camila de almeida a mansão do penhasco século xix, no topo de um dos penhascos da irlanda. pai e...

164
1

Upload: dinhhuong

Post on 11-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

2

3

Camila de Almeida

A Mansão do Penhasco

2011

Independente

Rio de Janeiro

4

5

A Mansão do Penhasco

Século XIX, no topo de um dos penhascos da Irlanda.

Pai e filha vivem felizes apesar da falta da mãe que

falecera no parto quando Charlotte nascera na mansão do

Penhasco onde a menina fora criada, passou toda sua infância,

adolescência e começo da fase adulta no melhor lugar onde

poderia ter vivido, frente ao mar no alto de uma vasta linha

costeira convivendo com gaivotas, sol e toda a natureza que

estivesse presente naquele local.

Ouviu-se passos correndo sobre a casa, Lenard estava

sentado em sua poltrona, era um senhor de cabelos grisalhos,

alto e esguio, ligeiramente magro e aparentemente simpático,

com seus grandes óculos e um livro pequeno sobre a mão, olhou

para o teto ouvindo os risos de Charlotte dando bom dia a tudo

que via, as leves rugas de seus olhos verdes frisaram-se quando

a menina que estava fazendo vinte anos desceu a escada.

Charlotte correndo entusiasmada ao encontro do pai;

- Bom dia papai!

Lenard levanta-se com os braços abertos recebendo toda a

felicidade de sua filha;

- Bom dia minha filha! Como se sente neste dia glorioso?

Charlotte

- Radiante como sempre papai. Especialmente hoje! Afinal, não

é todo dia que fazemos vinte anos.

Lenard

- Sim! E por este motivo, hoje iremos à cidade comprar seu

presente.

6

Charlotte sentando-se no sofá junto a Lenard;

- Ah não papai! Sei que não podemos gastar dinheiro. Não se

preocupe com isso, me contento em passar o dia aqui com o

senhor. Ser sua filha já é o meu maior presente.

Lenard

- Não, não, não, não, não! Você é a felicidade desta casa e vamos

à cidade sim, e a senhorita poderá escolher o presente que quiser

para dar um novo colorido a essa luz que irradias. Afinal não é

todo dia que fazemos vinte anos. Não é mesmo?

Charlotte abraça e dá um grande beijo na bochecha do pai;

- Está bem! Já que insiste. (Ela levanta-se). Então tomamos

nosso breakfast e partimos em seguida.

Eles seguiram de carro para a cidade que não ficava

muito longe dali, apenas tinham que descer a estradinha de terra

pela montanha, que em algumas curvas dava para desfrutar da

paisagem do oceano.

Lenard

- Charlotte, como já sabe, estamos passando por um momento

difícil economicamente falando. Andei pensando em alugar

parte da casa para alguém bem recomendado e que seja de bom

grado para nós.

Charlotte

- Mas papai! Não tem outra maneira de conseguirmos nos

manter sem ter um estranho convivendo conosco?

Lenard

- Infelizmente não vejo outra saída minha querida. Ou isso, ou

em breve não sei o que será de nós. Com a população da Irlanda

fugindo nos últimos anos por causa do tifo, a crise da batata em

nossa terra e tudo mais, ficamos a mercê de uma grande queda

7

econômica.

Charlotte relutou mais um pouco com expressão de quem não

gostou, mas compreensiva e doce como sempre, a moça abriu

um sorriso e disse ao pai:

- O que decidir está decidido, pois o senhor é pai e mentor da

nossa casa, e graças aos seus ensinamentos sou tão feliz como

sou. Isto quer dizer que o senhor sempre sabe o que faz, por isto

devo confiar que tudo ficará bem.

Lenard olha para Charlotte e sorri;

- Vou deixar a encargo de um corretor que conheci na cidade.

Dizem que ele é o melhor para nos ajudar a encontrar a pessoa

certa como inquilina.

Lenard e Charlotte cantavam e brincavam pelo caminho,

estavam felizes e distraídos com aquele dia tão esperado pela

carismática menina. Quando de repente, em uma das curvas,

Lenard avistou um carneiro perdido no meio da estrada, tentou

desviar, pisando no pedal de freio e virando o volante

bruscamente...

Meses depois...

Apesar da luz fria, o quarto sempre ficava escuro

porque suas cortinas raramente eram abertas, a porta velha e pesada de madeira trancada a chave, fazia barulho com o forte vento gelado do oceano que mostrava algum movimento naquele lugar parado, esquecido, quieto, era como se a terra fosse o único ser a respirar por ali. Os negros olhos estavam apagados vagando pelo ar úmido, sua pele branca e jovem ressecara não se sabe o porquê, a boca ainda estava rosada e os

8

cabelos sedosos e brilhantes esparramavam-se pelos inúmeros travesseiros brancos que ficavam naquela cama vazia e solitária. Ouvia-se de muito longe o canto dos pássaros, talvez os únicos a visitarem aquelas imensas e embaçadas janelas que mais pareciam lindas molduras, avistando do alto a fúria do mar que surrava as pedras batendo nelas com fortes ondas de uma ressaca. Ali, ela não tinha nome, não era ninguém, ali, era apenas ela. O piso de madeira rangia com seus passos lentos que na maioria das vezes não sabiam para onde ir, perdiam-se no nada de suas lembranças, não se sentia mais gosto, e o longo silêncio se estendia por horas fazendo-a esquecer a própria voz. Talvez o pior já tivesse passado. Aquilo que perturbava sua mente, aquilo que não se sabia denominar. E por que aquela estranha sensação de estar perdida no vazio do nada insistia em predominar em seu pequeno e insignificante ser? Por quê?

Podia se dizer que seus únicos amigos eram folhas amareladas e um lápis já desgastado. Por que não afirmar que as palavras que nasciam e se encaixavam como em um quebra-cabeça formando assim o enredo de sua vida, ou até mesmo desenhando seu imaginário, eram suas aliadas e fieis irmãs?

Eram o que ainda lhe dava vida, estavam entranhadas em cada

traço seu, bastava um simples sonho, um pôr do sol, ou uma tarde chuvosa para que a história se criasse e a induzisse naturalmente. E naquele dia de luz fria, ouviu-se o ranger dos grandes portões de ferro com pontas afiadas que a muito já não se abriam para receber visitas, e por isso já estavam cobertos por

9

uma planta chamada hera de inverno, mas essa não era a única espécie de trepadeira a tomar conta de todo aquele jardim falecido que se perdia de vista de tão grande. Um chafariz de mármore com a estátua de uma mulher nua acariciando a água ficava bem em frente à mansão, estava sujo e seco, após uma pequena escadaria para chegar às portas da entrada, via-se

colunas muito altas e arredondadas, a extensa varanda envolvia toda a casa que ficava no ponto mais alto de um penhasco, o vento levantava e arrastava as folhas secas do chão, brilhantes e finos sapatos pretos caminharam até a entrada. Ela ouviu alguém arrastar a porta lentamente fazendo a madeira ranger, desceu a escada deixando a bainha de seu leve vestido de seda lilás com detalhes em renda branca arrastar-se pelo chão empoeirado. A sala principal era de uma beleza bucólica impressionante, mas uma pessoa alérgica a poeira não aguentaria ficar se quer um minuto lá dentro, assim que Heitor pôs os pés dentro da casa não teve dúvidas de que era aquela a qual procurou por todos os seus 27 anos, a parede toda de vidro de frente para o mar estava embaçada por causa da maresia, e fora o que mais lhe trouxera uma sensação de liberdade. Ele podia ver o sol, ver a lua, ver o mar, ver a chuva, ele podia até ouvir o vento viajar. As cortinas pesadas e vermelhas de veludo ainda estavam bonitas, o grande lustre de gotas de cristal continuava imóvel com teias de aranha que nem se pode imaginar de tão grandes, um piano de meia calda

10

desafinado porque ninguém o tocava a muitos e muitos meses, ficava ao lado da larga escada centralizada na primeira sala que por um tapete vermelho nos levaria para o segundo andar da antiga mansão. O homem que se interessara pela residência, nasceu logo

após o período em que a Irlanda foi atacada pela Grande Fome

causada por uma praga da batata, que atacou as colheitas por um

período de quatro anos de 1845 a 1849. Milhares de pessoas

morreram de fome e muitos mais faleceram devido a doenças

como o tifo, como também tiveram aqueles que emigraram para

outros países no decorrer dos anos que vieram, mas Heitor

permanecera fiel a suas origens lutando por sua permanência na

grande ilha.

Charlotte segurou em seu vestido de tecido fino enquanto descia os últimos degraus, logo avistou aquele bonito e bem alinhado homem que estava frente à parede de vidro admirando a paisagem. Então, com seus passos de bailarina seguiu até ele e ficou parada ao seu lado, Heitor continuou olhando para frente ignorando a presença da moça, virou-se dando-lhe as costas caminhando com ar de interessado naquele momento em apreciar à antiga mobília.

Charlotte

– Olá senhor. Poderia me dizer seu...

Charlotte foi interrompida por um senhor de cabelos

brancos, baixo e aparentemente antipático que entrou com uma

pasta nas mãos, ele era chamado por corretor.

11

Corretor

– Senhor Heitor, o que achou?

Heitor virando-se de frente para a moça e olhando-a disse com

sua voz melodicamente rouca;

– É, a casa é... boa! Existe até uma certa beleza, mas sua

estrutura... (Heitor segurava o queixo com uma das mãos

enquanto olhava para o teto e andava pela sala). Hummm!

Não sei! Parece-me estar meio frágil. (Ele bate com a sola de

seu sapato no piso de madeira para analisá-lo). Não tem

cupins?

Corretor

– Não senhor!

Charlotte acompanhando Heitor;

– Apenas no porão, um problema que se resolve fácil, creio eu.

Mas queres saber por quê?

Heitor

- Como sabes uma mansão assim exposta a tanta umidade pode

acabar cheia de cupins. Mas tudo bem, este é um problema fácil

de resolver.

Charlotte - Foi como eu disse senhor.

Corretor - E da vista? É a mais bonita que já pude desfrutar. O que o

senhor achou?

Heitor falando sem olhar um minuto sequer para os presentes na

sala;

- Sim, sim.

12

Charlotte - Um privilégio e tanto não acha?

Heitor seguindo para a porta de saída;

- Voltaremos daqui a algumas semanas talvez. Vejo que parece

estar abandonada neste lugar silencioso por muito tempo. (Ele

para e fica a distância de frente para Charlotte). Por isso

encontra-se neste estado deprimente. (Heitor segue para fora da

casa).

Charlote olhou-se dos pés a cabeça tentando entender a

última frase do moço, e com uma careta mostrou ter entendido

de uma maneira não muito positiva.

Heitor ocupava-se com seu trabalho, não por obrigação,

mas sim porque apesar de sua boa aparência era um homem

muito recluso, ele encontrara um lugar dentro de si que o

agradara e o fazia se sentir seguro, criou seu próprio mundo e se

trancara dentro dele. Era um escritor não muito conceituado na

Irlanda, já havia escrito poucos livros, nenhum de sucesso. Mas

ele dera a sorte de nascer em uma família de muitas posses, filho

único perdeu seus pais muito cedo, vendo-se obrigado a tomar

as rédeas dos negócios antes que seus parentes o fizessem para

tomar-lhe tudo que herdara. Agora já adulto Heitor apenas

queria encontrar a paz, que mesmo trancado no seu interior

silencioso não conseguia sentir.

Após três semanas ele voltou à mansão em seu carro

trazendo consigo quatro malas de couro marrom escuro, com

uma chave ele abriu o cadeado já enferrujado dos portões de

ferro. Assim que estacionou em frente à mansão parou por

alguns segundos para admirá-la, segurando as malas empurrou a

porta e entrou. Charlotte o viu entrar lá do sótão que mais

parecia um aquário rodeado por janelas de vidro. O teto era alto

o suficiente para qualquer pessoa poder andar sem bater com a

cabeça, tudo lá dentro era de madeira, a decoração era simples

13

composta por apenas um sofá, uma mesa e uma cadeira, uma

cama de solteiro e em frente um baú, tudo se resumia neste

cômodo, não havia divisões, apenas uma escada que descia para

o segundo andar da casa.

Charlotte - Eu não sabia que o papai já havia encontrado um inquilino

assim tão rápido. (Charlotte desceu as escadas e foi para o

primeiro andar onde viu novamente Heitor com as mãos no

bolso admirando a paisagem, ela disse baixinho agachada na

escada:) É aquele senhor que veio aqui há poucas semanas.

Como é mesmo seu nome? Hummm... Eric? Não! Ah... Heitor!

Sim, é ele acompanhado do seu jeito esnobe. (Charlotte

levantou-se e andou até ficar um pouco atrás de Heitor e então

parou e ficou olhando-o dos pés a cabeça).

Heitor virando-se de frente para Charlotte e caminhando pela

sala;

- Ainda bem que este lugar fica longe da cidade.

Charlotte

- Por que diz isso?

Heitor - Creio que escreverei melhor aqui sem todo aquele barulho

ensurdecedor. Pessoas! Pessoas! Pessoas! Elas falam demais,

perguntam demais, se intrometem demais na vida dos outros, se

sentem nesse direito apenas porque são vizinhos. Aqui não terei

vizinhos, ninguém para perturbar o sossego da minha escrita.

Adoro todo esse silêncio. (Heitor sobe a escada para o segundo

andar).

Charlotte continua onde estava;

- Mas o senhor não está sozinho, eu e meu pai moramos aqui

também. (Heitor desaparece dos olhos de Charlotte). Vou falar

14

para o papai que não gostei desse moço! Não! É melhor eu não

falar nada, estamos precisando do dinheiro do aluguel. Bom, já

que ele não gosta de pessoas não precisarei me esforçar para

fazer sala para ele.

Heitor subiu os degraus e se deparou com uma grande

janela à sua frente que tinha como quadro vivo o oceano, um

corredor transversal que tanto para o lado esquerdo quanto para

o direito, se alongava com portas de ambos os lados, sendo que

indo pela direita ou esquerda da escada, como se voltássemos à

entrada da casa, também víamos passagens por corredores que

levavam logo à frente, a passar por um portal de madeira,

encontrando uma grande sala com uma grande lareira e sofás ao

seu redor de veludo vinho com quadros antigos que tornavam

aquele ambiente ainda mais conservador, e no final do primeiro

corredor transverso retromencionado à direita, mais uma escada

que daria no sótão. O escritor entrou em cada porta que viu, com

os olhos brilhantes admirava o bom gosto e como tudo estava

muito bem conservado, apesar dos móveis parecerem ser de

séculos atrás. Os quartos que mais lhe agradaram foram às seis

enormes suítes principais que eram seis dos inúmeros cômodos

que tinham vista para o mar. Pouco depois de acomodar suas

coisas tratou de limpar os lugares onde circularia, estavam muito

empoeirados, ele levou o dia inteiro, mas conseguiu cumprir sua

tarefa.

No dia seguinte Heitor acordou, e após seu desjejum

solitário, com uma caneca cheia de café caminhou com seus pés

congelados apesar de calçados até o jardim. Parado ali na

varanda observou a imensidão daquela natureza e quanto

trabalho iria ter para limpá-lo.

Heitor

- Terei muito tempo para isso.

15

Como um homem bem sucedido não tinha obrigações

para com os outros, mas como uma pessoa solitária assim que se

exauria de seus livros, logo tratava de arrumar uma nova tarefa

para ocupar seus pensamentos. Nunca se vira um jardim tão

triste e pesado como aquele.

No final da tarde, como quase sempre naquela época do

ano, caía uma chuva e o vento ficava gelado, o escritor

costumava relaxar e sentir sono, passando pelo corredor, Heitor

olhou para a escadinha que dava no sótão, o único lugar aonde

não havia ido, pois naquele final de tarde ele resolvera subir.

Ele não se surpreendeu com este cômodo, era simples, mas por

incrível que pareça sentiu uma sensação de conforto, algo

tranquilizou seu espírito, o silêncio às vezes o fazia concentrar-

se sem ele mesmo perceber. Ele caminhou até as janelas e

admirou a vista, então virando-se reparou o baú em frente a

cama que estava arrumada com lençóis de seda cor rosa chá,

logo percebera que aquele era um quarto feminino. Aproximou-

se e abriu o baú que estava cheio de bugigangas, mas por cima

das pequenas velharias o que mais lhe chamou a atenção fora

um diário. Heitor o pegou devagar como se inconscientemente

soubesse que estava mexendo em algo que não era seu, ele

assoprou a poeira da capa, indeciso antes de abrir para ler, ficou

pensando: Um diário é muito pessoal, será que devo ler?

Caminhou até ao lado da cama e se sentou, avistou uma pequena

caixinha que estava no criado mudo, ele a abriu e uma leve

música surgiu com um casal de bailarinos que rodopiavam em

cima de um espelho, Heitor abre o diário e começa a lê-lo a

partir da primeira página.

Hoje o dia estava perfeito, sabe quando o sol te abraça esquentando teu corpo confortavelmente e a brisa fresca te envolve? Era assim que eu sentia. Meus primos Teddy e Luísa, me chamaram para tomar café,

Diário de Charlotte

01 de Janeiro de 1880

16

minhas tias tinham posto uma mesa retangular enorme no jardim, brincadeiras, chacotas saudáveis, muita animação e alegria. Também, nunca conheci ninguém com tantos parentes como eu, consequentemente a mesa estava cheia de pães feitos em casa, leite, suco, frutas e chocolate quente. A tia Margaret é uma excelente cozinheira, é sempre ela que planeja o cardápio das festas que aqui acontecem quando todos nós nos reunimos.

