conhecem as leis da Natureza; que o Universo não tem segredo para eles; que a alma não existe, que

não há espírito nem no homem nem no Cosmos e que tudo se

explica pela matéria e suas propriedades.

Esses raciocinadores não são muito cândidos.

Os fatos, relatados neste capítulo, da vista sem os olhos, pelo

espírito, são tão certos como as observações astronômicas,

meteorológicas, físicas, geológicas, antropológicas e outras de

que se compõe a ciência mais exigente; tão certos e irrecusáveis como os fenômenos psíquicos, mediúnicos, espíritas, observados

rigorosamente e registrados pela fotografia,75

apesar de estes

exigirem atenção especialmente severa, por estarem em desacor-do com as nossas noções atuais sobre a Física, a gravidade dos

corpos, a fisiologia humana, etc.

Quais são as forças em jogo? Incontestavelmente, indiscuti-

velmente, há aí alguma coisa.

E alguma coisa de transcendente, fora da nossa pequena vida

ordinária de carne e de sangue, de músculos e de nervos. A nossa

existência corporal e material pode deslocar-se, desagregar-se,

sem implicar a destruição desse elemento psíquico que é inde-pendente. É esta uma possibilidade cientificamente admissível.

O que pode parecer realmente estranho e por completo extraor-

dinário é que os fatos aqui relatados são observados há muito tempo, desde séculos, sem que isso se tenha em conta; é que a

realidade da existência da alma, independente do corpo, foi

estabelecida principalmente em 1819, pelo Abade Faria, sobre estes mesmos fato, no seu livro A causa do sono lúcido; e é que,

na hora atual, ainda tenhamos o ar de fazer descobertas! Os

homens que se instruem continuam, pois, a formar minúscula minoria?

A vista do futuro, o conhecimento dos acontecimentos vin-

douros vão fornecer-nos demonstração ainda mais irrecusável do que tudo o que precede.

CAPÍTULO VIII

A visão dos acontecimentos futuros

– O futuro presente. – O já visto.

“Um cepticismo vaidoso, que rejeita

os fatos sem examinar se eles são reais,

é, a certos respeitos, mais repreensível do que a credulidade desarrazoada.”

A. de Humboldt

Entre as faculdades da alma, desconhecidas e a estudar, se ti-

vermos algum cuidado de constituir uma psicologia experimental

baseada em fatos de observação positiva, indicarei agora a que

permite ver o futuro, ver o que ainda não existe!

Da mesma forma que a alma vê através do espaço, ela vê a-

través do tempo.

Escrevi uma obra (não impressa ainda) sobre esse assunto: A

Visão do Futuro, premonições precisas autenticamente verifica-

das, sonhos premonitórios, fatos vistos antecipadamente com a mais minuciosa exatidão, dilema da visão do futuro e da liberda-

de humana, do determinismo e do livre arbítrio. Não tenho a

intenção de me alargar aqui sobre esse copioso assunto. Mas, como se trata de afirmar as faculdades especiais da alma, é

oportuno juntar as observações precedentes da “vista sem os

olhos” às que vão seguir e que não são menos merecedoras de atenção, e principalmente o fato do que se chama “o já visto”,

muito controvertido, discutido, mas incontestável para os que

estudaram suficientemente a questão e que tiveram tempo de comparar rigorosamente as observações.

Os acontecimentos futuros podem ser vistos de antemão, mui-

to exata e incontestavelmente.

Não é com considerações metafísicas, mas pelo método expe-rimental, que devemos tratar aqui desse grave problema.

Foi chamada pela primeira vez a minha atenção sobre esse

fato, inadmissível na aparência, na primavera do ano de 1870,

pela narrativa que se vai ler, de uma observação feita por pessoa dotada de espírito esclarecido e judicioso, a princesa Emma

Carolath, que, muito amiga da França, vinha, naquela época,

todos os anos a Paris e gostava de entreter-se comigo acerca desses assuntos. A inesperada guerra entre a Alemanha e a

França feriu a sua sensibilidade e essa jovem senhora pouco

sobreviveu a esse desastre internacional (prefácio do cataclismo de 1914). Esta carta é uma das últimas que dela recebi, e esse

sonho premonitório é notavelmente explícito.

Já o assinalei na minha obra O Desconhecido; ele data de uns

dez anos antes de 1870. Ei-lo, em resumo:

“Acabava de adormecer, muito preocupada com a saúde

de uma pessoa querida, e achei-me transportada em sonho

para um castelo desconhecido, em um gabinete octogonal

alcatifado de damasco vermelho. Dormia aí num leito a pes-soa cuja saúde me inspirava cuidado. Uma lâmpada suspen-

sa do teto inundava-lhe de luz o rosto pálido, mas sorridente,

cercado de opulenta cabeleira negra. À cabeceira da cama vi um quadro cujo assunto se gravou de tal modo no meu pen-

samento que poderia desenhá-lo ao despertar: era um Cristo

coroado de rosas por um gênio celeste, com versículos de Schiller, que li.

Dois anos mais tarde, chamada a residir num castelo da Hungria, parei, estremecendo, ao penetrar nos aposentos que

nos eram destinados: achei-me no gabinete octogonal alcati-

fado de damasco vermelho, diante do leito e diante do qua-dro do Cristo coroado de rosas, com versículos de Schiller.

Esse quadro nunca foi copiado ou reproduzido e era impos-

sível que o tivesse visto de outro modo que não fosse em so-nho, assim como, de resto, o gabinete octogonal.

Wiesbaden, 5 de março de 1870.

Emma, Princesa Carolath.”

Desde aquela época já longínqua de 1870, a minha atenção

tem sido muitas vezes chamada para esta ordem de fatos, que fui

levado a examinar com cuidado muito especial. O trabalho que exponho hoje à vista do leitor representa pois quase 50 anos de

observações variadas, e apresento-o com toda a confiança que

pode justificar essa demorada elaboração.

Há de objetar-se a este sonho, como a outros análogos, que

ele não foi escrito e datado por um selo postal obliterado antes de

sua verificação, o que seria certamente uma garantia absoluta, e

que pode ter-se engendrado no espírito da narradora de confor-midade com o acontecimento observado, de maneira que seria

ilusória a sua verificação. Mas, pouco valor tem esse argumento,

pois, pelo contrário, foi essa verificação inesperada que feriu a observadora.

Não se liga importância a esses sonhos senão quando se reali-

zam, e não se tem o cuidado de escrevê-los de antemão. Pode-se

objetar também que se vê em sonhos países e cenas que nunca mais se tornam a ver na realidade, que só se observam coinci-

dências, mais ou menos aproximadas, acontecendo por acaso, e

que, por coincidência que se apresenta, há mil que não se produ-zem. Supor, ao ver um quarto, uma casa, uma paisagem, que

uma espécie de sonho repentino e fugaz pode atravessar o cére-

bro neste momento e dar a impressão do “já visto” é outra hipó-tese, tendo sido já propostas explicações para essas exterioriza-

ções aparentes. Discutiremos mais adiante estas objeções e

examinaremos todos os comentários. Por agora, observemos que há diversas espécies de sonhos fisiológicos e que se trata aqui

não de sonhos mais ou menos vagos, mas de vistas precisas que

ferem bastante a atenção para serem conservadas na memória com todos os pormenores. Mas não discutamos neste momento.

Vamos expor os fatos e o leitor imparcial será o melhor juiz. O

nosso dever é o de examinar as coisas livremente e sem idéia preconcebida. Não são as hipóteses que constituem a ciência; são

as observações, tanto nas ciências psíquicas como nas ciências físicas e naturais.

Não quero repetir aqui os exemplos numerosos (195) e de-

monstrativos da previsão do futuro publicados em O Desconhe-

cido. Desde essa época (1899) tenho recebido muitos outros que

podem interessar os leitores ciosos dos mesmos problemas.

O “já visto” faz parte dos fenômenos ainda inexplicados da

previsão do futuro que estudamos neste capítulo como faculdade da alma e como prova da sua realidade intrínseca.

Considera-se geralmente esta impressão do “já visto” como

ilusão; deram-lhe os nomes de “falso reconhecimento”, “falsa

reminiscência”, “perversão da memória”, “paramnésia”, “memó-ria ancestral” e outras denominações hipotéticas. Convido os

pesquisadores que desejem conhecer exatamente a verdade a

meditar sobre o conjunto das seguintes questões.

E em primeiro lugar esta, que, por si só, seria suficiente para

provar tal realidade:

O “já visto”, anunciado nitidamente e estritamente por sonhos

premonitórios, é um fato que não pode ser negado, apesar de

ainda inexplicado no estado atual de nossa psicologia. Eis, por exemplo, uma relação leal e irrecusável escrita por um digno

sacerdote da diocese de Langres, 76

o cônego Garnier, antigo

professor no pequeno seminário, na qual ver-se-á uma cena desse gênero de que é impossível duvidar:

(CARTA 901)

“Era em 1846, no segundo ano dos meus estudos superio-

res no seminário. Uma noite, enquanto dormia, viajava em espírito. A estrada que percorria, branda, lisa e bordada de

árvores, muito distantes umas das outras, parecia descer das

encostas de uma serra, em declive suave, e alcançar uma planície, espraiando-se a perder de vista.

O Sol baixava no horizonte, entre as quatro e cinco horas da tarde, e derramava a sua plácida luz sobre a campanha,

com matizes mais fáceis de imaginar do que de descrever.

Encontrei-me parado de repente, sem saber como nem por quê, num ponto onde outra estrada corta em ângulo reto a

que eu seguia. Nada havia de extraordinário que pudesse a-trair o olhar do viajante, nem mesmo solicitar-lhe a atenção.

Entretanto, ainda me vejo parado, hirto como uma estátua,

contemplando, com satisfação especial, um quase nada, uma

dessas cenas campestres que se nos deparam todos os dias.

À esquerda observo que a estrada corta a minha, contorna o monte e tem pequeno muro aproximadamente de um metro

de altura que ladeia a via para sustentar a terra.

Ao longo desse muro estão plantadas três grandes árvores

que fornecem uma sombra densa.

A uns trinta passos do ponto em que eu estava, na minha

frente e em terreno bem nivelado, erguia-se, à beira do ca-minho, uma casa bem elegante, caiada de branco e toda ex-

posta ao Sol. A única janela que dava para a estrada estava

aberta; atrás dela via-se sentada uma senhora bem vestida, mas com simplicidade. Entre as cores garridas do seu vesti-

do sobressaía o vermelho. Na cabeça tinha um gorro branco

de pano muito leve, cuja forma me era desconhecida. Essa mulher parecia ter trinta anos.

Diante dela, de pé, permanecia uma menina de dez a doze anos que pensei ser sua filha, pois olhava sua mãe que fazia

tricô e lhe ensinava o seu mister; estava despenteada e des-

calça, vestindo quase como a senhora. Ao lado dessa meni-na, três crianças rolavam-se no chão; um menino de quatro a

cinco anos, ajoelhado, mostrava um objeto a seus dois ir-

mãos menores, para diverti-los. Estes debruçavam-se diante do mais velho e todos os três se achavam muito absorvidos

na sua contemplação. As duas mulheres haviam-se olhado

rapidamente quando me perceberam postado no caminho e, ao fixá-las, não se mexeram. É que estavam acostumadas a

ver passar viajantes.

Um cão muito grande encontrava-se deitado ao lado delas e, de vez em quando, coçava as pulgas.

Pela porta aberta avistei ao redor da mesa, no fundo da sa-la, três homens sentados em bancos, dois de um lado e um

do outro, jogando e bebendo. Pareciam ser operários da vi-zinhança. Usavam avental de tela e o chapéu preto e pontia-

gudo dos Abruzos.

Da outra banda, à direita, três carneiros comiam uma erva pouco viçosa e para passar o tempo davam-se cabeçadas.

Perto deles, dois cavalos, um alazão e um branco, estavam presos à parede.

Um lindo potro corria de um lado para o outro e, para dis-trair-se, dirigiu-se à mesa dos jogadores, sem dúvida para

receber uma lição e passar-lhes o focinho pelos cabelos. O

inocente recebeu um violento murro, como recompensa.

Havia ainda quatro ou cinco galinhas e um galo com mag-

nífica cauda, cujas penas verdes e pretas adornam os cha-péus dos bersaglieri italianos. Essas aves procuravam a sua

pitança na erva seca do pátio.

Tal era a modesta paisagem que eu contemplava, muito satisfeito, durante dez minutos talvez, e que desapareceu re-

pentinamente como tinha aparecido. Antes, nada via; depois, nada mais vi e julguei que tudo se havia afundado eterna-

mente no rio do esquecimento.

Eis como ressurgiu, impresso para sempre na minha me-mória e na minha imaginação:

Vejo ainda hoje esse cantinho de terra como vejo o cam-panário de minha aldeia.

Em 1849 realizei, com dois amigos, uma viagem à Itália. Escala em Marselha, em Gênova, em Livorno, Siena, Flo-

rença, e depois marcha bastante rápida para Roma.

Atravessamos uma aldeia dos Apeninos. Um bom coche

recebe as nossas augustas pessoas. Os cinco fortes cavalos que puxavam o carro partem como um relâmpago, fazendo

retinir seus mil guizos; o postilhão, com seu chapéu de Arle-

quim, faz estalar o látego continuamente, de modo a fazer que os curiosos da rua lhe admirassem a importância. O nos-

so coche não anda, voa, não dando tempo a sermos vistos.

Mas, ao sair da vila, desaparece esse ardor, calmos na calmaria e atingimos o alto da serra. Paragem de cinco mi-nutos; quatro robustos corcéis substituem os nossos cavalos

e descemos como um furacão, recomendando nossa alma a

Deus. Isto não era inútil, pois não sei como ficamos inteiros,

depois de tal corrida.

Enfim, o carro entra em marcha razoável e chega à muda sem avarias.

Durante essa paragem, olho pela portinhola e, de súbito, o suor cobre-me o rosto, meu coração bate com violência e le-

vo maquinalmente a mão ao rosto, como para afastar um véu que me incomoda e me impede de ver. Esfrego o nariz e os

olhos, como o adormecido que acorda de repente, depois de

um sonho. Julgo sonhar realmente e, entretanto, os meus o-lhos se encontram bem abertos; certifico-me de que não es-

tou doido, nem sou vítima de uma ilusão singular. Tenho di-

ante da vista a pequena paisagem que outrora tinha admirado em sonho. Nada havia mudado!

O primeiro pensamento que me ocorreu depois de recupe-rar a serenidade, num momento perturbada, foi este: já vi is-

to, com certeza, mas não sei onde. Entretanto, nunca vim

aqui, pois é a primeira vez que viajo pela Itália. Como pode ser isto?

Cá estão as duas estradas que se cruzam, o pequeno muro que sustenta as terras do lado do pátio, as árvores, a casa

branca, a janela aberta, a mãe que faz tricô, a filha que olha,

os três pequenitos que se divertem com o cão, os três operá-rios que bebem e jogam, o potro que quer receber uma lição

e leva uma palmada, os dois cavalos, os carneiros, nada mu-

dou; as personagens são exatamente como as vi, realizando as mesmas coisas, na mesma atitude, com os mesmos gestos,

etc. Como se operou tudo isso? Ignoro-o! Mas o fato é certo

e há 50 anos pergunto-o a mim mesmo! Mistério! 1º- vi em sonho, e 2º- vi em realidade três anos depois.

Abade Garnier, Ch.”

É esta a narração textual. Dei-a por extenso em vez de resu-

mi-la, porque cada pormenor é interessante.

Se admitimos esta narrativa – parece bem difícil recusá-la,

pois o seu autor é alguém, e não um farsista, nem um visionário

–, temos diante de nós dois fatos observados: 1º- um sonho

experimentado em condições conhecidas, num quarto do grande

seminário de Langres, e 2ª- uma vista do panorama desse sonho, três anos mais tarde.

Os psicólogos que ensinam que o “já visto” é uma ilusão la-

boram em erro. A cena observada foi na verdade já vista anteri-

ormente.

Pode-se pensar, sem dúvida, que em 50 anos fez-se natural-

mente, no espírito do narrador, uma associação mais completa

das duas cenas, a do sonho e a da viagem. Mas fica o essencial.

Houve bem duas vistas sucessivas, uma em sonho, outra em realidade, e a primeira havia impressionado suficientemente o

jovem padre para que dela se possa duvidar.

Essa história lembra-nos o sonho premonitório de Niort a Sa-

int-Maixent, que os meus leitores já conhecem. O Sr. Groussard, cura de Santa Radegonda, estando numa pensão em Niort, aos

quinze anos, sonhou estar em Saint-Maixent (cidade que só

conhecia de nome), com o dono da sua pensão, numa pequena praça, perto de um poço em frente do qual havia uma farmácia e

vendo avançar para ele uma senhora da localidade, que reconhe-

ceu por tê-la visto uma única vez em Niort. Essa senhora, abor-dando-o, falou-lhe de negócios que achou tão extraordinários

que, logo de manhã, os comunicou ao patrão (assim se apelidava

o chefe da instituição). Este, muito surpreendido, fez-lhe repetir a conversa e, poucos dias depois, tendo que ir a Saint-Maixent,

levou-o consigo. Apenas chegaram, acharam-se na praça vista

em sonho, nos dois pontos marcados numa planta que me reme-teu, e viram aproximar-se a tal senhora, que teve com o patrão,

palavra por palavra, a mesma conversação que o aluno havia

relatado.

Tais fatos são mais freqüentes do que se pensa. Pela minha

parte, tenho recebido comunicação de muitos. Eis aqui um, no

qual uma vista precisa da cena a produzir-se se manifesta bem claramente:

(CARTA 920)

“Em junho de 1898 eu vivia junto de um tio a quem queria

muito. Como a sua saúde estivesse abalada, julgamos con-

veniente mudarmos de aposentos e irmos para uma casa ex-posta ao Sol e cercada por grande jardim.

Na véspera da mudança, às 11 horas da noite, eu pensava (estando acordada) sozinha no meu quarto, na pena que sen-

tia em deixar o aposento de que tanto gostava, quando de re-

pente vi o jardim de nossa nova vivenda desenhar-se, tal qual era então, muito umbroso e florido; depois tornou-se

mais claro, maior, aparecendo-me como devia ser no inver-

no. Só subsistia como verdura o caramanchão de hera. E vi, ao mesmo tempo, dois empregados funerários, um alto e ou-

tro baixo, descendo o caminho que levava à rua.

Essa visão, muito intensa, impressionou-me primeiro bas-tante; depois esqueci-a, com as preocupações que o estado

de saúde de meu tio me causava. Ora, volvidos sete meses, em janeiro, falecia meu tio, e no dia do enterro, alguns ins-

tantes antes da saída do corpo, vi os dois empregados fune-

rários, um alto e outro baixo, descendo o caminho no mesmo lugar onde a minha visão anterior mos havia mostrado.

Queira desculpar, caro mestre, a liberdade que tomei de lhe escrever, etc.

Maria Lebas

Rue Corneille, 15, Le Havre.”

Esta carta não tinha evidentemente senão um fim muito de-sinteressado: o de assinalar um fato de vista do futuro exatamen-

te verificado. Podemos supor que o autor dela previa a morte de

seu tio, mas nada mais. Ter visto o que se daria sete meses mais tarde, a paisagem de inverno, os dois homens fúnebres, está fora

do quadro racional normal. Esse “já visto” não se poderia expli-

car, como se pretende, por uma visão no momento da ocorrência, atendendo a que o autor a experimentou por uma noite de junho

de 1898 e a que o fato se passou em janeiro de 1899.

As observações do “já visto” são muito numerosas. Esta foi-

me enviada por uma leitora da Nouvelle Mode (26 de maio de

1918), artigo “La Glane”:

“Sonhei estar em férias, no lugar em que costumo passá-

las, mas o quarto que me ofereciam era diferente do meu e,

atrás de um armário, via subir as chamas. Sonho banal de

que me esqueci.

Seis meses depois parti para o meu destino. Levaram-me

para pequeno pavilhão. Apesar de nunca o ter visto, reco-nheço o cantinho que me deram. O armário, colocado no

mesmo lugar, faz-me lembrar do incêndio. Revelo o sonho

que tive e tranqüilizam-me. Há dez anos que não houve fogo algum na localidade. Finalmente, já começava a nada recear,

quando, pela quarta semana da minha estada ali, houve a-

larme. Um incêndio imenso, que consumia a quinta próxima de nossa morada, era ativado pela palha e a forragem, e lam-

bia o muro onde se encontrava o referido armário.

Aimée Rogé.”

Ainda uma vez, estas premonições não são nem excepcionais nem tão incertas como se supõe.

Na sua obra largamente documentada sobre os Fenômenos

Premonitórios, o sábio italiano Ernesto Bozzano relata o seguin-

te fato, realmente tìpico na parte concernente ao “já visto”:

“O cavaleiro Giovânni de Figueiroa, um dos mestres de

esgrima dos melhores e mais afamados de Palermo, conta o

que lhe aconteceu:

– Uma noite do mês de agosto do ano de 1910, acordei sob a impressão de um sonho tão intenso que despertei mi-

nha mulher e logo lho contei com todos os pormenores es-tranhos, curiosos e precisos.

Estava num lugar campestre, numa estrada branca de pó, pela qual penetrei em vasto campo de cultura. Ao centro

desse campo erguia-se uma construção rústica, com loja para armazéns e estábulos. À direita da casa via eu uma espécie

de cabana formada por braçadas de folhas e paus secos, um

carro do qual os lados eram rebaixados, e sobre ele estavam

arreios para animal de carga.

Nesse sítio, um camponês, cuja fisionomia guardo bem viva e nítida, de calça escura e de chapéu mole, preto, na ca-

beça, aproximou-se, convidando-me a acompanhá-lo, ao que acedi. Levou-me para os fundos da construção e entramos

por uma porta estreita e baixa num pequeno estábulo de qua-

tro ou cinco metros quadrados, cheio de lodo e de estrume. No estábulo havia uma curta escada de pedra, por cima da

porta da entrada. Um solípede estava preso a uma manjedou-

ra móvel e obstruía, com a sua parte posterior, a passagem para os primeiros degraus da escada aludida. Como o cam-

ponês me assegurasse que o animal era manso, fi-lo sair do

lugar que ocupava e subi a escada, no alto da qual entrei em pequeno quarto ou celeiro, assoalhado de madeira, onde ha-

via, pendurados no teto, melancias, cachos de tomates, cebo-

las e milho.

Nesse mesmo quarto, que servia de antecâmara, achavam-

se duas mulheres e uma menina. Dessas mulheres, uma era velha, a outra moça. Supus que esta fosse a mãe da criança.

As feições das três pessoas ficaram gravadas em minha me-

mória. Da porta que dava entrada para o quarto contíguo via-se uma cama de casal, mais alta do que as que eu tinha visto.

Eis o sonho!

No mês de outubro seguinte tive de ir a Nápoles para as-

sistir a um duelo do nosso conterrâneo Amadeu Brucato.

Não cabe aqui expor os incidentes e desgostos que essa

assistência me acarretou; direi, somente pelo que toca ao so-nho, que esse incidente me levou a um duelo pessoal.

Esse duelo realizou-se em 12 de outubro. Nesse dia, com minhas testemunhas, o Capitão Bruno Palamenghi, do 4º

Regimento de bersaglieri, aquartelado em Nápoles, e Fran-

cesco Busardo, fui de automóvel para Morano, onde nunca tinha estado e cuja existência não conhecia. Penetrando ape-

nas algumas centenas de metros no campo, a primeira coisa que me impressionou foi a estrada larga e branca de poeira,

que reconheci por já tê-la visto; mas quando? Em que ocasi-

ão? Paramos à beira de um campo que não me era desconhe-

cido porque já o tinha visto também! Descemos do automó-vel e entramos nesse campo por uma vereda bordejada de

sebes e de plantas, e disse ao Capitão Bruno Palamenghi,

que seguia a meu lado:

– Conheço este lugar, não é a primeira vez que aqui ve-

nho; ao fim da vereda deve haver uma casa; à direita dessa casa está uma cabana.

Assim era, efetivamente! Até lá estava o carro com os la-dos rebaixados, com os arreios para animal de carga.

Um instante depois, um campônio de calça escura, chapéu mole e preto, o mesmo que eu vira em sonho, dois meses an-

tes, convidou-me a acompanhá-lo e, em vez de segui-lo, fui

adiante dele, dirigindo-me para a porta do estábulo, que já conhecia. Ao entrar, tornei a ver o solípede amarrado à man-

jedoura; olhei então o camponês, como para perguntar-lhe se

o animal era inofensivo, porque as suas ancas me impediam de subir a pequena escada de pedra, e, como no sonho, asse-

gurou-me que não havia perigo. Súbito, encontrei-me no ce-

leiro, onde reconheci as melancias, os tomates, as cebolas, o milho, e no pequeno quarto, no ângulo da direita, lá estavam

as três mulheres, a velha, a moça, a criança, como as tinha

visto em sonho.

No quarto vizinho, onde entrei depois para me despir, re-

conheci a cama que tanto me havia surpreendido pela sua al-tura, no meu sonho, e nela coloquei o meu paletó e o meu

chapéu.

Já tinha falado antes a alguns amigos desse sonho, na sala de esgrima e em outros pontos, e disto podem dar fé: o Capi-

tão Palamenghi, o advogado Tommaso Forcási, Amadeu Brucato, o Conde Dentale Diaz e o Sr. Roberto Giannina, de

Nápoles, testemunhas da descrição precisa que eu fizera dos lugares e das pessoas que figuravam nos incidentes desse

duelo.

A minha palavra de cavalheiro bastará, creio eu, para ga-rantir a veracidade do que digo; entretanto, se for necessário

recorrer à prova, não terei dúvida em escrever, um por um, aos amigos acima designados, os quais, estou certo, não dei-

xarão de atender-me.

Aqui estão os fatos; deixo aos sábios a sua interpretação.

Giovanni de Figueiroa.”

“Esse episódio – escreveu Bozzano – merece toda a atenção,

porque não pode ser posta em dúvida a sua autenticidade, sendo o relator pessoa que conhece o valor de uma palavra de honra, e

a circunstância de ele haver contado o sonho antes de sua reali-

zação, excluindo a hipótese de que a impressão do “já visto” podia reduzir-se a um fato de mnemônica.”

Bozzano é espiritualista e um convicto da reencarnação. Para

ele a vida do espírito concilia as contradições aparentes.

Não me parece que seja dada atualmente a explicação do mis-

tério. Ainda temos de estudar muito.

Ver o que não existe, o que só existirá no futuro (três anos

depois, três meses ou três dias, pouco importa), mas que não

existe atualmente, é inadmissível para os que não estão a par dos

nossos estudos, embora seja certo para nós. Os meus documentos acerca deste assunto são numerosos. Aqui está mais um:

O Sr. Pietneff, funcionário do Governo de Tver (Rússia), ad-

junto do colégio, escrevia-me em 1899 (carta 777) que vira em

sonho o seu amigo Oseroff colocado em um esquife, cercado de parentes e amigos, acrescentando que ignorava nessa ocasião

onde ele morava e qual era o seu estado de saúde, e que “quase

no mesmo dia” ele morria em Victni-Valotchek, cidade do governo de Tver.

A referida carta relata que um dos criados da Chancelaria do

Governo de Tver, o Sr. Ivan Sasonoff, muito estimado pelo autor

da epístola, viu um dia, estando de todo acordado, ao passar em frente de uma casa, uma escada de pedra que era exterior, e que

não existia.

O Sr. Pietneff, passando por lá duas vezes no mesmo dia, ve-

rificou que, com efeito, tal escada não estava lá. Mas, passando

três ou quatro dias depois, observou que haviam carregado para

esse ponto pedras brancas, que se demolia uma escada antiga e

que se construía uma outra, nova.

Assim, essa escada inexistente foi vista antes de construída e

o observador, passando pelo sítio em que ela fora construída, ter-

se-ia convencido, naturalmente, de a ter visto já.

Eis um outro fato não menos estranho:

“O professor Boehm, que ensinava matemáticas em Mar-

burg, estando uma noite com amigos, teve de repente a con-vicção de que devia regressar a sua casa. Mas, como tomasse

tranqüilamente o seu chá, resistiu a essa impressão, a qual

todavia tornou a arrastá-lo com tanta força que se viu obri-gado a obedecer. Chegado à sua morada, encontrou aí tudo

como o havia deixado; mas sentia-se obrigado a mudar o seu

leito de lugar. Por mais absurda que lhe parecesse esta impo-sição mental, entendeu que a devia cumprir, chamou a criada

e com auxílio desta colocou a cama do outro lado do quarto.