Ah, sim! A festa do ano novo! Não faz sentido eu começar a contar neste diário como começou o dia de hoje sem contar como foi ontem. Eu, papai, o tio Jorge, Luísa e Clarinha, cuidamos da decoração, espalhei estrelas cadentes por tudo quanto foi canto do salão, a alegria estava tomando conta e contagiando a todos no dia de ontem. O dia foi passando, as pessoas apareciam aos poucos e conforme ia chegando à noite, todos alegres, unidos aguardando o grande evento. A passagem de um ano para o outro, 1879 para 1880.

Dançamos, cantamos, contamos piadas, relembramos os momentos hilários deste ano, nos divertimos muito até a meia-noite. Quando faltava um minuto para o momento esperado, eu avisei a todos...

Charlotte no centro da sala principal;

- Gente! Gente! Pessoal, quero todos reunidos aqui agora para

nossa contagem regressiva. Falta um minuto para o novo ano.

Quando faltarem dez segundos, vamos todos juntos fazer a

contagem regressiva, combinado? Agora!

Todos juntos gritando num frenesi de empolgação com a

esperança de um novo ano feliz;

- Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, FELIZ

ANO NOVOOOO!!!

Era uma festa de harmonia entre os que ali estavam. Abraços, beijos, sorrisos, e muito entusiasmo ao se cumprimentarem desejando uns aos outros um feliz ano novo. Eu particularmente desejei a cada pessoa que abraçava um Feliz Ano Novo! Com muita saúde, harmonia, alegria e um ótimo aproveitamento ao viver este ano que acabara de nascer. Entramos por madrugada a fora até o amanhecer. É claro que nem todos

17

conseguiram esta proeza, pois muitos estavam cansados e não aguentaram a maratona, foram dormir espalhados pelos cômodos distribuídos pela casa. Eu e meu pai como sempre, conseguimos ficar abraçados do lado de fora da casa na varanda ouvindo os pássaros acordarem, o novo sol nascendo ao despertar do novo dia neste novo ano cheio de promessas e esperanças com uma beleza que poucos tinham o privilégio de presenciar em qualquer outra parte do planeta. Este é o lugar mais lindo do mundo, o nosso lar, o nosso paraíso.

Após este momento a dois, eu e papai, voltamos para dentro de casa a fim de lavarmos o rosto, escovarmos os dentes e nos prepararmos para o maravilhoso dia que não pararia por ali. Ao terminarmos de nos arrumarmos, como disse antes Teddy e Luísa vieram me chamar, descemos, preparamos o café da manhã com a ajuda da minha tia Margaret que já estava acostumada a acordar cedo e confeccionar os quitutes deliciosos para um bom Breakfast. Aos poucos todos foram acordando e se chegando à mesa para se deliciarem com as guloseimas. Através de um rodízio organizado por mim, é claro, pois com tanta gente junta, se não tomo as rédeas da situação como uma boa pastora, mas pareceria um estouro de carneiros e ovelhas atrás dos campos abertos em busca da liberdade (Risos). Ao término do delicioso encontro à mesa, alguns de nós combinamos de descer pela trilha do penhasco até a praia para tomarmos um banho de mar. Fomos eu e meus primos, Teddy e Luísa, papai estava cansado e tinha que dar atenção aos mais velhos que estavam na casa e não tinham mais esta disposição de jovem para tal estripulia. Com roupas apropriadas, ao chegarmos lá embaixo, vimos às gaivotas sobrevoarem deslizando sobre as pequenas ondas que cercavam a nossa orla particular, pois além de nós, só havia crustáceos, peixes pulando, o sol, areia e muita água. A natureza era nossa maior companhia naquele momento fotográfico em que nunca mais sairia de nossas mentes com certeza como sendo um marco de 1880. Após a praia voltamos para casa, os membros das famílias foram se despedindo aos poucos retornando para seus lares, até ficarmos somente eu e meu pai de volta a nossa rotina a dois.

E aqui estou eu em meu quarto no sótão, escrevendo sobre este dia louco, sentirei saudade de cada expressão que vi nos rostos de meus familiares, é incrível como às vezes penso que serão expressões únicas para sempre.

18

Heitor terminou de ler o dia que iniciava o diário, apesar

de achar estar invadindo a privacidade da autora deste, deixou

sua curiosidade levá-lo a querer ler mais ao perceber tanta

alegria por parte da mesma, sem levar em conta o que a menina

chamada Charlotte, como identificada na capa deste diário com

seu nome escrito, pensaria a respeito, afinal, ele estava na

mansão para ganhar inspiração, e nada mais inspirador que as

histórias relatadas naquele diário e a descrição de tudo que

acontecia naquela casa.

Charlotte escutou a doce melodia de sua caixinha sair lá

do sótão, ela encontrava-se no primeiro andar da casa, como que

por uma hipnose caminhou calmamente até o segundo andar,

com seus delicados pés descalços subiu a escadinha de madeira

bem de vagar desconfiada achando estranho à música estar

tocando sozinha, pois seu pai raramente subia ao sótão e nunca

mexera em suas coisas, espreitando na entrada de seu quarto

sem se deixar notar pelo novo inquilino, surpreendeu-se ao ver

Heitor lendo uma de suas peças mais íntimas, mas ficou em

silêncio mordendo-se de raiva por ver sua privacidade invadida

tão descaradamente, ao mesmo tempo pensou: Este senhor é

muito abusado, como ousa entrar em meus aposentos, invadir

minha privacidade, e pior, ler o meu diário sem meu

consentimento?! Vou falar com meu pai a respeito, agora não

tem jeito! Isto eu não permitirei!

A menina saiu dali como um furacão a tal ponto que em

sua retirada rápida, e sem ser percebida por Heitor, fez com que

um tapete na entrada da porta desse uma pequena levantada na

ponta fazendo com que o senhor curioso pressentisse a presença

de alguém, sendo que sem avistar algo ou pessoa, optou em

ignorar o fato de ter percebido um movimento qualquer, fechou

o diário, deixando-o no lugar encontrado e desceu para dar

continuidade ao seu dia.

19

Charlotte descendo as escadas em direção à sala vai pensando

no que acontecera e lembrando precisarem do dinheiro o qual o

inquilino deixaria de pagar caso ela tornasse o acontecido em

uma tempestade, resolve deixar para lá argumentando com si

mesma;

- Coitado, ele me parece ser tão solitário, deve ter algum motivo

para viver sozinho, e de repente encontrou em meu diário uma

forma de não se sentir mais tão só. Vou deixá-lo com sua

curiosidade em mim. Também não tenho nenhum pecado a

esconder de tão grave o qual tenha que me esconder em palavras

num livro autobiográfico. Quem sabe este senhor não se

transforma em uma pessoa mais simpática e daqui a um tempo

ele perceberá não valer a pena ser tão metido e soberbo do jeito

que demonstra ser passando a agir como uma pessoa mais

simpática, leve e sociável? (Risos).

O dia se passou para Heitor como todos os outros dias,

ele não sabia como, e quase não sentia, mas para ele era como se

estivesse vivendo o mesmo dia, sempre acordava e preparava

seu café com pães, ovos e bacon, costumava evitar o jornal, pois

em sua cabeça achava que iria ser infectado com tantas notícias

ruins, apesar de algo lhe dizer que ele deveria ficar informado

sobre o que acontecia ao seu redor. Após seu ritual matinal com

os pés calçados e luvas próprias para jardinagem, ia até o jardim

molhar as plantas que ele conseguia, pois eram tantas, estipulou

trinta minutos para isso, sempre começando após a pausa da

última que havia regado, se precisasse teria mais trinta minutos

para cortar uns galhos, recolher umas folhas secas... Então teria

o tempo livre até a hora do almoço que ele mesmo gostava de

preparar, que para variar, não era nada saudável, carnes

vermelhas engorduradas e algumas taças de vinho, às vezes

misturava algumas bebidas, jamais ficava bêbado, então teria

mais um tempo livre, escreveria alguma coisa ou dormiria ou...

Ups! Alguma coisa mudou. Ou leria o diário de Charlotte, a

menina que achava que o mundo era lindo e colorido. Pensava

20

ele: Simpática, meiga, cativante e energética. Qualidades que ele

não levava muito em consideração.

Heitor resmungando com sigo mesmo;

- Prefiro ser mais prático e objetivo quando se trata de pessoas,

afinal elas se confundem à toa. Ser amável com todos é um

desperdício de tempo, se não estou bem, não estou bem e

pronto, não vou ficar fingindo que meu mundo está perfeito só

para agradar os outros. Ser sorridente e saltitante não faz o meu

estilo, muito menos sociável.

Charlotte surgiu no meio da sala, ela acabara de ouvir o que

Heitor havia dito;

- Como quase sempre estou discordando do senhor não é

mesmo? Parece até que faço de propósito, mas juro que não é

este meu objetivo maior. (Charlotte caminha na sala

gesticulando). As pessoas precisam de atenção e consideração da

mesma maneira como gosta que tenham com o senhor. E se elas

se confundem, já parou para pensar que é você que pode estar se

expressando mal? Por isso temos que ter paciência. Nem vou me

aprofundar na questão egoísta de “você” estar bem ou não,

ninguém é obrigado a aturar seu mau humor, se algum problema

aconteceu, esse problema é só seu, não temos culpa se alguma

coisa em sua vida tenha saído fora do seu controle. Não precisa

fingir que está bem. Mas também não precisa ser mal educado e

intolerante. Heitor, temos sempre que buscar viver em harmonia

com as pessoas, os animais e todo o resto, mas para isso

primeiro temos que estar em harmonia conosco. É o que te falta.

(Charlotte respira fundo e solta o ar de pressa jogando-se no sofá

como se tivesse tirado um peso enorme das costas). Pronto falei!

Heitor levantou-se sem dizer uma palavra e caminhou até

a escada indo para o segundo andar da casa, Charlotte

acompanhou seus passos movendo apenas os olhos com a

expressão de quem estava achando aquela atitude grosseira e

21

inacreditavelmente mal educada.

Charlotte

- Por que não estou surpresa? Mas eu não desistirei de tentar

mudar o semblante deste homem triste, coitado. Ainda vou

arrancar-lhe um sorriso.

Após tudo isso, no final da tarde, Heitor foi até o sótão

pegou o diário e foi lê-lo na varanda da parte que fica de frente

para o mar na entrada da casa, Charlotte quis ficar próxima e

acompanhar a leitura junto com o moço se colocando por trás da

poltrona confortável que ele estava sentado preguiçosamente,

para que ele não percebesse sua presença.

Após acordar e proceder a todo o ritual matinal diário de costume, a parte do dia que mais me chamou atenção foi o momento de reflexão em que me encontrei envolta a pensamentos como contarei a seguir.

Eu estava sentada em uma das pequenas muretas na entrada da varanda de frente para o mar, é um dos meus lugares prediletos entre tantos outros na casa, mas gosto de observar o final de tarde de lá, a luz do sol fica alaranjada e dá um toque especial em todas as outras cores, ela fica tão grande e reluzente que parece um portal para o paraíso.

Acabei de ler um livro agora pouco, como sempre mais um romance, adoro praticamente todos, principalmente aqueles que o mocinho se apaixona perdidamente pela mocinha e um belo dia consegue conquistá-la, então vivem ardentemente esse amor até que um dia algo os separa. Eles sofrem, sofrem, mas como são adultos, seguem suas vidas. Mas aí! Algo muito mais forte que qualquer coisa os reaproxima, como o destino, a força do verdadeiro amor, aquele que se conquista com ternura, bondade e dedicação. Amar é quase que uma profissão. Primeiro passo: Não se pode estar indeciso ao escolher o que passará fazendo o resto de sua vida onde quer que tudo dê certo. Segundo passo: É preciso vontade para conseguir alcançá-lo. Haverá

Diário de Charlotte

18 de Janeiro de 1880

22

muitas dificuldades. Amar não é fácil, precisa-se de experiência no ramo para entender que pessoas são diferentes em muitos aspectos, não podemos exigir que elas sejam como nós e façam as coisas como achamos que devem ser feitas. O amor precisa de espaço para crescer, e para isso é necessário confiança. Terceiro passo: Dedicação. Quando não estamos indo bem em um serviço, é porque algo não está certo, algo não está seguindo o mesmo caminho que nós. É quando o patrão diz que não está dando certo, e provavelmente ele procurará outro para nos substituir. Para que isso não aconteça, esse tipo de trabalho precisa inteiramente da nossa dedicação, dia e noite se for o caso, varando inclusive algumas madrugadas ignorando o sono. Ouvi alguém dizer uma vez que eu deveria me casar com uma pessoa que eu gostasse de conversar, pois era o que nós passaríamos fazendo o resto de nossas vidas. E na verdade, o que sobra é uma grande e carinhosa amizade.

Sim, acredito que amar deve ser difícil, mas eu adoraria vencer este desafio. A história que estou lendo é sobre um homem que já havia se casado seis vezes, e por seis vezes ele tentou viver o desafio que é o amor, ele amava as mulheres, dedicava-se a elas, preferencial e quase que instintivamente admirava as loiras de olhos claros, magrinhas. Mas não passavam-se quatro, sete, dois, cinco anos, e seus relacionamentos por mais que ele quisesse, desejasse e buscasse, acabavam dolorosamente. Então aos cinquenta anos, depois de muito sofrer, acabou por conhecer Maria Anita, cabelos compridos, negros, como seus olhos que eram levemente puxados, de pele bem clara, seu corpo não era de uma magreza elogiável, mas caía graciosamente em seus modestos vestidos a ponto de receber lisonjeiros elogios. No início, diferente da maioria das paixões, eles eram estranhos um para o outro, apesar de falarem a mesma língua, os diálogos eram difíceis, além de haver uma pequena diferença de vinte anos de idade, Maria Anita tinha apenas trinta anos quando enxergou o homem aparentemente sincero e que buscava a mesma coisa que ela, “um amor”.

Bem! Mais um dia se passa e como estou cansada e sonolenta, irei para cama mais cedo. Por hoje, fico por aqui.

23

Heitor lia o diário atentamente, sentia-se cada vez mais

interessado pela rotina e os pensamentos da menina Charlotte.

Heitor olhando para as páginas do diário perdia-se em suas

palavras;

- Apenas meninas escrevem diários. Como pode ser tão

esclarecida nestes assuntos do coração ainda sendo uma menina?

Charlotte riu em tom baixo, mas lembrando de que o humor do

bisbilhoteiro era de lua, recuperou-se e foi sentar-se em uma das

muretas da varanda de frente para o mar;

- É simples, é só observar. (Heitor virou lentamente seu pescoço

em direção à mureta onde estava Charlotte, olhando como se por

um instante tivera a vontade de entendê-la. Ela continuou a falar

olhando para o horizonte:) O amor é um só Heitor, você pode

vê-lo em tudo, nos animais, nas flores, em toda fauna, entre

amigos, pai e filha. Se um dia você parar com esse mecanismo

rotineiro e observar tudo isso, abrir os braços para a vida

acreditando nela, vai conseguir compreender tudo isso. Sentirá

que nada é tão complexo para não se tentar entender.

Heitor retorna seu olhar para o diário, fecha-o e

levantando-se da poltrona, vagarosamente dá passos até a ponta

da varanda, onde descendo uns três degraus, a uns quinze metros

à frente, havia uma cerca de madeira mal pintada de branco, na

verdade toda descascada precisando de uma mãozinha, e a dois

metros antes da quina do começo do paredão de pedra, um

senhor penhasco que caía uns trinta metros ribanceira abaixo,

bem íngremes, até grandes rochas desgastadas com as frequentes

ondas que ali batiam todo o tempo, mas só dava para vê-las

quando a maré estava vazia. Ainda na varanda, ele fechou os

olhos. Curiosa com que o rebelde estava fazendo, Charlotte

cautelosamente foi ficar ao seu lado e fez a mesma coisa que o

moço. Uma leve brisa os tocou, Heitor sentiu como se dedos

passassem entre seus ondulados cabelos acariciando-o, então

24

juntos respiraram fundo e soltaram o ar bem de vagar. O senhor

de simpatia temporária após essa breve meditação, olhou para

um lado, olhou para o outro onde estava Charlotte, sendo que

desta vez, olhando em direção aos olhos da jovem, não demorou

muito e virou-se caminhando para dentro da mansão mais uma

vez ignorando sua presença, sendo que desta vez, de forma mais

amena.

Charlotte ainda imóvel sentindo a harmonia que estava

pairando no ar, ao ver Heitor saindo acompanhou-o com a

cabeça e disse em um tom um pouco alto:

-Você fala pouco Heitor, deveria se expressar mais! (Falando

consigo mesma). Como ele sai assim sem dizer nada? (Volta a

falar com Heitor em tom alto). Ainda não me acostumei com

essa sua falta de média com as pessoas senhor etiqueta!

(Discursando). Eu transpassarei seus muros de concreto frio,

atravessarei essa ponte balançante de ventos turvos e uivantes, e

acharei o verdadeiro e doce Heitor que há dentro de você!

Tomarei isso como uma missão! E fique sabendo que nunca

desisto de uma missão!

A noite chegou, o jovem de 27 anos continuou sua rotina.

Antes de dormir andava por quase toda a casa fechando portas e

janelas, ele não sabia o porquê, sempre tinha uma sensação de

que estava em perigo, levava alguns minutos para cumprir sua

tarefa, não demorava mais, pois por ser muito grande a casa e

quase não se utilizar boa parte dos cômodos, já deixava a

maioria das portas e janelas fechadas durante o dia, então

voltava todo o caminho desde os fundos da mansão e conferia as

trancas uma por uma. Uma hora depois, parado no meio da sala

principal do primeiro andar, deu uma última observada no

ambiente e nas portas.

Passava das onze horas, deitado em sua grande e

confortável cama, Heitor ficou virando-se de um lado para o

outro por uns vinte cinco minutos, levantou, foi até o banheiro,

25

lavou o rosto e tomou alguns comprimidos, lavou as mãos,

voltou para cama com seu chinelo felpudo. Após trinta minutos

de guerra com o sono ele se levantou novamente, pôs seu casaco

cinza e dirigiu-se até à copa-cozinha, preparou um pouco de café

bem forte e quente, lavou as mãos e foi para o escritório com a

caneca na mão cheia até um pouco mais que a metade. Não era

um ambiente muito agradável, mas era muito grande e com

prateleiras enormes recheadas de livros provavelmente muito

antigos, que iam até o teto desenhado a mão por um artista que

Heitor não se importou em saber quem era, desenhos de homens

e anjos se confundiam naquele cenário que não fazia muito

sentido para uma pessoa que não questionava dar-se um tempo

para entender a sensibilidade daquela arte. Ele sentou-se em uma

cadeira de couro vermelho que estava por trás de uma mesa

grande de madeira, tomou um gole do seu café quente bem

quente vindo a queimar a língua e o céu da boca, esquecera que

estava bem quente, depois de praguejar algumas palavras

desagradáveis, colocou a caneca na mesa um pouco à frente,

pegou um papel e começou a escrever. As noites ficam cada vez mais estranhas. Desde que cheguei aqui, tenho me sentido sozinho como de costume, pois a muito não faço questão de me socializar com ninguém, mesmo aos que se aproximam de mim com tal intenção. Mas algo parece estar mudando à minha volta. Estou lendo o diário da menina Charlotte, nem sei porque faço isso, não vejo sentido em estar lendo o diário dela, mas alguma coisa me leva a lê-lo, alguma coisa dentro de mim, pode ser só curiosidade, mas ainda lembro de que minha curiosidade pela vida fora embora sem se despedir. Percebo nela uma alegria esplêndida, tremenda vontade de viver, enxergando a vida como um arco íris, flores, pássaros, árvores, o sol, as estrelas, tudo para ela é lindo. Tento me ver nas situações em que ela se punha com tanto vigor e não me lembro de viver tão intensamente como ela em momento algum da minha existência. Será que não sei viver? Será que em meu mundo literário me escondi sem perceber o que estava realmente a minha volta? Será que eu deveria me soltar mais ao me relacionar com pessoas e até comigo mesmo? Já que ao ver como Charlotte vive tanto sozinha quanto

26

acompanhada em suas aventuras coloridas a cada dia, ela enxerga o belo nas mínimas coisas apresentadas pela natureza, pela vida. Noto que até em meus livros, tudo para mim sempre foi em preto e branco. Mas desde então, conforme vou conhecendo mais Charlotte, mesmo sem querer me envolver, sinto-me contagiado por sua magia na arte de ver as coisas. Isto não é meu diário, não escrevo diários, escrevo histórias, isto é apenas a minha insônia e meu tédio arrumando algo para me distrair, algo que faça o tempo passar bem depressa. Aqui não dá para sentir o tempo, é como se todo dia fosse o mesmo dia e toda noite fosse a mesma noite, aqui é como o inverno, frio e apagado, mas Charlotte olha para tudo com olhos de criança, como se estivesse descobrindo e vendo tudo pela primeira vez. HT

Heitor só conseguiu ir dormir após as quatro horas da

manhã, mesmo cansado, não conseguira dormir mais de três

horas. Acordou com uma agonizante dor de cabeça, seu corpo

parecia chumbo de tão pesado. Pôs seus chinelos felpudos, e

ainda de pijama coberto por um robe, saiu do quarto com

olheiras assustadoras, desceu a escada, e já no primeiro andar

cruzou com Charlotte que estava admirando a paisagem pela

parede de vidro.

Charlotte focalizando a presença abatida e cansada de Heitor;

- Bom dia!

Heitor nada lhe respondeu, passou lento e mudo com

uma das mãos segurando a cabeça como se esta fosse cair no

chão.

Heitor em voz baixa;

- Aaii!! Que dor de cabeça.

Foi para a cozinha preparar mais uma caneca de café

como gostava. Charlotte não mais tão intimidada pela a

arrogante falta de educação do homem pôs-se em um canto da

cozinha, enquanto ele vencido pelo mal estar esforçava-se para

preparar um café, Charlotte tentou mais uma vez iniciar uma

27

conversa.

Charlotte segurando o queixo com as mãos, deixando os

cotovelos apoiados sobre o balcão de mármore que separava a

copa da cozinha;

- Obrigada, mas já tomei meu café. (Deu uma pausa para ver se

Heitor reagiria a sua provocação, vendo que não obtivera

nenhuma reação continuou): Vejo que não passou bem esta

noite, está com uma aparência horrível, parece mais um morto

vivo. Cruzes! Mas vamos falar de coisas boas. Hoje o dia está

tão bonito, o sol amanhecera tão reluzente e convidativo a um

passeio. (Heitor tomava sua caneca de café quente bem quente

de pé em frente à Charlotte). Tome um banho, devias sair e

respirar ar puro, iria te fazer muito bem.

Neste exato momento corvos ecoaram seus gritos

estridentes e asas de pássaros bateram violentamente ao lado da

janela da cozinha.

Heitor levando um susto esbravejou;

- Ah! Odeio barulhos logo ao amanhecer, isto me deixa

perturbado o resto do dia! Preciso de calma, silêncio para minha

mente que acabara de sair de uma quietude profunda!

O homem antipático retirou-se logo após o término da

sua frase, não deixando assim Charlotte lhe puxar as orelhas, já

que ela só tentara ajudar vendo seu estado de calamidade pela

falta de descanso.

Charlotte profundamente ofendida disse em tom baixo para si

mesma, desejando poder dizer a Heitor;

- Duvido que a mente dele estivesse em profunda quietude.

Mais parecia ter passado a noite com mil turbilhões de vozes lhe

soando coisas desagradáveis ao ouvido, assim não o deixando

dormir. Não é à toa que está de mau humor.

28

Heitor subiu a escada, pesadamente seus pés batiam na

madeira fazendo barulho. Ao chegar ao seu quarto sentiu-se

mais calmo ao olhar para a janela e ver um passarinho amarelo

fosforescente, ali pousado arrumando suas pequeninas asas com

o minúsculo bico, ele aproximou-se vagarosamente com todo

cuidado para não espantar o admirável e pequeno ser que por

algum motivo o chamou atenção despertando nele algo

diferente, inovador, e afastara aquela estranha raiva e

impaciência que sentira durante o café. Chegou bem perto do

passarinho, este que estava de costas, virou-se de frente para o

rosto de Heitor que o admirava sem saber o porquê. O pássaro

por sua vez muito corajoso, ali permaneceu a encarar o estranho

senhor, sua cabecinha e seus olhos de um azul marinho intenso

mexiam-se de um lado para o outro freneticamente. Então parou

fitando os olhos do curioso, parecia hipnotizado, quando o

homem tentou tocá-lo, ele voou.

Heitor sentiu vontade de lavar o rosto, mas então

resolveu tomar um banho. Após fazer a barba e pentear os

cabelos, o vaidoso senhor se perfumou e se arrumou.

Charlotte conversava com seu pai na sala.

Charlotte abraçada ao pai que acariciava seus cabelos;

- Mas papai, ele não deseja fazer amizade comigo. Venho

tentando evitar chatear-me com seus maus modos, até permiti

que lesse meu diário sem mais reclamações. No entanto me trata

assim como viste.

Lenard

- Charlotte minha querida filha. Heitor é um pobre homem que

viera se hospedar aqui em nossa casa por um tempo para

encontrar paz de espírito, assim nos ajudando também. Devemos

ter paciência com ele, e para ter uma boa convivência, tentar

ajudá-lo como podemos. Continuas conversando com ele, tenho

certeza que já já perceberá que és uma menina cheia de boas

intenções e que apenas quer ajudá-lo.

29

Charlotte

- Mas parece que ele não me escuta papai. Vive a me ignorar,

nem sei por quê eu ainda insisto em nossa forçosa amizade,

vendo que minha presença não o agrada.

Lenard

- Tenho certeza que te escutas. Minha amada filha, não me

lembro de te ver desistir de alguma coisa, principalmente de

conquistar uma amizade. Tome isto como teu mais novo desafio.

Heitor nada tem contra ti, apenas é um homem sozinho que

ainda não descobriu o sabor que a vida nos proporciona de

várias maneiras. Sendo assim, tu deverás trazê-lo para o mundo

que vives, pois ele não enxerga as mesmas cores que você, os

cantos dos pássaros para ele não passam de gritos desafinados, o

sabor da comida saudável que lhe preservaria o corpo é amargo

e sem gosto. Mostre a ele o quão teu mundo é maravilhoso e

cheio de aventuras, mesmo vivendo somente aqui, na mansão do

penhasco.

Charlotte

- Mas como papai, se ele insiste em não me ouvir?

Lenard levantou-se de sua poltrona junto a Charlotte;

- Como não? Observe.

Eles ficaram parados no mesmo lugar enquanto Heitor

descia a escada, arrumado e perfumadíssimo parecia empolgado

e já não se via todo aquele cansaço estampado em sua jovem

face. O galante rapaz caminhou até as portas da saída, Charlotte

o olhava surpreendida com a diferença daquele moço para o que

a pouco havia tomado café esbravejando na cozinha. Ela

pensava: É outra pessoa que estou vendo. Só pode ser!

Heitor abriu uma das portas e virando-se para a sala

olhando para todo o ambiente pareceu dar um leve sorriso, e

então fechou a porta.

30

Lenard virando-se para Charlotte;

- Eu não te disse? Heitor seguiu o teu conselho apesar de se

mostrar rebelde no momento. Vamos dar um tempo para ele

minha filha. Não somos só nós que temos um novo inquilino

tirando nossa privacidade, ele também ainda não conseguira se

adaptar ao nosso convívio. Não desista dele, é um bom moço,

apenas está passando por um momento ruim.

Charlotte

- Está bem papai. Também sinto que ele não é uma pessoa má,

apenas ainda não nos entendemos. Ele ainda não aprendeu a se

comunicar comigo.

Lenard

- Já que tocou neste assunto Charlotte, tu também ainda não

aprenderas a se comunicar com Heitor.

Charlotte

- Mas como, se tudo faço para conseguir arrancar-lhe uma sílaba

se quer?

Lenard

- Não tens que tentar arrancar nada dele minha querida. Como já

fez algumas vezes sem perceber, deixa que ele sinta vontade de

te ter ao lado dele, assim ele te aceitará mais facilmente.

Charlotte

- Ficarei a sua mercê então?

Lenard

- Por que não? Nestes assuntos estás mais preparada do que ele.

Com paciência conseguirá conquistar-lhe a amizade.

31

Charlotte abraçando o pai;

- Está bem papai, agora te deixarei voltar aos teus assuntos de

negócios. Obrigada pela tua compreensão! Como sempre me

trazendo boas palavras em momentos difíceis.

Lenard

- Pois realmente devo voltar aos meus negócios. Agora devo te

falar uma coisa e quero que me escute com atenção.

Charlotte mostrou-se ansiosa;

- Sim papai, ouvirei com toda a minha atenção.

Lenard

- Justamente por causa de nossos negócios devo viajar.

Charlotte espanta-se;

- Viajar? Mas agora, justamente agora que me encontro nesta

situação? Para onde vais?

Lenard

- Vou para um lugar onde tu ainda não conheces. Enfim... É

muito complexo agora minha querida Charlotte. Talvez quando

eu voltar irei poder te explicar tudo que se passa, mas agora de

antemão nada poderei te dizer. Deixe-me resolver primeiro.

Charlotte

- Mas eu quero ajudar-te papai. Deixe-me ir contigo, não sei se

Heitor é tão confiável assim.

Lenard sorriu vagamente;

- Não precisas te preocupar com Heitor, ele é um homem bom

apesar do seu estado de espírito. Enquanto em me ajudar, estará

nos ajudando ficando aqui e mostrando teu maravilhoso mundo

para ele que está perdido no preto e branco de seus papéis.

32

Charlotte

- E quando partirás?

Lenard

- Hoje mesmo devo ir. A viajem é longa, os problemas são

complexos, não quero perder tempo, mesmo sabendo que este

devo respeitar.

Charlotte emocionada abraça fortemente o pai;

- Sentirei muito a sua falta papai. Já estou com saudades!

Lenard também emocionado;

- Também sentirei sua falta meu amor. Não te esqueças das

minhas palavras, e lembre-se sempre de ter paciência e

compaixão com Heitor. O tempo passará rápido. Se precisares

de mim, faça como te ensinei quando era criança. Lembra-te?

Quando ficavas com medo do escuro ou de algum monstro

imaginário, fechavas os olhos, esvaziava a mente e pensavas em

mim em um jardim deserto de temores, então eu ouvia-te me

chamar.

Charlotte

- Sim papai, o senhor jamais me deixou sozinha.

Lenard

- Então agora vou me preparar para ir.

Charlotte

- Está bem.

Lenard segurando o belo rosto da filha;

- Eu te amo filha.

33

Charlotte deixando suas lágrimas brotarem do profundo escuro

de seus olhos e derramarem-se frias sobre suas bochechas

rosadas;

- Também te amo papai.

Depois de Lenard se preparar, seguiu para os grandes

portões de ferro da entrada da mansão. A jovem menina, vendo o

querido pai partir sentia que algo grandioso a esperava. Mas o

quê? O que de tão importante esperava por Charlotte? Ela

entrara na mansão deixando todo aquele sentimento de tristeza

lá fora, feliz e contente continuou seu dia.

Heitor chegou na hora do almoço. Ele tinha ido à cidade

fazer umas compras, remédio para cupins, pois reparara que

havia alguns no porão, algumas carnes, bebidas, guloseimas,

apesar de já ter tudo isso em casa, tirando o remédio para cupins,

ele sentira extrema necessidade de sair àquela hora. Na volta

para casa sentiu que o ar lhe fizera muito bem. Ainda não se

sentindo muito disposto, preparou seu almoço, que como de

costume não era nada saudável, fez uma quantidade um pouco

excessiva. Charlotte se lembrando do conselho do pai esperou o

moço sair da cozinha para ela poder almoçar. Olhou para as

panelas engorduradas, com aquelas carnes e massas, uma garrafa

de vodka pela metade e uma jarra de suco de limão quase que

pelo fim.

Charlotte enojada;

- Eu não vou comer isso. Terei que eu mesma preparar meu

almoço.

Passado aquele dia repleto de emoções, Heitor assistiu ao

lindo pôr do sol da varanda da casa, e Charlotte em seu quarto

no sótão apreciava a mesma visão deslumbrante daquele sol

alaranjado, que parecia fazer barulho ao esconder-se por trás de

todo aquele imenso oceano azul que se fazia confundir com o

céu. Charlotte deitou-se em sua cama e sentiu um leve sono

34

aproximar-se dela.

A mansão era fria, por isso Heitor deixava

frequentemente a lareira do seu quarto e a da sala queimando

lenha, e quando os velozes ventos vindos lá do horizonte do mar

insistiam em balançar as leves cortinas brancas de seu quarto,

fazendo-as parecerem graciosas e dançantes peças vivas, tudo

ficava ainda mais frio.

No dia seguinte, o senhor insônia que também não

dormira bem noite passada, lia distraidamente folhas de um

novo livro que estava escrevendo quando uma borboleta

multicolorida pousou justamente onde ele estava lendo.

Heitor olhando para a borboleta diz;

- Como você veio parar aqui?

Heitor sacudiu a folha afim de que a borboleta saísse

voando, mas ela voou e voou ao redor de sua cabeça e parou

com suas asas ainda batendo levemente no mesmo lugar, ele

novamente agora um pouco mais brusco sacudiu a folha, a

borboleta voou, voou, e mais uma vez com as asas para cima e

para baixo pairando seu voo pousou sobre a folha amarelada.

Heitor sacudindo a folha mais uma vez e tentando espantar a

borboleta com a mão;

- Não vê que estou querendo ler o livro? Saia daqui! Saia!

Ele não conseguia afastar a criatura, pois ela voava e

voava ao seu redor e graciosamente pousava sobre a folha.

Heitor muito irritado, brutalmente bateu com a folha na mesa

esmagando a borboleta. Charlotte que apreciava a cena de longe

logo surgiu ao seu lado para repreendê-lo.

Charlotte empalideceu-se;

- Heitor! Como pôde fazer tal coisa?! Acabas de cometer um

crime que para sempre manchará sua consciência!

35

Heitor levantou a folha e olhou para o frágil animal que já não

batia mais suas asas coloridas;

- Bom, era apenas uma borboleta.

Heitor ignora a falecida borboletinha dando continuidade

ao seu trabalho.

Charlotte com seus negros olhos fixos em Heitor que não

encarava a moça pronunciou com sua voz doce e compreensiva

após levar o susto.

- Não Heitor, não era só uma borboleta. Era um ser, que

respirava e tinha uma vida assim como tens a tua. Gostarias que

algum ser maior que ti, que se considerasse supremo e superior

por este motivo, viesse simplesmente e esmagasse tirando-te

tudo que tens? Ainda mais uma pobre borboletinha. Se pararmos

para pensar em tudo que ela passa para conseguir seu objetivo

de vida que é voar e colorir o espaço que nos rodeia. A borboleta

nasce lagarta, rasteja pelo chão e é assim que de início conhece

o mundo, ela vive desta forma até sentir que seu momento

chegou, e então para que haja a transformação ela isola-se em

seu pequeno casulo, alheia ao mundo, voltada para si mesma

sofre mutações físicas para que possa enfrentar a nova fase da

vida. Após todo esse processo ela ainda precisa lutar para sair do

casulo. Suas asas, novas para si, continuam enrugadas

impossibilitando seu voo, só após uma longa espera consegue

batê-las e voar. Vendo o mundo sobre uma nova perspectiva,

agora de cima enxerga o chão onde outrora viveu, adapta-se a

sua nova maneira de viver, aprendendo a lidar de forma

apropriada entre a terra e o céu.