Feito isto, ficou satisfeito e voltou para junto de seus amigos a acabar o serão. Despediu-se deles às dez horas, voltou para

casa, deitou-se e adormeceu. Foi despertado, durante a noite,

por grande fragor e verificou que grossa viga tinha desaba-do, arrastando uma parte do teto e caindo no lugar que o seu

leito havia ocupado.”

Qual é a força misteriosa que nos previne desta maneira?

Sim, repito-o, tudo isso parece inadmissível. Ver o que não

existe! A cena avistada pelo Abade Garnier em 1849 não existia em 1846; essa jovem mulher era então mais nova três anos; um

dos seus filhos não tinha nascido; o tio da Sra. Lebas não estava

num caixão sete meses antes da sua morte; a cena do mês de outubro, em Marano, não existia no mês de agosto, etc. Mas,

podemos negar fatos de observação?

Já se estava imprimindo esta obra, quando recebi a seguinte

carta, em resposta à comunicação verbal que me havia interessa-do particularmente. Segundo o princípio adotado em geral, havia

pedido ao autor que acompanhasse a sua narração de certifica-

dos, estabelecendo a prioridade do sonho sobre a visão real. Eis

aqui essa carta:

(CARTA 4.106)

“Paris, 9 de setembro de 1919.

Como prometera, remeto-lhe, acompanhada de dois certi-

ficados, a narrativa do sonho premonitório que havia mani-festado desejo de publicar. Sou feliz em submeter-lhe esta

observação muito precisa e peço-lhe aceite, etc.

A. Saurel”

“Em 1911 encontrei-me, em sonho, no meio de uma pai-sagem nova, em terra para mim desconhecida.

Sobre pequena elevação, de brandas ondulações cobertas de relvas, eu via um grande edifício de aspecto medieval,

misto de solar e de herdade fortificada. Grandes muros o

cercavam de uma cintura contínua e marcada pela pátina dos tempos.

Quatro torres maciças, de pequena altura, flanqueavam-lhe os ângulos. Diante da porta principal, e na campina, corria

lindo regato de águas límpidas e murmurantes.

Homens, ou antes soldados, vinham aí tirar água. Outros acendiam fogos próximo das armas ensarilhadas ao longo

dos muros. Esses homens estavam vestidos com farda bizar-ra de cor azul clara que eu não conhecia e usavam capacete

de forma estranha.

Eu mesmo me via fardado de oficial e dava ordens para o acampamento.

Por um desses fenômenos que muitas pessoas já sentiram, eu pensava no meio das minhas ocupações: “Que situação

original! Que faço eu aqui e com esse uniforme?!

Como esse sonho me deixasse, quando despertei, uma im-

pressão nítida, interessei-me pela ausência desses pormeno-res incoerentes ou ridículos que produz o nosso sono e por

essa aparência de harmonia e de lógica no absurdo – pois pa-

recia-me absurda tal situação de oficial num exército desco-

nhecido.

Durante o dia falei desse sonho e dos soldados azuis, que o animavam, às pessoas íntimas e depois não pensei mais

nisso.

Ora, a guerra, que transtornou tantas existências, fez de

mim, após muitas peripécias, um tenente de Infantaria. O meu regimento achava-se, em 1918, em descanso à reta-

guarda, no Aube. Aí instruía eu os meus recrutas da classe

de 1919.

Desde o romper da manhã que o batalhão marchava. O ca-

lor, que empalidecia o verde tenro dos grandes centeios, fa-zia sofrer durante os meus pobres soldados. A nuvem de po-

eira, levantada na estrada pelos milhares de pés pesados, não

me permitia ver onde estávamos. Recebi ordem para fazer alto sob os muros “do castelo” que, ao que me disse o furri-

el, estava a duzentos metros à direita. Depois de dar instru-

ções nesse sentido aos chefes de seção, fui encontrar-me com o comandante.

Alguns minutos depois encontrei a minha Companhia na volta de uma alameda de choupos que encobria o castelo.

A paisagem que me apareceu, após a última árvore inter-posta, surpreendeu-me imediatamente. Era a campina em

declive suave, esmaltada pelas flores de junho; os muros, as

torres, tudo era semelhante ao que eu tinha visto em sonho, sete anos antes. Faltava, entretanto, o lindo regato e a porta

monumental.

Quando eu observava esta diferença entre o sonho e a rea-lidade, um ajudante veio perguntar-me “onde se devia fazer

aguada”.

– Mas, no rio – disse eu, rindo.

O ajudante olhou-me, admirado. Acrescentei:

– Sim! se ele não está deste lado, estará decerto da outra banda do edifício. Venha comigo.

Contornando a torre do ângulo norte, avistei sem surpresa o claro regato a correr sobre as pedras musgosas e, ao meio

do muro, a grande porta, tal qual a tinha visto, em sonho, com seus pilares de tijolos.

As duas seções da frente já tinham resolvido o problema da água; as armas ensarilhadas formavam perto dos muros e

à sombra deles muitos dos meus soldados gozavam o repou-

so tão almejado.

O quadro assim formado era o do sonho de 1911. Nada de

sensacional devia ocorrer nesses lugares; o sonho não cons-tituía, pois, senão visão surpreendente do porvir, mostrando-

me principalmente a minha futura situação de oficial, que

não podia pressentir em 1911.

A. Saurel.”

ATESTAÇÃO DA SRA. SAUREL

“Lembro-me de que meu marido me tinha falado desse

sonho, cujos pormenores precisos o haviam surpreendido na

época em que se deu.

1º de setembro de 1919.

Helena Saurel.”

ATESTAÇÃO DO SR. SAUREL, PAI

“Declaro que meu filho Alfredo Saurel, na época em que

teve esse sonho, me contou os seus pormenores, e que a nar-

ração que dele faz é bem exata.

4 de setembro de 1919.

Saurel.”

Este sonho premonitório é particularmente preciso. O Sr.

Saurel viu, em 1911, um episódio da guerra de 1914-1918, ao qual foi associado como militar.

É um caso análogo ao que está descrito em O Desconhecido

(capítulo IX, caso LXI): o Sr. Regnier vendo-se, em sonho, em

1869, num episódio da guerra de 1870.

Nesses termos e em outros idênticos, a questão é esta: se se

viu, um ano, ou sete anos, ou três anos antes, como no caso do

Abade Garnier, citado há pouco, uma cena que devia ser vivida na época em que se deu, é porque tal cena devia forçosamente

acontecer, que o livre arbítrio do homem não existe, e que a

verdadeira doutrina é o fatalismo absoluto. Em tal data de 1849, a italiana devia estar naquela casa da estrada de Roma, com três

criancinhas, operários a beberem, um potro a pular, etc.; em tal

data de 1870, o Sr. Regnier devia ser soldado, combatendo contra prussianos e bávaros, e atirar-se à baioneta contra o

agressor; em tal data de 1918, o Sr. Saurel devia mandar solda-

dos à procura de água diante da torre desconhecida. E o mesmo acontece com centenas de casos semelhantes de visão do futuro.

Que resta para nosso livre arbítrio, para nossa liberdade pessoal?

Não há nisso absoluta contradição? Será possível admitir ao mesmo tempo a liberdade dos nossos atos e a vista do futuro?

Esta questão será discutida amplamente no capítulo seguinte.

Bastará dizer, neste momento, que ela é de uma extrema sutileza,

mas que pode, entretanto, ser resolvida pela conciliação de duas antinomias, muito contrárias na aparência, se se imaginar que a

vontade humana é um dos fatores que atuam na produção dos

acontecimentos, que sempre acontece alguma coisa, mas que nem por isso é fatal, e que se vê simplesmente o que acontecerá,

o pensamento transcendente suprimindo o tempo, o tempo não

existindo em si mesmo e o passado como o futuro podendo co-existir num presente eterno.

Recusando-nos a admitir esta conciliação, seríamos levados a

afirmar, a respeito da guerra de 1870, por exemplo, que Bis-

marck não é responsável por ter falsificado o telegrama d’Ems para precipitar a França no abismo germânico aberto por ele e

que, em 1914, Guilherme II não tem nenhuma responsabilidade

também na patifaria austríaca da exploração do assassínio de Sarajevo. Doutro modo, seria preciso admitir que não há homens

maus, velhacos, impostores, assassinos e que também não há homens bons, humanitários, dedicados, honestos, sacrificando-se

ao progresso moral e intelectual da Humanidade.

Tratarei deste assunto, minuciosamente, no próximo capítulo,

a respeito da comunicação que me fez, em 1911, Frederic Passy.

No espanto em que nos lança esse gênero de observações,

procuram-se todas as hipóteses contrárias à simples admissão dos fatos. Imagina-se, por exemplo, para explicar a sensação do

“já visto”, que a impressão produzida sobre a retina por uma

paisagem ou uma cena qualquer é simultaneamente registrada na memória e na consciência e supõe-se que, em conseqüência de

uma demora mesmo ligeira (uma fração de segundo), a armaze-

nagem se faz na memória antes que seja ressentida a percepção consciente.

Nesse caso, sendo o sentido da memória impressionado um

instante fugitivo antes do da visão real, pensa-se ter visto antes a

cena presente, num tempo anterior indeterminado, pois mesmo um décimo de segundo pode dar a impressão de um espaço de

tempo muito longo, como se verifica nos sonhos.

Uma outra hipótese imagina que a percepção de uma cena,

que se julga haver-se vivido, pode ser comparada ao fenômeno óptico da dupla refração que faz refletir sobre dois planos dife-

rentes a mesma imagem, projetando-se nas duas faces de um

prisma: haveria uma projeção na planta do passado e uma outra na planta atual; durante um instante a nossa alma veria em

duplicidade.

Estas explicações são engenhosas; mas, por uma parte, não

estão provadas e pertencem ao domínio da pura imaginação, o que nada tem do rigor científico, e, por outra parte, os fatos

contradizem-nas quando são narrados com antecipação, como no

caso da praça de Saint-Maixent, vista muitos dias antes por um colegial de Niort que não a conhecia; da criança atacada de

crupe, acidente visto de véspera (O Desconhecido, capítulo IX,

caso XLIII); do desespero do Dr. Liébault e da eleição de Casi-mir Perier, citados mais adiante, etc. Nestes casos, a explicação

precedente não tem senso comum. Talvez se possa aplicá-la algumas vezes, mas excepcionalmente, mesmo se for verdadeira.

Deve-se, pois, procurar outra coisa.77

O professor Ribot, do Instituto, tratou subsidiariamente desse

assunto na sua obra sobre as Moléstias da Memória.

“Acontece, quando se viaja, em paìs estrangeiro, escreve ele,

que a volta brusca de um caminho ou de um rio nos põe em

frente de algumas paisagens que nos parecem contempladas outrora. Apresentado pela primeira vez a uma pessoa, julgamos

havê-la visto já. Lendo num livro de pensamentos novos, sente-

se que já foram presentes ao nosso espìrito anteriormente.”

Pensa o autor que esta ilusão se explica pela seguinte hipóte-

se:

“A impressão recebida evoca, em nosso passado, impressões

análogas, incertas, confusas, apenas entrevistas, mas suficientes

para levar-nos a crer que o novo estado é a repetição delas. Há um fundo de semelhança percebido rapidamente entre dois

estados de consciência, que leva a identificá-las. É um erro; mas

só em parte, porque há, efetivamente, em nosso passado, alguma coisa que se parece com uma primeira experiência.”

Esta explicação não é certamente satisfatória. Não se aplica a

nenhum dos fatos que acabamos de registrar. O autor observa,

aliás, muito sinceramente, que não se adapta também a casos como o seguinte, que ele mesmo cita:

“Um doente, diz Sander, ao ter notìcia da morte de uma pes-

soa que conhecia, foi tomado de pavor incompreensível, porque

lhe pareceu haver já experimentado essa impressão. “Sentia que já anteriormente, estando deitado aqui neste mesmo leito, X.

tinha vindo e me havia dito: Múller morreu há alguns dias; não

podia morrer duas vezes.”

Ribot não deixará de ver-se embaraçado para explicar fisiolo-

gicamente estes fatos curiosos. Menciona o exemplo seguinte,

que se parece muito com o precedente:

“Wigan, no seu livro sobre a Dualidade do Espírito, que ele

pretende explicar pelos nossos dois hemisférios cerebrais, relata que enquanto assistia ao serviço fúnebre da Princesa Carlota, na

capela de Windsor, teve de repente a sensação de haver já assis-

tido ao mesmo espetáculo. Foi uma ilusão passageira.”

Nenhuma hipótese é aceitável. Supôs-se também que a ilusão

do “já visto” poderia resultar de lembranças inconscientes pro-

venientes de hereditariedade de antepassados que teriam conhe-cido o que se vê atualmente. É também inadmissível.

De certo que toda explicação é quase impossível. Ribot quali-

fica estas coincidências de atos de “falsa memória”. Mas isto não

é uma explicação. Ele aponta mais longe o exemplo seguinte, tirado de um trabalho do Dr. Arnold Pick e que é igualmente

inexplicável:

“Um homem instruìdo, raciocinando bem sobre a sua doença,

e que dela deu notícia escrita, caiu num estado mental particular, na idade de 32 anos. Se assistia a uma festa, se visitava qualquer

lugar, se fazia qualquer encontro, parecia-lhe tão familiar este

acontecimento, com todas as suas circunstâncias, que se sentia seguro de haver já experimentado as mesmas impressões, estan-

do cercado das mesmas pessoas e dos mesmos objetos, com o

mesmo céu, o mesmo tempo, etc. Se realizava qualquer trabalho novo, parecia-lhe já o haver feito nas mesmas condições. Esse

sentimento produzia-se umas vezes no mesmo dia, ao cabo de

alguns minutos ou de algumas horas, e outras vezes no dia seguinte somente, mas com clareza perfeita.”

78

É este, certamente, um caso patológico.

Há nestes fenômenos de falsas memórias, escreve Ribot, “una

anomalia do mecanismo mental que nos escapa.” Mas esta

designação de “falsa memória” nada nos explica. O sábio fisio-logista procura todavia compreender e tem razão para tentar.

“Pode-se admitir, diz ele, que o mecanismo da localização no

tempo funciona às avessas”, e propõe esta explicação:

“A imagem assim formada é muito intensa, de natureza alu-

cinatória; impõe-se como realidade, porque nada retifica esta

ilusão. Por conseqüência, a impressão real passa para o segundo

plano, com o caráter apagado das lembranças, localiza-se no passado, sem razão, se se observam os fatos subjetivamente, e

com razão se esses fatos são observados objetivamente. Esse

estado alucinatório, apesar de muito vivo, com efeito, não apaga a impressão real; mas, como se afasta dela, como foi produzido

por ela fora de tempo, deve aparecer como segunda experiência. Toma o lugar da impressão real, parece ser mais recente, e o é de

fato. Para nós, que ajuizamos de fora e conforme ao que se deu

exteriormente, é falso que a impressão fosse recebida duas vezes; para o paciente que julga pelas premissas de sua consciência, é

exato que a impressão foi recebida duas vezes e, nestes limites,

sua afirmação é incontestável.”

Reconhecer-se-á que estas “explicações” do sábio professor

nada explicam. Há aqui uma série de fenômenos psíquicos muito diferentes uns dos outros e aos quais não se pode aplicar a mes-

ma teoria.

Para Ribot, a memória é essencialmente um fato biológico e,

por acidente, um fato psicológico. Variando o número de células entre 600 a 1.020 milhões, e sendo avaliada em 4 a 5 bilhões o

das fibras nervosas do cérebro, o encéfalo pode ser considerado

qual laboratório cheio de movimento onde se fazem conjunta-mente mil trabalhos: a memória, ou, para dizer melhor, as me-

mórias têm com que se gravar na mente. Mas certas impressões

são, como acabamos de ver, mais psíquicas do que físicas. Se é só acidentalmente que a memória pertence ao mundo psíquico,

este acidente é talvez o essencial para a descoberta do mundo

invisível, como as desordens aparentes, as perturbações em Astronomia, são a fonte mais fecunda de descobertas na gravita-

ção universal. Tivemos disto a prova com a descoberta do plane-

ta Netuno segundo as perturbações de Urano, na do companheiro de Sírio, etc.

Não, o “já visto” não é um fato fisiológico cerebral; é um fe-

nômeno metafísico: vista anterior realizada.

Vamos entrar agora no problema do conhecimento do futuro.

CAPÍTULO IX

O conhecimento do futuro

– O fatalismo. – O determinismo e o livre arbítrio.

– O problema do tempo e do espaço.

“A Verdade está ao lado do Destino

como potência diretriz.”

“Versos dourados de Pitágoras”

O que acabamos de apreciar relativamente ao “já visto” é a

introdução natural do que se seguirá.

Estudaremos agora as observações, examinando as vistas

premonitórias que estabelecem o conhecimento do futuro.

Publiquei, com este título, em La Revue 79

de 1º de março e

de 1º de abril de 1912, os principais documentos comprobatórios

de que, em certas condições, o futuro foi visto e conhecido de antemão. Diversos escritores prosseguiram, desde aquela publi-

cação, no mesmo assunto (e reproduziram esses documentos sem

sempre terem a cortesia de citarem o meu trabalho, minúcia aliás insignificante). O que aqui nos interessa particularmente é saber

que o futuro foi visto, descrito, anunciado muitas vezes com

precisão pormenorizada, e que, por conseguinte, existe no ser humano um princípio psíquico dotado de faculdades independen-

tes das propriedades da matéria, uma alma diferente do corpo.

Apontarei em primeiro lugar o fato de premonição em sonho,

que já publiquei em 1911, nos Anais das Ciências Psíquicas, e em 1912, na mesma revista, do que dou aqui a curiosa narração.

O Sr. Frederic Passy, o venerável membro do Instituto, cuja

longa carreira foi tão honrosamente consagrada ao apostolado do

pacifismo contra a imbecilidade guerreira humana,80

veio visitar-me um dia de janeiro de 1911, subindo com galhardia os meus

cinco andares, apesar dos seus 89 anos. Foi uma das suas últimas visitas, e a relação que me levou merecia realmente a sua esco-

lha.

“Não a encontrei – disse-me ele – na sua obra O Desco-

nhecido e tenho a certeza de que o interessará, pois procede

de um escritor escrupuloso, um homem de integridade in-contestável, o quaker Etienne de Grelet. Dou ao senhor a

narrativa, tal como a transcrevi da relação da sua viagem à

Rússia. Durante a sua permanência em S. Petersburgo, a Condessa Toutschkoff contou ao quaker viajante o seguinte:

Uns três meses antes da entrada dos franceses na Rússia, o general, seu marido, estava com ela no seu domínio de Tou-

la. Achando-se num hotel, em cidade desconhecida, ela so-

nhou que seu pai entrara, levando o filho único pela mão e dizendo-lhe estritamente:

– A tua felicidade acabou. Teu marido caiu. Caiu em Bo-rodino.

Acordou muito perturbada, mas, vendo seu marido junto dela, compreendeu que sonhava e adormeceu novamente.

O mesmo sonho se repetiu e ela sentiu tanta tristeza que levou muito tempo a recuperar a serenidade.

O sonho voltou pela terceira vez. Experimentou tão gran-de angústia que despertou seu marido, perguntando-lhe:

– Onde é Borodino?

Ele não o sabia. Durante a manhã, ambos, com seu pai, se

puseram a procurar esse nome no mapa, sem encontrá-lo. Borodino era então lugar muito obscuro; mas tornou-se de-

pois afamado, pela batalha sangrenta que se feriu nas suas

cercanias. Entretanto, a impressão causada na condessa era profunda e grande sua inquietação... O teatro da guerra era

longe então, mas rapidamente se aproximou.

Antes da chegada dos exércitos franceses a Moscou, o General Toutschkoff foi posto à testa do exército russo de

reserva. Certa manhã o pai da condessa, levando seu filho pela mão, entrou no quarto do hotel em que ela se hospeda-

ra. Estava triste, como a condessa o tinha visto em seu so-nho, e dizia-lhe:

– Ele caiu, ele caiu em Borodino.

A condessa viu-se, como no sonho que tivera, no quarto, cercada dos mesmos objetos.

Seu marido foi, efetivamente, uma das numerosas vítimas da renhida batalha que se pelejou perto do rio de Borodino,

que deu o seu nome a uma aldeia.

Frederic Passy.”

Este sonho premonitório, tão tragicamente preciso, é certa-

mente dos mais característicos.

Pode-se supor que fosse arranjado mais tarde no espírito da

narradora? Não, pois a sua realização a tinha impressionado com inesquecível emoção, e três meses antes da realização ela e o

morto haviam procurado o lugar no mapa da Rússia.

Apresenta todos os caracteres de autenticidade.

Fiz observar então que se a morte do general em Borodino

(batalha da Moscowa) foi vista alguns meses antes, tal morte e tal batalha eram pois inevitáveis. E, neste caso, que é feito do

livre arbítrio? Napoleão devia, portanto, empreender fatalmente

a campanha da Rússia e não era responsável por ela. A liberdade e a responsabilidade humanas não são mais do que ilusão?

Analisaremos daqui a pouco estas conseqüências seguramente

perturbadoras. Que pensar? O fatalismo parece estar em desacor-

do com todos os progressos da Humanidade. Mas é erro pensar que o fatalismo e o determinismo sejam idênticos.

A esse respeito, uma rapariga de Nápoles, Srta. Vera Kunzler,

dirigiu-me, em abril de 1917, uma carta angustiosa sobre algu-

mas frases minhas, concernentes a fatos incontestáveis da visão do futuro, suplicando-me que lhe explicasse como é possível

conciliar estes fatos de observação, dos quais me declaro fiador,

com o livre arbítrio, o nosso sentimento de liberdade e a nossa responsabilidade. Ela insistia tanto, porque estava sob a impres-

são de uma emoção profunda, produzida por trágica predição que

se havia realizado recentemente, na sua própria família.

Respondi-lhe que o fatalismo e o determinismo são duas dou-

trinas absolutamente diferentes uma da outra, e que convém não

confundi-las, como geralmente se faz. Na primeira, o homem é um ser passivo que aguarda os acontecimentos que são inevitá-

veis. Na segunda, pelo contrário, o homem é ativo e faz parte das

causas que atuam. Não se vê o que deve acontecer, mas o que

acontecerá. Ocorre sempre alguma coisa. É essa coisa que ve-mos, sem que isso seja fatal. É certo que a distinção é muito

sutil; mas pareceu-me que a sua juvenil alma de 17 anos, livre e

pura de qualquer idéia preconcebida, e de uma finura que, na sua correspondência, me pareceu extremamente delicada, perceberia

tal distinção, prestando-lhe a atenção necessária. Pedi-lhe ao

mesmo tempo que me desse a conhecer a predição realizada e que tanto a havia perturbado. Eis a sua carta, transcrita textual-

mente:

“Nápoles, 10 de junho de 1917.

Caro grande mestre:

Quanta alegria me deu a sua amável carta! Foi recebida com duplo agrado, primeiro pela sua procedência e segundo

porque me trouxe um pouco de luz sobre as idéias que se a-

gitavam no meu cérebro. Refleti longamente sobre essa carta e compreendi bem o que nela teve a bondade de me explicar:

o que acontecerá pode ser visto, mas não é fatal. Experimen-

tei um alívio imenso, pois acabrunhava-me a idéia de que não somos senhores de nada, nem mesmo de nossos pensa-

mentos.

Deseja saber, caro mestre, qual foi o acontecimento que me levou a crer na predestinação? Vou contá-lo o melhor

que puder.

Era na primavera de 1910, há sete anos. Estávamos em re-

lações muito íntimas com uma senhora alemã, chamada He-lena Schmid. Era médium de força extraordinária, e como

minha mãe se interessava muito pelas sessões espíritas, pedi-

lhe um dia que realizasse uma dessas sessões.

Eu era então uma criança de dez anos e ia para a escola;

por isso não assisti a tal sessão; mas minha mãe e a nossa velha criada contaram-me muitas vezes a cena.

Bastou que Helena Schmid pousasse as mãos ligeiramente na mesa para que ela logo balançasse com violência. Conhe-

ço a maneira de comunicar com os espíritos – se é que os há.

Quando a mesa, grande e maciça mesa de sala de jantar, que

a simples força muscular não teria conseguido erguer, bateu

as pancadas regulamentares, anunciando a presença de um espírito, a mamã pediu que lhe dissesse o nome: pelas letras

do alfabeto se revelou, dizendo chamar-se Anton. A médium

ignorava inteiramente tal nome e também não sabia de quem se tratava, quando ele foi chamado. Direi que se tratava de

Anton Fiedler, austríaco, o primeiro marido de minha tia,

irmã de minha mãe, que havia desposado em segundas núp-cias Adolfo Riesbeck. Helena Schmid desconhecia até a e-

xistência de toda essa gente. Como esse Anton Fiedler havia

sido o parente mais próximo de minha tia, a mamã pensou em solicitar-lhe algumas revelações acerca do futuro dela. À

primeira pergunta, que foi a seguinte: “Riesbeck conservará

sempre a sua fortuna?”, o espìrito respondeu redondamente: “Não”.

– Quantos anos levará a perdê-la?

A mesa bateu duas pancadas:

– Dois anos.

Minha mãe perguntou depois:

– Quanto tempo sobreviverá ele à perda de sua fortuna?

A resposta foi nítida e precisa:

– Cinco anos!

A mamã desejou então saber como morreria, mas o espíri-

to afirmou apenas que meu tio morreria repentinamente. Às perguntas se morreria de doença, de desastre, suicídio, de

naufrágio, ou vítima de um crime, ele respondeu:

– Não.

Foi impossível saber qual seria a sua morte: ninguém pen-sava então numa guerra, motivo pelo qual se não formulou

tal interrogação. A única coisa que se conseguiu mais de An-

ton Fiedler foi a resposta a esta pergunta:

– Quando falecer Riesbeck, que idade terá seu filho?

E a mesa respondeu nitidamente:

– 17 anos.

Em seguida, tudo acabou.

Abstenho-me de qualquer comentário; relato-lhe simples-mente o que se deu. Minha mãe não contou tudo isso desde

logo a minha tia, com receio de que o dissesse a seu marido.

De resto, ele não acreditava em tal. Infelizmente, tudo quan-to havia sido predito se realizou com a mais terrível exati-

dão: na primavera de 1912, isto é, exatamente dois anos a-

pós a profecia, meu tio Riesbeck perdeu a sua fortuna numa arriscada especulação na Bolsa; pouco tempo depois a mamã

prevenia minha tia, que se achava e ainda se acha em Gene-

bra, da predição e contou-lhe a segunda parte da mesma.

Minha tia respondeu-lhe como o teria feito qualquer outra

pessoa no seu lugar: que essa predição não passava de uma tolice que nenhuma atenção merecia.

Entretanto, também se realizou a segunda parte da profe-cia: a mamã e eu conversávamos muitas vezes acerca daque-

la sessão e eu dizia-lhe: “Se o espìrito falou verdade, meu tio

morrerá no começo de 1917.”

Pois Adolfo Riesbeck morreu no front em 12 de fevereiro

de 1917, com uma bala na cabeça, repentinamente, quando meu primo Mário completava os seus dezessete anos! E esta

morte que o espírito não pôde precisar, que não era produzi-

da por doença, nem por desastre, nem por crime, era a morte na guerra, na qual ninguém pensava então.

Remeto-lhe, incluso, um fragmento da carta que minha pobre tia nos escreveu, quando morreu seu marido. É escrita

em alemão, mas creio que conhece esta língua e pedirei a

minha mãe para a assinar.

Espero que essa estranha predição leve um tributo modes-

to às suas pesquisas. Aguardo o grande prazer da leitura do livro que prometeu publicar depois da guerra, sobre a Previ-

são do futuro.

Sou feliz em saber que nem tudo é fatal, pois o pensamen-to que me atormentava era este: a morte de meu querido tio estava predestinada ao tempo em que nem havia sido ainda

fundida a bala que teria de matá-lo.

Perdoe-me por ter abusado do seu precioso tempo. É jus-tamente por temer que seja importuna que muitas vezes me

abstenho de escrever-lhe, como era meu desejo. Mas fui muito feliz com o ensejo de responder, por minha vez, à sua

pergunta. Tudo quanto lhe disse é a absoluta verdade.