Heitor volta a olhar para a pequena criatura, até que

pegou em suas asas e a pousou sobre uma de suas mãos,

caminhou até a porta de entrada da mansão e dirigiu-se até o

jardim, Charlotte o seguia. Entre um dos arbustos floridos sobre

a terra fresca ele cuidadosamente pôs a borboleta e a cobriu com

36

um pouco de terra.

Charlotte

- Se esta for uma forma de mostrar arrependimento creio que

serás perdoado, pois qualquer que seja teu crime sobre as leis

divinas, a partir do momento que teu coração arrepende-se do

que fez, estará perdoado. Isto não significa que não terás que

sofrer uma lição para que possas entender melhor como

funciona o processo de “faças o bem e receberás o bem”.

Heitor voltou para a sala, entediado e insatisfeito com as

folhas que lia e que ele mesmo havia escrito. Isso era o que ele

achava que o estava incomodando tanto. Sentia uma dor aguda

no peito, bem no centro que não o deixava em paz, mesmo

sentindo a dor que mais parecia imaginária ele não conseguia

descobrir como e porque estava sentindo aquilo. Era tão

estranho, sua garganta havia fechado e suas mãos estavam

suando. Charlotte estava bem ali ao seu lado, ela não ficou feliz

com o que aconteceu à borboleta, seu símbolo mágico da alma

que tinha um significado de vida, e esse significado era algo

bem maior que ser uma simples borboleta como seu amigo

ranzinza havia dito. Ela não estava furiosa, mas a perda da

borboleta a deixou abalada por um tempo sem dirigir a palavra a

Heitor apesar de continuar a seu lado. Impossível dizer como me sinto, apenas me sinto assim. Não sei o porque e nem como, é meio tolo tudo isso. Impossível descrever como me sinto agora, parece que mil folhas me cercaram e cobriram o meu corpo escondendo-me do mundo, pelo menos é assim que eu desejo estar agora. Charlotte está me mostrando um mundo novo, mas eu o vejo como que por uma janela, tão perto, mas há um vidro nos separando. Sei que onde estou está frio e escuro, mas inconscientemente tenho medo de quebrar esta barreira entre nós, sinto medo de abrir a janela, estou tão acomodado onde estou. Sua energia me surpreende, onde só vejo monotonia ela descobre graça e beleza. Estranho, quando penso em graça isso me lembra bochecha de bebê rosada. Isso

37

também é tolo. HT

Charlotte pronuncia-se ao ver Heitor levantando-se da cadeira;

- Aonde vai?

Ele fora para o sótão, algo ali o deixava em paz, era

familiar apesar dele nunca ter ido profundamente no sentido

dessa palavra. Era familiar como nada havia sido toda a sua

vida, era prazeroso como ouvir a risada de uma criança, era

confuso como se ele abrisse os braços e com a cabeça para cima

girasse e girasse e girasse e parasse e caísse... Simplesmente. Era

familiar e era assustador ser tão íntimo aquele quarto. Com o

diário nas mãos e sentado em um canto do sótão, para ser mais

específico bem ao lado de uma das grandes janelas, Heitor

usufruía aquela sensação leve que lhe tomava o corpo. Charlotte

cruzou a porta serenamente, aproximando-se ela sentou ao seu

lado.

Estou no jardim secreto, é um dos meus lugares preferidos. O espaço em volta da casa é tão grande que sinto que nunca vou conseguir desvendar todos os mistérios que há entorno dela. Foi assim que descobri esse lugar, o que mais me surpreende é que ninguém cuida daqui, mas as flores sempre estão bonitas e o verde sempre está verde. Uma vez caminhando sozinha por entre essas trilhas avistei um paredão de galhos e folhas, até então nada me surpreendera, mas minha curiosidade fez me levar além, senti como se algo me empurrasse para mexer ali, como se alguém dissesse: “Vai lá, mexe, não há o que temer”. Então afastei alguns galhos e folhas criando um túnel ao desbravar um novo caminho em tão nova e empolgante aventura, e lá estava bem diante dos meus olhos. O caminho de início é seguido por uma trilha larga e comprida, com árvores enormes de ambos os lados que curvam seus altos galhos para dentro da estrada fazendo um teto de flores pendurar-se por

Diário de Charlotte,

12 de fevereiro de 1880

38

cima da minha cabeça. Uma coisa que acho estranha é que há banquinhos aqui dentro, talvez este lugar já tenha sido muito frequentado, mas agora está tão vazio e silencioso, não que isso seja ruim, mas ele é tão bonito para não ser visitado. Acho que todas as pessoas deveriam conhecer um lugar assim. Após a trilha tem um pequeno lago bem no meio, mas tudo isso é indescritível, simplesmente não existem palavras para descrever o que é este lugar secreto. O caminho até aqui é longo, mas como adoro descobrir coisas não foi tão difícil. Mesmo assim fiz um mapa para ter certeza que não me esqueceria de como chegar. Ele está debaixo do meu baú.

Heitor fechou o diário levantou-se e instintivamente foi

até o baú, pôs o diário encima deste e o empurrou, mas não

havia nada debaixo dele, Charlotte sorriu discretamente, então

ele levantou a pesada e antiga mobília a fim de descobrir se o

mapa havia sido arrastado junto com o baú, mas nada, não tinha

nenhum resquício de papel ali. Heitor sem muita paciência

levantou-se bufando.

Heitor

- Odeio quando não encontro o que quero.

Charlotte ainda sentada permaneceu risonha e descontraída

com a raiva repentina do rapaz;

- Calma! Não precisa ficar assim. Não achas que eu seria tão

boba de apenas por o mapa debaixo do baú? (Charlotte levanta-

se e sem dar muita atenção para o nervosismo de Heitor aprecia

a paisagem da janela). Procure além Heitor, está mais abaixo do

baú do que imaginas.

Heitor ficou parado no mesmo lugar;

- Onde? Onde pode estar esse mapa? (Heitor pega novamente o

diário e lê a última frase. Pensa... Pensa...) Ah! Sim!

39

Ele vai até onde o baú estava e batendo no piso de

madeira descobre uma tábua oca, então finalmente retirando a

madeira ele encontra o esconderijo do mapa de Charlotte.

Heitor envaidece;

- Pensou que eu não seria tão esperto para descobrir não é

Charlotte? Pois aqui está!

Charlotte sorri;

- Meus parabéns! Mostrou-me ser um bom caçador de tesouros.

Este é um primeiro passo entre outros que virão para sua grande

descoberta das riquezas da vida.

Heitor bocejando;

- Nossa! De repente me bateu um cansaço. (Heitor olha para o

diário) Amanhã continuaremos.

Antes que a noite chegasse, o rapaz de olhos cansados e

temperamento complicado deitou no luxuoso sofá de veludo

vinho da sala de ambiente conservador, ele estava no último

grau de sonolência que se pode chegar, seu sono estava tão

pesado que nem mesmo uma explosão o acordaria. Heitor

sonhava, ou melhor... Desesperava-se em seus pesadelos. Era tão

assustador ver rostos que não existiam, rostos sombreados que

não se identificavam. Os gritos o apavoravam, ele chegava a

reconhecer alguns de seus parentes que há muitos anos não via e

nem sequer sabia do paradeiro. Parentes que em seus pesadelos

reproduziam-se maus, o xingavam, o odiavam, mas Heitor ao

acordar podia lembrar perfeitamente de seus dias de convivência

com esses tais parentes que agora o maltratavam, eram

pacíficos, tentavam cativar-lhe quando criança. Eram apenas

pesadelos pensava o infeliz recluso moço.

Poucas horas depois ele acordou sentindo-se pesado e

faminto.

40

Heitor

- Talvez eu esteja me sentindo assim por causa da fome. Afinal

são apenas pesadelos.

As horas se passaram, e em meio à madrugada Heitor

andava pela casa, era tão perturbador todo aquele silêncio, o

escuro lhe era confortador, era onde ele podia se esconder. Mas

se esconder de quê? Dos seus medos, das suas lembranças, de si

mesmo. Ao mesmo tempo tudo lhe era assombroso, seus medos,

suas lembranças, seus pensamentos tornavam todas as coisas,

tudo que o rodeava parecia estar vivo conspirando contra ele. E

Heitor perdia-se dentro de si, dentro da sua dor, que mesmo ele

não sabia existir por ignorá-la.

No dia seguinte, ele acordou. Apenas três horas de sono

não o deixara tão bem, mesmo assim estava ansioso em

conhecer o tal jardim secreto de Charlotte. Depois de tomar sua

grande caneca de café, aprontou-se para uma caminhada.

Charlotte descendo a escada;

- Não preciso nem perguntar aonde vamos, não é mesmo?

Heitor

- Não estou me sentindo muito bem para dar uma caminhada

hoje, mas...

Charlotte

- Ah não Heitor! Não me diga que vai desistir?

Heitor

- Estas noites de insônia me deixam muito cansado. Mas deve

valer a pena essa caminhada até esse lugar.

Charlotte

- É claro que sim! Tenho certeza que vai adorar.

41

Heitor

- É minha curiosidade de escritor que me mata. Só por isso estou

indo.

Charlotte

- Tá, tá, tá bom. Use a desculpa que quiser, o importante é ir.

Heitor pegou o diário e o mapa, então os dois saíram

jardim afora. Como Charlotte havia dito, o caminho era longo e

com alguns desafios. Eles subiam e desciam pequenos morros,

atravessavam riachos, passavam por grutas, campos abertos e

ainda pegaram uma trilha dentro da floresta onde subiram e

subiram e subiram...

Heitor ofegante;

- Não sei como conseguiu fazer todo esse trajeto.

Charlotte

- Você está fora de forma Heitor, deveria se exercitar mais.

Heitor

- Não gosto de caminhadas. (Heitor pára debaixo de uma

árvore). Estou cansado.

Charlotte

- Não diga isso! Você não está cansado, ainda é tão jovem. Já

chegamos até aqui, agora temos que ir até o fim. (Charlotte toca

no braço de Heitor) Vamos!

Heitor olhou para o braço percebendo o toque, era

quente, reanimador, ele pensou. Não tão acostumado a ser

tocado e com a energia renovada com o apoio de Charlotte, ele

continuou bravamente sua caminhada com a moça ao seu lado

sem dizerem mais nenhuma palavra. Ao chegar ao paredão,

avistaram aquelas folhagens e arbustos.

42

Heitor parado em frente ao paredão;

- Não posso tocar aí, estou sem minhas luvas para jardinagem.

Charlotte

- Ah Heitor! Não seja bobo. Já reparei que usa luvas para tocar

nas plantas, botas para caminhar na terra. Precisa sentir essas

coisas, sinta a energia que elas transmitem.

Heitor andou de um lado para o outro nervoso com a situação;

- Como vou fazer isso? Minha tia me dizia que tudo é sujo.

Tenho que ter cuidado para não me infectar com alguma doença

maligna.

Charlotte solta uma gargalhada e diz;

- Não! Essas coisas não vão ferir você, no máximo te causarão

alguns arranhões, mas nada que não se cure por conta própria.

(Heitor ainda ficou um tempo parado olhando para o paredão)

Vai lá, mexa! Não há o que temer.

Então ainda com alguns receios, ele pôs-se a afastar os

galhos e cruzou a grossa camada de arbustos. Era tão sublime e

mágico, inacreditável que fosse tão belo e harmonioso. Heitor

parou no começo da longa estrada de terra e olhou para o céu de

flores amarelas, ele não podia acreditar no que estava sentindo,

era prazeroso desfrutar daquela paisagem. Seguiu ao lado de

Charlotte com passos curiosos e cautelosos.

Charlotte descontraída;

- Ainda está bonito como da última vez que vim. Faz tanto

tempo que nem me lembro mais.

Heitor

- É... Isto é recompensador.

43

Eles caminharam para dentro da trilha, os olhos foscos

de Heitor estavam atentos, era impressionante como aquelas

árvores eram gigantescas, e seus troncos eram tão grossos que

dava para abrir um túnel e fazer um carro passar por ali. Nossa!

Era agradavelmente gelado o clima. Ele passou pelo pequeno

lago, avistou os banquinhos que tinham sido tomados por

trepadeiras, mas ainda dava para identificá-los, e mais a frente

atravessando uma pequena ponte, o começo de uma cascata. Os

pretensos amigos seguiram o curso da queda d’água que

deslizava por rochas em uma série de declives acidentados e que

em alguns trechos formavam-se pequenas piscinas com águas

límpidas. Heitor sentou em uma pedra ao lado de uma das

piscinas a fim de descansar.

Charlotte ficou por alguns segundos parada na frente de Heitor,

mas logo declarou:

- Está bem, vou te dar uma folga. (Ela se senta em uma pedra

próxima).

Heitor com o diário e o mapa na mão respirou fundo;

- Estou cansado, definitivamente.

Charlotte

- Mas aqui não é incrível? Todo esse verde, o barulho da água

em movimento, sempre em movimento, os pássaros cantando, o

vento batendo nas folhas, o cheiro de terra molhada.

Heitor

- Sinto como se algo estivesse invadindo-me. Não é a primeira

vez que sinto isso, mas é a primeira vez que me sinto bem e a

vontade para deixar acontecer.

Charlotte

- É normal se sentir assim quando se está em um lugar tão puro

como esse. Um lugar onde toda a energia que circunda está em

44

harmonia, vibrando na mesma sintonia. Sem falar que tudo aqui

respira vida.

Heitor levantando-se;

- É melhor voltar. Já está ficando tarde para percorrer todo

aquele caminho de volta.

Charlotte também se levanta;

- Está bem.

Eles chegaram a casa depois do horário de almoço, e

como Heitor estava muito cansado, ele apenas lanchara no final

da tarde após acordar de um leve cochilo que teve. As coisas

estavam mais calmas, não na casa, nem ao seu redor, mas sim

dentro de Heitor. Depois de muito tempo ele conseguira sentir-

se em paz por um breve momento enquanto dormia aquela leve

e tranquila noite, ausente de pesadelos e rostos não amigáveis,

sua mente estava quieta como a mansão e tudo ao seu redor.

Nada podia ser mais maravilhoso do que aquele

amanhecer. Depois de muito se espreguiçar na cama, Heitor

olhou para o relógio e ficou surpreso quando percebera que

dormira toda a noite e seus pesadelos não o cansaram, nem

sequer passaram por lá. Ele levantou da cama e pôs seus

chinelos felpudos, esfregando os olhos foi para o banheiro e

lavou o rosto, a sonolência e o mal estar não existiam mais, o

jovem nunca se sentira com tanta energia e vontade de fazer

alguma coisa. Então ao aproximar-se da janela de seu quarto e

afastar a escura e pesada cortina que não deixava a luz entrar,

Heitor percebeu que ainda estava escuro e com muitas estrelas,

ele voltou a olhar para o relógio que indicava às cinco horas da

manhã, retornou a olhar para fora da janela e tudo continuava

escuro.

Heitor

- Este lugar é louco.

45

Com a energia que estava sentindo, destrancou a porta do

seu quarto e desceu os degraus correndo não se importando com

o barulho que estava fazendo. Ao chegar no primeiro andar

ainda em passos apressados foi abrir a porta, ele saiu na varanda,

e parou. Estava congelado, como se uma arma muito poderosa o

tivesse atingido e feito ficar imóvel. Não tinha vento, mas o ar

estava muito frio e o sereno havia feito tudo ali fora ficar com

gotículas de água, Heitor não podia senti-las, pois seus pés

estavam aquecidos dentro dos chinelos felpudos. Charlotte

também correu de dentro da sala e parou ficando ao lado dele.

Charlotte olhando para Heitor;

- O que foi Heitor? Pude ouvir seus passos descendo a escada, o

que está acontecendo?

Heitor

- É tão bonito! Não! Bonito não seria a palavra perfeita para isto.

Preciso encontrar algo que se encaixe, que descreva apenas em

uma palavra como é sentir isso. Hummm... Mágico! Não, não

pode ser mágico, é tão real para uma palavra que indica

irrealismo e fantasia. Preciso de uma palavra com um

significado extraordinário.

Charlotte olhou para onde Heitor estava olhando e disse

também admirando não só a imagem, mas a palavra que estava

dizendo;

- Céu. É simplesmente... O céu.

Heitor extasiado degustou a palavra;

- O cééééuuuu. Como eu nunca reparei esse fenômeno antes?

Charlotte

- Seus olhos estavam fechados Heitor, como os gatos levam dias

após seu nascimento para enxergar. É o que está acontecendo

com você, depois de todos esses anos você se permitiu ver o

46

mundo como ele realmente é.

Bem na ponta do horizonte de toda aquela mata ainda

coberta pela sombra da noite que se despedia, um ponto

vermelho nascia clareando em degradê alaranjado e depois do

último tom já rosado, o cinza para o azul claro se mesclava

deixando aquelas poucas e separadas nuvens escuras como se

tivesse muita água para cair esfumaçando o quadro. De azul

claro também em degradê para azul escuro e por fim o perolado

azul marinho ainda deixava as estrelas que ali moravam

brilharem. Heitor e Charlotte ficaram ali sentados nos degraus

da varanda até o sol iluminar toda aquela parte da terra.

Tudo estava indo bem naquela manhã, era como Heitor

queria que fosse todos os dias. Sentado no sofá da sala do

primeiro andar, ele bebia o café que estava queimando sua

garganta, e antes de abrir o diário da menina Charlotte que

estava em sua mão, olhou para a capa dizendo:

Heitor

- Vamos continuar a nossa aventura Charlotte? (Charlotte

sentou-se na outra ponta do sofá e sorriu como de costume

aprovando a atitude).

Papai e eu quase sempre procuramos tomar café da manhã juntos,

às vezes ele inova, tomamos café na varanda olhando o mar, ou na varanda de frente para o jardim, olhando o indecente chafariz da mamãe, que ele repete toda vez que olhamos para o bendito que ela o adorava. Quando acordamos muito cedo preparamos um piquenique no jardim, e lá vamos nós cheios de tralhas penduradas pelos braços só para tomar café no jardim. Mas eu adoro todas às vezes que fazemos isso. Papai é mestre em mudar a minha rotina, apesar de me dar liberdade ele sempre está

Diário de Charlotte,

26 de Fevereiro de 1880

47

procurando coisas para fazer comigo em seus momentos de folga. De tanto tentar quebrar a rotina isso acaba que se torna uma rotina, então para variar, de vez em quando tomamos café na cozinha. Só de vez em quando. Hoje pela manhã, tomamos o nosso café, “na cozinha”, e papai como sempre leu as notícias do jornal, não que eu me importe muito com elas, mas ele faz questão de contá-las para mim, educadamente apenas as ouço, às vezes conversamos sobre um assunto ou outro. Eu por minha vez, lhe contei a parte do livro em que estava lendo, ele fica entusiasmado com as histórias, ou pelo menos se mostra educado como eu ao ouvi-lo narrar o jornal. O importante é que conseguimos conversar respeitando nossos momentos de falar. Após todo esse ritual, abri a porta da sala e fui para o jardim para alimentar a minha pele com um pouco de sol, estava radiante, seus raios solares faziam as verdes folhas molhadas com o sereno brilharem como se estivessem cristalizadas, as gaivotas estão sempre por aqui rodeando a casa, em alguns momentos elas chegam bem perto de mim. Papai diz que os animais sentem a nossa energia, e que eles sempre sabem se podem confiar em nós ou não. O dia estava tão bonito que fui chamar o papai para dar um passeio.

Charlotte entra de novo na casa com mais empolgação;

- Papai!

Lenard

- Sim Charlotte.

Charlotte

- Não quer ir dar um passeio comigo? O dia está tão bonito, o

sol está quente...

Lenard tirando os grandes óculos que estava usando para ler um

pequeno livro;

- Sim é claro! Podemos ir até a praia e dar um mergulho.

Charlotte

- E limpar a alma com a água salgada do mar.

48

Lenard

- Está bem, vá se trocar e me encontre aqui.

Trocamo-nos e seguimos a trilha que nos leva até a praia. É

interessante todo esse caminho, digo todo não porque seja longo, apesar de eu o tornar longo, digo isso porque quando meus primos vêm pra cá dizem que me perco observando as coisas, eles simplesmente correm para o objetivo, eu degusto toda a paisagem e ar fresco, lentamente faço o caminho até a água azul turquesa do mar. Mas como eu dizia, para chegarmos à praia apenas temos que descer uma estreita e íngreme estradinha de terra que fica logo aqui ao lado da casa, e então chegamos ao nosso paraíso reservado. Posso até sentir a areia fofa massageando meus dedos dos pés. Quando estou ali não quero saber, largo minhas coisas no chão e deixo a luz do dia me levar como sobre um encantamento, papai e eu nos divertimos, brincamos, conversamos, afinal, isso é tudo que importa, estamos bem. É incrível como sinto que isso tudo faz parte de mim, que estou no lugar certo, fazendo a coisa certa, não sinto vontade de sair deste mundo. Estou aqui, apenas estou, eu e meu querido pai, ele me ensina tudo que preciso saber. É como sinto que deve ser.

Heitor fechou o diário, ele estava pensativo.

Heitor

- Você e seu pai se relacionavam bem. É uma pena eu não poder

dizer o mesmo de mim e do meu pai. (Heitor ressalta o nome do

pai com uma voz mais altiva). O doutor Alberto.

Charlotte

- Por que não Heitor?

Heitor sentindo a necessidade acumulada em desabafar e se

expressar de alguma forma, cede em palavras os seus

sentimentos mais profundos daquela época olhando para o diário

de Charlotte como se pela primeira vez estivesse confiando os

49

seus mais guardados pesares dos quais nunca conseguira se

libertar;

- Primeiro que eu mal passei minha infância com eles, vivi um

pouco mais com minha mãe. Papai estava sempre ocupado com

seus negócios, havia sempre um problema a ser resolvido, as

poucas horas que ficávamos juntos ele falava de seus problemas,

tudo era um problema gravíssimo. Dizia que se não fosse por ele

eu e mamãe morreríamos de fome. Por outro lado minha mãe,

mulher jovem, bonita e desocupada. Lembro que me contava

que antes de se casar era uma moça feliz, muito feliz, que tinha

planos para o futuro, ela queria ser escritora, quando ainda

menina escrevera muitos poemas e histórias... Talvez isso a teria

feito feliz. Mas ela sempre fora frágil como um copo de cristal, e

sua fraqueza a levou para o fundo, deixando seus sonhos para

trás para ficar ao lado de um homem completamente diferente

dela, que nunca estava ao seu lado e que jamais admitiria que

sua esposa trabalhasse com uma coisa tão insignificante,

dizendo que os vizinhos iriam pensar que ele estava falido.

Sempre se importava ao extremo com o que as pessoas falavam

sobre ele, foi daí que o álcool virou o melhor amigo da minha

bela mãe Beatrit. Ahhh... Minha mãe Beatrit! Papai se afundava

nas pilhas de papéis cada vez mais ignorando todo o drama.

Então, uma tarde, recebi a notícia de que eles tinham morrido.

(Heitor dá uma pausa).

Charlotte ainda com sua leve afeição e comoção estampada

naqueles olhos negros;

- Estou ouvindo Heitor.

Em sua mente, Heitor conseguia lembrar-se do velho

cheiro do charuto do pai e da voz aveludada da mãe, que quando

sorria ficava ainda mais aconchegante aos seus ouvidos. Era

como uma reprise que o homem recluso e insensível fazia aos

seus velhos tempos de menino sozinho e inseguro, que ouvia os

gritos estridentes do pai volta e meia estremecendo as paredes da

50

casa. A mãe dócil e compreensiva de mãos pequeninas e macias,

as mesmas mãos que afagavam o rosto delicado do menino

franzino à noite ao adormecer.

Beatrit no quarto de Heitor ao lado de sua cama pondo-o para

dormir sussurrou:

- Heitor.

Heitor também sussurrando:

- Sim mamãe.

Beatrit

- Prometa-me que será um menino forte quando eu não estiver

mais com você.

Heitor

- Você sempre vai estar comigo mamãe.

Beatrit

- Eu sei querido, apenas quero me certificar de que ficarás bem e

não sentirás medo de sentir medo.

Heitor

- Como assim mamãe?

Beatrit acariciava o filho enquanto falava, e as poucas velas que

iluminavam o quarto, queimavam lentamente deixando suas

lágrimas de cera quente rolarem pelo seu corpo chegando até a

base do candelabro, onde juntavam-se a dura crosta de lamentos;

- O medo meu querido Heitor, pode ser usado para nos

fortalecer, nada mais é que uma preocupação que sentimos de

perder alguma coisa, de uma simples ideia dar errado ou de

ficarmos sozinhos. Se sentir medo, vá em frente, preocupe-se o

quanto for preciso, mas nunca deixe de fazer o que acha que é o

certo. E lembre-se sempre, que nós nunca, jamais, ficamos

51

sozinhos.

Heitor

- Eu nunca sentirei medo mamãe. Eu sou forte.

Beatrit

- Está bem meu amor, eu acredito em você.

Alberto impaciente já gritava do grande corredor da casa o

nome de sua mulher;

- Beatrit! Onde você está?! Mas que diabos essa mulher

desaparecer! Mudaremo-nos para uma casa menor, talvez assim

eu te ache! Beatrit!

Beatrit dá um beijo na testa de Heitor;

- Nos vemos amanhã meu amor. Talvez possamos passear à

tarde quando eu e seu pai tivermos voltado da casa do

governador.

Heitor

- Eu adoraria mamãe.

Alberto agressivamente abre aporta do quarto de Heitor;

- Ah! Finalmente! Você estava aqui com esse garoto! Cumpre

com seu papel de mãe, mas não com seu papel de mulher.

Vamos logo antes que eu necessite tomar uma de suas

empregadas.

Beatrit se despede de Heitor;

- Boa noite querido, durma com os anjos.

Heitor

- Boa noite mamãe. Amo você.

52

Beatrit

- Eu também te amo querido.

Charlotte despertou Heitor com sua clareza e calma que

expressava ao falar, o que lembrava Beatrit;

- E depois, o que aconteceu?

Heitor

- O dia estava estranho. Quando acordei, eles já haviam saído, a

casa do governador ficava bem longe da nossa, pelo menos foi o

que me pareceu na única vez que papai me deixou ir. Eu tinha

um balanço de corda que ficava em uma das árvores no jardim

da frente da casa, mamãe havia mandado pôr para eu brincar um

pouco fora da casa escura que papai insistia em manter as

cortinas fechadas. Após o almoço fui esperá-los na escadaria da

varanda, lembro que parecia que o mundo havia parado por

alguns momentos, não senti um sopro de vento, muito menos vi

levantar uma sequer folha da primavera, mas o balanço da

mamãe estava balançando, não entendi o porquê, mas senti

como se fosse um convite para me distrair. Meia hora após

chegaram alguns carros da família, até que um dos meus tios me

deu a terrível notícia de que meus pais haviam falecido em um

acidente de trânsito.

Charlotte

- Eu sinto muito Heitor.

Heitor

- Eu tinha apenas doze anos, doze anos e nunca havia sentido

tanta raiva. Não sabia por que estava acontecendo aquilo, pois

eu sempre busquei fazer todas as coisas certas. Mamãe me

obrigava a rezar todas as tardes e noites, e para quê? Sempre

tentei não odiar o papai, no entanto, mesmo tentando ser um

bom menino fui castigado. Nunca perguntei para ninguém como

foi que aconteceu, mas imagino que papai provavelmente deva

53

ter ficado mais uma vez irritado com alguma coisa que mamãe

disse, e se descontrolou.

Charlotte

- Não deve pensar nessas coisas Heitor. Independente do que

possa ter acontecido, tens que entender que se aconteceu desta

forma ou de qualquer outra, foi por que tinha que ser assim. O

destino às vezes nos obriga a convivermos com nossos carmas,

só ele sabe o porquê. Mas sempre se lembre de que se conseguir

superá-lo, será uma pessoa melhor. Não acredites que passada

essa prova estarás livre e permanecerás feliz e contente. Uma

vez vencida a prova, já terás outra a te esperar e assim

conseguintemente.

Heitor não conseguia desgrudar os olhos do diário, era

uma atração estranha que ele sentia pelo objeto. Sem dizer mais

nada, foi se desligando de todo o momento emotivo que havia

passado, ele não respirou fundo como se tivesse tirado um

grande peso das suas costas, talvez porque ainda carregava

aquela velha sensação de agonia e solidão, mesmo sem entender

muito bem por quê. Levantou-se lentamente do sofá, talvez

porque seus pensamentos ainda não estivessem totalmente

voltados para o que seu corpo estava querendo fazer, fugir

daquela situação que tocava em sua ferida mais dolorosa. Mas

Heitor já sabia que não adiantava correr dali, não adiantava se

esconder, não adiantava... mudar-se para outra casa, seus

sentimentos de mágoa, raiva e dor o perseguiam, pois ainda

estavam vivos em seu interior, e por mais que ele tentasse

enterrá-los cada vez mais todos os dias que acordava, ele

continuava a sentir todos aqueles sentimentos que em algumas

vezes chegavam a lhe causar dor física. No meio do caminho,

subindo a escada para o segundo andar, seu corpo já não estava

tão pesado para suas pernas não quererem guiá-lo. Charlotte

ficou ali, respeitando a mania do moço de retirar-se dos

ambientes sem ao menos pedir licença.

54

Charlotte falando sozinha;

- Se papai estivesse aqui me diria o que fazer. Também estou

sozinha, mas como este é o meu desafio não teria como ser

diferente. Pelo menos agora eu consigo entender algumas coisas.

Aquele dia de sol havia ido embora e o senhor Heitor o

passara em seu solitário quarto. Com as lembranças tudo havia

voltado a ficar cinza, como quando se mergulha num profundo

mar azul escuro, quanto mais se nada para baixo, mais sem cores

as belezas marítimas vão ficando. Charlotte não podia deixar de

sentir a tristeza do belo moço sem juventude, mesmo sem estar

no mesmo ambiente, sua ligação ficava cada vez mais forte, ela

podia quase ler os pensamentos do antes rabugento Heitor.

Costumava passear pela casa pelo simples prazer de estar ali.

Ela conversava sozinha, e por mais que reconhecesse a

estranheza de suas manias, dizer seus pesares, suas

preocupações e seus insignificantes pensamentos em voz alta,

fazia sentir-se acompanhada. A simples menina da mansão do

penhasco era incansável, com sua filosofia de vida era

inatingível, pois tudo se resolvia, podiam dar-lhe o mais

complexo problema da mente humana, Charlotte via com

simplicidade todos os bichos de sete cabeças, mas sabia que

jamais ganharia alguma batalha se não disponibilizasse seu amor

e sua paciência.

No quarto de Heitor, as cortinas dançantes mostravam que

o costumeiro vento da noite já estava presente esfriando

aconchegantemente o ambiente. Charlotte encontrou a porta

entreaberta, com seus pés descalços como de costume foi

pisando lentamente para não chamar muita atenção do distraído

amigo, os dedos compridos empurraram a velha porta de

madeira que fez sair um ranger agudo quase que assustador.

Heitor estava deitado com seus olhos amendoados abertos

que mais pareciam janelas gélidas e blindadas, ninguém entrava,

ninguém saía. Ele virou-se para o outro lado, ainda deitado

permaneceu imóvel com seu rosto que lhe servia bem como um

55

escudo naquele momento, mas a menina de vinte anos, com

forte personalidade e perseverança inabalável, nunca se deixara

intimidar tão depressa. Preocupada com a reação do moço, em

passos sutis seguiu para o lado da cama em que este estava

virado, ela podia ouvir a forte respiração de Heitor de como

quem estava inseguro e fadigado, ele por sua vez não movera

um centímetro de seu corpo trêmulo, mas deixou ser levado pelo

que estava sentindo. Charlotte tocou o lençol de seda marrom

escuro, sua mão deslizou até o travesseiro que ficava no lugar

vazio da cama de casal, consequentemente seu corpo foi

escorregando junto, suas pernas se ergueram para cima da cama

quase que em câmera lenta, e então, os dedos dos delicados pés

abriram caminho na coberta que cobria apenas os pés de Heitor.

Ela aproximou-se dele até conseguir sentir sua quente respiração

batendo em seu rosto, o que ainda provava-lhe que dentro

daquele peito sofrido batia um coração carente no aguardo de

alguém que o entendesse. Ali, deitada ao lado daquele pouco

conhecido, a graciosa senhorita o olhava nos olhos, olhos que

nunca a encaravam, olhos que guardavam segredos, olhos que

faziam qualquer um perder-se em mistérios, os próximos, mas

tão longes olhos de Heitor, eram tão doces como balas de

caramelo. A pequena mão de Charlotte ergueu-se calmamente,

sobrepondo-se levemente no rosto de Heitor que a fez sentir um

choque fazendo-a recuar a mão. O quieto moço pareceu sentir o

mesmo mostrando um pequeno espasmo, mas logo retornou a

sua postura imóvel. Perseverante, Charlotte pôs-se a fazer o

mesmo caminho com a mão, desta vez conseguiu com sucesso

tocar a fria pele do rapaz tristonho, que ao sentir o acolhedor

carinho da moça, respirou fundo, fechou os olhos lentamente e

deixou o cansaço o levar para seu mundo interior.

Charlotte com a doce voz em tom baixo não se importou em

conversar com o sonolento Heitor;

- Sabe Heitor, talvez eu entenda a sua dor. Perdi minha mãe no

mesmo dia em que nasci, então não tive tempo para conhecê-la,

56

mas de alguma forma sempre a senti presente não deixando

entristecer-me quando pensamentos nebulosos tomavam conta

de mim. Papai e eu conversamos muito sobre ela, de como eram

seus cabelos negros e sua voz de cantora lírica, seu perfume

sempre esteve por toda parte da casa, sei que ela adorava as

flores e o verde. Papai me contou que quando mandou construir

essa casa foi a mando dela, ela escolheu tudo disse ele, cada

pedaço de madeira e cada espécie de planta que há no jardim.

Somos felizes porque não a perdemos, ela está em tudo por aqui,

mas o mais importante, é que ela vive dentro de nós, o nosso

amor não nos deixa esquecê-la, nos recordamos de suas alegrias

e seu jeito feliz de viver. Não perdemos nosso tempo julgando o

destino, pois de nada isto nos servirá. Então meu amigo, hoje

você pode chorar o quanto quiser, revolte-se, pergunte-se o

porquê, pode até não aceitar, mas apenas por hoje meu amigo,

pois a vida é muito mais do que isto. Depois, enfrente seu

egoísmo, pois não podemos ter tudo que queremos, quando

queremos e do jeito que queremos. A natureza não funciona

assim, temos que aprender a deixar as pessoas seguirem em

frente. Vivemos tentando resolver os problemas do mundo e

esquecemos-nos de resolver a nós mesmos, que somos os

geradores das consequências dos nossos atos. Pois então te digo,

ninguém tomará suas dores, isso é contra as leis do universo e

do progresso, tens que assumi-las e resolvê-las, pois só assim se

sentirás completo e feliz. Não desista caro Heitor, siga em

frente, siga em frente.