Cumprimento-o, mestre, respeitosamente e “caramente” (palavra italiana que decerto compreenderá).

Sua afilhada da Sociedade Astronômica de França,

Vera Kunzler.”

“Certifico que a narração de minha filha é exata em todos

os seus pormenores.

Viúva E. Kunzler.”

Seria supérfluo para os nossos leitores acrescentar qualquer

comentário a esta narração, que não deixará a menor dúvida

acerca da sua completa sinceridade. Os sentimentos de angústia profunda e de infinita curiosidade expressos na primeira carta

que me fora dirigida pela narradora já me haviam convencido

disso mesmo. Temos aí um exemplo típico de previsão do futuro.

Quanto ao seu acordo, em aparência paradoxal, com o deter-

minismo, falaremos dele.

Esses fatos não podem, para o futuro, ser negados. Toda ne-

gativa seria prova flagrante de ignorância ou de outro estado

d’alma, ainda menos desculpável.

A esse respeito, como a premonição do General Toutschkoff

e os meus comentários tivessem sido publicados por La Revue de

março e abril de 1912, Frederic Passy escreveu-me a seguinte

carta:

“Neuilly, 27 de abril de 1912.

Meu caro Flammarion:

Sou dos que vacilam em acreditar na possibilidade das premonições de que fala nos seus artigos, porque me pare-

cem a negação da liberdade que deixa de existir se os fatos são absolutamente determinados de antemão. Entretanto, já

lhe forneci um desses fatos, que mencionou.

Devo dizer-lhe que encontrará um outro no livro do Sr. G. Lenôtre, O Marquês de la Rouerie e a Conjuração Bretã de

1790-1793.

A Sra. de Sainte Aulaire, filha do Sr. de Noyau, um dos

conjurados, anunciou certa manhã a seu pai, que não quis acreditá-la, que ia ser preso e levado a Paris perante o tribu-

nal revolucionário, mas que conseguiria salvar-lhe a vida. O

fato é atestado não só por ela – falecida muito mais tarde – mas por seu filho, o qual tinha então quinze anos, e que foi

uma personagem importante na Restauração e no reinado de

Luís Filipe (membro da Academia Francesa). Esta premoni-ção

81 realizou-se pontualmente.

O senhor decidirá o que devemos pensar deste fato.

Frederic Passy.”

A questão da liberdade humana merece analisada.

Lemos sempre com verdadeiro prazer estético as obras do

nosso grande geômetra Laplace, um dos maiores e mais pene-

trantes espíritos de que a França se pode orgulhar e ao mesmo tempo um dos nossos mais puros escritores.

Eis o que ele escrevia acerca do livre arbítrio, no seu Ensino

filosófico sobre as probabilidades (2ª edição, de 1814):

“Todos os acontecimentos, mesmo aqueles que, pela sua

pequenez, parecem não se relacionar com as grandes leis da Natureza, são seqüência tão necessária dessas leis como as

revoluções do Sol. Devido à ignorância dos vínculos que os

associam ao sistema inteiro do Universo, fizeram-nos de-pender das causas finais ou do acaso, segundo aconteciam

ou se sucediam com regularidade, ou sem ordem aparente;

mas estas causas imaginárias foram sucessivamente retarda-das com os limites de nossos conhecimentos, e desaparecem

por inteiro diante da sã filosofia, que não vê nelas senão a

expressão da ignorância em que estamos das causas verda-deiras.

Os acontecimentos atuais têm, com os precedentes, uma conexão fecunda no princípio evidente de que uma coisa não

pode existir sem causa que a produza. Este axioma, conheci-

do sob o nome de princípio da razão suficiente, estende-se

às ações, mesmo as mais indiferentes. A mais livre vontade não pode, sem motivo determinante, dar-lhe origem; porque,

se dadas as circunstâncias de serem exatamente as mesmas

duas posições, ela atuasse numa e deixasse de o fazer na ou-tra, a sua escolha era um efeito sem causa: seria então, como

diz Leibnitz, o acaso cego dos epicuristas. A opinião contrá-

ria é uma ilusão do espírito que se convence de que se de-terminou por si mesmo e sem motivos, perdendo de vista as

razões fugitivas da escolha da vontade nas coisas indiferen-

tes.

Devemos, pois, encarar o estado presente do Universo

como o efeito do seu estado interno, e como a causa do que vai continuar. Uma inteligência que por um instante conhe-

cesse todas as forças que animam a Natureza e a respectiva

situação dos seres que a compõem, se fosse bastante extensa para submeter esses dados à análise, encerraria na mesma

fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e

os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e tanto o futuro como o passado seriam o presente a seus olhos. O es-

pírito humano oferece um fraco esboço dessa inteligência na

perfeição que soube imprimir à Astronomia.” 82

Discutiremos em breve esse raciocínio.

Costuma-se atribuir a Laplace a sua paternidade, mas todos

os pensadores o haviam enunciado antes dele e nada mais natu-

ral: é quase La Palice. A primeira edição deste livro sobre as

probabilidades é um curso de Laplace na Escola Normal, funda-da pela Convenção, em 1795.

Ora, em 1787 Emmanuel Kant escrevia na sua Crítica da Ra-

zão Prática:

“Sob o ponto de vista do tempo e da sua ordem regular, se

pudéssemos penetrar a alma de um homem tal como se ma-nifesta por atos tanto internos quanto externos, conhecer to-

das as causas, mesmo as mais leves, e levar em conta ao

mesmo tempo todas as influências externas, poderíamos cal-

cular a futura conduta desse homem com a mesma certeza

com que calcularíamos um eclipse da Lua ou do Sol.” 83

Kant também não é o criador desse raciocínio. Ele é encon-trado nos autores mais antigos, até nos romanos, até em Cícero,

por exemplo. No seu tratado sobre a Adivinhação,84

ele faz expor por seu irmão, Quintus, a conexão entre a visão do futuro e a

fatalidade. Diz ele:

“Para se dar conta da adivinhação é preciso remontar à

Divindade, ao destino, à Natureza. A razão obriga-nos a

confessar que tudo se governa pelo destino. Chamo destino

ao que os gregos chamam uma ordem, uma série de causas ligadas entre si, produzindo efeitos. Eis esta verdade perpé-

tua cuja fonte está na própria eternidade. Depois disso, nada

há no futuro cuja natureza não contenha já as causas eficien-tes. Deste modo, o destino seria a causa eterna de todas as

coisas, causa que explica os fatos realizados, os fatos presen-

tes e os fatos vindouros. É assim que por meio da observa-ção se pode saber quais sejam, muitas vezes, as conseqüên-

cias de cada causa. É sem dúvida esse encadeamento de cau-

sas e de efeitos que a inspiração e os sonhos revelam.

Acrescentarmos que, se pudesse existir um mortal capaz

de conceber a conexão de todas as causas, sendo tudo regu-lado pelo destino, nunca erraria. Com efeito, aquele que co-

nhecesse as causas dos acontecimentos não poderia deixar

de conhecer todo o futuro.”

Esse raciocínio é impecável em si mesmo e, repito-o, é quase

uma verdade do Sr. de La Palice. Que não há efeitos sem causa é evidente. Mas a conclusão da fatalidade ou do determinismo

necessário não tem a mesma evidência que esta reflexão de

simples bom senso.

Apesar da minha profunda admiração por Laplace, nas obras

de quem fui educado, confesso que não posso partilhar a sua

negativa absoluta do livre arbítrio. Os meus leitores já sabem o que escrevi sobre esse ponto escabroso, nas minhas Memórias.

“A vontade mais livre não pode atuar sem motivo determi-

nante.” Sem dúvida. Mas, entre as causas em ação na escolha, a

nossa própria personalidade existe, e isto não é uma causa sem

importância.

Dir-se-á que essa personalidade agiu de acordo com o motivo

predominante e provém de causas anteriores. É incontestável. Todavia ela existe, como o nosso caráter, e o que há talvez ainda

nisto de mais capital, de mais irrecusável, é que nos sentimos

muito bem, que examinamos, pesamos, discutimos conosco quando o caso vale a pena, e que decidimos, apreciando a nossa

responsabilidade.

Há algumas vezes, creio-o, uma balança cujos pratos estão

em perfeito equilíbrio e que vai pender sob o menor peso; mas esse pequeno peso pode ser a nossa fantasia, o nosso capricho, a

nossa vontade, o nosso desejo de contrariar um efeito previsto,

numa palavra, justamente o exercício da nossa liberdade. Ilusão do nosso espírito? Ninguém está autorizado a afirmar essa hipó-

tese como verdade demonstrada. O princìpio da “razão suficien-

te” está em nós mesmos, quando discutimos em nossa consciên-cia.

Tomar uma decisão de acordo com o motivo predominante

não prova que não façamos uma escolha segundo o nosso cará-

ter. A nossa própria vontade está associada a esse caráter, sem nada lhe escravizar. No seu Tratado do Céu, Aristóteles escreve

(II, 13): “É o caso de um homem esfomeado e sedento, mas

achando-se a igual distância de um alimento e de uma bebida: ficará imóvel forçosamente.” O mesmo diz Dante, no 4º livro do

Paraíso: “Intra duo cibi, distanti e moventi. D’un modo prima si

morria di fame. – che liber uomo t’un recasse à denti.” Buridan passa por ter feito o mesmo raciocínio, pondo um asno no lugar

do homem.

Ninguém duvida de que nem o homem nem o asno morrerão

de fome. Não há só mecânica na Natureza.

* * *

Haverá incompatibilidade absoluta entre a previsão do futuro

e o livre arbítrio? É o que se diz geralmente e o que os escritores

antigos afirmam com os modernos.

O autor da História da Adivinhação na Antigüidade, Bouché

Leclercq, do Instituto, escreve que um futuro incerto dependente

de vontades livres não se harmoniza com a idéia de leis fixas sugerida pelo espetáculo da ordem universal, e que o instinto

popular, antecipando-se às teorias filosóficas, foi levado inven-

civelmente a considerar o futuro como inelutável (I, pág. 15); que o futuro só pode prever-se por ser inevitável (idem, pág. 16);

que há um “conflito sem solução entre a presciência e a liberda-

de, e que uma suprime a outra” (idem, pág. 16). Sêxtus Empìri-cus demonstrou que devendo ser os acontecimentos vindouros,

ou necessários ou fortuitos, ou produzidos por agentes livres, a

adivinhação era inútil no primeiro caso e impossível nos dois outros (idem, pág. 79).

No Ensaio sobre o livre arbítrio, Schopenhauer escreve tam-

bém: “Se não admitimos a necessidade rigorosa de tudo quanto

acontece em virtude de uma causalidade que encadeia todos os acontecimentos sem exceção, toda previsão do futuro é impossí-

vel e inconcebìvel.” (pág. 124).

Evidentemente, acredita-se, em geral, que há incompatibili-

dade, contradição insolúvel, entre a presciência e o livre arbítrio, porque se confunde “presciência divina” com necessidade. É um

erro.

Nas conversas de Goethe com Eckermann, podemos ler, com

data de 13 de outubro de 1825:

“Que sabemos nós, com todo o nosso espìrito, do ponto a

que chegamos até agora?

O homem não nasceu para resolver o problema do mundo, mas para procurar dar-se conta da extensão do problema e

manter-se depois no limite extremo do que pode conceber.

As suas faculdades não são capazes de medir os movimen-tos do Universo, e é trabalho inútil o de querer abranger o

conjunto das coisas com a inteligência, quando ela tem ape-nas um ponto de vista restrito. A inteligência do homem e a

inteligência da divindade são duas coisas muito diferentes.

Logo que concedemos ao homem a liberdade, acabamos

com a onisciência de Deus; e se, por outro lado, Deus não

ignora o que farei, não sou livre de fazer coisa diversa da

que ele sabe. Cito este dilema apenas como um exemplo do

pouco que sabemos, e para mostrar que não é bom tocar nos segredos divinos.

Nestes termos, só devemos exprimir, entre as verdades mais elevadas, aquelas que podem servir ao bem do mundo.

As outras, teremos de guardá-las conosco, mas semelhantes

aos doces clarões de um sol velado, elas podem espalhar e espalharão o seu brilho sobre o que fazemos.”

Goethe não ousou prosseguir. Por que? Examinemos.

Os acontecimentos e as circunstâncias conduzem-nos com

mais amplitude do que em geral se pensa. Que cada um analise

com atenção os atos de sua vida e reconhecê-lo-á sem custo. Nosso livre arbítrio limita-se a um quadro muito diminuto de

atividade. “O homem agita-se e Deus o conduz”, diz um antigo

adágio. Não é inteiramente exato. Deus, ou o Destino, Fatum como lhe chamavam os latinos, deixa-nos alguma liberdade.

O provérbio contrário do precedente – todo provérbio tem um

outro que lhe é oposto – diz por sua vez: Deus ajuda os que

trabalham.

Sim, o homem agita-se e os acontecimentos conduzem-no;

mas somos, ao mesmo tempo, os obreiros de nosso próprio

destino.

Em suma, a verdade não está na metafísica dos filósofos, dis-

sertando sobre a fatalidade do destino, mas no bom senso vulgar e prático que se resume no adágio universal, nas cinco palavras

que acabo de mencionar.

A minha explicação procura essencialmente manter-se no

domínio exclusivo dos fatos de observação positiva, sem recorrer a nenhuma hipótese. Quando nos dizem que o nosso sentimento

do livre arbítrio é uma ilusão, trata-se de afirmativa hipotética.

Estou sentado à minha escrivaninha, pergunto a mim mesmo o que vou fazer, comparo, raciocino e decido-me por isto ou por

aquilo. Declaram-me que sou vítima de circunstâncias alheias à

minha vontade. Sustento, pelo contrário, que, se não raciocinas-se, deixaria correr os acontecimentos, e que a liberdade consiste

justamente em escolher o que nos parece preferível. Isto não é

absoluto, é relativo; somos constantemente contrariados em

nossos projetos; há mesmo dias em que tudo corre mal; isto é muito imperfeito, mas é a nossa sensação incontestável, e não

temos o direito de suprimi-la, substituindo-a por uma hipótese.

Ela é evidente como o dia. É uma exterioridade, pode-se dizer; sim, uma exterioridade como o Sol, uma paisagem, uma árvore,

uma poltrona, uma casa, coisas que conhecemos pelas impres-

sões que nos dão; mas esta aparência confunde-se com a realida-de.

Há aí um fato de observação diária, constante, legítima, irre-

cusável.

Oh! certamente, muitas vezes somos passivos e não tomamos

nenhuma resolução radical. Objeta-se que, quando discutimos conosco e que nos decidimos, após madura reflexão, é sempre

segundo o motivo predominante, de maneira que a nossa preten-

sa liberdade é comparável a uma balança, da qual um dos pratos desce segundo os pesos que nele se puserem. É incontestável

que, quando raciocinamos pausadamente, pesando o pró e o

contra, resolvemos a favor do que nos parece preferível. Ora, é justamente nisso que intervém o nosso raciocínio e nenhum

sofisma suprimirá em nós esta convicção. Cremos mesmo que,

no caso contrário, não seríamos razoáveis e, quando às vezes somos levados a agir em desacordo com as nossas opiniões,

sentimos que a isso somos relativamente obrigados.

Pelo que se refere à vontade arbitrária, a seguinte declaração

que Juvenal põe na boca de uma mulher imperiosa não será ainda o melhor argumento?

Sic volo; sic jubeo; sit pro ratione voluntas.

(Assim quero; assim o ordeno; a minha vontade é a minha ú-

nica razão.)

“Porque assim nos apraz”, diziam igualmente Luìs XIV e Lu-

ís XV, com um orgulho que devia perder a realeza.

Replicar-me-ão, sem dúvida, que somos dotados de certa li-

berdade de ação, que podemos escolher, resolver segundo o

motivo preponderante; mas onde fica o livre arbítrio absoluto?

Não será cada um de nós levado segundo o seu temperamen-

to, os seus gostos, as suas idéias, as suas preferências e também

segundo as circunstâncias e a conexão dos acontecimentos? Como nos libertaremos dessa escravidão?

Iniciamos as obras, grandes ou pequenas, sem sabermos aon-

de nos levarão. Que cada um examine a sua vida e verifique

quanto é fraca a sua liberdade pessoal.

Somos arrastados num turbilhão. O homem agita-se e o desti-

no impele-o. Esse destino é o espírito universal, do qual nada

mais somos do que minúsculas rodagens. Mas também somos

espíritos.

Livre arbítrio absoluto? Não. Livre arbítrio relativo.

A nossa liberdade é, sem contradição, muito menos extensa

do que parece aos espíritos superficiais. A marcha cósmica do

Universo conduz-nos.

Vivemos sob a influência do estado astronômico, e meteoro-

lógico, do calor, do frio, do clima, da eletricidade, da luz, do meio que nos cercam, das heranças ancestrais, da nossa instru-

ção, do nosso temperamento, da nossa saúde, da potência da

nossa vontade, etc. A nossa liberdade é comparável à de um passageiro do navio que o leva da Europa para a América. A sua

viagem é antecipadamente traçada. A sua liberdade não vai além

da amurada do navio. Pode passear sobre o tombadilho, conver-sar, ler, fumar, dormir, jogar, etc.; mas não pode sair da sua casa

móvel. O esboço de nossa existência é traçado de antemão, como

o movimento dos órgãos de qualquer máquina, e temos um papel a desempenhar, com um certo jogo individual. Essa liberdade

condicionada é, certamente, muito estreita, mas ainda assim

existe.

Suponhamos que jantais em casa de um amigo. Oferecem-vos

certos pratos, preferireis vinho branco ou vinho tinto, Borgonha

ou Bordéus, cerveja ou água pura e sabeis perfeitamente que

podeis escolher à vontade, tomando em linha de conta o vosso estômago e servindo-vos de vossa razão.

Se observarmos com cuidado, num momento qualquer, os

nossos menores atos, verificamos, que a nossa liberdade é em extremo limitada, que aquilo que resolvemos fazer de manhã, ao

acordar, vai ser dificultado por mil causas, mas que entretanto a

nossa intenção principal se realizará mais ou menos e que a

nossa escolha atuará.

O que se dá em grande, dá-se igualmente em pequeno: os

nossos atos mais importantes são determinados conjuntamente

pelas circunstâncias e pela nossa vontade.

Pode-se admitir a vista premonitória do futuro sem por isso

comprometer o princípio do livre arbítrio e da responsabilidade humana. O presente nunca se detém: continua-se constantemente

pelo futuro. Ocorre sempre qualquer coisa; nem por isso é fatal,

visto a vontade humana tomar parte no encadeamento dos fatos e essa vontade gozar de uma liberdade relativa; o que ela resolve

torna-se real, mas poderia não resolver nada; o futuro é a conti-

nuação do passado e não há diferença essencial entre a vista de um e de outro. Esse fato não impede absolutamente o admitir que

a vontade humana seja uma das causas de ação nos acontecimen-

tos. Poderia suceder outra coisa diversa da que sucede e é esta outra coisa que veríamos nas premonições.

O que acontece é o produto do encadeamento das causas, seja

uma força vingativa que manda fuzilar ou guilhotinar os seus

adversários, como se viu em 1793 e 1871, em Paris (e como se tem visto um pouco em toda parte, em nosso lindo planeta), seja

a ação de um filantropo que intervém no meio de uma revolução

para dirigir a sua marcha ou pôr termo aos seus excessos. O que sucede não impede a existência do bom e do mau, do tirano e da

vítima, do justo e do injusto, do brutal e do ponderado, do inteli-

gente e do idiota, do carnívoro e do pacifista, dos exploradores e dos explorados, dos ladrões e dos roubados.

Perceber, por processo qualquer, o que deve acontecer pela

sucessão dos efeitos e das causas é coisa que se pode conciliar

com a existência de todas as causas atuantes, mesmo a liberdade.

O futuro não é mais misterioso do que o passado. Se calculo

hoje que o movimento da Lua em torno da Terra e o movimento

da Terra em torno do Sol conduzirão o nosso globo e o seu satélite em linha reta (Sol-Lua-Terra) com a França na passagem

da sombra da Lua, em 11 de agosto de 1999, às dez horas e meia

da manhã, e que um eclipse total do Sol será observado ao norte

de Paris durante dois minutos, não haverá mais mistério nessa

predição do que no cálculo retrospectivo do eclipse total do Sol

que passou sobre Perpignan, em 8 de julho de 1842. Quando se deu esse eclipse de 1842, que se tornou célebre pelas observa-

ções de Arago, na sua cidade natal, tinha eu quatro meses e onze

dias; quando se der o de 11 de agosto de 1999, terei morrido há muito tempo, o que não tem a mínima importância: o que é o

futuro hoje para mim, para vós, para os vivos atuais, será para

outros o presente e tornar-se-á depois o passado.

Há de objetar-se que a assimilação dos fatos astronômicos aos

acontecimentos humanos não é integral, visto não existir nenhu-

ma liberdade nos movimentos dos astros e ser aí absoluto o

fatalismo. Mas pode-se responder que se o livre arbítrio é uma das causas atuantes, nem por isso deixam de produzir-se os seus

efeitos.

Que tudo o que acontece seja o resultado necessário das cau-

sas em ação, não há dúvida, mesmo os crimes mais abjetos, mesmo o incêndio de Roma, o martírio dos cristãos por Nero, a

violação da Bélgica pelos alemães, o assassínio dos cidadãos, o

incêndio de Lovaina, o bombardeio da catedral de Reims e os morticínios vergonhosos da última guerra germânica. Mas cada

ator faz parte das causas operosas e é parcialmente responsável.

Os acontecimentos são uma série mecânica, mesmo a condena-ção de Joana d’Arc à fogueira pelo bispo Cauchon, sob a acusa-

ção de feitiçaria, e a sua canonização, depois, por outros bispos;

mesmo o químico Lavoisier, o astrônomo Bailly, o filósofo Condorcet, o poeta André Chénier, vítimas de ferozes e obceca-

dos revolucionários. Tudo isso é motivado por causas determi-

nantes, mas não é fatal e poderia ter sido diferente o curso dos acontecimentos. Daí à conclusão de que não existem as respon-

sabilidades há um abismo. O Imperador da Alemanha, desenca-

deando a guerra de 1914 e causando a morte de doze milhões de seres humanos, não se parece com S. Vicente de Paulo; nem um

nem outro são autômatos, escravos do fatalismo.85

Suprimir a liberdade seria suprimir toda a responsabilidade,

todo o valor moral, igualar o mau ao bom, ao que se opõe a

nossa certeza íntima. Nesse caso deveríamos renunciar aos

nossos pensamentos mais claros e evidentes.

Cada um de nós tem diante de si a sua sorte desconhecida;

mas produzir-se-ão todos os acontecimentos, apesar do livre arbítrio mais ou menos desenvolvido de cada indivíduo, e mes-

mo por causa desse livre arbítrio. Na vida humana todos os

homens atuam, em diversos graus, e disso resultam as conse-qüências.

Há loucos e ajuizados (talvez haja mesmo mais doidos do que

gente de juízo; certamente, a razão não domina, sobretudo na

direção dos Estados).

Apesar de termos diante de nós a nossa sorte desconhecida,

cada um de nós faz o seu destino; atuamos segundo as nossas

faculdades, as nossas possibilidades, a nossa roda, a nossa here-

ditariedade, a nossa instrução, o nosso juízo, o nosso espírito, o nosso coração, e sabendo muito bem, aliás, que gozamos de uma

liberdade relativa e que podemos tomar resoluções. Somos os

autores da nossa sorte.

Por mais que fizermos, a hora de nossa morte já está marcada.

Por quê? Porque os acontecimentos seguir-nos-ão, incluindo os

nossos caprichos, as nossas sugestões, as nossas fraquezas, as

nossas imprudências, os nossos erros, e também tudo o que ocorrer em torno de nós. Procedemos naturalmente segundo as

nossas possibilidades e nossas mentalidades. Não se fará mentir

um homem leal; não se tornará um avarento em generoso. A ação de cada um, limitada às suas faculdades, não deixa de

existir e há casos em que semanas e meses de reflexão são neces-

sários para tomar uma decisão. Todavia os atos encadeiam-se e a circunstância de percebê-los de antemão não impede esse enca-

deamento.

Parece-me que o laborioso analista dos fenômenos psíquicos,

Bozzano, definiu racionalmente também esta aparente antinomia, escrevendo: “Nem livre arbítrio nem determinismo absolutos

durante a existência encarnada do espírito, mas liberdade condi-cionada.

Podeis ainda objetar, talvez, que, se acontece o que deve ne-

cessariamente acontecer, é supérfluo atormentarmo-nos para

termos bom êxito em qualquer coisa, em trabalharmos para

vencermos num concurso, em procurarmos um médico para um

doente, em lutarmos contra a adversidade, etc. Esta objeção prova justamente a nossa ação na ordem das coisas. Por mais

fatalista que penseis ser, ireis, com mais ou menos pressa, procu-

rar o médico, servir à pátria contra o invasor, chamar os bombei-ros para apagar um incêndio, combater o fogo que uma faísca

tiver ateado nos vossos papéis, no gabinete de trabalho, etc.

Possuís uma razão, fazeis uso dela. Isso não demonstra, de modo algum, que careceis dela e que sois autômatos.

A prova melhor que temos ainda da nossa liberdade, das nos-

sas faculdades de livre escolha, de determinações conscientes,

existe no sentimento íntimo, absoluto, de que os possuímos, e contra ele não pode prevalecer nenhum sofisma. Sentis muito

bem que podeis fazer o gesto que mais vos agrade. Embora vos

digam que o capricho de levantar o dedo, por exemplo, é prece-dido de uma série de idéias anteriores, esse capricho mesmo é

real e provém unicamente do nosso espírito dotado de liberdade

mental.

O futuro é determinado pelas circunstâncias, incluindo a li-

berdade humana, incluindo mesmo os rancores de um animal

maltratado injustamente, e mil influências particulares nas quais

nem sequer se pensa.

A personalidade humana faz parte das causas em ação na

marcha dos acontecimentos terrestres. Eis a solução do proble-

ma exposto por Cícero, Santo Agostinho, Laplace e seus êmulos.

* * *

Há aqui uma distinção muito sutil a fazer, para não confundir o encadeamento inevitável dos acontecimentos humanos com o

fatalismo. O que acontece não é fatal, apesar de ser a seqüência

necessária das causas. Um homem leva um murro, pelas costas, de um transeunte que passa apressadamente, no meio da multi-

dão; podia não levá-lo, ou por não ter saído de casa naquele dia

ou por não seguir naquela direção, e por até o seu agressor se não cruzar com ele. Os fatos ter-se-iam passado por outra forma e o

acontecimento seria diferente: uma visão premonitória teria

visto, da mesma forma, o que aconteceria, sem que essa vista

anterior provasse por isso a ausência do livre arbítrio nos dois

atores. Cooperamos na marcha dos acontecimentos. É falta de modéstia falar de si mesmo, mas é nisso que somos os melhores

juízes e permitir-me-ei apresentar um exemplo que conheço com

exatidão: Há longos anos que me esforço para difundir pelo mundo conhecimentos astronômicos, e bastante tenho consegui-

do. Amigos ilustres da Ciência e do progresso trouxeram-me um

concurso precioso na fundação e na organização gradual da Sociedade Astronômica de França. Ninguém poderia apagar de

meu espírito as diversas lutas que tive de sustentar e convencer-

me de que não houve nisso um trabalho pessoal; a esse respeito sei alguma coisa e todos os trabalhadores, todos os organizadores

estão no mesmo caso. A vontade não é uma palavra vã. Cada um

pode fazer as mesmas considerações, pelo que lhe toca. Nós procedemos, e o futuro é feito das nossas ações consecutivas.

isto não é fatalismo. É, mesmo, o contrário. O fatalismo é a

doutrina dos sonolentos, os fatalistas aguardam os acontecimen-tos, o que eles supõem que há de produzir-se, apesar de tudo.

Ora, nós trabalhamos e cooperamos na marcha dos acontecimen-

tos. Somos ativos e não passivos e nós mesmos construímos o edifício do futuro. Não se deve confundir determinismo com

fatalismo. Este representa a inércia, o primeiro representa a

ação.86

O fatalista é o oriental, o turco; o determinista é o europeu.

Há um abismo entre as duas civilizações.