Heitor dormiu, e enquanto seu dormente sono se alongava,

o triste cavalheiro recuperava-se de suas dolorosas lembranças,

o estágio de relaxamento em que se encontrava era profundo. Ao

acordar, abriu seus abaloados olhos e percebera que já era dia,

diferente de suas frequentes noites de insônia as quais dormia no

máximo três horas, ele havia dormido a noite toda e despertara

só pela manhã. Suas mágoas e dores da alma que lhe havia

pesado o corpo e arrancado-lhe o sossego, estranhamente não

57

existiam mais, era como se alguém tivesse sugado durante a

noite toda parte escura de seus pensamentos. Charlotte já não

estava por lá. Ele levantou sentindo-se disposto, foi até uma das

janelas do seu quarto e viu que o mesmo sol do dia anterior

voltara para esquentar-lhe a fria pele branca. Depois de todo seu

ritual matinal, da sua caneca de café quente bem quente, de

espantar os pássaros da janela, e de olhar para as folhas em

branco tentando espremer alguma imaginação e criatividade de

dentro de si, Heitor desistiu da rotina.

Heitor sentado à mesa;

- Por que estou me prendendo a isto? Não, não é o que quero

fazer! Talvez eu devesse...

Com roupas leves, o jovem cavalheiro surgiu em uma das

janelas olhando para o mar que mostrava ondas pequenas e

perfeitas próximas à costa. Heitor sentiu uma enorme vontade de

correr para fora da casa, e foi o que ele fez. Com seus chinelos

felpudos desceu o último degrau da escada da varanda, e quando

tocou a verde e fresca grama, parou.

Charlotte que já passeava pelo jardim encontrou-se com Heitor

estranhando os trajes do rapaz que ela jamais suspeitaria que ele

pudesse vestir algo tão à vontade;

- Aonde vai vestido deste jeito Heitor?

Heitor tirando os chinelos e jogando-os na varanda;

- Com estes chinelos não poderei sentir a areia da praia.

Andando, Heitor fazia pela primeira vez o caminho até a

praia. Charlotte pensou que devia deixá-lo explorar essa

sensação sozinho, permanecendo assim no jardim que tinha vista

para o mar. Heitor estava sentindo a grama massagear seus pés,

e quando tocou a estradinha de terra que tinha que descer para ir

até a praia, sentiu uma estranha sensação, como se fios de

58

energia se ligassem aos seus pés e crescessem por dentro do seu

corpo ativando todo seu sistema nervoso, tornando-o mais

sensível até o mais leve vento maral que o envolvia. Aquela

sensação era nova e estimulante, era saboroso aos olhos de

Charlotte ver seu aprendiz tomar decisões que fugiam as suas

próprias regras, arriscando-se a provar de uma nova liberdade,

um passo pequeno que possivelmente desencadearia grandes

reações no recluso cavalheiro. O andar de Heitor foi ficando

cada vez mais rápido à medida que ele via o oceano de um azul

intenso aproximar-se, o barulho das ondas quebrando só o atraía

cada vez mais e mais, como se ele estivesse enfeitiçado por

aquele sentimento sagaz e entusiasta que o fazia querer apenas

correr para as ondas. E então, seus pés tocaram a água, e os fios

que outrora a terra enraizou pelo seu corpo agora estavam

elétricos, provocando reações por todo o seu corpo, estimulando

seus sentidos, trocando energia. Heitor mergulhava e

mergulhava e ria de si mesmo, como se alguém estivesse lhe

fazendo cócegas por todo o corpo, ele furava as ondas, nadava, e

ainda deixava-se levar por aquela massa d’água que rodopiava

seu corpo tirando-lhe o fôlego e deixando-o na areia, exausto,

Heitor ria.

Charlotte lá de cima via toda a brincadeira orgulhosa;

- Ele está aprendendo.

Final de tarde. Agora o rapaz de alma leve e corpo cansado

desfrutava das gotas de chuva que estavam caindo sobre aquele

lugar parado, sentado ali na varanda, Heitor percebia que

qualquer lugar daquela antiga mansão o convinha, fazendo-o

sentir-se familiarizado. Ele se inspirava neste novo momento

descrevendo-o em letras e frases seu mais profundo sentimento.

59

Doce e sonho

Charlotte consegue viver em mim, não sei como ela faz isso, como ela entra em meus pensamentos, mas ela entra sem pedir licença. Ela não é só a Charlotte puramente, pura de corpo e de mente, ela é tudo em minha volta, é a mansão, a floresta, o mar, a chuva, o vento. E é lento esse quase tormento de querer fazer parte desse empreendimento de vida sem saber por onde começar. Seu saber vai além da química e da física, é uma espécie de alquimia da luz transparente, às vezes consigo ver seus olhos quando fecho os meus, é mais profundo que a matéria e não se precisa estudar para decifrá-los, pois eles são claros apesar de escuros, escuros como a noite, não posso vê-los, não posso vê-la, não enxergo, quando não quero. É-me confortadora essa sensação que sinto quando meus pensamentos se voltam para ela. Luz do sol ao entardecer esquentando a pele no frio inverno, enquanto o vento congela meu rosto e eu quase não sinto meu corpo deitar-se sobre a cama vazia, vazia de tristeza, vazia de meus pensamentos, vazia de mim e dela. Oh doce Charlotte, alegria esplêndida que brilha como o sol ofuscando meus olhos não me deixando vê-la, apenas sonho agora, sonho. HT HT

E depois de muitas horas de observação da natureza, de

pensamentos vagos e rabiscos em folhas de papel, como todo

começo de noite, a chuva já havia passado e ficava aquele ar

úmido e frio que congelava as narinas de Heitor toda vez que ele

respirava. De pés descalços ele podia sentir a madeira que não

era tão fria, seus chinelos felpudos agora empoeiravam-se

debaixo da sua grande cama, esquecidos. E Charlotte onde

estaria? Onde estaria a doce Charlotte de sonhos viventes que

ultrapassam sua mente deixando-a mais resistente ao tempo e ao

ambiente onde nascer era todo amanhecer. Onde?

Sem mais pensar, Heitor abriu o velho diário a fim de

encontrar os sonhos de Charlotte, a próxima folha amarelada

dizia:

60

Estou no meu lugar preferido da casa, na verdade não é bem na casa e sim no jardim, é tudo tão verde e vivo, tanto quanto nós. Sinto que posso até conversar com as folhas e quase que elas me respondem, não posso imaginar um lugar melhor que aqui para se viver, por toda minha vida vivi entre esses arbustos e cresci junto com as árvores, elas são como as irmãs que não tenho. Tocá-las e abraçá-las faz-me sentir renovada na pureza. Hoje é um dia bom, a luz foi escondida pelas nuvens de massa cinzenta, papai diz que o tempo assim fica feio, mas eu discordo, acredito que tudo tem sua beleza, tanto os dias de sol como os de chuva, mas por algum motivo os dias de chuva me são mais especiais. O silêncio aguça os pingos d’água que caem mais grossos quando ficamos debaixo de alguma árvore, e ai você ouve o agradável barulho da água tocando a folhagem e todo o resto no horizonte some por trás da neblina, não te deixando mais ver a longa linha do fim do chão espelhado, onde na verdade é simplesmente o começo do mundo onde nossos limitados olhos não conseguem chegar, mas se o fecharmos e deixarmos-nos envolver pelo friorento clima sem questionamentos ficando parados, simplesmente parados, podemos nos transportar para lá e ainda mais além, onde você perde sua identidade, onde se sente sensações indescritíveis, sensações antigas, mais antigas que a nossa própria idade. E então, você tenta olhar dentro de si, mas você não consegue porque você não está ali, você está na linha do horizonte e ainda mais além, viajando com o vento de outros mundos, ventos que trazem histórias, é quando consigo fantasiar em minha mente os amores que ainda não vivi, os contos que ainda não contei, as vidas que ainda quero viver, histórias. O vento me leva, e quase contra minha vontade, ele me trás de volta, então eu espero a próxima chuva, o próximo vento, e as nuvens cinzentas.

Diário de Charlotte,

14 de março de 1880

61

Heitor olhando para o horizonte;

- Tudo isso parece um... sonho? Do jeito que ela escreveu como

se vivesse em seu próprio paraíso.

Charlotte cruzou a porta e seus passos se fizeram ouvir na

varanda;

- O paraíso nada mais é que a paz interior meu caro amigo.

Algumas pessoas se veem tão longe dele, outras acham que é o

poder, e outras acreditam que quanto mais dinheiro se tem, mas

perto se está dessa coisa que todos querem, mas poucos

conseguem. Existem aquelas que pensam que nada mais é que

um lugar, mas eu particularmente acredito que o paraíso é aquilo

que nosso estado de paz e sabedoria plena consegue projetar e

fazer sentir. Está tudo em nossa mente, devemos parar e pensar

em todas as nossas atitudes, devemos observar mais o

comportamento das pessoas sem o intuito de lhes apedrejar, pois

essa atitude não revela nada mais que nosso nível de imperfeição

e insegurança, devemos sim julgar a nós mesmos, sem medo de

perceber que falhamos. O paraíso é aceitação dos erros tentando

não errar mais, da bondade sem cobrar absolutamente nada, do

perdão sem esperar ser perdoado. E assim, sem esperar que as

pessoas vejam tudo isso, seu paraíso será montado lentamente

dentro de você, você pode conquistá-lo como um pedaço de

terra, basta procurar o justo sempre que seu orgulho tentar falar

mais alto.

Heitor levantou-se da cadeira e seguiu até a ponta da varanda

olhando para o céu, antes de falar ele soltou um quase que feliz

pigarro;

- Engraçado, o céu abriu e as estrelas voltaram. Este lugar

parece fora da realidade. (Ele caminha para dentro da casa). É

bom eu ir dormir. (Ele olha para o diário). Amanhã nós

continuaremos nossa aventura literária. Boa noite Charlotte. (Ele

fecha o diário).

62

Charlotte

- Boa noite Heitor, durma bem.

E as noites como de costume eram frias, tão frias que se

alguém respirasse por ali dar-se-ia para ver seu rastro de ar

quente saindo de seus pulmões, tornando-se visível qualquer

sopro de vida. Mas os fantasmas da noite de Heitor eram

assustados pelo vermelho fogo da grande lareira do seu quarto

que queimava a lenha até próximo do amanhecer, quebrando o

gelo do ambiente escuro e quieto, que nem o pesadelo mais

assombroso conseguia fazer alguma coisa mexer, pelo menos

não na mente de Heitor. Os velhos candelabros ficavam sempre

com suas velas amareladas apagadas, pois o vento que entrava

pela janela funcionava como sopros de aniversário, não

deixando uma sequer derramar suas lágrimas de cera. A porta

pesada de madeira batia frouxa quando encostada, ouvia-se de

muito longe um tilintar de uma espécie de ladrão de sonhos que

ficava na varanda, que provavelmente fora Charlotte quem o

colocou lá. Então, todo aquele silêncio musical foi corrompido

quando Heitor ouviu um barulho, um barulho não muito comum,

como de alguma coisa quebrando, talvez um copo de cristal. Ele

levantou seu corpo da cama assustado, ainda meio zonzo como

se tivesse despertado bruscamente de um profundo sono, ficou

parado, estático, sem saber até porque ele estava assim, com...

Medo? O sonoro silêncio se fez de novo, ele pensou ter sido o

som produto de seu imaginário adormecido. Mas então, outra

vez ele ouviu o ensurdecedor barulho de algo se espatifando no

chão e se dividindo em migalhas, agora mais desperto, tinha

certeza que não fora ilusão.

Heitor sussurrou;

- Mas o que é isso?

Calmamente, quase que petrificado, Heitor vencia sua

enorme vontade de se enfiar debaixo das cobertas e orar as

63

orações que conhecia, corajoso como todo homem deve ser, pelo

menos era como ele pensava, pegou uma espécie de fósforo na

gaveta de seu criado mudo, andou lentamente até uma das

cômodas onde ficavam alguns candelabros para o chão de

madeira não ranger, avisando assim ao suposto invasor que há

passos avançando no andar de cima. As velas acenderam

iluminando o local, por um minuto Heitor pensou que nunca

tinha reparado que a velha mansão tinha um ar sombrio à noite,

mas não querendo focalizar nessa ideia assustadora, seguiu para

o andar debaixo. Seus passos se fizeram presentes em alguns

degraus que faziam um resmungar abafado, ele tentava pisar

cada vez mais na ponta do pé. No primeiro andar tudo estava

parado como deveria estar, nada fora do lugar, sem nenhum

sopro de ar, e Heitor se perguntou:

- O que há?

Dirigiu-se a cozinha, e então pode ver até antes do

amanhecer, pelo menos uma prova de que não era sonho, pois

seus pés estavam sentindo o copo de vidro que não estava

arranhado e sim quebrado, e não era um, eram dois. Heitor

desejou por alguns segundos ter optado ficar na cama debaixo

dos cobertores rezando as orações que conhecia, mas ele já

estava lá, a pisar sobre os cacos de vidro. Mas um barulho se fez

ouvir, agora mais parecia um choro, um chamado, como a voz

de uma criança, era muito fino o timbre, quase que

imperceptível. Heitor ouvia e caminhava agora destemido do

antigo perigo que o fez lembrar os seus tempos de menino. Ele

abaixou a cabeça vagarosamente para ver debaixo da mesa, seu

corpo o acompanhou deixando-o de joelhos, e quando deu por

si, reparou que grandes olhos amarelados o vigiavam, e então, o

fino timbre que lembrava uma criança fez-se explicar quando

sua pequenina boca rosada soltou mais um miado. O gato

manhoso de cara achatada pelos longos e cinzentos, mais parecia

uma bola de pelos, o medroso Heitor abriu um sorriso de alívio,

tudo se explicara agora.

64

Heitor olhando para o gato assustado;

- Como você veio parar aqui? (Ele se levanta do chão deixando a

gata onde estava, e com um pequeno sorriso declara:) Os bichos

desse lugar não tem a menor consideração pelo espaço dos

outros. (E voltando para sua confortável cama ele continuou

andando e resmungando). Uma hora me aparece um corvo, na

outra uma borboleta, agora um gato?! Eu não sei mais o que

fazer... Daqui a pouco vou notar ter vindo morar em um asilo

para animais.

Mais um amanhecer despertou a misteriosa mansão, que

para seus moradores lhe era simpática apesar do ar bucólico

ainda aconchegante. Heitor não conseguira mais dormir depois

do acontecido, com a tensão que sentira noite passada ele não

relaxara totalmente, e de minuto em minuto abria os olhos para

conferir se não havia ninguém em seu quarto. Ao pôr os pés na

sala viu o simpático gatinho esparramado de patinhas para o ar

brincando, Charlotte já estava acordada e participava da

brincadeira com o gato também esparramada pelo chão

interagindo com o felino.

Heitor cruzando a sala indo para a cozinha sem mostrar o menor

interesse nas peripécias tanto de Charlotte como do gato;

- Ah! Você já está ai é?!

Charlotte demonstra na voz o entusiasmo com o animal;

- Sim! Você sabe que acordo cedo. Viu que agora temos uma

gata?

Heitor se distanciando;

- Já vou logo avisando que não simpatizo com gatos.

Charlotte levanta-se para seguir Heitor até a cozinha e a gata

também a segue;

- Mas é uma gata.

65

Heitor

- Na verdade não simpatizo com animal algum.

Charlotte

- Ah! Deixa disso Heitor, por algum motivo ela veio parar

justamente aqui, e como eu sempre digo que nada é por acaso eu

voto a favor da permanência da gata.

Heitor preparava o café enquanto o animal ficava ao seu

lado em cima da pia rolando de um lado para o outro, às vezes

ela parava com as patinhas para o ar e encarava com seus

esbugalhados olhos amarelados o antipático moço que insistia

em não cair em suas graças.

Heitor por um momento olhou para a gata;

- Humm... É uma menina.

Charlotte sentada à mesa;

- Sim foi como eu disse, é uma gatinha muito esperta.

Heitor parou o que estava fazendo;

- Hummm... Não sei não. Teria que ser bem mais graciosa que

isso para me cativar.

A gata rolou, rolou e pôs-se de pé, caminhou até onde

estava um dos braços de Heitor e esfregou seu macio pelo

cinzento enrolando sua longa calda espanada no quase

convencido Heitor, e então fixou seus doces e carinhosos olhos

esperançosos em busca de uma resposta.

Heitor

- Parece até que você entendeu o que eu disse. Deixe-me pensar.

Charlotte levantou-se da cadeira;

- Vamos Heitor, ela é tão fofa e meiga. Você não deixaria uma

66

gatinha dessas sem lar, à deriva, deixaria? Olha que ela pode ser

uma peça importante na sua vida. Sabia que nós aprendemos

muito com os animais? Eles podem nos servir só como distração

ou capricho, mas também podem se tornar grandes amigos e

companheiros, acredito que até nos entendem, ficando ao nosso

lado quando estamos tristes ou alegrando nossas vidas em

momentos difíceis.

Heitor

- Está bem, está bem! (Charlotte deu um salto e um grito de

alegria). Mas se vai ficar aqui, preciso arranjar um nome pra

você.

Charlotte

- Nisso eu não pensei.

Heitor pensativo encarando a gata que também não lhe

desgrudava os olhos;

- Já sei! Como no diário da nossa amiga Charlotte os dias

chuvosos são especiais, não são?

Charlotte

- Acredito que sim.

Heitor acariciando a gata que agora se sentia ainda mais íntima

do rapaz;

- Vou te chamar de Neblina, porque você é cinza como a neblina

que escondeu o horizonte da Charlotte, permitindo que ela nos

escrevesse coisas tão bonitas.

Charlotte experimentando a sonoridade do nome;

- Neblina. Ótima ideia Heitor, ela realmente parece uma neblina.

67

Heitor mexendo no armário;

- E então Neblina, você quer um pouco de leite? Deve estar com

fome. (Ele derrama um pouco de leite em uma vasilha e a gata

se esbalda).

Charlotte

- É! Ela parece faminta.

Heitor olhando para os vidros que a gata derrubou noite

passada;

- Bom, agora terei que limpar toda essa bagunça. Trate de não

quebrar mais nada Neblina, já tenho a feliz e contente Charlotte,

só me faltava uma gata desastrada.

E a gata sem nome e sem dono virou um sonho, a menina

Charlotte antes crescida sozinha na grande mansão do penhasco

agora conquistara um novo amigo, e Heitor, o triste e solitário

menino que perdera seus pais quando ainda criança, o homem de

gelo que procurava sossego, começava agora seu caminho, sua

trilha rumo à compreensão em busca do seu eu, dos seus

porquês e de suas respostas em busca da paz. O caminho era

longo, mas que caminho não é longo quando se está em busca de

algo tão valioso?

Aquela manhã era apenas mais uma manhã onde Heitor

devia seguir a sua rotina, antes disso tratou de recolher os

mínimos caquinhos de vidro dos copos de cristal que a gata

Neblina havia quebrado, após seguiu seu ritual com seu café da

manhã cheio de bacons, ovos, pães e é claro a famosa batata da

Irlanda, tomou sua caneca de café quente bem quente, sentou-se

em sua cadeira no escritório, olhou para as folhas em branco,

ficou alguns minutos sentado ali olhando para as folhas como se

estivesse esperando um clique, uma luz, alguma voz em sua

mente para lhe dizer o que fazer. Mas nada, ele estava vazio, não

sabia por onde começar. Desistindo, Heitor se sentiu um

fracasso, levantou-se cabisbaixo saindo daquela bonita mesa que

68

passava certa credibilidade, mas ele não, ele era só alguém

tentando ser escritor como sua mãe Beatrit. Talvez ele fizesse

todo esse esforço porque pensava que se escrevesse como sua

amada mãe não se distanciaria de sua lembrança, não a

esqueceria. Heitor seguiu tristonho para a sala e largou seu

corpo no sofá como se não o desejasse mais. Charlotte

continuou dando atenção para a gata.

Heitor pensando em voz alta;

- Eu só queria escrever como ela.

Charlotte sem parar de brincar com a gata parecia ouvir de

muito longe o que Heitor falava, pois não estava concentrada

nele;

- Hã...?!

Heitor

- Só queria escrever... (Ele respirou fundo).

Charlotte indo sentar-se na outra ponta do sofá, a gata a segue;

- Heitor, escrever era é um dom da sua mãe, ela o fazia

naturalmente porque surgia de dentro dela. Você deve ir à busca

do seu próprio dom, assim irá se sentir muito mais realizado e

feliz consigo mesmo. Beatrit escrevia, você não precisa copiá-la

para provar a si mesmo de que a amava muito e nunca irá

esquecê-la. Tente fazer alguma coisa que o inspire, nem que seja

só para se distrair, se não conseguir com uma coisa tente outra, e

assim continue tentando, até achar algo que o faça se sentir livre

e feliz.

Heitor

- Tenho muitas coisas para fazer hoje, não posso me deixar

abater só por causa disso. (Heitor dá um salto do sofá).

69

Charlotte para Neblina;

- Vamos ver o que ele irá aprontar desta vez? (A gata corre atrás

de Heitor e se embola em seus pés não conseguindo fazer com

que ele parasse de andar).

Heitor com um tom um pouco alto dá uma risada;

- Pelo menos você me anima!

Charlotte sorri das peripécias da gata Neblina;

- Ficamos felizes em ajudar! Está começando a superar mais

rápido.

O falecido jardim da mansão já não estava tão morto,

pois o pouco tempo que Heitor dedicava a ele já adiantava

alguma coisa para àquelas plantas carentes de cuidados

especiais, mas nunca seria suficiente todo tempo do mundo para

cuidar de tamanha riqueza florestal, a sorte de Heitor é que boa

parte da vegetação cuidava-se sozinha, ficando com folhas

verdes que amarelavam e caiam abrindo espaço para mais duas

vidas brotarem verdes de novo. Como sempre que cuidava do

jardim, o sensível moço arrumou-se com seu quite contra

infecções, pois uma de suas tias que o criara após o falecimento

de seus pais lhe educara dizendo que em tudo havia veneno,

principalmente nas plantas e coisas da natureza. Com suas luvas,

tesoura e máscara para não inalar qualquer espécie de pólen, ele

dirigiu-se para as flores. Charlotte o seguiu, por mais que ela já

estivesse acostumada com o estranho jeito do rapaz e já o tivesse

visto com toda aquela parafernália para cuidar das simples

plantas, jamais se acostumaria com tanta sensibilidade, mas sem

dar muitos palpites respeitou o estranho jeito de Heitor.

Rosas de todas as cores enfeitavam o jardim, brancas,

vermelhas e rosa chá, as margaridas eram para alegrar, e parecia

que tudo se harmonizava de uma maneira única como uma

amizade pura e simples, olhar aquele imenso jardim vivendo em

conjunto, como se tudo estivesse ligado, era fascinante. Até o

70

chafariz seco ainda sujo cheio de limo fazia surgir uma beleza

em meio ao abandono. Com as grossas luvas de borracha Heitor

não conseguia tocar direito as rosas, a tarefa sempre fora difícil e

desagradável, pois ele não via graça em cortar pedaços de folhas

e limpar o que morria para abrir espaço para a vida.

Charlotte tenta abrir a mente do rapaz com suas palavras

enquanto o mesmo se dedica a seus afazeres com expressão de

pensativo.

- Heitor, o medo é o veneno da vida. Com medo você não

assume que não serve para escrever, não abrindo assim

possibilidades para tentar outras coisas até achar algo que o

complete, ou de repente você descobre até muitas outras coisas

em que é bom e muito feliz. O medo é o veneno da vida quando

ele não te deixa experimentar coisas novas, porque você

simplesmente sente medo de falhar, mas é preciso falhar para

aprender, descobrir e talvez chegar perto da perfeição. Sentir

medo é existir, existir é viver, e viver é descobrir que o medo só

nos serve quando usado para tomar cuidado, e não como

barreira. Lembre-se que até os mais mortais venenos são usados

para a cura de terríveis infecções. Use o medo para a

positividade.

Heitor saiu do olhar inerte que parecia atravessar a linda

flor com seus pensamentos profundos que quase não o deixavam

voltar, o leve olhar reparou a rosa em frente que estava diferente,

não existia uma diferença visual para Heitor, mas algo havia

mudado. Ele tirou as luvas lentamente e tocou a terra marrom

umedecida, uma estranha falta de ar o fez tirar a máscara que lhe

tampava o nariz, cuidadosamente aproximou suas narinas da

roseira, e então um espirro se fez ecoar.

- Athim! (Espirrou Neblina).

Heitor

- Neblina, o que está fazendo?

71

A gata talvez fosse alérgica a flores, mas Heitor pode

sentir o refrescante perfume da natureza, era como o cheiro de

um bebê, uma vida nova. Ele se desfez de toda a sua parafernália

confiando em sua vontade de experimentar o novo, o que ele

ainda não havia tentado, era incrível, mas estava dando certo,

parecia que agora a natureza o aceitava, acolhendo-o, deixando-

o se sentir ainda mais à vontade. E cada toque seu se tornava

único, o veludo das pétalas vermelhas, a rispidez dos velhos

troncos de árvores, o liso das folhas e seus micros canudos que

levavam a água que era sugada pelo caule até a ponta e o cheiro

de terra molhada. Heitor, a gata e Charlotte passaram o dia ali,

rolando na grama verde e curta, aparando as folhas amareladas,

tirando o capim, recolhendo o que morria para uma nova vida. O

chafariz foi esfregado, ensaboado e enxaguado, Neblina perdia-

se entre as bolhas de sabão que Charlotte fazia voar, a gata ao

contrário dos costumes felinianos, parecia gostar de tomar

banho, todo o seu pelo que a tornava uma bola, agora estava

lambido pela água, ela mais parecia um gravetinho com quatro

patas. Ao término, Heitor nunca havia ficado tão sujo e nunca

havia se divertido tanto, exausto como o resto dos membros da

sua atual família, ficou ali sentado em um dos degraus da

escada, olhando para aquela bela escultura que fazia a água

dançar tornando seu som frequente e agradável como de uma

cachoeira. E a redonda e branca lua fazia aquela imagem se

tornar ainda mais fascinante.

Neblina rolava de um lado para o outro tentando se secar

no tapete da sala, ela não conseguia parar, se esfregava no sofá,

nas poltronas, de repente pareceu que seus pelos molhados

estavam-lhe agonizando. Após todos estarem secos e limpos,

Heitor deitou-se no sofá da sala conservadora, a lareira

queimava a velha lenha esquentando o ambiente, a gata parecia

aconchegantemente adormecida com suas patas abertas quase

que abraçando Heitor em cima do seu estômago, o diário de

Charlotte fora mais uma vez aberto.

72

O ar que o sótão tem é tão aconchegante, às vezes sinto como se morasse aqui há séculos, ele me transfere para um lugar dentro de mim que ainda não conheço muito bem, é como se eu chegasse até a porta, mas não conseguisse entrar, em alguns momentos até consigo sentir que não estou aqui, sinto-me em algum lugar acima das nuvens, por isso mudei meu quarto para cá, para ficar ainda mais perto de mim mesma. Para aprender a conviver com os outros, primeiro temos que aprender a conviver com nós mesmos, precisamos nos conhecer muito bem, nossos pontos fracos e fortes, temos que tentar descobrir a razão de nossas ações em tudo. Existem pessoas que gostam de falar o tempo todo, essas pessoas se sentem sozinhas. Pessoas que não falam praticamente nada ou que mentem podem ter medo de serem avaliadas, criticadas, julgadas e condenadas. Pessoas que gritam facilmente, provavelmente não foram escutadas quando necessitavam expressar algum sentimento. A grande maioria das causas dessas “deficiências” está na infância dessas pessoas. O que elas precisam aprender é a querer enxergar os momentos que lhes foram tristes e traumatizantes no decorrer dos tempos, pois só resolvemos os problemas quando os assumimos, e só os assumimos quando percebemos que eles ainda estão ali em algum lugar dentro de nós. Mas uma coisa que também precisamos saber, é que nossos conflitos nunca acabam. Aprender a lidar com nossas imperfeições talvez seja mais difícil do que tentar fazê-las tornarem-se perfeições, até aceitarmos que somos seres errantes em constante evolução e aprendizagem, leva um tempo. Quando nos conhecemos melhor e ficamos cientes de nossas imperfeições e entendemos o porquê agimos de certa forma em certos casos, acolhemos melhor as pessoas e tentamos entendê-las quando algo não nos agrada. Tudo em nossa volta deve ser observado com atenção. Mas não foi sobre isso que vim escrever, hoje eu e papai fomos à cidade, gosto de ir lá porque revejo alguns amigos e amigas, ela sempre fica mais bonita quando já está escurecendo e as luzes começam a colorir as ruas, as construções são simples e aconchegantes, a simplicidade da cidade por algum motivo faz eu me sentir envolvida e atraída por ela. Fomos ao mercadinho de sempre, papai comprou aquele

Diário de Charlotte,

21 de março de 1880

73

doce que ele adora que agora não me lembro o nome, e também me deu uma echarpe de presente, seu tecido de seda creme claro com detalhes de flores em rosa grená me encantou, eu lhe comprei meias. O que posso fazer? Ele tem pés muito grandes e pernas finas, então achei que amenizaria a impressão se o incentivasse a usar meias. Foi o que me veio à cabeça naquele momento. Tenho quase certeza que ele só vai usá-las para dormir. Bom, só de servir para alguma coisa já alivia minha consciência de filha preocupada com a aparência dos pés do papai. Sempre que vamos à cidade compramos algo um para o outro, nem que seja uma coisa muito pequena e simples, acabamos criando esse hábito naturalmente sem maiores interesses, os presentes que papai me dá, guardo todos no baú, meu baú feliz, sempre que o abro e pego alguma coisa, lembro-me dos momentos felizes que passamos. Mas voltando a cidade, impossível seria passar por ela e não parar para conversar com algum conhecido, principalmente o senhor Lenard que adora sua quietude dos livros de sabedoria, mas quando encontra alguém conhecido dana a falar pelos cotovelos, parece até que está compensando o tempo que passou calado lendo os livros e o tempo que ainda há de vir. Enfim, também acabo me distraindo com os meus conhecidos, a cada esquina que viramos encontramos alguém com um assunto urgente para falar, ou simplesmente começamos a conversar e não conseguimos parar. A vida da cidade me anima, me cansa e faz eu me sentir cada vez mais viva com tudo isso. Depois voltamos tranquilos para casa. Por hoje é só.

Heitor fechou o diário, cuidadosamente tentou tirar

Neblina de cima dele sem acordá-la, mas ela acordou e foi

aconchegar-se preguiçosamente no braço do sofá, ele levantou e

seguiu para seu quarto com o corpo um pouco pesado, a gata o

seguiu. Já em seu quarto, Heitor deitou-se na cama e a gata

folgada subiu novamente em seu estômago e ajeitou-se para

dormir. No sobe e desce da respiração de Heitor a gata

adormeceu como uma canção de ninar adormece uma criança, e

74

os dois dormiram.

Heitor acordou de manhã quando o sol já queimava as

pedras, não tão estranhamente ele se sentia leve e confortável, a

gata Neblina já miava ao seu lado passando sua linguinha áspera

no seu ouvido, o que fez Heitor acordar dando risos de cócegas.

Heitor sorrindo;

- Isso é um bom dia ou você está com fome? (Após uma breve

pausa, ele quase acreditou que ela fosse responder). Acho que

está com fome.

Depois de alimentar a gata e tomar seu café da manhã,

com sua caneca de café quente bem quente ele dirigiu-se para o

escritório. Sentado lá naquele ambiente fechado iluminado por

uma luminária amarelada, Heitor voltava ao seu velho dilema,

folhas em branco, pensamentos em branco, uma vida em branco.

Mas ele tinha um pensamento fixo em sua mente, ele tinha que

tomar alguma atitude. E qual foi a sua atitude? Heitor pegou sua

caneca de café quente bem quente, as folhas em branco e os

lápis afiados. Na varanda de frente para o mar ele pode sentir

um leve vento tocar, e então tentou relaxar, um pequeno

passarinho não parava de piar, e como as gotas do mar, Heitor

começou a rabiscar. O passarinho o fez voar, suas asas eram os

lápis que davam formas ao que ele queria passar, no papel em

branco agora existia vida, e de alguma forma ele saíra da lida,

pois seus olhos já podiam ver o mais belo gracejo que a natureza

lhe ajudava a fazer.

Heitor mostrando seu desenho pronto;

- O que achou?

Charlotte que estava sentada na mureta a acariciar a gata em

seu colo espantou-se com o desenho;

- Heitoorrrr! Está muito bonito! (A gata deu um mio e pulou do

colo de Charlotte).

75

Heitor

- Vou considerar isso como uma aprovação da sua parte. (Ele se

levanta e segue para dentro da casa, Charlotte e a gata o

seguem).

Charlotte

- Mas é claro que é uma aprovação, está lindo o seu desenho.

Heitor

- Vamos a cidade comprar algumas coisas?

Charlotte

- Está bem! Estarei pronta em um minuto.

Heitor tirou seu carro da garagem animado, saiu do carro

e abriu a porta do carona, Charlotte e a gata entraram.

Charlotte para a gata Neblina;

-Humm... Ele está virando um cavalheiro Neblina. (A gata miou

e Charlotte falou como se respondesse ao seu miado). É lógico

que é graças a mim, sem a Charlotte aqui este menino estaria

perdido, coitado. (Heitor estava sorrindo).

A cidade realmente fascinava a quem requisitava

simplicidade e aconchego, era uma espécie de povo que

conservava suas raízes e cultura não deixando perder seus

costumes. Como Heitor antes de se mudar morava em um lugar

da ilha bem diferente daquele, toda vez que ia à cidade achava

estranho as pessoas passarem por ele sorrindo e o

cumprimentando, mas agora diferente das últimas vezes que

havia ido, ele ria e cumprimentava de volta como Charlotte

fazia. Eles entraram no mercadinho com a gata seguindo seus

pés, o sino da porta avisou que eles estavam entrando. A cidade

era pequena e a população diminuíra ainda mais por causa do

tifo, tudo parecia calmo e harmonioso. Enquanto os olhos de

76

Heitor passeavam pelas prateleiras, em sua mente ele ficava

imaginando que alguém devia soltar no ar toda tarde alguma

espécie de sonífero, pois a cidade parecia dormir de tão quieta.

Logo soltou um sorriso bonito no ar quando se pegou a imaginar

coisas impossíveis, franziu a testa quando reparou que seu

imaginário estava viajando tão longe daquele lugar, que não

havia avistado a simpática senhorinha que estava parada no

balcão olhando para ele com seus amarelados dentes amostra,

Heitor retribuiu o leve sorriso, e a voz mesmo que ainda cansada

se fez doce e gentil ao perguntar:

Senhorinha aproximando-se;

- Posso ajudar meu filho? Você me parece meio perdido com

tantas prateleiras, apesar de não estar olhando para elas.

Heitor

- Deu para perceber é?

Senhorinha

- Não, imagine! Eu sou Abigail. (A senhorinha sorriu).

Heitor meio sem jeito;

- Muito prazer, sou Heitor. Bom, eu queria comprar tintas e telas

para poder pintar. Aquelas assim... (Heitor mostra o tamanho

com os braços). ...Bem grandes, as que os pintores costumam

usar.

Abigail

- Alguém já te disse que seus olhos são tão expressivos quanto

às palavras propriamente ditas?

Heitor ficou meio estático com o que a simpática senhorinha

disse, e com um pouco de receio respondeu;

- Não.

77

Abigail soltando uma quase que sofrida risada;

- Não se preocupe meu filho, não estou flertando com você.

Apesar de que se fosse há uns cinquenta anos atrás você ficaria

lisonjeado se eu estivesse te paquerando. Eu era uma moça

muito bonita, sabe? Os rapazes desta ilha arrastavam caminhões

por mim.