Ver o futuro é ver simplesmente o que acontecerá. Não é pre-

ver, é ver. Na Astronomia, calculamos a órbita de um cometa,

por exemplo, a órbita normal, teórica, a curva elíptica, parabólica ou hiperbólica, no espaço. Mas pode suceder que o cometa passe

na vizinhança de um grande planeta e seja influído pela sua

atração. Esta perturbação modificará o seu curso e a nossa vista do futuro sobre a posição do cometa não será exata e precisa, se

não tomarmos em conta esta influência perturbadora.

Todas as influências atuam nos acontecimentos. A do homem

merece a mesma atenção que as perturbações planetárias, ainda

que frua de uma certa independência.

Não é pois impossível conciliar o nosso sentimento de liber-

dade com o conhecimento premonitório dos futuros aconteci-

mentos.

Suponhamos um observador postado no cume de uma serra-

nia, ao pé da qual se alongue vasta planície. Ele vê um homem

trilhar o caminho que o leva a uma localidade e adivinha que

esse viajante vai tratar, no lugar mencionado, de um negócio qualquer. Em que contradiz a liberdade do indivíduo o fato de

ver a sua ação?

O livre arbítrio do ator não está em contradição com a vista

do observador, a visão antecipada de um acontecimento não influi sobre ele. Da montanha em que supomos estar, vemos, por

exemplo, dois comboios correrem velozmente um contra o outro,

devido a um engano de agulha. Está iminente um desastre. A nossa vista, a nossa previsão nada têm com isso; o fato de ver é

inteiramente estranho ao fato do acontecimento.

Ver os acontecimentos desenrolarem-se no futuro como se vê

os que se desenrolaram no passado não obsta a que as causas determinantes atuem, incluída a vontade humana.

Nunca vos aconteceu, ao ler um romance, adivinhar exata-

mente o seguimento da história? E a maior habilidade do escritor

não consistirá em dar uma tal aparência de verdade às suas personagens imaginários e de interessar tão vivamente nisso o

leitor que ele se impaciente por conhecer a seqüência?

Por exemplo, o príncipe dos contistas, Alexandre Dumas, ofe-

receu-nos a leitura de José Bálsamo, e da sua continuação, O Colar da Rainha. Percorrendo a lista das inúmeras produções

desse autor, podeis notar o título da Condessa de Charny. Pois

bem, sem haverdes lido este último romance, sem saberdes quem é essa condessa, lendo o capítulo XII de O Colar da Rainha e o

quadro que faz Maria Antonieta das belas qualidades do Sr. de

Charny em presença de Andréa de Taverney, pálida e comovida, vereis, repentinamente, que a Srta. de Taverney, apaixonada, virá

a ser a Condessa de Charny. Adivinhastes o futuro.

Certos dissidentes poderiam observar-me que as personagens

de Alexandre Dumas são bonecos que ele manobra segundo lhe

convém e que a minha comparação nenhum valor tem, pois

poderia ser interpretada para demonstrar justamente o contrário

da minha tese e levar-nos-ia a concluir que os homens e as

mulheres, em vez de serem indivíduos livres, são apenas bonecos na mão do autor, chame-se ele Deus, Destino ou Acaso.

Essa objeção não seria muito sólida. Alexandre Dumas fez

certamente o que quis, o que lhe agradou, o que lhe pareceu mais

interessante para os seus leitores, e a sua imaginação pessoal teve o maior papel no arranjo dos seus romances.

As suas personagens, imaginárias ou reais, Andréa de Taver-

ney, a Condessa de Charny, o bailio de Suffren e seu sobrinho

Charny, Maria Antonieta, o Cardeal de Rohan, representam na cena, segundo os caprichos do seu prodigioso talento de conteur.

Conheci Alexandre Dumas, com sua gorda face e a sua cabeleira

emaranhada, e vejo-o rir às gargalhadas, com o seu bom riso, se algum psicólogo da Escola viesse opor o grave determinismo às

suas divertidas fantasias e declarar-lhe que foi forçado fatalmen-

te a escrever o que imaginou.

* * *

Desse conjunto de considerações, podemos, segundo me pa-

rece, tirar uma conclusão indiscutível. Os fatos de visão espontâ-

nea dos acontecimentos futuros são em tão grande número e de precisão tal, que a hipótese das coincidências fortuitas é hipótese

sem valor e a rejeitar absolutamente. Essa vista subliminal não é

duvidosa para os que estudaram suficientemente a questão. Atualmente não tem explicação científica, mas não anula a

liberdade.

Apesar da aparência, e seja qual for o pensamento dos filóso-

fos que não fizeram exame suficientemente aprofundado dessa questão especial, a vista do futuro não está em contradição com a

liberdade humana e o livre arbítrio, por mais extensão que lhe

queiram dar. Vê-se o que acontecerá, suprime-se o tempo, que, de resto, não existe em si, sendo resultado transitório dos movi-

mentos do nosso planeta. É, pois, simplesmente uma aparência

que se suprime. Vê-se o que acontecerá como se pode ver o que aconteceu. Se a vontade, o capricho, as circunstâncias tivessem

conduzido a outra coisa, seria essa outra coisa que se teria visto.

O conhecimento do futuro não compromete nem a liberdade nem

o conhecimento do passado.

No espaço absoluto o tempo não existe. Se a Terra girasse

duas vezes mais depressa, os dias seriam reduzidos à metade do que são. Essas medidas são relativas, não fundamentais.

87 Não

confundamos a sucessão dos acontecimentos, o que constitui “o

tempo” para as nossas impressões humanas, com o absoluto. A Astronomia convida-nos a essa distinção. Olhai, de noite, por

exemplo, Sírio, Vega e Aldebaran e vê-las-eis, não como justa-

mente são, mas como não tornarão a ser, como foram: a primeira há 8 anos, a segunda há 25 e a terceira há 32. O nosso presente

atual coexiste com o passado delas. Vimos no céu, em 22 de

fevereiro de 1901, um incêndio sideral que se produziu em torno de 1551. Certas estrelas que observamos neste momento já não

existem. O tempo atual de Júpiter e de Saturno não é o da Terra.

Os metafísicos costumam associar o espaço e o tempo que,

com efeito, têm certas relações entre si, e atribuem-lhes proprie-dades comuns. É um erro. O espaço existe em si. É absoluto,

infinito, eterno, mesmo no vácuo, pois o vácuo ainda é espaço

puro. O tempo, pelo contrário, não existe em si. É criado pelos movimentos dos astros e a sucessão das coisas. Se a Terra fosse

imóvel, se os astros não fossem dotados de qualquer movimento,

não haveria tempo; mas haveria sempre espaço. No espaço absoluto, entre os mundos, o tempo não existe.

Ocupei-me mais de uma vez dessa questão, de 50 anos a esta

parte, com os nossos eminentes filósofos contemporâneos,88

e

pude verificar que na sua maioria preferem sacrificar a possibili-dade da previsão do futuro à liberdade. Não adivinharam que

possa existir um acordo entre as duas. Espero que esse acordo

seja estabelecido aqui. De qualquer forma, não se devem, não se podem negar fatos de observação. Voltemos a esses fatos.

Foi só em 1912 que se publicou uma tradução francesa dos

escritos do filósofo alemão Schopenhauer sobre o “magnetismo animal e a magia”, dados à luz por ele em Francfort, em 1836,

assim como os relativos aos espíritos e aos sonhos premonitórios

aparecidos em Berlim, em 1851. Eis o que se pode ler nessa obra:

“Os sonhos anunciam freqüentemente acontecimentos de

importância, mas às vezes também coisas insignificantes,

cuja realização não deixa de merecer a atenção do pensador. Convenci-me disso por uma experiência irrecusável. Quero

comunicar essa experiência, porque ela põe ao mesmo tem-

po em plena luz a rigorosa necessidade do que acontece, mesmo do que é mais acidental.

Certa manhã escrevia, com grande atenção, longa e muito importante carta de negócios, em inglês. Chegado ao fim da

terceira página, tomei, em vez do areeiro, o tinteiro, e der-

ramei-o sobre a carta; a tinta escorreu da escrivaninha para o soalho. A criada, acudindo ao toque da campainha, tomou

um balde d’água e pôs-se a lavar o soalho para tirar as man-

chas. Enquanto procedia a essa operação, disse-me:

– Sonhei esta noite que tirava manchas de tinta deste sítio,

esfregando o soalho.

– Isso não é verdade – respondi-lhe.

– É verdade, sim senhor, e já o contei à outra criada que dorme comigo.

Chega, por acaso, essa outra criada, de 17 anos talvez, pa-ra chamar a que lavava o soalho. Dirigi-me a ela e pergun-

tei-lhe:

– Que foi que ela sonhou esta noite?

– Não sei – respondeu.

Eu acudi:

– Entretanto, ela contou-te o sonho, ao despertar.

A rapariga então exclamou:

– Ah sim, ela havia sonhado que tiraria uma grande man-cha de tinta deste soalho.

Essa história, cuja autenticidade absoluta garanto, põe fora de dúvida a realidade dessa espécie de sonhos. Não é menos

digna de atenção pelo fato de tratar-se aqui de um ato que se

pode qualificar de involuntário, pois que se produziu intei-ramente contra a minha vontade, em conseqüência de uma

insignificante inadvertência da minha mão. E entretanto, es-

se ato era tão necessário e tão inevitavelmente determinado

que muitas horas antes o seu efeito existia, no estado de so-

nho, na consciência de um outro. É aqui que aparece clara-mente a verdade da minha proposição: Tudo quanto aconte-

ce, acontece necessariamente.” 89

Não seria classificada esta narrativa no número dos meus do-cumentos positivos, deixando-a na categoria dos duvidosos (pela suspeição que merece o testemunho dos criados, visto muitos

sentirem um verdadeiro prazer em enganar os seus patrões), se

Schopenhauer não fosse o autor e não o tivesse apresentado em apoio de suas convicções sobre a necessidade. Declara-se con-

vencido da veracidade das suas duas criadas, e para ele a realida-

de do sonho premonitório não oferece dúvida alguma.

Mas erra na interpretação. Não era obrigado a entornar o tin-

teiro. Viu-se o fato porque aconteceu.

Essa história da criada do filósofo alemão lembra-me a de

uma outra criada, contada na revista Uebersinnliche Welt, de

Berlim, de agosto de 1904, que teve visão análoga.

“O Sr. Buchberger, Conselheiro de Justiça, achava-se em

Obermais. Uma manhã, pelas cinco horas, teve um sonho

que lhe mostrou a sua casa de Olmutz e a sua criada com os

vestidos em chamas, sobre os quais alguém lançava um jato de água; depois viu o corpo da infeliz, cuja pele, entretanto,

estava branca.

Pouco tempo depois, o Sr. Buchberger voltou para casa e, ao chegar, sua mulher contou-lhe que a criada morrera, em

conseqüência de queimaduras. No mesmo dia em que ele te-ve o sonho, mas pelas 10 horas da manhã, como a criada

quisesse aquecer um verniz, este inflamara, pegando-lhe fo-

go ao vestuário. Socorrida quando corria no quarto, lançada ao chão, conseguiu-se apagar o lume com água; mas, levada

ao hospital, morria alguns dias depois.”

Deve-se observar que esse sonho ocorreu pelas 5 horas da manhã, ao passo que o desastre aconteceu às 10 horas. É, sensi-velmente, o caso de Schopenhauer.

A narração é assinada pelo Sr. Buchberger, Conselheiro de

Justiça, em Graz-Rucherlberg.

O fato capital que deve chamar a nossa atenção e tomar aos

nossos olhos caráter da certeza é simplesmente a afirmação paradoxal de que o futuro, que ainda não existe e que se origina-

rá do encadeamento de uma série de pequenas causas consecuti-

vas, pode entretanto ver-se como se estivesse já realizado.

Não é somente nos sonhos premonitórios que pode ser visto o

futuro, mas também em certos estados d’alma difìceis de definir.

Um dos exemplos mais curiosos dessa visão precisa do futuro,

que conheço, é a observação relatada pelo meu sábio colega do Instituto Metapsíquico, o Dr. Geley, cujos trabalhos são bem

conhecidos de meus leitores. Ei-lo textualmente:90

“Em 27 de junho de 1894, pelas nove horas da manhã, o

Dr. Gallet, então estudante de Medicina em Lião, trabalhava no seu quarto, em companhia de um camarada de estudos,

atualmente o Dr. Varay, médico também em Annecy.

Gallet estava então muito ocupado e preocupado com a preparação do exame próximo: primeiro exame de douto-

rando, e não pensava senão nele.

Particularmente, não se interessava em absoluto pela polí-

tica, olhava distraidamente os jornais, e só incidentalmente havia conversado, nos dias precedentes, sobre a eleição do

presidente da República que se devia realizar naquele dia. O

congresso eleitoral reunir-se-ia pelas 12 horas, em Versa-lhes.

De repente, Gallet, entregue ao seu trabalho, foi imperio-samente distraído por um pensamento importuno. Uma frase

inesperada impunha-se ao seu espírito com força tal, que não

pôde deixar de escrevê-la imediatamente no seu caderno. Es-ta frase era, textualmente: O Sr. Casimir Périer é eleito Pre-

sidente da República por 451 votos.

Isto se passava, repito-o, antes da reunião do congresso. Observar-se-á que, entretanto – fato curioso –, a frase de que o Dr. Gallet conserva a lembrança mais nítida indica o pre-

sente e não o futuro.

Gallet, atônito, chama o seu camarada, Varay, e apresenta-lhe o papel no qual acabava de escrever.

Varay leu, encolheu os ombros e, como o seu amigo insis-tia, muito interessado, declarando que acreditava na premo-

nição, pediu-lhe, com certa dureza, que o deixasse trabalhar sossegado.

Depois do almoço Gallet saiu para assistir às aulas, na Fa-culdade. No caminho, encontrou dois outros estudantes, os

Srs. Bouchet, atualmente médico em Cruseilles (Alta Sabói-

a), e Deborne, ao presente farmacêutico em Thonon. Anun-ciou-lhes que Casimir Périer seria eleito por 451 votos. Ape-

sar dos risos e das mofas dos seus camaradas, continuou a

afirmar, por diversas vezes, a sua convicção.

Ao sair da Faculdade, os quatro amigos juntaram-se e fo-

ram tomar refresco num café vizinho.

Nesse momento, chegaram os vendedores de edições es-

peciais de jornais, anunciando o resultado da eleição presi-dencial e gritando:

– O Sr. Casimir Périer foi eleito por 451 votos.”

Poderíamos, certamente, acreditar na palavra do Dr. Geley, mas ele entendeu que devia comprovar a fidelidade da sua narra-

tiva com confirmações irrecusáveis e atestados de testemunhas:

1º atestado, do Dr. Varay, antigo interno dos hospitais de Li-

ão;

2º atestado, do Sr. Deborne, farmacêutico em Thonon;

3º atestado, do Dr. Bouchet, médico em Cruseilles.

Ninguém pode, pois, contestar esse fato.

Deve-se observar que a eleição de Casimir Périer, que só teve

uma maioria de 28 votos,91

foi inesperada, e que se contava mais

com a eleição do Sr. Brisson ou a do Sr. Dupuy.

Ver aqui também uma simples coincidência fortuita seria ir

além, certamente, dos limites de um cepticismo razoável. Esses fatos fortificam-se uns com os outros. Se houvesse apenas um,

insulado, perdido na soma das possibilidades, poderia duvidar-

se. Mas um número tal como o que estabelecemos aqui deixa nos

espíritos a certeza absoluta da realidade dessas previsões, por

mais inexplicáveis que sejam, no estado atual da Ciência. Neste

caso, também o vidente involuntário viu o que aconteceria; mas a eleição de Casimir Périer não era fatal, por tal circunstância.

Cada um dos 845 votantes concorreu certamente para isso muito

mais do que Schopenhauer, entornando o seu tinteiro; cada um agiu segundo o seu critério. Esse exemplo é típico contra a

fatalidade.

Continuemos o nosso “livre” exame.

O Sr. César de Vesme, o erudito diretor dos Anais das Ciên-

cias Psíquicas, comunicou-me, em 1901, a seguinte extraordiná-ria predição:

“Nos primeiros dias do ano de 1865, um certo Vicent Sas-

saróli foi residir em Sarteano, povoação de 6.000 habitantes.

Nesse país existia excelente banda de música composta de 34 executantes, da qual era presidente o Sr. Joseph Frontini,

que, tendo de exilar-se por causa da política, convidou-o a encarregar-se da sua direção.

O Sr. Sassaróli aceitou o oferecimento, sendo imediata-mente apresentado aos músicos na sala em que se faziam os

ensaios, no terceiro andar de uma casa que pertencia ao Cô-

nego D. Bacherini. Em seguida ao ensaio e na presença de toda a assistência, anunciou ao Sr. Frontini que a sala onde

se encontravam ruiria juntamente com o edifício, das águas-

furtadas ao rés-do-chão. Acrescentou que lhe parecia ver os escombros da casa sepultarem e esmagarem todos os assis-

tentes e até ele próprio.

A estas palavras, entreolharam-se, espantados, todos os presentes, perguntando-se se o novo diretor gracejava ou se

não estaria maluco. O Sr. Sassaróli, imperturbável, insistiu, precisando mesmo o dia e a hora em que se daria a catástro-

fe.

Ante tais afirmativas, os assistentes não duvidaram mais do estado mental do professor. Toda a gente se retirou, tro-çando-o.

Como é natural, essa esquisita história espalhou-se por to-da a região, fazendo rir às gargalhadas.

O Sr. Frontini então, vendo que Sassaróli tinha caído no ridículo e persuadido igualmente de que a sua idéia fixa o ar-

rastaria à loucura, fez quanto estava em suas mãos para o chamar à realidade. De acordo com o Cônego Joseph Bache-

rini, mandou examinar cuidadosamente, por arquitetos com-

petentes, o edifício, desde o teto até os alicerces, afirmando eles que a casa não apresentava o menor indício de deterio-

ração. Escudado por essa opinião, o Sr. Frontini procurou

Sassaróli e aconselhou-o a não insistir na sua louca predição, desejando-lhe uma vida tão longa como a da sólida constru-

ção de que se tratava. Foi trabalho perdido, porque o Sr.

Sassaróli redarguiu que não podia aceitar tal voto, pois se o fizesse não teria mais do que quatro dias de existência.

Uma tal obstinação só serviu para radicar as suspeitas da loucura do maestro. Começaram então a vigiá-lo com o re-

ceio de que, de um para outro instante, praticasse qualquer

tolice.

Nos cafés, nas reuniões, não se falava senão dessa parla-

patice que divertia toda a região.

Enfim, chegou o momento. À noite, como tivessem de re-

petir os ensaios, os músicos reuniram-se, conforme o hábito, na sala e, enquanto esperavam o diretor, fartaram-se de o

troçar. O Sr. Sassaróli não se fez demorar, mas não quis ou-

vir falar de trabalho nessa noite, de tal forma se sentia agita-do à medida que a hora se aproximava. Tanto fez que conse-

guiu que todos os assistentes saíssem. Descendo as escadas

assentes sobre arcos maciços, o Sr. Sassaróli, que havia to-mado a dianteira, não cessava de recomendar:

– Devagar, desçam devagar, porque o nosso peso poderia apressar o desastre.

Calculem-se as zombarias, os motejos, as gargalhadas dessas 34 pessoas persuadidas de que seguiam um louco e de

que se prestavam a uma comédia, descendo uns após outros a longa fila de degraus. Por fim, encontraram-se na rua. Al-

guns instantes depois, e precisamente à hora anunciada, a

casa derruía de alto a baixo.”

Pode-se calcular a impressão que esse acontecimento produ-ziu em toda parte.

O relatório donde extraímos esta breve narrativa foi escrito

pelo Sr. Joseph Frontini, cujo pai, presidente da Municipalidade, foi um dos primeiros a felicitar o Sr. Sassaróli no dia seguinte ao

da catástrofe.

Além disso, três testemunhos: 1º- de todos os membros da

família onde residia o Sr. Sassaróli; 2º- do guarda do teatro; e 3º-

da família que habitava a casa contígua ao teatro, certificam o

fato.

Em boa verdade, como duvidar-se ainda diante desse aconte-

cimento tão absolutamente afirmativo? Não seria o caso de

aplicar-se aos incrédulos a estigmatização bìblica: “Oculos

habent et non vident; aures habent et non audiunt.”? (“Eles têm olhos mas não vêem; têm ouvidos mas não ouvem.) Negar, negar

sempre, negar apesar de tudo, que é que isso prova?

Pois bem! não nos mostremos satisfeitos; não é ainda sufici-

ente para o nosso caso. Eis outros exemplos. Um deles, o mais estupendo de clarividência que eu conheço, um dos mais estra-

nhos e dos mais característicos, devido à lucidez magnética, é o

que foi relatado pelo Dr. Alphonse Teste, no seu Manual prático do magnetismo universal. Essa obra não é de hoje, foi publicada

em 1841; mas não vale menos por isso, porque, como diz

Molière, o tempo nada vale para o caso. É esse acontecimento verdadeiramente fantástico:

“No dia 8 de maio último, numa sexta-feira, eu magneti-

zava a Sra. Hortence M. Nesse dia aquela senhora estava de

admirável lucidez. Encontrava-me só com ela e o marido. Parecia-me preocupada, sobretudo com o seu futuro pessoal.

Entre outras coisas inesperadas, disse-nos o seguinte:

– Estou grávida de 15 dias; mas não chegarei ao termo e isso me causa um desgosto inigualável. Terça-feira próxima,

12 do corrente, qualquer coisa me causará medo; e levarei uma queda da qual resultará um aborto.

Confesso que, apesar de tudo o que já tinha visto, um dos pontos dessa profecia me revoltou.

– Medo de quê, minha senhora? – perguntei, com uma ex-pressão de interesse que estava longe de ser simulada.

– Não sei.

– Onde lhe sucederá isso? Onde sofrerá a queda?

– Não o posso explicar; não sei absolutamente nada.

– E não haverá qualquer meio de evitar tal coisa?

– Nenhum.

– E se nós, no entanto, não a abandonássemos?

– Seria o mesmo.

– Ficará bastante doente?

– Sim, durante três dias.

– Pode dizer-nos ao certo o que sentirá?

– Terça-feira, pelas 3 horas e meia, logo depois de um sus-to, sentirei um desfalecimento de alguns minutos. Assaltar-

me-ão a seguir violentas dores nos rins que durarão o dia to-

do e se prolongarão pela noite adentro. Quarta-feira de ma-nhã terei uma hemorragia. A perda sanguínea aumentará ra-

pidamente, tornando-se muito abundante. Não haverá, con-

tudo, motivo para receios, porque não morrerei disso. Quin-ta-feira de manhã sentir-me-ei muito melhor, poderei mesmo

levantar-me quase todo o dia, mas à tarde, aí pelas 5 horas e

meia, terei nova hemorragia, seguida de delírio. A noite de quinta para sexta-feira será boa; mas na sexta-feira à tarde

perderei a razão.

A Sra. Hortence H. calou-se e, sem todavia acreditarmos em tudo quanto nos disse, sentíamo-nos de tal forma impres-

sionados que não pensamos mais em prosseguir o interroga-tório. Entretanto, seu marido, profundamente emocionado,

perguntou-lhe, com indescritível ansiedade, se ela se conser-

varia louca por muito tempo.

– Três dias – respondeu, perfeitamente calma.

Em seguida acrescentou com doçura cheia de graça:

– Vamos! não vale a pena afligires-te; não ficarei louca nem morrerei. Apenas sofrerei, mais nada.

Acordamos a Sra. Hortence e, como sempre sucede, não se recordou de coisa alguma. Ficando só com o marido, re-

comendei-lhe expressamente que guardasse segredo, sobre-tudo com sua esposa, a propósito dos acontecimentos que,

embora quiméricos, poderiam concorrer para a oprimir, se

deles tivesse conhecimento. Principalmente no interesse da Ciência, tornava-se importante que ela os ignorasse. O Sr. H.

prometeu calar-se. Possuía suficientes provas do seu caráter

para saber que cumpriria a sua palavra. No que me dizia res-peito, tinha escrupulosamente tomado apontamentos de to-

das as circunstâncias preditas e delas tive ocasião, no dia se-

guinte, de dar parte ao Dr. Amadeu Latour.

Ao chegar a terça-feira fatal, só uma coisa me preocupava:

o medo da Sra. Hortence.

Quando entrei em sua casa, ela almoçava com o marido e

pareceu-me muito bem disposta.

– Meus bons amigos – disse-lhes ao entrar –, hoje ficarei

convosco, se isso os não contraria.

– Com o maior prazer – respondeu-me a Sra. Hortence –;

mas, com uma condição: é que o senhor não falará demasia-damente de magnetismo.

– Não falarei mesmo nada, se consentir, no entanto, em adormecer durante dez minutos.

A Sra. Hortence concordou e, algum tempo depois do al-moço, adormeci-a.

– Minha senhora, como se sente?

– Muito bem, mas não por muito tempo.

– Ora essa! Por quê?

Ela repetiu a frase sacramental de sexta-feira, a saber: que entre as três e quatro horas, teria medo de qualquer coisa e

levaria uma queda, da qual lhe resultaria uma hemorragia.

– Que é que lhe provocará medo?

– Não o sei dizer.

– No entanto... tente...

– Não, não sei absolutamente nada.

– Onde se encontra o objeto que lhe causará medo?

– Não sei.

– Não há nenhum meio de se subtrair a essa fatalidade?

– Nenhum.

– Esta tarde tenho a certeza de provar-lhe o contrário.

– Esta tarde, doutor, o senhor estará inquieto pelo estado da minha saúde, porque me encontrarei muito doente.

Diante disso, não tinha o que responder. Era necessário esperar; foi o que fiz.

Depois de despertada a Sra. Hortence não se recordou de coisa alguma; o rosto, atemorizado pelas visões do seu sono,

retomou a serenidade habitual. Conversou e gracejou como

antes de adormecer, sem qualquer idéia preconcebida, reco-meçando com os seus ditos espirituosos tão naturais em si, e

que, como ninguém, sabe empregar. Eu é que me sentia nu-

ma situação de espírito que não saberei descrever; perdia-me em conjunturas e hipóteses que por momentos abalavam a

minha fé; duvidava de tudo; cheguei a duvidar de mim

mesmo. Decididos, como estávamos, a não abandoná-la um segundo, observávamos os seus menores movimentos com

atenção, chegando a fechar hermeticamente as portadas das

janelas, com receio de que qualquer incidente passado na ru-a, ou nas casas próximas, concorresse para realizar a profe-

cia. Tocaram a campainha; um de nós foi ver quem batia.

Pouco depois das 3 horas e meia da tarde, a Sra. Hortence, que estava espantada com os cuidados de que era objeto e

não compreendia a causa das nossas precauções, disse-nos, erguendo-se da cadeira em que a tínhamos feito sentar:

– Os senhores permitem que me esquive um momento a esta incompreensível solicitude?

– Aonde vais? – exclamei com um ar de inquietação que não consegui dissimular.

– Por amor de Deus, doutor, julga acaso que eu tenho i-déias de suicidar-me?

– Certamente não, mas...

– Diga; o quê?

– O quê? Na verdade, sou indiscreto, mas é que a sua saú-

de interessa-me.

– Nesse caso, doutor – exclamou ela, sorrindo – mais uma

razão para me deixar sair...

Calei-me. O motivo era tão natural que não insisti. Entre-

tanto, o meu amigo quis ir até ao fim e disse à esposa:

– Dás-me licença que te acompanhe?

– Com que, então, é uma aposta?

– Precisamente; é uma aposta que fizemos os dois e estou certo de que a ganharei, embora a senhora faça o possível

para que eu a perca.

A Sra. Hortence olhou-nos intrigada. E, aceitando o braço do marido, saiu da sala, rindo com gosto.

Eu também ria, apesar de experimentar não sei que pres-sentimento que me dizia que o momento decisivo tinha che-

gado.

De tal forma essa idéia me preocupava, que eu não pensa-

va mesmo em voltar à sala e fiquei como de guarda à entrada da porta, onde não era precisamente o meu lugar.

De repente, ouviu-se um grito agudo, seguido do ruído da queda de um corpo no soalho. Subi as escadas a correr. À

porta da retraite, o meu amigo segurava nos braços a esposa

desfalecida.

Tinha sido ela realmente que havia gritado e o ruído que

ouvira fora motivado pela queda. Precisamente no momento em que deixava o braço do marido para entrar na retraite,

um rato, onde há vinte anos não se tinha visto um único,

surgiu de repente, causando-lhe um terror tão vivo e tão sú-bito que caiu desamparadamente, sem que seu marido tives-

se tempo de segurá-la. Tudo se passou depois como fora previsto. Diante de semelhantes fatos, quem ousará – acres-

centou o Dr. Teste – opor limites ao possível e definir a vida

humana?”

Não se pode pôr em dúvida a veracidade com que fala o au-tor.

De tal forma ficou impressionado por essa pasmosa clarivi-

dência, que não podemos deixar de nos sentir impressionados também. Negar tudo, como tantas vezes sucede, seria negar toda

a história da Humanidade.

Não tinha razão em afirmar que era este um dos casos mais

extraordinários de toda a série que estudamos neste momento e

cuja variedade tão rica é? Aqui, a objeção banal do acaso fica

sem aplicação possível. Quando muito, poder-se-ia supor que a imaginação doente da narradora produziu isso tudo por auto-

sugestão subconsciente e que foi ela quem criou e viu o que lhe

ia acontecer; mas é uma hipótese insustentável!

Hipótese, além disso, diametralmente oposta ao caso prece-

dente da derrocada do teatro e aos seguintes.

Não se deve, certamente, aceitar sem prevenção as narrativas

de pessoas que afirmam ter previsto acontecimentos extraordiná-

rios: há, no entanto, testemunhos que se não podem pôr em dúvida; está neste caso o do meu amigo, Albert de Rochas, que

nos referiu um fato, aliás banal mas bastante curioso, acontecido

ao nosso célebre cirurgião, Barão Larrey, que lho contou. Numa só noite sonhou com quatro números da loteria. No dia seguinte,

como tivesse pressa de fazer as suas visitas, pediu à Sra. Larrey

para comprar os bilhetes com esses números. Qual não foi, porém, a sua contrariedade, quando regressou a casa, ao saber

que os números haviam sido premiados – e que o seu pedido fora

esquecido!

É inaceitável atribuir esta coincidência ao acaso; o jogador

tinha 2.555.189 probabilidades contra si.

Um número, vá; dois ainda passa; mas quatro!

Sabemos hoje que o futuro pode ser previsto.

Este fato é tão interessante como os precedentes. Eu conheci

o Barão Larrey, homem de sociedade e tão distinto como sábio

leal. O seu testemunho é o de uma pessoa honesta.

Notemos, a esse propósito, que os exemplos que eu aqui

submeto à atenção imparcial dos meus leitores têm as mais

diversas origens. Não se trata apenas de sonhos premonitórios, de profecias no estado sonambúlico, de quiromancia, de carto-

mancia ou de qualquer outras séries especiais. Todas as formas

de atividade cerebral estão representadas, como todas as situa-ções sociais e todos os países. Não se poderia, pois, objetar com

alguma influência sugestiva de qualquer gênero que seja.

Continuemos o nosso estudo.

Um dos exemplos mais trágicos de sonhos premonitórios de

mortes, que conheço, é o do Dr. de Sermyn, sobre a morte de seu próprio filho. Vejamos a sua narrativa pessoal:

92

“O meu primeiro filho entrava no seu quarto ano de exis-

tência. Eu sentia por ele uma afeição particular, que não sen-

ti nunca por nenhum dos meus outros filhos. O seu olhar e o seu sorriso pareciam-me possuir uma expressão angélica e

tinha a impressão de que a sua inteligência era excepcional

para a sua idade. Era a minha alegria e a minha consolação. O simples pensamento de que o ia ver e falar-lhe, quando

entrasse em casa, enchia-me de alegria. Esquecia então todas

as minhas fadigas e todos os meus cuidados.

Uma noite, vi em sonho que conservava a criança entre os

meus braços, diante do fogão aceso. De repente, não sei co-mo, ela resvalou-me dos braços e caiu no meio das labare-

das. Em vez de me apressar a retirá-lo do fogão, deixei-o fi-

car. O que me forçava a proceder desta maneira era o racio-cínio que a mim próprio fazia: se o tiro do fogo, morrerá

dentro de alguns dias, no meio da sofrimentos atrozes, em

conseqüência das suas queimaduras; se o deixo ficar, morre-rá depressa, num minuto, talvez. Em todo caso, não sofrerá

por muito tempo.

Estranho, estúpido raciocínio esse, mas no meu sonho essa idéia pareceu-me luminosa e o ato que praticava um dever.

Fechando as grades do fogão, eu ouvia, com angústia i-

nexprimível, a criança agitar-se lá dentro, assando ao fogo.

Oh! Deus meu, exclamava, fazei que morra depressa; eu não

posso ouvi-lo sofrer assim!

Despertei em sobressalto; um suor frio inundava-me a fronte; o coração batia descompassadamente. Ergui-me a

meio da cama e murmurei: “Deus louvado” não foi mais do que um sonho!”

Corri ao quarto do meu filho, que dormia tranqüilamente. A respiração era regular, a epiderme fresca. Era em vão, en-

tretanto, que eu procurava sossegar. De nada valia eu dizer

comigo mesmo: “Imbecil, estúpido; trata-se apenas de um sonho; teu filho goza esplêndida saúde. Volta a deitar-te,

dorme.” – dizia-me a voz da razão. Voltei para a cama, sem

contudo poder dominar a minha inquietação nem conseguir desembaraçar-me do mau pressentimento. A primeira coisa

que fiz ao levantar-me de manhã foi examinar meu filho. Ele

tagarelava, ria, parecia vender saúde.

“Vai à tua vida; a criança não tem nada – parecia dizer a

voz escarninha do meu eu –, o teu sonho é absurdo. Com que então arremessa-se uma criança ao fogo, qual bacorinho,

e, para que morra mais depressa, fecham-se as grades da es-

tufa?”

Como adivinhar que a minha mentalidade subconsciente,

passiva, que se calava mas que me atormentava, estava den-tro da verdade, sabia o que ia suceder?

A criança acordara de manhã alegre, satisfeita como de ordinário. Almoçou com esplêndido apetite. Eu saí tranqüi-

lo.

Regressei a casa por volta do meio-dia. Meu filho estava deitado num canapé, amorrinhado. O pulso batia apressado,

a pele queimava, a respiração era agitada. Senti-me inquieto. Minha mulher, que o adivinhou, fez-me várias perguntas às

quais respondi, procurando serenar e fazendo esforços para

ocultar a minha inquietação. Auscultei cuidadosamente o meu filho, verificando a existência de catarro generalizado

nos dois pulmões, e nas bases como que uma crepitação muito leve. Não pude impedir-me de exclamar:

– É grave! É muito grave! Julgo que meu filho está perdi-do.

Nessa ocasião passava, a cavalo, um médico das nossas relações. Minha mulher precipitou-se para a janela e cha-

mou-o.

– Doutor – exclamou ela assim que entrou –, peço-lhe pa-

ra examinar o meu filho que está doente. Meu marido diz que ele está perdido.

O Dr. W. estava então no galarim. Era apreciável conver-sador, suficientemente espirituoso. E no que respeita aos

médicos novos, não se mostrava muito amável com eles, pa-

recendo não os ter em grande estima.

Examinou a criança, sorrindo.

– Desde quando está ele doente?

– Apenas há uma hora, doutor – exclamou minha mulher –; ainda esta manhã estava perfeitamente bem.

– E este senhor julga então que está perdido? – respondeu ele, voltando-se para mim – Ah! esses médicos novos! Ve-

jamos – retomou ele, dirigindo-se-me –, o senhor não pode

ter uma razão séria para alarmar a tal ponto esta mãe. Há a-penas uma hora que a criança adoeceu, e já formulou o seu

diagnóstico e o seu prognóstico? Isso não é razoável. Sosse-

gue, minha senhora – ajuntou, dirigindo-se a minha mulher –; deite seu filho na cama, dê-lhe bebidas quentes, cubra-o e

faça o possível para que transpire. Voltarei logo.

Eu compreendia perfeitamente o absurdo da minha condu-ta e como deveria parecer ridículo aos olhos desse médico

célebre. Mas podia eu confessar que procedia assim sob a in-fluência de um sonho? Ter-me-ia tomado por louco. Curvei

a cabeça sem responder às justas censuras que me fazia;

mas, no momento em que o doutor se retirava, exclamei:

– Peço-lhe por favor, doutor, que se não esqueça de voltar

logo!

Seria o som da minha voz que o impressionava? O certo é que se deteve, fixou os olhos em mim durante alguns segun-

dos e dirigiu-se lentamente para o doente, que examinou

com mais atenção do que da primeira vez.

Certamente dissera consigo: “Aqui está um pai, médico, que parece extremamente inquieto com o estado do filho; te-

rá ele descoberto algum sintoma aterrador que me tenha a mim escapado?”

Depois do exame feito, declarou:

– Ouve-se perfeitamente, aqui e ali, nos dois pulmões, um

certo estertor que lhe pareceu, decerto, que uma grave bron-co-pneumonia estava em vias de declarar-se. Não nos pode-

mos pronunciar, por enquanto, por uma tal eventualidade.

Tudo quanto é lícito dizer agora é que existe um ligeiro ca-tarro pulmonar que pode facilmente dissipar-se dentro de al-

guns dias. Admitindo mesmo um começo de bronco-

pneumonia, que razões tem o senhor para declarar a criança perdida? Nem todas as bronco-pneumonias são mortais. Vá,

seja razoável; eu voltarei logo.

Apesar de todos os cuidados, do Dr. W., o estado de meu filho agravou-se de hora para hora. Ao quarto dia sufocava

atrozmente.

Vendo-o sofrer tão cruelmente e prevendo o seu fim, eu

experimentava as mesmas angústias do sonho. E murmurava ainda: “Meu Deus, fazei que morra depressa; esta agonia, se

se prolonga, dá comigo em louco.”

Desde que o sonho me anunciara a morte de meu filho Jorge, nada conseguiu tirar-me a convicção de que o nosso

espírito adquire, durante o sono, a faculdade de prever certos acontecimentos futuros. Donde vem, porém, a forma sob a

qual se produziu a predição da morte de meu filho? Por que

esse fogão, aonde arremessei o meu filho? Por que essa cena tão estranha? De onde veio esse pensamento de fechar as

grades do fogão para que ele morresse mais depressa? Tal

ato não se concilia de forma nenhuma com o terror que eu sentia, praticando-o. Muitas vezes tenho pensado nisso tudo

e a explicação mais racional a que cheguei é a seguinte:

Havia-me deitado demasiadamente tarde nessa noite. Li algum tempo, estirado numa poltrona, diante do fogão, cuja

chama eu avivava de vez em quando. Os meus neurônios ti-nham evidentemente conservado a impressão dos tições em

brasa e de um fogão com grade que se podia abrir e fechar

facilmente.

É a esta excitação cerebral que, parece-me, deve ser atri-

buída a ilusão de um fogão em chama no qual se contorcia o meu filho e que eu procurava fechar para abreviar a sua ago-

nia.”

O sonho premonitório põe claramente em evidência a duali-dade da nossa mentalidade. Não se quer dar crédito a um sonho, sobretudo quando nos prediz alguma coisa de desagradável. Num

caso destes, a razão revolta-se, sem contudo chegar a dominar o

sentimento profundo e angustioso, proveniente da subconsciên-cia.

O Dr. de Sermyn ajunta que muitas vezes meditou sobre essa

luta entre o seu eu e a subconsciência. Está certo de que o sonho

devia cumprir-se fatalmente, enquanto a razão se revoltava contra essa idéia, agarrando-se a uma esperança vacilante com o

destroço flutuante a que um náufrago se agarra no mar.

As nossas intuições secretas têm muitas vezes a sua razão de

ser e é erro desdenhá-las sem descobrir-lhes a causa. Um pres-sentimento poderá ser, às vezes, um sonho premonitório esque-

cido. Seja qual for a explicação que se pretenda dar, o caso

observado evidencia-se irrefutável. Esse pai foi impressionado pelo estado fisiológico, então desconhecido, de seu filho e acre-

ditou de antemão na sua morte inevitável. Há aqui uma prova

bem característica da faculdade de premonição da alma humana e da existência de um mundo psíquico real, sugerindo a conclu-

são de que o organismo vital aparente não é tudo. Existe em nós

alguma coisa de indefinível que nós próprios não conhecemos.

* * *

Um fato abominavelmente dramático de clarividência, no so-

nho, exatamente com seis dias de antecedência, referente à morte

de seu filho esmagado por um automóvel, no próprio dia em que

se bacharelava, depois de brilhantes estudos e gozando de exce-

lente saúde, foi-me contado, em extensa carta, por um dos meus

antigos leitores, com a descrição do sonho, dando-lhe todos os pormenores do acidente, a remoção do cadáver, o aspecto dos

ferimentos, o desespero da família, exatamente como uma foto-

grafia ou, para dizer melhor, como uma cinematografia.

(CARTA 2.218)

A pedido da infortunada família, limito-me aqui a indicar o fato da premonição, sem consignar nomes nem circunstâncias

demasiadamente dolorosas. Devo dizer, no entanto, que esse drama real é suficiente para eliminar todas as explicações de

pretensas coincidências fortuitas e bastaria para provar que o

futuro é entrevisto, algumas vezes, com a mais categórica das precisões. Julgo que os meus leitores estarão todos de acordo

comigo, afirmando que a negação desses acontecimentos apenas

pode provar a ignorância dos que os negam ou a sua desproposi-tada teimosia.

Um pressentimento premonitório igualmente digno de nota,

de um acontecimento a dar-se, foi-me assinalado por um obser-

vador atento a esses fenômenos a esclarecer. Escreve ele:

(CARTA 985)

“Isto é uma espécie de sonho desperto premonitório, e jul-

go-me no dever de o assinalar porque pode ser um documen-

to mais a ajuntar àqueles que o senhor reúne para as suas tão importantes investigações. Por isso mesmo avaliará do seu

valor. Recentemente, numa reunião, a conversa derivou para

os problemas psíquicos de que o senhor tem feito tão docu-mentado estudo, quando uma senhora das nossas relações

nos comunicou o seguinte caso:

“Encontrava-me encostada a uma varanda, quando subi-tamente me vi na rua, de luto pesado, seguindo um coche

fúnebre. A impressão que recebi foi tão intensa que nesse dia mesmo fui encomendar um vestido à minha modista, não

cessando de pensar comigo mesma: “Vai suceder uma gran-

de desgraça.” quatro dias depois, meu filho, uma criancinha

de quatro anos, caiu do alto da escada, morrendo logo.”

Eis o que eu ouvi, pelos meus próprios ouvidos, da boca de uma senhora vestida de luto e que estava ainda sob a im-

pressão do que lhe sucedera. Não pode existir, nesse fato, nem erro, nem farsa, nem impostura.

P. Drevet

Tenente do 14º Regimento de

Caçadores de Grenoble.”

Este elemento toma, às vezes, a aparência de uma comunica-

ção do espírito por um médium, como se esse espírito visse

exatamente o futuro, no que respeita, sobretudo, à morte do indivíduo de que se trata. O meu colega e saudoso amigo Willi-

am Stead, diretor da Review of Reviews, que pereceu no naufrá-

gio do “Titanic”, recebeu um dia, de seu “espìrito Júlia”, uma predição singularmente estupenda:

“Há de haver alguns anos, eu tinha como empregada uma

senhora possuidora de talento verdadeiramente notável, mas

com um caráter desigual e uma saúde que deixava muito a desejar. Tornou-se de tal forma insuportável que, em janeiro,

pensei seriamente em separar-me dela, quando “Júlia” es-

creveu por minha mão:

– Seja paciente com E. M. Ela virá encontrar-se conosco

antes do fim do ano.

Fiquei estupefato, pois nada me autorizava a supor que ela

ia morrer. Recebi o aviso sem dar parte da mensagem e con-tinuei a utilizar os serviços dessa senhora. Foi, se não me fa-

lha a memória, entre 15 e 16 de janeiro, que recebi esse avi-

so. Em fevereiro, março, abril, maio e junho foi-me nova-mente repetido:

– Não se esqueça de que E. M. terá cessado de viver antes do fim do ano.

Em julho ela engoliu, por descuido, um pequeno prego que se alojou no intestino. Caiu então gravemente doente.

Os dois médicos que a tratavam não tinham esperança de

salvá-la. No intervalo, “Júlia” escreveu pela minha mão:

– É isso sem dúvida – perguntei-lhe – o que previa quando predisse que ela morreria?

Com grande surpresa minha, a resposta foi esta:

– Não. Ela curar-se-á disto, mas, apesar de tudo, sucumbi-rá antes do fim do ano.

E. M. curou-se de repente, com grande estupefação dos médicos, e pôde, dentro em pouco, retomar as suas ocupa-

ções habituais.

Em agosto, setembro, outubro e novembro o aviso do seu próximo fim foi-me comunicado de novo com a ajuda da

minha mão. Em dezembro ela foi atacada pela influenza.

– É agora? – perguntei eu a “Júlia”.

– Não. Ela não virá para aqui por um meio natural; mas de qualquer maneira virá antes de findar o ano.

Sentia-me alarmado, e compreendendo que não podia im-pedir o acontecimento. O ano passou e ela encontrava-se a-

inda viva. “Júlia” replicou:

– Eu posso ter-me enganado em alguns dias; mas o que a-

firmei é verdade.

Em 10 de janeiro “Júlia” escreveu:

– Amanhã verá E. M. Faça-lhe as suas despedidas. Tome as disposições que julgar necessárias. Não voltará a vê-la

mais na Terra.

Fui procurá-la. Encontrei-a com febre e tosse de mau cará-

ter. Ia ser conduzida para o hospital.

Dois dias depois recebi um telegrama informando que,

num acesso de delírio, ela se havia precipitado de uma janela do 4º andar e que a tinham levantado da rua, morta. A data

não havia ultrapassado, senão de alguns dias, os doze meses

a que se referira o primeiro aviso.

Posso provar a autenticidade desta exposição pelo próprio manuscrito das mensagens originais e pelo atestado assinado

pelos meus dois secretários.”

Podia-se supor, na verdade, que o espírito tivesse conhecido com antecedência a época da morte e mesmo sabido que essa

morte era acidental. Deve por isso a predição ser atribuída a um espírito? Não está provado; conheci suficientemente Stead, para

ter tido ocasião de notar as suas raras faculdades psíquicas, ainda

que ele não as tenha aplicado na sua própria segurança.

Esta premonição é, sem a menor dúvida, das mais notáveis.

Quem é essa “Júlia”, tão conhecida dos psiquistas conhecedores

dos escritos de Stead? Espírito? Subconsciência? Faculdades

mentais especiais? Ignoramo-lo. Mas não é a matéria cerebral que vê assim o futuro.

No seu livro tão judiciosamente meditado e tão ricamente do-

cumentado, Lucidez e Intuição, o Dr. Eugène Osty nota, por sua

vez, o fato seguinte de autopercepção intuitiva:

“A Sra. D., criatura lúcida, de escrita automática, admi-

rou-se, em determinada época da sua vida, de ver, por mo-

mentos, a sua mão traçar espontaneamente a palavra R...,

nome que ela nunca tinha ouvido, parecendo-lhe não ter isso qualquer significação. Durante alguns meses, no meio de su-

as ocupações, desde que a sua mão pousava sobre uma mesa

ou que se preparava para escrever uma carta, a mesma pala-vra aparecia. Acabou por considerar esse movimento invo-

luntário como um tic, deixando de preocupar-se com esse fa-

to.

Uma tarde, seu marido anunciou-lhe que acabava de fe-

char imprevistamente um contrato com um engenheiro em R..., pequena povoação da Província de Orã.

Mais tarde, foi junho que a sua mão começou a escrever. A Sra. D. esforçou-se então por conseguir, por meio da es-

crita automática, a explicação dessa palavra.

A única resposta aos seus esforços foi sempre junho. O mês de junho chegou e a Sra. D. teve o desgosto de ver mor-

rer seu marido.

Um pouco mais tarde, a sua mão obstinadamente traçou esta outra data: março. Pode depreender-se qual seria o ter-

ror dessa desventurada vidente que a si mesmo perguntava

que outro terrível golpe do destino iria atingi-la. Julgando

que a sua mão, na escrita automática, estava escravizada a

um espírito desencarnado, dirigiu à entidade oculta as mais instantes súplicas, implorando-lhe que lhe fosse poupada a

angústia da misteriosa ameaça. E a sua mão, em resposta às

torturas do seu coração, traçava sempre esta única palavra: março.

A época fatídica e temida chegou. No mesmo mês a Sra. D. perdeu sua filha e sua mãe.”

Essa misteriosa história assemelha-se muito à precedente. Há ainda outras análogas que não reproduzo aqui por me faltar o

espaço. Explicam-se umas pelas outras? Subconsciência? Força psíquica? Espírito exterior? Destino? Com que palavra a pode-

remos denominar? O singular aviso que em seguida exponho foi-

me assinalado por um jovem estudante de Morbihan:

(CARTA 4.042)

“Caro mestre:

É meu dever comunicar-lhe um fato de premonição acon-tecido na minha família.

Em 1896, meu avô, o comandante Dufilhol, oficial da Le-gião de Honra que V. Exa. conheceu em casa do Sr. Allan

Kardec, em 1862, vivia com minha mãe, próximo da Van-

nes.

Certa ocasião descia sozinho a escadaria do castelo para se

encontrar com a filha que fora ver as cavalariças. De repen-te, uma voz murmurou-lhe ao ouvido:

– Uma morte na família.

Meu avô, surpreendido e comovido, pensou consigo mes-

mo: “Devo ser eu, que sou o mais velho.”

– Não – respondeu a voz – Adolfo Planes.

Meu avô chegou às cavalariças com tão grande palidez que minha mãe indagou se estava indisposto. Ele respondeu

negativamente e deu-lhe parte do aviso que acabava de rece-ber.

Ambos ficaram muito contristados, escrevendo imediata-mente a Adolfo Planes, meu jovem tio, então professor de

inglês em Nice.

A resposta foi satisfatória, o que tranqüilizou um tanto

minha mãe e meu avô.

Dois meses depois meu tio submetia-se a concurso de ad-

missão a uma escola de Paris. As provas tinham sido duras e fatigantes. No momento em que o examinador lhe participa-

va que seria aprovado e lhe dirigia as suas felicitações, o

meu infeliz tio cambaleou, caindo sem sentidos.

Oito dias depois expirava nos braços de meu avô, vítima

de meningite.

Contava apenas 26 anos. A voz não se tinha enganado.

A recordação da morte prematura de seu irmão é ainda tão cruel para minha mãe que ela não me teria nunca autorizado

a escrever-lhe se não fora para o auxiliar nas suas investiga-ções.

Saint-Raoul-Quer, 3 de agosto de 1918.

Adrien Dufilhol.”

As audições premonitórias são mais raras do que as visões

premonitórias, mas seu número é ainda suficientemente grande

para que as ponhamos de parte. Atribuí-las ao acaso não é coisa que de modo algum nos satisfaça.

No mês de agosto diversos leitores escreveram-me de Nova

Iorque afirmando-me que o acidente acontecido a um tal William

Cooper, fabricante célebre, esmagado por um tramway, tinha sido visto por sua mãe, a Sra. Ella Cooper.

Nessa mesma noite ela sonhou duas vezes que via o filho ar-

remessado por terra e esmagado, e esse sonho repetido de tal

forma a enervou que resolveu tomar em Filadélfia o comboio para Nova Iorque. Precisamente à hora em que chegou, da parte

da manhã, depois de entrar num tramway para se dirigir à 33ª

rua, em Broadway, viu, quando atravessava a 7ª avenida, um ajuntamento ao redor de um indivíduo que acabava de ser derru-

bado por um tramway. Esse indivíduo era seu filho.

Essas cartas acrescentam: accident which will probably result

in the death of M. William Cooper. A morte ter-se-ia seguido ao

acidente? Ignoro-o; mas nem por isso deixa de ser menos notável o sonho premonitório. Não há a menor dúvida de que essa mãe

tenha sido advertida do que se ia passar. Como? Por quem? Para

quê? Por que processo? É este o objetivo das investigações do presente livro.

Temos o caso de uma mãe que vê o seu filho esmagado. Eis

outra sensação análoga, sob a forma intermediária: A exposição

seguinte foi-me enviada de Biarritz, no dia 9 de julho de 1917, em resposta ao desejo que eu havia manifestado à Sra. Storms

Castelot – erudita colega da Sociedade Astronômica de França,

que me contou o sonho – de a receber diretamente da pessoa que o observara. É o conhecimento, com três dias de antecedência,

de morte repentina. Vejamos o extrato:

(CARTA 3.750)

“Apesar da tristeza que tal comunicação possa despertar

em mim, devo garantir-lhe que a morte de meu filho João

me foi anunciada na quinta-feira que precedeu o domingo

em que o meu querido filho, que se encontrava então no es-trangeiro com seu irmão Luís, nos deixou para sempre. Este

sonho muito simples, aqui o tem:

Eu via, numa casa desconhecida, o meu filho Luís banha-do em lágrimas, e como eu lhe perguntasse a causa do seu

desespero, respondeu:

– Oh! mamã, é o João que morreu!

O meu querido filho contava dezenove anos, tinha uma saúde esplêndida e nada fazia pressentir tão fulminante fim:

uma embolia, durante tranqüilo passeio de bicicleta, na companhia de seu irmão e de seu tio. Muito tempo depois,

soube que na quinta-feira em que tive o horroroso pressen-

timento, meu filho tivera uma síncope provocada por um corte num dedo: coincidência estranha!

Outra coincidência estranha, mas essa dizendo-me respei-

to.

Achava-me em Hamburgo, durante uma das minhas nu-merosas tournées de concertos, quando me sobreveio um

torcicolo que ameaçou impedir-me de cumprir o meu contra-to naquela noite: corri rapidamente ao consultório de um

médico especialista que tratava esses pequenos e desagradá-

veis acidentes por meio da eletricidade. Sob a influência da corrente elétrica, desmaiei. Nesse mesmo dia recebi de Paris

um telegrama de minha mãe, no qual me dizia a inquietação

que sentia por me ter visto, em sonho, desmaiada! Fiquei espantada! De resto, minha mãe teve sempre durante toda a

sua vida um verdadeiro dom de vista dupla, segundo a ex-

pressão corrente.

B. Marx-Goldschmidt.”

Esta carta era confirmada pelo irmão do falecido.

Como vêem, essas espécies de intuições não são raras numa

família. O mesmo sucede no que se segue.

É da República Argentina que me vem a relação deste sonho

premonitório singularmente minucioso:

(CARTA 799)

“Rosário de Santa Fé, 15 de setembro de 1899.

Julgo de meu dever, meu ilustre mestre, assinalar-lhe o seguinte fato sucedido com minha família, irrefutavelmente

certo e que, creio, pode trazer bastante luz, do qual dareis

conhecimento aos vossos leitores.

Uma das minhas tias-avós era conhecida pelos seus pres-

sentimentos e pela sua vista mental.

Em 1868 ela viu em sonho uma cena de interior que era

toda uma revelação. Esse quadro representava uma depen-dência onde uma das suas amigas, a Sra. B., assentada numa

poltrona, perto de um fogão no qual ardia intenso lume, aca-

riciava uma criancinha que conservava nos braços, enquan-to a criada secava os cueirinhos junto ao fogo. Esse sonho

foi contado a diversas pessoas, sem que qualquer delas lhe prestasse qualquer atenção, visto que a Sra. B., mãe de nu-

merosa família e tendo já passado os quarenta anos e não

tendo, para mais, nenhum filho desde há sete anos, não pare-

cia, por isso, suscetível de ter outros. Entretanto, o que então

parecia impossível realizou-se um ano depois. No dia em que minha tia-avó foi visitar a parturiente para felicitá-la pe-

la sua delivrance, viu, na realidade, o sonho que tivera. O

aposento, a disposição dos objetos, o fogão aceso, a criada ocupada em secar os cueirinhos diante do fogo, enfim, todos

os pormenores do sonho estavam fielmente reproduzidos. A

revelação cumprira-se inteiramente.

Queira, caro mestre, aceitar os respeitos do seu longínquo

leitor e os mais profundos votos de ventura pela nossa que-rida França.

Emílio Becher.”

Outro fato, ainda:

Recebi da Suécia, em dezembro de 1899, a seguinte exposi-

ção de um sacerdote protestante muito conhecido:

(CARTA 845)

“Neste momento deve realizar-se uma visita pastoral. Uma

das entidades que havia de assistir, na semana que findou, a

essa visita (que começaria na terça-feira, 3 de dezembro), no presbitério de Sjustorp, em Medelpad, sonhou, durante a

noite de sábado, que a tinham chamado ao telefone e que um

padre de Medelpad lhe dissera que a visita pastoral não se realizaria naquele dia porque morreria uma pessoa. Aquele

que do mundo dos sonhos veio telefonar-lhe não lhe decla-

rou o nome da pessoa que morreria. O sonhador lembrava-se perfeitamente do que se passara no dia seguinte de manhã. E

qual não foi a sua estupefação quando, por volta do meio-

dia, lhe comunicaram efetivamente pelo telefone que a espo-sa do bispo havia falecido repentinamente nessa mesma ma-

nhã, o que impedia o prelado de proceder à visita.”

Qual foi o agente desse fenômeno psíquico? A morte? Não é provável. O sacerdote com que, em sonho, se comunicou por um suposto telefone? Talvez. Mas por meio de que corrente mental,

por qual assimilação? O próprio pensamento do bispo, irradiando

ao longe? Mistérios da telepatia.

Ainda outro caso, tão trágico como o do Dr. de Sermyn:

Narra o Dr. Foissac:93

“Numa tarde de primavera, em 1854, o Padre Deguerry,

abade de Madeleine, o Conde de Las Cazes e os Senadores Longet e Marshall, da Academia de Ciências, tiveram, numa

reunião, acalorada discussão sobre o maravilhoso e as vistas

proféticas, tendo o Senador Marshall feito a seguinte comu-nicação:

“Há um ano, em Edimburgo, dirigi-me, numa povoação dos arredores, à casa de um dos meus velhos amigos, o Sr.

Holmes. Encontrei todos os rostos compungidos. Holmes ti-

nha, nesse dia mesmo, assistido a um enterro, num castelo próximo; contou-me então que o filho dos donos do castelo

tinha, por mais de uma vez, aterrorizado a família por mani-

festar os fenômenos que são atribuídos à segunda vista. Vi-am-no ora alegre, ora triste, isto sem causa aparente, o olhar

abstrato e melancólico, e pronunciando, por vezes, palavras

desconexas quando não descrevia estranhas visões. Procura-ram, mas inutilmente, combater essa disposição por meio de

exercícios violentos e por uma série de estudos variados, pa-

ra o que se socorreram dos conselhos de hábil médico.

Uns oito dias antes do acontecimento a que me refiro, a

família, que se encontrava reunida, viu, de repente, o peque-no William, que apenas contava doze anos, empalidecer e fi-

car imóvel. Prestam atenção ao que o pequeno diz e ouvem

estas palavras: Eu vejo uma criança adormecida, deitada num caixão de veludo e coberta com um pano branco, tendo

à volta coroas e flores. Por que razão choram os seus pais?

Esta criança sou eu.

Convulsionados pelo terror, o pai e a mãe agarraram o fi-

lho, cobrindo-o de beijos e lágrimas. O pequeno voltou en-tão a si, continuando a brincar como antes. A semana não

findara ainda, quando a família, assentada à sesta, depois do

almoço, procura o pequeno William, que há pouco ali se en-

contrava. Não o vê e chama-o: nenhuma voz responde.

A família, o mordomo, o médico, o capelão, os criados procuram-no; mil gritos de desespero se cruzam; percorrem

o parque em todos os sentidos: William tinha desaparecido. Somente uma hora depois de pesquisas e de angústias é que

a criança foi encontrada num lago onde havia caído ao pre-

tender agarrar um barco que o vento tinha afastado da mar-gem. Fez-se tudo, durante algumas horas, para o reanimar. O

fatal presságio havia-se cumprido.”

Teremos ocasião, no segundo volume desta obra, saturado de documentos, de voltar a estes fenômenos seguidos de morte. Fiquemos agora por aqui, no estudo dos fatos metapsíquicos,

atestando as faculdades transcendentes da alma. Essa criança

tinha, sem a menor dúvida, visto o seu caixão.

Uma premonição de morte, das mais singulares igualmente,

pode ler-se na autobiografia do Barão Lázaro Hellembach. Ei-la

tal qual a encontramos nos Anais das Ciências Psíquicas, de

1877, pág. 124:

“Eu tinha a intenção de pedir a colaboração do diretor da

seção de química da Escola de Geologia de Viena, Hauer,

engenheiro de minas, para o assunto de algumas investiga-

ções que havia feito sobre a cristalização. Já tinha inciden-talmente falado com ele sobre isso, visto que o laboratório

ficava perto da minha residência e que Hauer é conhecido no

mundo científico – pode-se mesmo dizer na Europa inteira – como especialista nesse assunto. Adiava sempre a minha vi-

sita, até que me resolvi a realizá-la no dia seguinte. Nessa

mesma noite sonhei que via um homem pálido e desfalecido, amparado, pelas axilas, por outros dois homens. Não dei

maior importância a esse sonho e, como havia resolvido, di-

rigi-me à Escola de Geologia. Como, porém, o laboratório se encontrava num outro ponto do edifício, diferente dos anos

anteriores, enganei-me na porta e, encontrando a verdadeira

porta fechada, vi, olhando por uma janela, a imagem exata do meu sonho: Hauer, que se havia envenenado com cianu-

reto de potássio, amparado por dois homens que o transpor-

tavam para o vestíbulo. Era exatamente como tinha sonha-

do.”

O Barão Hellembach acrescenta aqui as observações seguin-

tes:

“Se eu tenho chegado alguns minutos antes, poderia ter

certamente impedido que o suicídio se desse, motivado por

preocupações de família e de fortuna, visto que ofereceria a Hauer nova colocação e algum alívio material. Esta circuns-

tância impressionou-me profundamente; e tanto mais quanto

compreendi tudo o que vinha de perder sob o ponto de vista das minhas idéias e dos meus projetos e pensando igualmen-

te que as minhas investigações estavam para sempre inter-

rompidas.

É natural que a morte de Hauer, desfazendo os meus pro-

jetos, me tivesse impressionado muito; e é talvez por essa razão que a minha consciência guardou um resto de vista

dupla.”

Sob o ponto de vista da telepatia, poder-se-ia julgar que o suicida, tendo provavelmente premeditado esse ato de desespero

na noite que o precedeu, provocou o sonho do Barão Hellemba-ch. Mas isto não explicaria o elemento essencial do sonho, o

espetáculo de um homem de rosto lívido, agonizando, e ampara-

do pelas axilas por dois outros homens.

Fazer intervir ainda a hipótese das circunstâncias fortuitas se-

ria verdadeiramente o cúmulo.

Poderíamos notar aqui que todos esses fatos são, de mais em

mais, demonstrativos da nossa afirmação de que a alma vê o

futuro por meio de poderes ocultos. Um outro caso ainda, e não menos comovente, de premonição, foi observado, em 1905, na

República de San Marinho:

Um certo Marino Tonélli, de vinte e sete anos, negociante

de ovos, percorria, nessa qualidade, os mercados dos arredo-res, entre os quais o de Rímini. Na tarde de 13 de junho, en-

contrando-se nesta última localidade, entrou demasiadamen-

te nas bebidas – o que nele era para admirar. Regressou de-

pois a casa na carroça em que transportava os cestos dos o-

vos, felizmente vazios. Parece que, pelo caminho, se deixou adormecer, porque num sìtio conhecido pelo nome de “Cos-

te di Borgo”, onde a estrada faz tortuosa e ìngreme curva, o

moço negociante foi sacudido do veículo, encontrando-se es-tendido num campo, no fundo de pequena ribanceira, para

onde havia sido projetado.

Reparou que a carroça se encontrava meio voltada na bor-da da estrada, enquanto o cavalo, que ficara quase suspenso

no ar, se debatia em posição crítica. Depois de verificar que não estava ferido, o nosso homem segurou o cavalo e, com o

auxílio de alguns camponeses que haviam acorrido, conse-

guiu igualmente retirar a carroça da beira da estrada. Estava entregue a esses trabalhos, quando lhe surgiu diante dos o-

lhos uma figura de mulher que, à claridade da Lua, lhe pare-

ceu ser a sua mãe. Grande espanto do negociante, que não pode duvidar de que assim fosse, ao ouvir a sua voz adorada

e ao sentir-se abraçado por sua velha mãe que chorava de a-

legria ao perguntar-lhe se não se achava ferido, acrescentan-do:

– Eu tinha-te visto. Tua mulher e os dois pequenos dormi-am já. Eu, porém, sentia um mal-estar, uma agitação extra-

ordinária que não conseguia explicar. De repente, vi apare-

cer diante de mim este caminho, exatamente o mesmo sítio com a ribanceira de um dos lados; vi a carroça voltar-se e

seres precipitado no campo. Chamavas por quem te acudisse

e parecias morrer!... Esta última circunstância não é, Deus louvado! exata; mas o resto é tal como vi. Por fim experi-

mentei um desejo irresistível de vir aqui, e sem acordar pes-

soa alguma, e reagindo contra o medo que me causava a so-lidão, a treva e a tempestade, vim até aqui, depois de cami-

nhar quatro quilômetros; e teria andado mil para vir eu teu socorro.”

O redator do Messaggiero, que publicou esta exposição, ter-mina dizendo:

“Tal é o fato exato que recolhi dos lábios ainda trêmulos

de comoção dessa boa gente.”

Em seguida a essa notícia, publicada no Messaggiero, foi fei-to um inquérito pelo professor A. Francísci, no qual pedi para

submeter os heróis desta aventura a pequeno questionário desti-nado a esclarecer certos pontos que a notícia do jornal deixara na

sombra.

Eis as perguntas, como as respostas que lhe foram feitas:

“1º – Foi o primeiro acidente em viagem que sucedeu a L.

Tonélli, sobretudo nestes últimos tempos?

Resposta – Sim.

2º – O local chamado “Coste di Borgo” é o único ponto

perigoso da estrada? É pelo menos o mais perigoso de to-dos? Nas estradas que o Sr. Tonélli percorre geralmente, no

regresso dos mercados, há outros sítios igualmente perigo-

sos?

Resposta – Nessa estrada há outros sítios bem mais peri-

gosos, assim como em outros caminhos que o Sr. Tonélli percorre habitualmente.

3º – Quando a Sra. Maria Tonélli começou a sentir-se in-quieta, tinha já passado a hora costumada do regresso de seu

filho? Tinha, pelo menos, passado, quando ela se decidiu a

dirigir-se ao local?

Resposta – A hora habitual tinha passado havia pouco.

4º – A inquietação da mãe e a visão do acidente não se produziram quando Tonélli tinha já sido projetado fora do

carro?

Resposta – A inquietação da mãe precedeu de algumas ho-

ras a visão do acidente, sucedendo-se este três quartos de ho-ra depois da visão, de maneira que deu tempo a que ela per-

corresse a pé os quatro quilômetros que separam a casa deles

do sìtio conhecido por “Coste di Borgo”.

5º – Recorda-se Tonélli de ter pensado em sua mãe no

momento do acidente?

Resposta – Ele garante que pensou nela com grande enter-necimento, assim como em todos os membros da família;

mas principalmente em sua mãe.

6º – Nenhum outro fato anormal sucedera à Sra. Tonélli

ou a seu filho?

Resposta – Não.”

Esta confrontação, feita pelo professor Francísci, estabelece, fora de qualquer suspeita, a autenticidade do ocorrido,

94 que se

aproxima muito daquele que há pouco acabamos de relatar. Essa

visão de acidente antes de ele se ter dado é uma visão do espírito

da mãe. O que acima relatamos, da criança vendo o seu caixão, é uma espécie de pressentimento pessoal.

Recordei anteriormente (cap. IV) o pressentimento do astrô-

nomo Delaunays, que foi diretor do Observatório de Paris numa

interinidade (1870-1872), e que morreu afogado na baía de Cherburgo, aonde fora contra a sua vontade, e fiz seguir esta

recordação da da irmã de Arsênio Houssaye, arrebatada por uma

vaga na margem de Penmarch’h.

Eis um caso da mesma ordem, ainda mais significativo e mais

notável como precisão. O Barão José Kronhelm, de Podólia

(Rússia), redigiu a seguinte narrativa sobre a morte de um alto

funcionário do Ministério da Marinha russa, caso sucedido no mês de junho de 1855, em seguida à colisão entre dois navios, no

Mar Negro:

“No começo do ano de 1855 a Sra. Lukawski foi desper-

tada uma noite pelos gemidos que seu marido soltava en-quanto dormia, gritando conjuntamente: “Socorro! Acudam-

me!”, debatendo-se ao mesmo tempo com os movimentos de

uma pessoa que está prestes a afogar-se. Ele sonhava com terrível catástrofe no mar e, despertando, contou que se jul-

gara a bordo de grande vapor que rapidamente se afundara,

em seguida a ter abalroado com outro. Lançara-se ao mar, sendo engolido pelas ondas.

Depois de contar o sonho que tivera, exclamou:

– Estou agora convencido de que morrerei tragado pelo

mar.

E tal foi a sua convicção que começou imediatamente a pôr os seus negócios em ordem, como homem consciente de

ter os seus dias contados. Tinham-se passado dois meses e a impressão do sonho começava a dissipar-se, quando recebeu

uma ordem do Ministério para partir com todos os seus su-

bordinados para um porto do Mar Negro. No momento de despedir-se de sua mulher, na estação de Petrogrado, Lu-

kawski disse-lhe:

– Lembras-te do meu sonho?

– Por que mo perguntas?

– É porque tenho a certeza de que não voltarei mais e de

que nunca mais nos veremos.

A Sra. Lukawski esforçou-se por tranqüilizá-lo, mas ele,

com acentuação de profunda tristeza, acrescentou:

– Podes dizer o que quiseres; a minha convicção não mu-

dará. Sinto que o meu fim está próximo e que nada poderá impedir que isso suceda... sim. Eu vejo o porto, o navio, o

momento da colisão, o pânico a bordo... a minha morte...

Tudo surge aos meus olhos...

E, depois de curta pausa, ajuntou:

– Quando receberes o telegrama com a notícia da minha morte e tiveres de tomar luto, peço-te não pores sobre o ros-

to o véu comprido, que detesto.

Sem poder responder, a Sra. Lukawski desatou a chorar. O

silvo da locomotiva anunciou o sinal da partida. Lukawski abraçou ternamente sua mulher, enquanto o comboio se pu-

nha em movimento.

Depois de duas semanas de extrema inquietação, a Sra. Lukawski soube, pelos jornais, que uma catástrofe entre dois

vapores, o “Wladimir” e o “Sireus”, acabava de dar-se no Mar Negro. Cheia de inquietação, enviou um telegrama ao

Almirante Zelenoi, em Odessa, pedindo notícias. A resposta

não se fez esperar. “Não temos até agora nenhuma informa-ção de seu marido, mas não há dúvida de que ele se encon-

trava a bordo do “Wladimir”. A notìcia da sua morte veio uma semana depois.

É preciso acrescentar que, no sonho, Lukawski tinha-se visto a lutar, para salvar-se, com outro passageiro, incidente

que se realizou com escrupulosa exatidão. Ao dar-se a catás-trofe, um passageiro do “Wladimir”, o Sr. Henicke, havia-se

lançado ao mar com uma bóia de salvação. Lukawski, que já

se debatia no mar, ao ver a bóia de salvação, dirigiu-se para o sítio onde se encontrava o passageiro, que lhe gritou:

– Não se agarre, porque a bóia não pode com duas pesso-as. Afogar-nos-emos ambos!

Apesar do aviso, Lukawski agarrou-se à bóia, dizendo que não sabia nadar.

– Então fique com ela – exclamou Henicke –; eu sou bom nadador e sempre conseguirei salvar-me.

Nesse momento, uma onda separou-os. Henicke conseguiu salvar-se, enquanto se cumpria o destino de Lukawski.” (Li-

ght, 1899, pág. 45).

Citando esta narrativa, Ernesto Bozzano 95

faz notar que a convergência de circunstâncias, que não podem ser previstas, elimina totalmente a hipótese de coincidências fortuitas, e com-

para, a este propósito, outras teorias explicativas: a “reencarna-

cionista”, a “fatalista”, a “espìrita”.

Por agora, não nos ocupemos senão de fatos. Queremos sim-

plesmente convencer-nos da existência em nós de um elemento

psíquico dotado da faculdade supranormal de ver o futuro.

A questão é de averiguar que o futuro existe virtualmente nas

causas que o fazem agir e que pode, na realidade, ser visto exatamente em certas situações psicológicas.

Em todos os tempos se encontram esses exemplos da percep-

ção do futuro; mas nunca os interpretaram como mereciam nem

nunca viram neles a manifestação das faculdades internas da alma humana.

Eis um exemplo, pouco conhecido, do famoso Capitão Mon-

tluc, e que se pode ler no final do IV livro dos seus Comentários.

Sabe-se que ele recebeu o bastão do Marechal de França e ainda se não esqueceu que Henrique II ficou mortalmente ferido em

1559, num torneio contra Montgomery. Montluc conta assim a

sua visão:

“Na véspera do torneio, à noite, durante o meu primeiro

sono, sonhei que via o rei assentado no seu trono com o ros-to coberto de gotas de sangue e parecia-me que era assim

que pintaram Jesus-Cristo quando os judeus lhe puseram a

coroa de espinhos e que ele conservava as mãos erguidas. Olhei-o; via-lhe apenas a face e não podia descobrir o seu

sofrimento nem ver outra coisa mais do que sangue no rosto.

Parecia-me ouvir dizer a uns: “Ele está morto”; e a outros: “Ainda não morreu”. Via os médicos e os cirurgiões entra-

rem no quarto e dele saírem. E julgo que o meu sonho durou

muito tempo, porque ao despertar notei uma coisa em que nunca havia pensado e é que um homem pudesse chorar en-

quanto sonha, pois tinha a cara banhada de pranto e os olhos

teimavam em lacrimejar e assim longamente chorei. Minha mulher procurava confortar-me, mas nada conseguia afastar

a idéia da morte do soberano. Muitos dos que ainda vivem

sabem bem que o que relato não é uma história, pois logo que acordei lhes disse o que se passara comigo.

Quatro dias depois, um correio chegou a Nérac, trazendo uma carta do Condestável ao Rei de Navarra, na qual se da-

va parte do ferimento do Rei Henrique e da nenhuma espe-

rança de o salvar.”

O que nos pode, parece, chamar mais a atenção para o traba-lho que estamos a fazer aqui é que tudo isso tenha passado

despercebido desde há tantos séculos e haja sido mesmo negado,

desdenhado, ridiculizado e desprezado.

Encontrei uma curiosa carta, datada de 1615, de Nicólas Pas-

quier, dirigida a seu irmão, conselheiro do rei e almotacé da

cidade de Paris, respeitante à morte de seu pai, Estêvão Pasquier,

prevista por um sonho premonitório um ano antes, dia a dia. Eis o documento em questão:

96

“Recebi as suas cartas hoje, três de setembro de 1615, par-

ticipando-me a morte de nosso pai, sucedida no dia 30 de

agosto, pelas duas horas da madrugada. Quero contar-lhe

uma história extraordinária a esse propósito.

No ano passado, a 30 do mesmo mês de agosto e na mes-ma noite, cerca das 5 horas da manhã, sonhei que estava jun-

to de nosso pai, que se encontrava deitado na sua cama. Le-vantando-se, ajoelhou para fazer as suas orações e fê-lo com

grande recolhimento, as mãos postas e os olhos erguidos pa-

ra o céu. Logo que acabou de orar mudou de cor e caiu mor-to nos meus braços. Quando terminou o sonho, acordei, tre-

mendo como se tivesse frio, contando logo o que se passara

a minha mulher. E como tinha a memória fresca do que a-contecera, redigi tudo por escrito. Mas há mais: considere os

dois fatos sobre o caso que exponho: um de que eu vi a mor-

te de nosso pai um ano antes, dia a dia; e outro de que no próprio dia em que morreu, eu tinha encontrado o papel no

qual não havia mais pensado. Faça a anatomia deste sonho e

reconhecerá que tudo o que sucedeu com a sua morte fora por mim previsto; que ele não estaria doente por muito tem-

po, e a verdade é que não o esteve mais de dez horas; que

morreria como bom cristão e assim sucedeu; e que todos os sentidos se conservariam sãos e intactos até ao último suspi-

ro. Em conclusão, a sua morte foi o reflexo da sua vida, que

tão calma decorreu durante 86 anos, 2 meses e 23 dias; e, tal qual, a sua morte decorreu docemente, sem trabalhos nem

dor.”

Sim. Todos esses acontecimentos psíquicos são conhecidos desde há séculos. Os autores latinos contam-nos que o assassínio de Júlio César lhe havia sido anunciado de manhã por sua mu-

lher Calpúrnia; que Brútus viu a derrota da batalha de Filipos

predita pelo seu “gênio”, que Artérios Rúfus tinha visto em sonho, de manhã, o reciário que devia apunhalá-lo, etc.

97

Tudo isso, porém, conservou-se incompreendido. E a premo-

nição da morte de Henrique IV, contada pelo seu confidente

Sully? E tantos outros?

A Astronomia teve o seu Copérnico, o seu Képler, o seu

Newton. As ciências psíquicas não tiveram ainda senão o seu

Hiparco, o seu Ptolomeu, o seu Aristarco; elas esperam ainda o

seu Copérnico.

Basta ler-se para se encontrar um pouco por toda parte essas

observações que só agora tomamos a sério.

Um dos sábios mais profundos e mais originais do século

XVII, Pedro Gassêndi, amigo de Galileu e de Pereisch, dá parte

do seguinte sonho premonitório:

“Pereisch partiu um dia para Nimes com um amigo, um

certo Rainier. Este, durante a noite, notando que Pereisch fa-lava a dormir, acordou-o, perguntando-lhe o que tinha. Pe-

reisch respondeu:

– Sonhava que já tínhamos chegado a Nimes e que um ou-rives me oferecia uma medalha de Júlio César pelo preço de

quatro escudos. Ia justamente entregar-lhe o dinheiro, quan-do, a meu grande pesar, você me acordou.

Chegados a Nimes, e como dessem algumas voltas pela cidade, Pereisch reconheceu a loja do ourives que tinha visto

em sonho. Entrando, perguntou se não teria qualquer objeto

curioso para vender, ao que o ourives respondeu:

– Tenho, sim: uma medalha de Júlio César.

Como lhe perguntasse quanto custava, o ourives replicou:

– Quatro escudos.

Encantado por ver o seu sonho realizar-se, Pereisch apres-

sou-se a pagar os escudos pedidos.”

Aqui a realização da premonição parece ter sido determinada pela recordação da própria premonição, visto que Pereisch

reconheceu a loja do joalheiro que havia visto em sonho.

O Dr. E. Osty, de particular competência no estudo da luci-

dez, fez sobre esse assunto uma conferência documentada no Instituto Geral de Psicologia, no dia 24 de março de 1919. Da

sua conferência extrairei o relato seguinte:98

“Em 1912, um médium lúcido, que pela primeira vez uti-

lizei, descreveu assim a minha vida de então:

– ... O senhor residia numa pequena cidade no centro da França... eu vejo sua casa... de habitação, dando para uma

praçazinha... mas não é aí que estão as suas ocupações... O senhor dirigia-se para o seu trabalho numa casa onde tinha o

seu escritório... lá remexia em muitas folhas de papel... Em

quantas folhas o senhor tocava!... Trazem-vos outras mais de um gabinete ao lado do vosso, onde se encontram várias

pessoas a escrever... é uma perpétua ida e vinda entre o

compartimento onde estão e o vosso... O senhor, depois de olhar para as folhas que lhe trazem, torna-as a entregar... ou-

tras pessoas de fora vêm também trazer papéis... o senhor

toma-os, escreve neles e torna a entregá-los. Em quantas fo-lhas o senhor toca! Quanta papelada!...

Tudo isso era falso. A minha existência, então, limitava-se, em grande parte, à prática da medicina pura, e também

ao meu trabalho pessoal sobre Psicologia. Tudo isso se torna

verdadeiro a partir de agosto de 1914. Médico chefe do hos-pital em Vierson durante os dois primeiros anos de guerra, a

visão fragmentária do caso exposto transformou-se num as-

pecto, direi mesmo, no aspecto principal, característico de minha vida cotidiana. Eu fiquei submergido pela papelada

burocrática.”

Essa percepção do futuro apresentava-se tão clara e precisa como uma janela aberta sobre uma cena futura. É de notar que essas percepções individuais são bastante freqüentes, enquanto

os acontecimentos gerais, e, nomeadamente, a espantosa catás-

trofe social da guerra alemã de 1914 a 1918 não tivessem sido objeto de qualquer previsão característica desse gênero; do que

poderia inferir-se que se trata unicamente de sensações de alma

para alma.

O meu laborioso e muito saudoso amigo, o Dr. Moutin, que

fez, em minha casa, em 1889, notáveis experiências de magne-

tismo, das quais terei ocasião de falar mais adiante, ocupou-se,

em 1903, de estudos analíticos sobre o Espiritismo, entre os quais podemos notar o singular anúncio que segue:

Numa sessão que se realizou em 19 de agosto, da qual ele

guardou os respectivos autos conforme o seu excelente cos-

tume, um “espìrito” manifestou-se por meio de uma mesa, afirmando ser uma senhora de nome Hermância V., recen-

temente falecida. O doutor conhecia de longa data essa se-

nhora e o marido. A declaração seguinte da “Sra. Hermân-cia” deixou-o completamente espantado:

– Meu marido vai casar-se novamente em setembro pró-ximo. Antes do seu casamento, há de vir a Paris, mas não te-

rá tempo de o visitar.

– O que me diz é impossível. Conheço V. Sei bem a afei-ção que dedicava a sua mulher e não posso crer que se case

quatro meses depois do seu falecimento.

– No entanto é a pura verdade e dentro de alguns dias re-

ceberá a confirmação do que digo.

– É então o interesse que o guia e não a afeição?

– O interesse não entra neste assunto, mas, como sabe, Luciano (é o nome de batismo de V.) não pode viver sozi-

nho.

– Casar-se-á com uma senhora da idade dele?

– Não; com uma menina de vinte e três anos e pouco. De-pois do casamento deixará a Provença para vir para Paris.

– Como pode ser isso, com a posição que ele ocupa na Provença? É absolutamente inadmissível.

– Circunstâncias desastrosas e, sobretudo, uma grande perda de dinheiro, obrigá-lo-ão a vir para Paris, a fim de en-

contrar uma nova situação.

– Veremos se o seu vaticínio se realiza, o que duvido; a-

ceitando, porém, o que me acaba de dizer, veria com despra-zer essa união?

– Pelo contrário, visto que Luciano não pode viver só.

Findas estas palavras, a mesa ficou imóvel. Depois de al-

guns minutos de espera, perguntei se a comunicação havia terminado: sim, foi a resposta.

A Sra. V. nunca mais se apresentou e foi a única manifes-tação que nos deu.

No caso presente, notou Moutin, ninguém devia duvidar de tais revelações, nada podia fazer tomar a sério esta comu-

nicação. Apenas eu e as pessoas de minha família conhecía-mos a morta e estávamos bem longe de acreditar no que a-

cabava de ser-nos dito. As outras personalidades que assisti-

am às nossas reuniões nunca tinham ouvido pronunciar o nome de V.

Dias depois, a 27 de agosto, recebi uma carta do meu ami-go V., na qual me anunciava para o mês de setembro o seu

casamento com a Srta. X. e me dava alguns esclarecimentos

sobre a sua futura esposa – esclarecimentos que coincidiam exatamente com os que me tinham dito a 19 de agosto.

Em março de 1904 o Sr. V. veio ver-nos, informando-nos de que acabava de instalar-se em Paris; transmiti-lhe a co-

municação de Hermância e ele ficou por tal forma surpreen-

dido que, embora não duvidasse das nossas afirmações, quis conhecer a ata dessa reunião e pôde assim verificar que tudo

quanto tinha dito sua primeira esposa era de uma exatidão

rigorosa: – a sua viagem a Paris, antes de consorciar-se se-gunda vez, a sua mudança de situação. Ficou petrificado e

afirma a realidade dos fatos concludentes que não hesitamos

em oferecer como prova da conservação do eu depois da morte e ainda como prova patente da identidade da Sra.

Hermância V.

O Dr. Moutin apresenta este fato “como o mais importante” dos que influíram para a sua convicção espírita. Possuirá na verdade o valor categórico e absoluto que lhe atribui?

Está demonstrado que os nossos pensamentos podem agir,

quer consciente quer inconscientemente, para produzirem estes

ditados tiptológicos. O Dr. Moutin e sua família conheciam a Sra. Hermância V.; a idéia de que seu marido, ficando viúvo, se

tornasse a casar nada tem de extraordinário. Por outra parte, o

pensamento do viúvo pode não ter sido alheio à experiência, pois que já estava na intenção de voltar a casar-se e que assim o

anunciava aos seus amigos, oito dias decorridos desta sessão.

Não lhe ocuparia também o espírito nesse momento, o projeto de

trocar a província por Paris.

Parece-me que a identidade da morta não é de todo exata e

que a sua manifestação poderia ser determinada por outras

causas psíquicas. Julgo-a, no entanto, provável. Não é este o

lugar próprio para a discussão de tão importante problema e apenas assinalo tal fato como exemplo de anúncio preciso de um

acontecimento futuro.

Acrescentarei, porém, que tanto neste caso particular como

em outros análogos, a primeira esposa do amigo do Dr. Moutin poderia ter, mesmo enquanto viveu, a intuição desse segundo

consórcio, aprovando-o até, o que depõe a favor da identidade.

Voltaremos a este assunto no terceiro volume da presente obra, ao discutirmos as manifestações de mortos.

O afamado pároco d’Ars, o Padre Vianney (1786-1859), ofe-

receu muitos exemplos da sua faculdade de ver o futuro.

Eis um de tais exemplos, que eu reproduzo da sua biografia:99

“Sóror Maria Vitória, fundadora de um Recolhimento para

raparigas, estava em Ars, nos começos da sua obra, com mais duas companheiras, das quais uma é a sua atual assis-

tente. Certa manhã, quando as três se dispunham a ouvir a

missa do Rev. Vianney, antes de saírem de Ars, o pároco a-proximou-se delas e, dirigindo-se à sóror Maria Vitória, ain-

da secular, disse-lhe:

– É preciso partir imediatamente!

– Mas, Sr. pároco – respondeu ela, surpreendida – quería-mos, antes disso, ouvir a santa missa.

– Não, minha filha, partam sem tardança, porque uma de vós irá adoecer. Se se demoram, serão obrigadas a ficar aqui.

Com efeito, a uma curta distância da região que habita-vam, uma das três viajantes, a que deveria depois ser sóror

Maria Francisca, encontrou-se de tal maneira indisposta que as suas duas companheiras se viram forçadas a transportá-la

nos braços até à residência dela. Foi este o início da enfer-

midade que nada deixava prever.”

O padre Vianney era dotado de faculdades psíquicas trans-cendentes. Atribuía ao diabo certas manifestações de ordem

inferior, como os ruídos inexplicáveis; mas nada há menos demonstrado do que a existência de Satanás.

Esta premonição era útil. Na maior parte dos casos, as pre-

monições não servem para nada e nada evitam. Eis aqui uma, no

entanto, que salvou a vida de uma criança: a Sociedade Inglesa de Investigações Psíquicas relatou, entre outras, uma advertência

muito precisa de visão do futuro, salvando a vida de uma peque-

nita que ia brincar num sítio próximo do caminho de ferro de Edimburgo, onde a queda de uma locomotiva matou três homens

e teria esmagado também a criança. A propósito desse curioso

salvamento, a mãe escreve o seguinte:

“Tinha dito a minha filha que das três para as quatro horas

lhe concedia a liberdade de ir passear; e, como estava só, a-

conselhei-a a dirigir-se ao “jardim do caminho de ferro”

(nome que ela dava a uma estreita faixa de terreno entre o mar e a via-férrea). Poucos minutos depois da sua partida,

ouvi distintamente uma voz interior que me observada:

“Manda-a buscar sem demora, ou suceder-lhe-á alguma coi-sa terrìvel.”

Imaginei que se tratava de estranha auto-sugestão e a mim mesma perguntei o que, na realidade, poderia acontecer-lhe

num tão lindo dia e não a mandei procurar. Passado um

momento, contudo, a mesma voz recomeçou a falar-me com palavras idênticas, mas mais imperiosamente. Resisti ainda e

dei tratos à imaginação para adivinhar o que poderia ter a-

contecido à criança: pensei no encontro de um cão raivoso, mas isto era de tal modo improvável que seria absurdo cha-

má-la sob tal pretexto; e, se bem que principiasse a sentir-me

inquieta, decidi nada fazer, tentando pensar noutra coisa, o que consegui, durante instantes; mas, em breve, a voz reno-

vava a sua insinuação, em idênticos termos: “Manda buscá-la imediatamente ou suceder-lhe-á alguma coisa terrìvel.”

Ao mesmo tempo, fui assaltada por violenta tremura e por

uma impressão de intenso pavor. Levantei-me bruscamente, toquei a campainha e ordenei à criada que fosse procurar,

sem a menor delonga, a minha filha, repetindo automatica-

mente as palavras da insinuação: “doutra forma, suceder-

lhe-á alguma coisa terrìvel”.

Ao cabo de um quarto de hora, a serva aparecia com a cri-

ança que, desapontada por eu a mandar buscar tão depressa, me perguntou se eu pretendia retê-la em casa durante todo o

dia.

– Não – respondi – e se me prometes que não vais para o “jardim do caminho de ferro” podes ir para onde quiseres,

por exemplo, para a casa do teu tio, onde brincarás com os teus priminhos, no quintal.

Pensei que, entre essas quatro paredes, ela estaria em se-gurança; porque, embora minha filha tivesse regressado sã e

salva, eu sentia nitidamente que, no ponto em que permane-

cia anteriormente, o perigo continuava a existir e desejava impedir que para lá voltasse.

Ora, foi precisamente nessa altura que a locomotiva e o tênder descarrilaram, destruindo os parapeitos e indo despe-

daçar-se contra os próprios rochedos onde a pequenita cos-

tumava sentar-se.”

Esse salvamento extraordinário foi confirmado pelos depoi-mentos da família e dos vizinhos. Ocorreu no mês de julho de

1860 e publicou-se no Jornal da Sociedade de Investigações

Psíquicas (t. VIII, março de 1897). Também eu o publiquei na Revista, em maio de 1912. A sua exatidão é insofismável.

Acrescentar-lhe-ei, com Bozzano, uma premonição não me-

nos notável que salvou a vida de toda uma família e igualmente

produzida por via misteriosa. É reproduzida no Jornal da Socie-dade de Investigações Psíquicas (t. I, pág. 283). O Capitão Mac

Gowan narrou ao professor Barrett o seguinte fato ocorrido com

ele:

“Em janeiro de 1877, encontrando-me em Brooklyn, com

meus dois filhos ainda muito crianças, e que estavam em fé-

rias, prometi-lhes que em determinada noite os levaria ao te-

atro. Na véspera dessa noite fui escolher os três lugares e comprar os bilhetes.

Na manhã do dia fixado para irmos assistir ao espetáculo, comecei a ouvir uma voz interior que me dizia com insistên-

cia: “Não vás ao teatro; leva os teus filhos para o colégio.” Apesar dos esforços que empreguei para me distrair, não po-

dia impedir essa voz de continuar a repetir as mesmas frases,

num tom mais imperioso que anteriormente: a coisa chegou a tal ponto que, pelo meio-dia, decidi-me a informar tanto os

meus amigos como os meus filhos de que não devíamos ir

ao teatro. Os meus amigos admoestaram-me por essa deci-são, observando-me que era cruel privar as crianças de di-

versão tão nova para eles, e tão impacientemente esperada,

depois da promessa formal que lhes fizera: isto levou-me, ainda, a mudar de resolução.

Contudo, durante toda a tarde essa voz interior não deixou de repetir a ordem, com tão imperiosa insistência que, che-

gada a noite, e uma hora antes do princípio do espetáculo,

anunciei peremptoriamente a meus filhos que em vez de ir-mos ao teatro iríamos antes a Nova Iorque: e partimos.

Ora, sucedeu que, nessa mesma noite, o teatro foi inteira-mente destruído por um incêndio, morrendo queimadas pelas

chamas 305 pessoas.

Se eu tivesse ido ao espetáculo, nós e minha irmã, que fo-ra ao teatro, teríamos perecido, porque sairíamos por uma

escada em que foi esmagada toda a gente que por aí preten-deu salvar-se.

Jamais na minha vida tive outro pressentimento, não cos-tumo mudar de resolução sem razões sérias e nesta ocasião

fi-lo com a maior repugnância e absolutamente contra minha

vontade.

Qual foi, pois, a causa que me forçou, contra o meu pró-

prio desejo, a não ir ao teatro depois de ter pago os três bi-lhetes e na boa disposição de passar a noite agradavelmen-

te?”

O Capitão Mac Gowan explicou ao professor Barrett que a

voz interior 100

ressoava nitidamente para ele, “como se se tratas-se de alguém que efetivamente lhe falasse do interior de seu

próprio corpo” e que ela insistira nos seus avisos desde o mo-

mento do primeiro almoço até o instante em que partira para

Nova Iorque com seus filhos... Sua irmã conserva os três bilhetes adquiridos por ele no dia precedente ao do incêndio do teatro.

101

Todos esses fatos são de tal maneira convincentes e tão altamen-

te demonstrativos que se confirmam por completo uns com os outros, formando um bloco que nenhuma força vingará destruir.

Parece-me supérfluo juntar mais exemplos aos precedentes.

No entanto existem outros tão típicos que seria lamentável não

os recordar, para fixar inteiramente a sensação da verdade nos espíritos mais recalcitrantes. A nítida observação narrada pelo

rigoroso experimentador Liébault,102

na sua Terapêutica Sugesti-

va, é especialmente notável.

O sábio médico de Nancy conta que a 7 de janeiro de 1886,

pelas 4 horas da tarde (segundo o seu canhenho diário autêntico),

um dos seus clientes, o Sr. de Ch..., foi consultá-lo, num estado

de nervosismo bem compreensível. Vejamos a história:

“Seis anos antes, a 26 de dezembro de 1879, passeando

numa rua, esse moço vira escritas numa porta estas palavras:

“Sra. Lenormand, nigromante”. Espicaçado pela curiosida-

de, entrara.

Examinando-lhe a mão, a profetisa dissera-lhe:

– Dentro de um ano, contado dia a dia, perderá seu pai. Em breve será soldado (tinha então dezenove anos); não se

conservará durante muito tempo nas fileiras. Casará novo. Do seu casamento nascerão dois filhos. Morrerá aos vinte e

seis anos.

Esta profecia assombrosa, que o Sr. de Ch... confiou a al-guns amigos e a várias pessoas de sua família, não foi por

ele tomada a sério a princípio; mas, seu pai morria a 27 de dezembro de 1880, ao cabo de curta enfermidade – justa-

mente um ano depois da entrevista com a nigromante – e es-

sa desgraça arrefeceu um pouco a sua incredulidade. Quando chamado à vida militar, passados sete meses somente, e

quando, casado pouco tempo depois, foi pai de dois filhos, próximo a atingir os seus vinte e seis anos, sentiu-se abalado

definitivamente pelo medo, julgando que poucos dias de vi-

da lhe restavam. Foi então consultar o Dr. Liébault, interro-

gando-o se não seria possível conjurar a sorte, porque, pen-sava ele, tendo-se realizado os quatro primeiros aconteci-

mentos anunciados pela predição, o quinto devia fatalmente

realizar-se também.

Nesse mesmo dia e nos seguintes – diz o médico – tentei

mergulhar o Sr. de Ch... num sono profundo, com o fim de dissipar a negra obsessão do seu espírito: a da sua morte

próxima, que ele julgava dever dar-se a 4 de fevereiro, dia

do aniversário do seu nascimento, embora a nigromante na-da houvesse precisado acerca deste assunto. Estava por tal

forma agitado que me foi impossível produzir-lhe a mais li-

geira sonolência. Entretanto, como urgia seqüestrá-lo à in-fluência da sua convicção, pois tem-se visto realizarem-se

inteiramente certas predições por auto-sugestão, propus-lhe

que fôssemos consultar um dos meus sonâmbulos, um velho chamado o Profeta, por ter anunciado a época exata da sua

cura do reumatismo que havia quatro anos o torturava, e

também a época da cura de sua filha.

O Sr. de Ch... aceitou avidamente a minha proposta e não

faltou à consulta. Posto em relações com o sonâmbulo, as suas primeiras palavras foram estas:

– Quando morrerei?

O sonâmbulo, previamente avisado e avaliando a pertur-

bação desse moço, respondeu-lhe, depois de o ter feito espe-rar:

– Morrera... morrerá, dentro de quarenta e um anos.

O efeito causado por estas palavras foi maravilhoso. O

consultante tornou-se imediatamente alegre, expansivo e cheio de esperança, e quando passou o dia 4 de fevereiro,

por ele tão temido, julgou-se salvo.

Já não pensava em nada disso, quando, em princípios de outubro, recebi uma carta tarjada de preto, comunicando-me que o meu infeliz cliente acabava de sucumbir, a 30 de se-

tembro de 1886, aos vinte e sete anos incompletos de idade,

como lho havia profetizado a Sra. Lenormand. E para que se

não suponha que houve aqui qualquer erro da minha parte,

conservo tanto essa carta como as anotações: são dois teste-munhos escritos e inegáveis.”

Tal é a narrativa do Dr. Liébault, cujos trabalhos são conhe-cidos. Analisem, dissequem esta série de fatos consecutivos, com

todo o cepticismo imaginável, com o mais severo rigor cirúrgico, e então, mesmo que se pense que nada de surpreendente existe

no fato de a nigromante haver anunciado a este rapaz de dezeno-

ve anos que seria soldado, que em seguida se casaria, restarão ainda, para justificar, quatro coincidências: 1ª- a morte de seu

pai, no espaço de um ano contado dia a dia; 2ª- a sua baixa do

serviço militar, antes de terminado o tempo habitual; 3ª- o nas-cimento de dois filhos; 4ª- a sua própria morte, na idade de vinte

e sete anos incompletos. Julgo que bastaria unicamente esta

narrativa para estabelecer a nossa convicção. E bastaria a mesma narrativa também para nos mostrar que é imprudente apoiarmo-

nos nessas questões, mesmo que se não creia nelas, atendendo a

que a nossa tranqüilidade sofre inevitavelmente e que é desne-cessário criarmo-nos inquietações.

Mas, poderemos dominar-nos sempre? Devemos confessar

que todo esse estudo das condições da morte é eriçado de pontos

de interrogação.

O seguinte fato é um dos mais bizarros. Como explicá-lo

também?

Na noite de 24 para 25 de maio de 1900, o Sr. Renou, de

vinte e oito anos de idade, vivendo numa grande cidade do

norte da França, sonhou que, estando em casa do seu cabe-leireiro, a mulher deste lhe deitava cartas (digamos, de pas-

sagem, que a personagem mencionada nunca dera provas de

possuir esse dom). Nessa ocasião, ela dizia-lhe textualmente: “Seu pai morrerá a 2 de junho.”

A 25 de maio, pela manhã, o Sr. Renou contou esse sonho a sua família. Vivia então com os seus, e todas essas pesso-

as, muito cépticas acerca de tal gênero de advertência, se ri-

ram, sem ligarem ao caso a menor importância.

O Sr. Renou, pai, tivera alguns acessos de asma, com lon-gos intervalos; mas nesse momento passava muito bem de

saúde. No dia 1º de junho, assistindo ao enterro de pessoa sua conhecida, contou o referido sonho a um amigo, conclu-

indo alegremente:

– Se hei de morrer amanhã, não tenho muito tempo a per-der.

O dia inteiro passou, sem que se sentisse indisposto. A noite, um dos seus filhos, soldado da guarnição de Verdun,

apareceu em casa, de licença. Toda a família reunida con-versou alegremente até altas horas.

Pelas onze e meia, o Sr. Renou, pai, deitou-se, bem dis-posto. À meia-noite assaltou-o bruscamente um ataque de

opressão: dispnéia intensa, tosse violenta, expectoração es-

pumosa e sanguinolenta. Correu-se à procura de um médico: era muito tarde, tudo havia acabado. Vinte minutos depois

da meia-noite – 2 de junho, conseqüentemente – ele morria.”

Esta narrativa, à qual apenas se modificou o nome, a pedido da família, foi publicada em Os Novos Horizontes da Ciência (Douai, junho de 1905). O Dr. Samas, que assinala o fato, procu-

ra-lhe uma explicação. Os cépticos resolverão facilmente o

assunto – diz ele –, objetando que não houve nisto mais do que simples coincidência: o Sr. Renou, cardíaco, e por conseqüência

impressionado pelo sonho; o regresso de seu filho, segunda

emoção; a sua imaginação, já sobreexcitada, determinam, por ação reflexa, a última crise. Mas vimos há pouco que nem ele

nem qualquer membro de sua família tinham ligado a menor

importância a esse sonho estranho. E sendo assim?...

Consideremos também este sonho premonitório de morte, ao

qual se associa uma aparição:

A 8 de março de 1913, recebi a importante narrativa seguinte

da Sra. Susana Bonnefoy, presidente da União das Mulheres de

França, Cruz Vermelha francesa, em Cherburgo, mulher do médico-chefe do Hospital Marítimo:

(CARTA 2.325)

“É necessário, meu caro mestre, que eu lhe conte um fato

de premonição pessoal, que deve juntar-se com utilidade à

lista dos seus documentos psíquicos.

No dia 18 de janeiro último, pelas 8 horas da manhã, a cri-

ada do Sr. Féron, advogado, rua Cristiana, e primeiro adjun-to da cidade de Cherburgo, veio anunciar-me a morte súbita

de seu amo, ocorrida dez horas antes. A afeição que me li-

gava ao Sr. Féron era mais a de irmã do que a de pessoa a-miga. Muito comovida, apressei-me a oferecer os meus ser-

viços à sua viúva. A Sra. Féron, casada havia vinte e oito

anos com um homem que por ela tinha constantemente as maiores atenções, estava consternada, desejava morrer.

– E pensar – exclamou ao ver-me – que há um mês ele di-zia continuamente que não chegaria ao fim de janeiro! Há

poucos dias foi ao enterro de um seu amigo e teve, na noite

seguinte, um sonho muito estranho, no qual este amigo lhe aparecera, dizendo-lhe: “Tal dia virás juntar-te comigo.”

Quando a Sra. Féron terminava esta narrativa, entre solu-ços, a Sra. Laflambe, que mora nesta cidade, na praça Napo-

leão, entrava em sua casa. A Sra. Féron ainda acrescentou:

– Meu marido tinha profetizado, em seguida aos seus so-nhos, não só a morte de sua mãe como ainda a do seu espo-

so, minha senhora. Quando partiram para Vichy (em 1911), onde o Sr. Laflambe quis que a senhora fosse tratar da saú-

de, meu marido disse-me: “O nosso amigo Laflambe vai a

Vichy por causa da saúde de sua mulher, mas não voltará.”

O Sr. Laflambe, muito bem disposto no momento da par-

tida, foi atacado, em Vichy, de uma congestão pulmonar mortal.

Ao regressar dessa visita que eu lhe conto muito simples-mente, deparou-se-me a criada e perguntei-lhe:

– É verdade ter o Sr. Féron estado ainda ontem de tarde na mairie, gozando boa saúde e não pensando em morrer tão

cedo?

– Oh! senhora – respondeu ela –, o Sr. Féron dizia-nos, pelo contrário, ter sonhado que não chegaria ao fim de janei-

ro e parecia muito impressionado por isso.

O Sr. Féron sentiu-se subitamente enfermo, ao passar na

rua, e sucumbiu meia hora depois, levado por uma embolia do coração. Muito estimado em Cherburgo, possuía bela for-

tuna, excelente saúde e tudo lhe sorria na vida.

Ontem, 5 de março, conversei de novo com a Sra. Féron, acerca desta singular premonição. Disse-me que seu marido

estava persuadido de ter vivido já uma outra existência dife-rente desta.

Susana Bonnefoy

Rua de la Palle, 13, Cherburgo.”

Encontrando-me em Cherburgo, em setembro de 1914, o Sr. e a Sra. de Bonnefoy confirmaram-me este caso tão curioso, e tive

dele, além disso, uma confirmação independente e espontânea

pelo Sr. Biard, diretor do Despertar da Mancha, a quem a morte súbita do adjunto do maire de Cherburgo impressionara e que

não ignorava as circunstâncias em que ocorrera.

Esses fatos existem. De nada serviria negá-los. Devem, pelo

contrário, servir para elucidar-nos.

Eis aqui um outro caso da mesma natureza:

O Sr. Hurlay, negociante em Pont-Audemar (Eure), escrevia-

me, a 13 de abril de 1918 (carta 4.024) que o Dr. Castara vira,

uma noite, um homem afastar os cortinados do seu leito e anun-

ciar-lhe: 1º- uma bela situação; e 2º- a sua morte aos quarenta anos; que, na data anunciada, reuniu os seus amigos a um grande

jantar, fazendo parte dos convivas seu avô e sua avó, felicitando-

se pela terminação do prazo do pesadelo, e que, à meia-noite, foi acometido por uma forte dor de dentes e caiu morto.

Ainda outro fato:

O naturalista bem conhecido, Edwin Reed, diretor do Museu

de História Natural da cidade de Conceição (Chile), gozava de excelente saúde ainda pouco tempo antes da sua morte. Dois

meses antes do seu falecimento, sonhou que, ao chegar ao fim de

uma avenida em que passeava, via um túmulo com uma cruz,

onde se lia a seguinte inscrição: “Reed, naturalista, 7 de novem-

bro de 1910”. O Sr. Reed contou, gracejando, esse sonho estra-nho a muitos amigos, em várias ocasiões. Pouco tempo depois a

Sra. de R., nora do Sr. Reed, que residia em Mendoza, sonhou,

uma noite, no momento em que se preparava para festejar o aniversário do seu casamento, que passaria no mesmo dia 7 de

novembro, que todos os presentes, que nessa data lhe ofereciam,

eram coroas funerárias...

Ora, o Sr. Reed faleceu a 7 de novembro de 1910. Nos dias

que precederam a sua morte, lembrava aos que o cercavam a data

anunciada, sem parecer ligar a isso a menor importância.103

Poderia mencionar numerosos casos análogos, probatórios

todos de que o futuro pode ser visto. Não é esse, porém, o intuito deste livro, e eu já lhes consagrei um volume especial que será

brevemente publicado. Os exemplos que se acabam de ler são

mais que suficientes para este capítulo, destinado simples e expressamente a assinalar, como os antecedentes, a existência de

faculdades da alma independentes do exercício dos sentidos

materiais. Não seriam mais nitidamente provadas tais faculdades se eu juntasse outros depoimentos aos que aí ficam.

* * *

Julgo que o leitor atento destas páginas não pode duvidar da

existência da alma e das suas faculdades puramente psíquicas.

Antes do conhecimento da telepatia, nos séculos passados,

essas espécies de advertências eram atribuídas aos anjos, aos

demônios e, há cinqüenta anos, aos espíritos desencarnados.

Hoje podemos pensar que há transmissão telepática de cérebro para cérebro, que as ondas cerebrais transpõem as distâncias. É

possível. Mas é possível também que a Ciência futura sorria das

nossas teorias atuais, como sorrimos das antigas. Seja qual for a explicação, os sonhos premonitórios, as visões do futuro por

processos diversos são autênticos; os inquéritos confirmam-nos e

é isto o que nos interessa.

Poderíamos, nesta exposição de observações relativas à vista

do futuro, falar das premonições, das previsões, das predições

calculadas pela Astrologia, por mais inexplicáveis que igualmen-

te sejam. Que o nosso destino possa ser lido nos astros, eis o que

parece inadmissível, e absolutamente ilógico para a nossa inteli-gência, depois que a aparência geocêntrica foi dada como falsa

pela Astronomia moderna. No entanto, há exemplos singulares

da realização dessas predições. Falta-nos o espaço para relatá-los. Todavia, citarei de passagem alguns de autenticidade incon-

testável e devidos a homens de alto valor, astrônomos célebres.

David Fabrícius, pastor protestante, nascido em Éssen, em

1564, falecido em Resterhaft, em 1617, astrônomo a quem se deve a descoberta de “Mira Céli”, a maravilhosa estrela variável

da constelação da Baleia, estava em relações científicas com

Tycho Brahé e Képler e, como eles, ocupava-se da Astrologia, em que de resto tinha fé. Ele mesmo calculava, em conformidade

com as constelações, que o sétimo dia do mês de maio de 1617

lhe seria fatal. Nesse dia tomou todas as precauções possíveis para evitar qualquer acidente. Finalmente, pelas 10 horas da

noite, depois de trabalhos absorventes, pensou que poderia ir

tomar ar, durante um momento, ao pátio do presbitério. Apenas aí chegou, um camponês chamado João Hayer, que se julgou

visado com o nome de ladrão num dos sermões de Fabrícius,

saiu de um ponto em que se havia emboscado e, com uma pan-cada de forcado, fraturou o crânio do pobre pastor, que expirou

nessa mesma noite.

Conta-se que o seu amigo Tycho Brahé leu, também, nos as-

tros que certo dia designado lhe seria funesto. Em vão se rodeou de todas as precauções; foi atacado, na sombra, por um seu

inimigo pessoal, Mauderup Parsberg, que lhe arrancou parte do

nariz, o que obrigou o ilustre astrônomo a trazer um nariz de prata. E, efetivamente, em todos os seus retratos, vemos o mes-

mo nariz listado por uma costura oblíqua.

João Stoeffler, nascido em 1472 e falecido em 1530, muito

dado aos cálculos astrológicos, adivinhou com exatidão, pelo menos no que lhe dizia respeito. O exame do ato do seu nasci-

mento levara-o à convicção de que morreria, em dia determina-do, do choque de um corpo pesado que devia cair-lhe à cabeça.

Nesse dia não saiu. Recebeu alguns amigos e pensava que o resto

do tempo se passaria sem novidade, quando, pretendendo chegar

a um livro mal colocado na prateleira de uma estante que não

estava segura, essa mesma estante lhe caiu na cabeça com todos os volumes que a sobrecarregavam, e morreu, na realidade, das

conseqüências de tal desastre.

Bastam esses três exemplos para assinalar aqui as numerosas

coincidências que não podem ser devidas ao acaso. Os astros nada têm que ver, em si próprios, nessas interpretações, assim

como as cartas entre as mãos dos cartomantes. Fabrícius, Tycho

Brahé, Stoeffler, ao fazerem essas profecias, eram influenciados por uma faculdade de intuição secreta supranormal.

Sucede o mesmo com a intuição da sobrinha do Príncipe de

Radziwill, relatada pelo redator dos Souvenirs da Marquesa de

Crequi (1834):

“O Prìncipe de Radziwill havia adotado uma das suas so-

brinhas, órfã. Vivia em um solar, na Galícia, e nele havia

grande sala que separava os compartimentos habitados pelo

príncipe dos das crianças, de sorte que, para poderem comu-nicar uns com os outros, tinham de atravessar o salão aludi-

do ou fazer caminho pelo pátio.

A jovem Inês, de cinco a seis anos de idade, soltava gritos lancinantes sempre que a obrigavam a passar pela sala men-

cionada. Apontava, com expressão de terror, enorme quadro suspenso por cima da porta e que representava a sibila de

Cumas. Tentaram, durante muito tempo, vencer essa repug-

nância, que se atribuía a qualquer obstinação infantil, mas como de tal violência resultassem sérias perturbações, ter-

minaram por permitir que a criança não entrasse na sala e e-

la, durante dez ou doze anos, atravessou, de boa vontade, ao frio e à neve, o vasto pátio ou os jardins, de preferência a

passar pela porta que lhe provocava impressão intensamente

desagradável.

A jovem condessa, já noiva, atingira a idade em que devia consorciar-se; houve, certo dia, recepção no solar. As visitas

quiseram, durante a noite, entregar-se a quaisquer distrações

e foram para o grande salão onde, de resto, o baile de núp-

cias se devia realizar. Animada pela juventude que a rodea-

va, Inês não hesitou em seguir os convidados; mas, mal ti-

nha chegado ao limiar da porta referida, quis recuar, confes-sando o seu terror. Segundo o costume, fizeram-na passar

em primeiro lugar, e o seu noivo, os seus amigos, seu tio,

rindo-se da sua infantilidade, fecharam a porta atrás dela. A pobre menina tentou resistir e, ao agitar um batente da porta,

fez cair o quadro. Essa massa enorme fendeu-lhe o crânio

com um dos seus ângulos, matando-a instantaneamente.” 104

Interrompo tais exemplos, porque este volume deve ter fim, pedindo mesmo desculpa de, um pouco apaixonadamente, os

haver multiplicado, estando os meus leitores decerto convenci-

dos.

Conclusão: o futuro pode ser visto.

No estado atual dos conhecimentos humanos seria inútil pre-

tender explicar como esta visão se opera em nosso espírito,

assim como as sensações que com isso se relacionam. Pensar-se-

á que o subconsciente, o ser psíquico, no exercício das suas faculdades supranormais, tais como certas formas de clarividên-

cia e, especialmente, a presciência, se liberta das limitações do

espaço e do tempo, isto é, das leis que regem o nosso mundo material. É assim que as coisas futuras lhe aparecem como

estando no mesmo plano das coisas presentes e passadas. Tira o

seu poder de leis ainda desconhecidas. E o fato, por mais inex-plicável que seja, nada tem de inadmissível, se este ser ou orga-

nismo psíquico constitui a personalidade total e permanente do

ser humano – personalidade que se alimenta das mais variadas e misteriosas fontes. Não haveria, pois, nesta ordem de idéias, a

menor temeridade em supor que, sob certas condições favoreci-

das pelo sono, a hipnose ou estas e aquelas predisposições pes-soais, influências dimanadas do mundo ignorado podem invadir

o subconsciente e inspirar-lhe os conhecimentos que revela na

descoberta de acontecimentos passados, presentes e, sobretudo, vindouros. Tanto durante a vida como depois da morte, a alma

está mergulhada na atmosfera etérea de um mundo invisível.

O exame rigoroso dos fatos, a lógica mais cerrada, levam-nos

à conclusão de que é impossível atribuir à matéria, ao cérebro, às

moléculas cerebrais, a quaisquer combinações químicas ou

mecânicas, a faculdade intelectual de ver sem os olhos, de pres-

sentir os acontecimentos futuros, de saber o que se passa ao longe ou o que sucederá no porvir, fatos exteriores ao organismo

corpóreo ou à ordem essencialmente mental. Estas observações

provam a existência do espírito, dotado de faculdades intrínsecas independentes dos sentidos físicos.

Durante a existência terrestre, a alma está associada a um cé-

rebro apropriado às suas funções. Mens sana in corpore sano.

Se a alma não é uma produção do cérebro, se se distingue do

sistema nervoso cérebro-espinal, se existe por si mesma, não há razão alguma para que se desagregue com ele.

Determinados fenômenos, tais como as leituras de textos des-

conhecidos, comprovam a existência de um espírito dotado de

faculdades especiais. Esse espírito pode ser o nosso e não está provado que haja nisso intervenção de espíritos alheios aos dos

indivíduos que realizam as experiências. Todavia, a hipótese

mantém-se. Porque, se o espírito sobrevive ao túmulo, existe ainda em qualquer parte, e se o nosso espírito pode descobrir

uma coisa escondida durante a nossa existência, por que perderá

tal poder depois da morte?

É precisamente por atribuirmos à ação do nosso espírito a

produção desses fenômenos que devemos aceitar também a

possibilidade de sua ação ulterior e comparar as duas hipóteses,

para apreciar qual é a mais simples. Ora, a circunstância dessas leituras, dessas adivinhações, dessas previsões, dessas ações

psíquicas, dessas comunicações espíritas se realizarem sem que

duvidemos delas, em plena inconsciência da nossa parte, põe perante nós uma complicação tão grande como a hipótese de

espíritos exteriores ao nosso.

Parece, na verdade, que se encontram em jogo estes dois ele-

mentos: as nossas próprias faculdades metafísicas e por vezes a ação de espíritos invisíveis. Não sejamos exclusivos.

Vogamos em pleno mistério, e esse mistério impõe-se à nossa

sede de saber.

Admitir apenas os fatos explicáveis, no estado atual da Ciên-

cia, é um grande erro. A impossibilidade de se poder explicar

uma observação nada prova contra a sua autenticidade. Os sábios

deviam ter sempre presentes os seguintes reparos de Arago, a

propósito da história dos aerólitos:

“Os chineses acreditavam que as aparições dos aerólitos

andavam ligadas aos acontecimentos contemporâneos, e eis

por que eles os catalogavam. Não sei, de resto, se teremos o

direito de nos rirmos de tal preconceito. Eram, porventura, mais sensatos os sábios da Europa, quando, recusando-se à

evidência dos fatos, afirmavam que eram impossíveis as

quedas de pedras vindas da atmosfera? Não declarou a Aca-demia de Ciências, em 1769, que a pedra apanhada no mo-

mento em que caiu próximo de Lucé, por muitas pessoas que

a haviam seguido com os olhos, até ao instante em que tocou o solo, não tinha caído do céu? Finalmente, a ata da sessão

da Municipalidade de Julliac, declarando que, a 24 de julho

de 1790, caiu nos campos, nos telhados das casas, nas ruas da aldeia, uma grande quantidade de pedras, não foi tratada

na imprensa da época de conto ridículo feito para excitar a

comiseração, não somente dos sábios, mas de todas as pes-soas razoáveis?

Os físicos não querem admitir senão apenas fatos de que entrevejam uma explicação mais prejudicial, certamente, ao

progresso das ciências do que a dos homens a quem se pode

censurar uma credulidade demasiada.”

Quantas vezes não tenho eu repetido que se labora em com-pleto erro ao julgar-se que não deve ser admitido um fato que se

não possa explicar! Compreender ou não um fenômeno nada

prova contra a sua existência. Isto mesmo já Cícero o dizia.105

Um fato incompreensível nem por isso deixa de ser um fato;

mas uma explicação compreensível não é uma explicação. As

faculdades mentais que acabamos de ver em laboração provam

que existe no ser humano um elemento psíquico diferente do organismo físico, vendo através do tempo e do espaço, penetran-

do o invisível; e para o qual tanto o futuro como o passado

podem ser o presente.

Estudamos aqui o mundo da alma que não é lícito desconhe-

cer.

Para resolver o mistério da morte, para estabelecer a sobrevi-

vência da alma, é preciso convencermo-nos primeiramente de que a alma existe, individualmente, existência demonstrada por

faculdades especiais, extracorpóreas, que não podem ser assimi-

ladas a propriedades do cérebro material, a reações químicas ou mecânicas; faculdades essencialmente espirituais, como a vonta-

de atuando sem a palavra, a auto-sugestão produzindo efeitos

físicos, os pressentimentos, a telepatia, as transmissões intelectu-ais, a leitura num livro fechado, a vista pelo espírito de uma

região longínqua, uma cena ou uma ocorrência futura, todos os

fenômenos fora da esfera de ação do nosso organismo fisiológi-co, sem medida comum com as nossas sensações orgânicas e

provando que a alma é uma substância que existe por si mesma.

Espero que esta demonstração fique rigorosamente feita.

As observações psíquicas provam que o Universo não se limi-

ta às coisas que os cinco ou seis sentidos derivados da nossa hereditariedade animal atingem. Existem outras ordens na Cria-

ção.

Estando estabelecida a existência pessoal da nossa entidade

espiritual, iremos estudar agora, com idêntico método experi-mental, os fenômenos associados à própria morte, as manifesta-

ções de moribundos, as aparições de vivos ou mortos, a constitu-

ição do ser psíquico, as casas endemoninhadas, as comunicações de finados, as provas de sobrevivência do átomo psíquico, o

corpo etéreo. Tudo o que precede pertence à vida.

Chegamos, neste ponto, ao que respeita à morte e ao que se

prolonga para além da derradeira hora corpórea.

Esta síntese espiritualista nova encontra-se assim dividida em

três partes, sucedendo-se logicamente:

I – Antes da morte: Provas da existência da alma;

II – Durante a morte: As manifestações e aparições de mo-ribundos; – Os duplos; – Fenômenos do Ocultismo;

III – Depois da morte: As manifestações e aparições de fi-nados; – A alma em seguida à morte.

A segunda e a terceira partes estão concluídas, como esta, e serão publicadas consecutivamente. O único fim deste trabalho, a

única ambição do autor é que este conjunto facilite, tanto quanto possível, no atual estado da ciência positiva, a satisfação deseja-

da por tantas aspirações legítimas para o conhecimento da Ver-

dade.

Este primeiro volume de uma obra muito complexa prova a

existência da alma humana, independente do organismo corpó-

reo. É este, segundo creio, um fato adquirido da mais alta impor-

tância para toda a doutrina filosófica.

– Fim do Primeiro Volume –

Notas:

1 Lúmen – obra editada em português sob o título Narrações

do Infinito, pela editora FEB. 2 Apesar de um distinto escritor, o filósofo André Pezzâni,

declarando-se meu discípulo, haver publicado desde 1865: A

Pluralidade da Existência da Alma conforme a doutrina da Pluralidade dos Mundos. 3 As cartas aqui reproduzidas são guardadas no dossier do

meu inquérito sobre os fenômenos psíquicos, que abri em 1889

(v. O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, capítulo III).

Pode-se sempre recorrer aos originais. 4 Faleceu em 2 de junho de 1881.

5 Littré – A ciência sob o ponto de vista filosófico (Paris,

1873, pág. 306); A filosofia positiva, 23 de março de 1860. 6 Conheci outrora um naturalista modesto, engenhoso, obser-

vador do mais alto valor pessoal, que estudou diretamente, com

seus olhos, a vida dos insetos e descobriu maravilhas. Chama-va-se Henri Fabre e morava em Serignan (Vaucluse). Foi só

após cinqüenta ou sessenta anos de trabalhos ininterruptos que

ele viu a sua reputação ultrapassar o seu departamento. Toda gente leu já (sobretudo depois da sua morte) os dez volumes

dos seus Souvenirs entomologiques, e não creio que qualquer

leitor possa recusar-se a ver aí a manifestação constante do espírito na natureza – em cada inseto – em cada molécula viva

mesmo. Lembremos, como exemplo, o Sphex, inseto himenóp-

tero que cava na areia das tocas várias celas, põe um ovo em cada uma e, depois de haver depositado aí uma vítima que aca-

ba de ser paralisada, e não morta, para servir de alimentação

fresca à larva logo ao nascer; a vítima deve ficar viva, mas inerte, tanto quanto durar o festim larvário, pois as pequenas

larvas não apreciariam a carne podre. Tudo é previsto para a

sua querida existência pela mãe que não as conhecerá e que nada saberá delas. Toda a vida dos insetos está cheia desses

instintos de previdência.

Ver também, nos meus Contos filosóficos, o capítulo intitu-lado “O ouvido”, e nas Contemplações científicas (pág. 18) a

“Inteligência das plantas”. 7 V. “Consciências Fé e Vida”, no Materialismo atual. (Paris,

1913). 8 Correspondência de Renan a Berthelot (Paris, 1898), publi-

cada por Berthelot. 9 Foi este o título que dei, em 1865, à notícia científica publi-

cada no Anuário do Cosmos para 1866. A cegueira era, então, singular; mas os progressos da Ciência não fizeram senão con-

firmar esta idéia dos antigos alquimistas. A estrutura do átomo,

composta de turbilhões elétricos, mostra-nos mesmo hoje que a matéria se esvai, na noção moderna da energia. Os átomos são

centros de força. 10

O maior dos fisiologistas, Claude Bernard, que passou a vida a investigar as funções do cérebro, concluiu que “o meca-

nismo do pensamento nos é desconhecido”. A Ciência Experi-mental, pág. 371. 11

Do Inconsciente ao Consciente, pág. 33. 12

Achar-se-á a sua discussão geral na minha obra Filosofia Astronômica, no capìtulo sobre o “Mundo exterior e a percep-

ção humana” (obra que estou redigindo).

13

Obra publicada em português sob o título Narrações do Infinito, pela editora FEB. 14

Savants et écrivains, pág. 199. 15

Também eu mantinha relações com ele: os astrônomos gos-

tam de observar tudo, mesmo em política. 16

Repito aqui o que já disse no capítulo I: os números indi-

cando as cartas são aqueles pelos quais foram reunidas no meu inquérito começado em 1889 sobre os fenômenos psíquicos, e

podem servir, se for preciso, para recorrer aos originais e veri-

ficar as narrações. Acrescentarei que, entre as numerosas cartas que me foram endereçadas para instruir-me quanto à realidade

desses fatos inexplicáveis, algumas individualidades declaram

que só mos fazem conhecer pessoalmente sob a condição de tais cartas não serem publicadas (exemplo: a carta 419). 17

Vide notas às págs. 22 e 90. 18

Myers – A Personalidade Humana (Londres, 1903), tomo

II, pág. 112. 19

Képler – Opera omnia, tomo III, pág. 304, ed. Frisch; ver

os meus Estudos sobre a Astronomia, tomo I, 1867, pág. 117. 20

Schumann, sua vida e obras, por Louis Schneider e Marcel

Mareschal. 21

Encontram-se em toda parte, até nos escritos de Daniel de

Foë, autor de Robinson Crusoé, sobretudo na história de um incêndio pressentido por uma senhora sua amiga, em Londres,

e contada na Visão do mundo angélico, caso análogo ao da

princesa de Conti salvando seus filhos. 22

Anais das Ciências Psíquicas, 1898, pág. 197. 23

Premonições – Veremos outras no capìtulo XI: “O conhe-cimento do futuro”. 24

Podem-se ler estas particularidades, assim como muitas outras experiências, na obra do Dr. Ochorowicz, A Sugestão

Mental (Paris, 1887). V. também Jules Liegeois, Da Sugestão e do Sonambulismo (Paris, 1887); Pierre Janet, O Automatismo

Psicológico (Paris, 1903); Dr. Jovie, Annales des Sciences

Psychiques, 1897. 25

Dr. J. Kerner – “Franz Anton Mesmer (Francfort, 1856),

citado por J. Ochorowicz em A Sugestão Mental, pág. 402. 26

Van Helmont – Opera omnia (Francfort, 1682), pág. 731.

Ochorowicz, A Sugestão Mental, pág. 405. 27

As forças naturais desconhecidas, ed. de 1865, pág. 135;

ed. de 1907, pág. 11. 28

É a velocidade da luz. 29

Do Sono, dos Sonhos e do Sonambulismo (Lião e Paris, 1857), pág. 185. 30

V. A extática de Kaltern e os estigmatizados, pelo abade Nicólas, de Cagnes, testemunha ocular (Lião, 1843). 31

Visões de Ana Catarina Emerich sobre a Vida de N. S. Je-sus-Cristo e da Santíssima Virgem Maria, coordenados pelo R.

P. Fr. José-Alvaro Duloy, Paris, 1885 (3 volumes). V. também A dolorosa Paixão de N. S. Jesus-Cristo, segundo as medita-

ções da irmã Emerich, por Brentano, Paris, 1835, e a Nova

Biografia geral de Hoefer, tomo XV. 32

Entre outros, a estigmatizada de S. Francisco, em 1873, e os

casos estudados nos Anais das Ciências Psíquicas, de 1898, pág. 117. 33

Vitória Clara, de Coux (Ardèche). As cinco chagas san-grentas, de 1848 a 1880; Anais das Ciências Psíquicas de

1903. 34

Aparição tão suspeita nos seus pormenores como no seu princípio; palavras estupendas: “Sou a Imaculada Conceição...

Ide lavar-vos e comei erva”. E esta atitude: a Virgem Maria, tendo um rosário na mão: “Salve, Maria, cheia de graça...” E a

sua recomendação: “Fazei-me o favor de vir aqui durante quin-

ze dias!” E esta outra: “Desejo ver gente”, etc.

Na história de Lourdes houve, na sua origem, a presença repentina de uma bela dama na gruta, surpreendendo a imagi-

nação da criança estupefata e provocando nela, em seguida,

alucinações consecutivas à convicção de ter visto a Santa Vir-

gem. Parece ser esta a explicação do tal acontecimento. 35

Alucinações telepáticas, caso IX, pág. 48. 36

Alucinações telepáticas (LXXXIX, pág. 266). 37

Em O Desconhecido, As forças naturais desconhecidas, Lúmen, Urânia, Estela, O fim do mundo, etc. 38

Que casou, depois, com o astrônomo inglês Isaac Roberts. 39

Alucinações telepáticas, pág. 365. 40

Idem, pág. 363. 41

La Chance ou la Destinée, pág. 589. 42

Anais das Ciências Psíquicas de 1918; A. Primot – A Psi-

cologia de uma Conversão, pág. 504. 43

Que exibi em Paris, em 1880, e cuja reputação se espalhou

por todo o mundo. 44

Publiquei-a nos Anais das Ciências Psíquicas de outubro de

1910. 45

Comparar com uma comunicação análoga entre meu pai e

minha mãe – O Desconhecido, pág. 513. 46

Tradução de Rochas, Paris, 1900, pág. 179. 47

Sage – A zona fronteira. Chevreuil, Não se morre, pág. 45. 48

Alucinações telepáticas, pág. 306. 49

Primot – Psicologia duma Conversão, pág. 448. 50

V. entre outros, Dr. Dupouy – Ciências Ocultas e Fisiolo-gia Psíquica. Paris, 1898, pág. 195. 51

Anais das Ciências Psíquicas, 1919, pág. 30. 52

Puységur – Memórias para servirem à História e à funda-ção do Magnetismo animal. Paris, 1786 e 1809, págs. 95-107, 53

Henry Delaage – Les Mystères du Magnétisme, pág. 114. 54

Apparitions and Thought Transference, London, 1915, pág.

175. 55

Enigmas of Psychical Research, Boston, 1906, pág. 274.

56

Séguier não era homem para se deixar iludir. Durante cerca de quarenta anos, de 1811 a 1848, o primeiro presidente Sé-

guier presidira ao Tribunal de Paris.

Estava no Palácio de Justiça como em sua casa e sabia-o mostrar, escreveu-o Henri Robert. No tempo de Luis Filipe, era

um velhinho vivo e magro. Ouvia os advogados com uma im-paciência visível. A gorra sobre os olhos, como em emboscada

atrás da sua carteira, parecia espreitar os processos. Interrom-

pia os advogados, criticava-os, tratava-os asperamente, recom-punha sua argumentação e era desapiedado para os que se mos-

travam medíocres ou que, pelo menos, ele assim considerava.

Também distribuìa encômios: “Mestre Paillet advogou ontem de um modo perfeito, digo-o para honra da advocacia”.

Foi ele quem respondeu a um ministro de Carlos X, M. de Peyronnet: “O Tribunal pronuncia sentença, não faz favores”.

Um dia exclamou, ao abrir uma audiência:

– Não vejo mestre Gioquel. Os advogados são sempre as-

sim.

– Senhor presidente – respondeu do fundo da sala o advo-

gado que chegava esbaforido –, estive no Tribunal da Relação, defendendo uma das vossas sentenças!

– É inútil, as minhas sentenças defendem-se por si mesmas, o que não impede que aquela a que aludo acabe de ser anulada!

Outra vez, um advogado pedia um adiamento, porque seu filho acabava de falecer. Séguier, empolado e erudito, recusou,

acrescentando:

– No dia em que o primeiro Presidente se casava ou perdia sua mulher, nem por isso deixava de vir à audiência, e quando

um sacerdote perde seu pai, também não deve deixar de dizer a missa. Ouviremos o advogado que está presente. 57

Alphonse Primot – La Psycologie d’une conversion du Po-sitivisme au Espiritualisme, pág. 152. 58

Les miracles et le moderne Espiritualisme, pág. 95. 59

Du Sommeil, des rêves et du Somnambulisme, pág. 195.

60

Foi esse mesmo Sr. Villegrand quem convenceu Broussais. Este escreveu, afastando-se, um pequeno bilhete, aplicou os

seus dedos sobre as pálpebras do sonâmbulo, deu o bilhete ao

Dr. Frapart, que o apresentou, em seguida, a Villegrand, o qual leu sem hesitação as três linhas escritas (v. Moutin – Le Mag-

nétisme Humain, pág. 290). 61

Análise das Coisas, 1930, pág. 137. 62

Roger – O antipopopriestiano – Ensaio destinado a libertar e purificar o Cristianismo do papismo, da política clerical e do

governo dos padres. 63

V. As forças naturais desconhecidas, pág. 447. 64

Maxwell – Os Fenômenos Psíquicos, pág. 193. 65

V. Anais das Ciências Psíquicas, maio, 1916. 66

Erros e preconceitos, pág. 137. 67

Hyslop – Enigmas of Psychical Research, pág. 278. 68

O Sono e os Sonhos, pág. 205. 69

V. sua obra No País das Sombras, pág. 63. 70

Dá-se o caso do processo ser julgado no dia em que corrijo esta prova – 29 de outubro de 1919. 71

Anais das Ciências Psíquicas, abril de 1914. 72

V., para todas as minudências (mesmo a planta do bosque e

das pistas), os Anais das Ciências Psíquicas de abril de 1914. V. também os trabalhos muito competentes do Sr. Duchatel

sobre Psicometria. 73

Revista Espírita, 1864, pág. 72. 74

Encontrar-se-ão outros fatos não menos característicos em As Forças Naturais Desconhecidas, principalmente às páginas

510, 517 e 518. Os progressos da Ciência supriram o paradoxo

da vista através dos corpos opacos pela descoberta dos raios Roentgen, o que deveria instruir os negadores impenitentes. 75

V. As Forças Naturais Desconhecidas. 76

Langres, onde fiz os meus estudos de latim, dos onze aos catorze anos – V. minhas Memórias.

77

Um grande número de autores já analisou esse assunto, sem se aproximar da solução, como Dugas, Lalande, Vignóli, Wi-

gan, Maudsley, Angel, Binet, Fouillé, Piéron, Vaschide, Soury

e P. Laple, mas nenhum previu os sucessos, com exceção de Bozzano e de C. de Vesme. V. a Revista de Estudos Psíquicos

de 1901. 78

A respeito da memória, Ribot cita um dos exemplos certa-mente mais curiosos de quantos foram observados: um imbecil

lembrava-se do dia de cada um dos enterros feitos numa paró-quia durante 35 anos. Podia repetir com uma exatidão invariá-

vel o nome e a idade dos defuntos, assim como o das pessoas

da família. Fora desse registro mortuário, não tinha uma idéia, não era capaz de responder a qualquer pergunta, nem mesmo

de se recordar. 79

Antiga Revue des Revues, hoje Revue Mondiale. 80

Pela minha parte, dediquei-me ao mesmo protesto desde a minha primeira obra (1862), quando tinha vinte anos. Bem

inutilmente também, tanto a tolice humana é universal. 81

Conheço outra análoga, relatada por Lombard de Langres. 82

Laplace – Ensaio filosófico sobre as probabilidades. Paris, 1814, pág. 2. 83

Edição francesa, pág. 289 – Foissac, A Sorte e o Destino, pág. 212. 84

De Divinatione, lib. I, cap, 55. 85

Há perversos que sabem muito bem que fazem o mal de

propósito. Tive mais de uma vez a prova disso, apesar de haver consagrado a minha vida inteira ao bem da humanidade. Nunca

esqueci que, na época em que lecionava um curso regular de

astronomia popular (de 1865 a 1870) aos operários de Paris, na Escola Furgot, curso gratuito tanto para eles como para mim,

tive, apesar de bastante desprovido de dinheiro, a ambição de

comprar uma linda estatueta de Vênus de Médicis, que havia notado em casa de um moldador. Custara-me quinze francos.

Levava-a junto ao meu peito com grande satisfação, quando um garoto se atirou, por detrás, sobre o meu cotovelo, rindo a

bandeiras despregadas quando viu a minha estatueta em peda-

ços no passeio. E, entretanto, era para instruir os seus humildes irmãos que eu lecionava esse curso. 86

Vemos que os escritores contemporâneos, na sua maior parte, imaginam que a discussão de determinismo é teoria filo-

sófica de invenção moderna. Não é exato. Se abrirmos o tomo

1º da Palingenesia Filosófica de Charles Bonnet (Genebra, 1770), lemos à página 33:

“Nunca disse, porque nunca o pensei, que os motivos de-terminam a alma a atuar, como um corpo determina outro a

mover-se. O corpo por si mesmo não tem ação; a alma tem em

si um princípio de atividade, que lhe vem d’Aquele que a fez. Para falar com exatidão, os motivos não a determinam; ela é

que se determina à vista dos motivos, e esta distinção metafísi-

ca é importante. 87

Conhece-se grande número de observações sobre a relativi-

dade das nossas impressões acerca do tempo, que nada têm de absoluto. Aqui temos uma, entre mil:

O meu saudoso amigo Alphonse Bouvier contou-me diver-sas vezes, e sempre nos mesmos termos, a seguinte observação

acerca da relatividade das nossas impressões sobre o tempo:

Encontrando-se na Argélia, bordejava um dia, a cavalo, um barranco bastante fundo. Devido a uma causa que não pôde

examinar, a montada tropeçou e caiu, com ele, no barranco, donde o levantaram desmaiado. Durante a queda, que não le-

vou mais de dois ou três segundos, desenrolou-se-lhe clara e

lentamente no espírito sua vida inteira, desde sua infância até sua carreira militar, os seus brinquedos de criança, as suas au-

las, a sua primeira comunhão, as suas férias, os seus estudos

diversos, os seus exames, a sua admissão na escola de Saint-Cyr em 1848, a sua vida no quartel, na guerra da Itália, no re-

gimento de lanceiros da guarda imperial, nos spahis, nos cara-bineiros, no castelo de Fontainebleau, os bailes da imperatriz

nas Tulherias, etc. Todo esse lento panorama se havia desdo-

brado em menos de quatro segundos, pois reanimou-se imedia-

tamente. 88

V. o que observamos no cap. IV, a respeito de uma conver-

sa com um cardeal francês, sobre a presciência divina e o livre arbítrio. 89

Schopenhauer – Memórias sobre as Ciências Ocultas, Leymarie editor, pág. 170. 90

Foi publicado, com todos os pormenores, nos Anais das Ciências Psíquicas, de outubro de 1910. 91

Eis aqui o resultado oficial do escrutínio:

Votos expressos ........ 845

Maioria absoluta ....... 423

Obtiveram:

Casimir-Périer .......... 451 votos – Eleito Brisson ...................... 195

Dupuy ......................... 97 General Fevrier ........... 53

Diversos ........................ 2 92

Contribuição para o estudo de faculdades cerebrais desco-nhecidas. 93

A Sorte e o Destino, Paris, 1876, pág. 544. 94

Anais das Ciências Psíquicas, agosto de 1905. 95

Fenômenos premonitórios, pág. 77. 96

Lenglet-Dufregnoy – Compilação de dissertações, 1752, t. II, 2ª parte, pág. 1. 97

V. Valére Maxime – De Somnis Romanorum. 98

Boletim do Instituto Geral de Psicologia, janeiro e junho, 1919. 99

O Pároco de Ars, pelo rev. Alfredo Monin, t. II, pág. 500. 100

Que voz era essa? Temos ouvido outras nos relatos prece-

dentes: a da dama de Edimburgo, há um instante apenas (pág. 405), a voz telefônica do pastor sueco (pág. 385), a do Sr. Du-

filhol (pág. 380), a voz interior anunciando a eleição de Casi-

miro Perier (pág. 355), o Sr. Fryer ouvindo seu irmão a 64

quilômetros de distância (pág. 206), a audição telepática do Dr. Balme (pág. 204), a do Dr. Nicólas em Zante (pág. 201), a voz

de um pai a seu filho, a 100 quilômetros (pág. 184), uma mãe

que estava na Inglaterra, ouvindo seu filho em Java (pág. 174), lamentações ouvidas com 24 horas de antecedência (pág. 382),

voz de Joana d’Arc (pág. 119), rapariga do banho (pág. 117),

fantasma do Sr. Marichal (pág. 101), vozes evidentemente fictícias, mas de origem psíquica. 101

V. Ernesto Bozzano – Fenômenos Premonitórios, pág. 408. 102

V. O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, pág. 564. 103

Revista de Estudos Psíquicos (Valparaiso) – Anais das Ci-ências Psíquicas, abril, 1911. 104

Champignon – Fisiologia e Metafísica do Magnetismo, pág. 352. 105

“Quereis ter a explicação das coisas? Muito bem; mas a questão não é esta. São elas reais? Eis o que pretendemos sa-

ber.

Como assim? Dir-te-ei que o ímã é um corpo que atrai o

ferro e se lhe agarra; mas, como não poderei dar-te a razão disto, tu negas!” – (De Divinatione, lib. I, cap. 39).