Heitor ainda meio perdido com a conversa;

- Acredito que sim.

Abigail

- Mas papai era severo, não queria saber da filha mais nova e

mais bonita dele namorando.

Dos fundos da loja surgiu outra senhorinha igualzinha a

que conversava com Heitor.

Senhorinha2 aproximando-se;

- Mais nova apenas por dois minutos, e não dá para você ser a

mais bonita nós somos gêmeas idênticas sua tonta.

Abigail

- Isso é o que você pensa.

Senhorinha 2

- Muito prazer meu filho, eu me chamo Agatha. (E antes que

Heitor se apresentasse ela abismou-se). Meu Deus! (Mais uma

vez o rapaz encabulou-se quando aquela senhora com simpáticas

rugas arregalou os olhos ao olhar para Heitor). Nunca vi olhos

assim antes.

Abigail

- Era o que eu estava tentando dizer ao rapaz antes de você

entrar.

78

Agatha

- Não estava nada, você estava preocupada em lhe dizer de como

era bonita quando jovem. Você sempre se distrai, é uma

distraída.

Heitor

- Senhoras eu não quero causar nenhum transtorno, apenas vim

para comprar tintas e telas para pintar.

Agatha

- Ah! O senhor é pintor?

Abigail apressou-se para responder;

- É claro que ele é Agatha, se veio até aqui para comprar tintas e

telas para pintar, é porque ele é pintor! Ora essa!

Heitor

- Senhoras eu...

Agatha

- Não, não diga nada filho. Desculpe-nos por sermos duas velhas

implicantes. Passamos a vida inteira assim, é difícil perder

velhos hábitos.

Abigail

- Ao contrário de você querido.

Heitor

- Como?

Agatha para Abigail;

- Está vendo o mesmo que eu?

79

Abigail

- É claro que sim. Só vi olhos assim em uma pessoa em toda a

minha vida. São olhos da esperança, do amor e da caridade

infinita. (Abigail olhou para Charlotte que estava um pouco

distante distraída com as coisas na prateleira e sorriu para ela

que por sua vez a cumprimentou com um aceno de mão).

Heitor

- Sobre o que estão falando afinal?

Agatha

- Querido, já deve ter ouvido falar que os olhos são as janelas da

alma.

Abigail

- Pois então, nunca vimos janelas tão límpidas quanto as suas.

Heitor

- Desculpem senhoras, mas eu não estou entendendo.

Agatha

- Antes você vivia em um poço de tristezas, lamentações, culpas,

arrependimentos. Nem sabia o porquê sentia tudo isso, mas

sentia, e doía. Era como se estivesse preso na última camada de

terra.

Abigail

- Agora seus olhos conseguem enxergar o mundo como ele deve

ser visto. Você tem bondade em seu coração, um amor infinito

por todos os seres da terra, ainda não sabe disso, não sabe o

tamanho da sua capacidade de amar cada pedra pelo caminho,

seres animados e inanimados.

80

Agatha levando Heitor até a porta de vidro, apesar de mais

parecer que era ele que a estava levando;

- Veja! As crianças estão sorrindo para você, os animais querem

se aproximar, para tudo que olha você acende uma luz. Isso se

chama esperança, e a esperança só pode brotar onde há amor, e

ele transborda pelos seus redondos olhos.

Heitor sorridente;

- Obrigada a vocês duas, ninguém nunca havia me dito essas

coisas.

Abigail

- Não precisa agradecer querido. Mas o que veio mesmo fazer

aqui?

Heitor

- Vim comprar tintas e tela para pintar.

Agatha

- Então o senhor é pintor?!

Heitor

- Bem, ainda não me considero um pintor, mas talvez depois de

um tempo de prática. Quem sabe?

Abigail

- Deixe sua alma falar enquanto estiver praticando, isso o

tornará um pintor, ou não.

Heitor

- Sim senhora.

Heitor, Abigail, Agatha e Charlotte que observava tudo

dos fundos da loja junto à gata Neblina, ficaram em silêncio por

um tempo olhando uns para os outros, as senhorinhas

81

mantiveram aqueles sorrisos amarelados e simpáticos em sua

fronte, Heitor ficou perdido por um momento e esperou mais um

pouco, caso as duas irmãs tivessem algo a mais a dizer, mas

nenhum som se fez ouvir e ele quebrou o silêncio.

Heitor

- Então... Vocês vendem tintas e telas para pintar aqui?

Abigail e Agatha juntas;

- Não. (Heitor e Charlotte riram).

Agatha

- Mas no fim desta rua, quando você chegar à esquina, existe

uma estreita lojinha do outro lado da calçada.

Abigail

- Com certeza achará tudo que precisa lá. Pincéis, tintas, telas...

Heitor

- Ok senhoras. Eu agradeço pela a atenção e por tudo que foi

dito, com certeza foram palavras confortadoras.

Agatha

- Está bem querido, vá com Deus.

Abigail

- E não se esqueça de voltar sempre.

Heitor saindo da loja junto a Charlotte e Neblina;

- Pode deixar, obrigado! (Agora caminhando sobre as ruas de

paralelepípedo, a gata segue seus pés e o de Charlotte que

andavam distraidamente). Nossa! Fiquei tonto com aquelas

senhoras.

82

Charlotte

- Pois é! E são duas idênticas.

Heitor

- Não sei nem para onde estou indo.

Charlotte

- Não tem problema é só me seguir, eu cresci aqui, conheço

todas as ruas.

E Charlotte correu, pois a rua não era movimentada,

Neblina apesar de ser uma gata meio preguiçosa correu atrás

dela.

Heitor correndo por último;

-Me espera!

Na esquina, parado de frente para uma antiga lojinha

estreita, comprida para o alto, Heitor surpreendeu-se com a

beleza arquitetônica da solitária empresinha. No alto da porta

estava escrito “1630”, ele entrou e foi surpreendido com

incríveis quadros de paisagens, pessoas e tudo mais que se podia

imaginar, o próprio teto abaloado era um gigante quadro

pintado, mais parecia um retrato do céu e se estendia até as

paredes. Heitor ficou ali, parado, sem palavras, quase que

quebrando o pescoço de tão admirado com tamanha beleza, por

trás do balcão de madeira havia longas e altas estantes que

guardavam quadros enrolados em panos como se fossem livros,

de fora daquela humilde e antiga lojinha não se podia imaginar

que era tão grande por dentro. Um senhor de cabelos e barba

branca surgiu por trás do longo balcão que ia de uma parede a

outra, como se tivesse se materializado no local, as suas velhas

cordas vocais arranhadas pelo tempo emitiram um som familiar

e tranquilizante para Heitor.

83

Senhor

- Cuidado senão vai acabar saindo daqui como todos os outros

meu rapaz.

Heitor

- E como seria?

Senhor

- Com torcicolo. (O velho sorriu).

Heitor se aproximando;

- Meu nome é Heitor.

Senhor

- O meu é Florêncio. Minha mãe queria uma menina e a

chamaria de Flor, mas como vim menino chamou-me Florêncio,

o que me lembra de uma mistura de flor e essência, florescência

que significa florescer, brotar, despertar, e que rima com

inteligência, benevolência, coexistência e assistência.

Heitor sorriu junto com o feliz velhinho;

- Bom, só sei que o meu é Heitor.

Florêncio pensativo;

- Hummm... Sim, Heitor me leva até o numeral oito, que é o

número que representa a continuidade eterna, o símbolo do

infinito. (Florêncio olhou bem para o rosto de Heitor, e após

despertar da sua própria hipnose indagou):

Mas o que veio fazer aqui filho? Vi que ficou muito interessado

pelas pinturas do meu tá tátátátá e sei lá mais quantos tás tara

avô.

Heitor

- Então foi um familiar do senhor que pintou essas paredes e o

teto?

84

Florêncio

- Sim, foi sim. A loja foi construída por um desses tás que acabei

de mencionar, minha família pinta desde muito tempo, desde

quando ainda éramos a única lojinha da esquina e dava-se para

ver melhor as montanhas e pintá-las. Tenho qualquer tipo de

paisagem sobre a cidade.

Heitor

- Não senhor. Não vim para comprar quadros.

Florêncio

- E para que veio meu rapaz?

Heitor

- Me disseram que aqui eu acharia tintas e telas para pintar.

Florêncio

- Ah sim! Por que não desconfiei de antemão? É um jovem

pintor?

Heitor

- Não senhor, apenas estou procurando algo para me distrair.

Hoje de manhã aconteceu uma coisa muito estranha e

interessante, peguei um lápis e um papel e desenhei um

passarinho sem nunca ter me interessado pela prática. (Heitor

tirou o esboço do bolso que estava dobrado em duas partes e deu

para o velho senhor que lhe lembrava a figura de um mago). O

que acha?

Florêncio

- Muito bom meu rapaz. Tem certeza que nunca desenhou antes?

Nem quando era pequeno?

85

Heitor

- Provavelmente devo ter brincado de desenhar, mas duvido já

ter feito algo assim.

Florêncio

- Bom, então a única explicação que temos é que o senhor

acabou de aflorar um dom, como meu nome Florêncio aflora as

coisas por aqui. Que tipo de tinta e pincéis vai querer?

Heitor

- Não sei, o senhor é que é o pintor aqui, não é mesmo?

Florêncio sorriu;

- É verdade. Vou pegar e já volto. Sinta-se a vontade meu jovem.

Heitor

- Obrigado senhor.

Florêncio voltando minutos depois com algumas telas e pincéis;

- Demorei um pouco, pois estava procurando esses pincéis aqui.

(Florêncio mostra os pincéis de cabos compridos e redondos que

pareciam varinhas de condão).

Heitor

- E eles são especiais por algum motivo? Já sei! São para

iniciantes, vão me ajudar.

Florêncio

- Não, não, nada disso! Eu apenas gosto mais desses.

Heitor pegando os pincéis;

- Ah sim, entendi.

Florêncio

- E quais cores você vai querer?

86

Heitor pensativo;

- Hã... Vejamos.

Heitor comprou os pincéis, as telas, muitas tintas e mais

alguns itens que Florêncio lhe indicou, dando-lhe alguns toques

que só um profissional de uma família de pintores podia dar.

Tudo estava indo bem, Charlotte se divertia vendo o amigo se

divertindo, Heitor jamais imaginou que pudesse achar distração

naquele tipo de lugar, pensando nisso imaginou que Charlotte

diria alguma coisa como: A diversão está dentro de nós. Então

sorriu concordando com a sua própria frase. O caminho de volta

para casa foi inspirador, a estradinha de terra sempre meio

perigosa, permitiu que por alguns momentos Heitor desfrutasse

da imensa e linda paisagem, o sol já caía entre as alaranjadas

nuvens, e logo a noite se faria presente na mansão do penhasco.

Chegando à casa, a jovem Charlotte sentiu-se exausta

como nunca havia se sentido, e quase que dormindo de pé

retirou-se para repousar em seu quarto no sótão, a gata Neblina

não pensou duas vezes antes de ir atacar sua pequena vasilha de

leite fresquinho que Heitor havia acabado de botar, com os

bigodinhos brancos ela deliciava-se. Estranhamente a cabeça de

Heitor girava, girava... E acabava em Charlotte.

Meus pensamentos se tornam confusos, como se minha visão estivesse embaçada e eu não conseguisse ver, talvez as impurezas que ainda restam em meu coração não me deixem sentir tão claramente. Charlotte me iluminou como o sol ilumina a terra, aqueceu minha fria alma como o fogo aquece a lenha, e agora como se não bastasse ela me inspira, me inspira a viver, a ser eu mesmo, e sem nenhum tipo de dúvida eu mergulho em sua feliz loucura pela vontade de viver, o hoje, o agora e o amanhã.

HT

87

Após escrever suas poucas palavras, com a casa já em

silêncio total, Heitor pegou uma tela e todas as outras coisas que

havia comprado, e em seu quarto bem em frente a sua cama

pode armar o cavalete, e então sem mais pensamentos turvos

concentrou-se apenas no que queria fazer, enquanto esvaziava

sua mente enchia aquele imenso quadro branco de realidade

colorida. Não era bem uma paisagem, mas ele sentira vontade de

eternizar aquilo, era uma vontade estranha, mas não deixava de

ser interessante. Depois de uns quatro metros a frente da sua

cama, vinha a parede que fora pintada de um azul turquesa meio

fosco, mas o tempo já estava desbotando aquela bonita cor, os

poucos móveis eram coloniais em madeira escura, duas enormes

janelas davam vista para a imensidão azul, seus acabamentos

também em madeira ao redor delas faziam parecer quadros

pregados na parede que tinham vida e soavam um agradável som

da água do mar, quase que musical. As cortinas eram de um

tecido leve, branco e meio transparente, o balé dançante delas

era frequente mesmo que em movimentos pequenos, as velas

nos candelabros faziam avistar o belo lustre no alto que de tão

pesado não fazia um sequer balanço, e o silêncio quase que

melancólico daquele lugar isolado da terra fazia parecer que

Heitor só precisava daquele quarto e mais nada. Foi o que ele

pintara em seu quadro, todo aquele movimento silencioso e em

paz, a vista de suas janelas para o brilho da lua refletindo no até

então calmo mar, e enquanto terminava os últimos detalhes,

pensava que alguém dali há muitos anos poderia descobrir o

quadro em algum lugar esquecido e se perguntar se aquele

ambiente pintado ali existiu mesmo. Eram apenas janelas que

davam vista para outro lugar fora daquele quarto aconchegante e

antigo. Mas o que isso significaria? Que existe um mundo lá

fora? Que é apenas tomarmos a decisão de atravessarmos a

janela que estaremos livres? Estaremos onde quisermos? Heitor

sentia vontade de ver o resto da paisagem depois daquelas

janelas pintadas, ele olhava para o quadro agora pronto e via que

pintara uma grande barreira entre ele e a natureza lá fora. O que

88

vinha por trás da parede e o que as janelas mostravam era muito

maior, então pensou que se fosse ele observando aquele quadro

sentiria vontade de passar por aquelas janelas. O quadro

praticamente dizia: Eu quero ir, mas estou aqui dentro. Ele

simplesmente sorriu;

- Se é o que sinto, então fiz um bom trabalho!

Adormeceu, cansado quase que se deitou sobre Neblina

que era folgada o suficiente para dormir sempre na cama, e não

em uma grande almofada que ele havia reservado para ela ao

lado.

Na manhã seguinte, Heitor havia acordado cedo com

uma energia que nunca sentira antes, e Charlotte já estava a

passear pelo imenso quintal, melhor dizendo, a menina estava

em uma enorme pedra que ficava na beira do penhasco, de

braços abertos para o mar ela contemplava aquele dia de sol e

brisa fresca, quando se virou avistou Heitor arrumando seu

cavalete na varanda de frente para o mar:

Charlotte gritou;

- Heitor! Venha, eu estava te esperando!

Heitor pareceu não ter escutado, pois estava um pouco

longe de onde Charlotte estava, concentrado em sua arrumação

para pintar, ele tomava goles de sua caneca de café quente bem

quente não tão preocupado em degustar toda aquela cafeína

como gostava de fazer.

Charlotte continuou gritando:

- Heitoorrrrrr! Vamos! Não finja que não está me ouvindo só

porque tem medo de altura.

Heitor continuou não olhando, parecia querer ignorar

aquele risco, ou realmente estava muito distraído com seus

afazeres.

89

Charlotte reunindo mais forças e gritando mais forte;

- Heeeeeeeeiiiiiiiiitttooooooorrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Ele finalmente olhou virando o pescoço rapidamente.

Impossível não escutar aquele grito estridente.

Heitor

- Charlotte?! (Balançou a cabeça negativamente e estalou a

boca, mas manteve-se calmo). Meu Deus, que loucura! (Ele

sorriu animadamente ainda balançando a cabeça negativamente).

Que loucura! (Voltou a acabar o que estava fazendo).

Após separar os pincéis, as tintas e deixar a tela pronta,

Heitor voltou a olhar para a pedra onde estava Charlotte,

respirou fundo e em passos determinados seguiu até lá. Com os

pés descalços sentiu a pedra que armazenou o pouco calor que o

sol transmitia, subiu cuidadosamente, e quando chegou ao topo

permaneceu agachado de cócoras como ainda com medo dos

trinta metros de penhasco dos quais ele ainda temia.

Charlotte ao lado de Heitor;

- Já foi um grande passo ter vindo até aqui. Não acha?

Heitor olhou para baixo e soltou um baixo gemido sofrido;

- Hummrrrrr!

Charlotte sorriu;

- Vamos Heitor, não precisa temer é só se concentrar. A

concentração é a base de tudo na vida, pegue um ponto fixo e se

concentre nele.

Heitor olhou para um lado, olhou para o outro, para

cima, e retornou a olhar para baixo, respirou fundo e de forma

tranquila, olhando para frente seus olhos pararam.

90

Charlotte falando calmamente;

- É isso aí. Agora controle sua respiração, poupe cada célula do

seu corpo antes de começar a se levantar. Você ainda está

tocando a pedra com as suas mãos. Levante seu corpo sem tirar

as mãos da pedra. Não se desconcentre, não permita que o

desequilíbrio o atinja, faça o que puder para ir até o fim, quando

chegarmos lá, a sensação será indescritível, pense nisso. (Heitor

seguia as instruções de Charlotte). Tire as mãos da pedra no

momento em que se sentir confiante, e só volte a tocá-la se

extremamente necessário.

Heitor tirou o dedo mindinho primeiro, receoso, talvez

medroso, pois a pedra era alta e bem na ponta do penhasco, as

consequências poderiam ser fatais, mas ele havia tomado uma

decisão, quando cheio de si caminhou até lá. E então suas duas

mãos se desconectaram da pedra, ele sentiu como se linhas

tivessem arrebentado, tentou não se desconcentrar por mais

descontrolada que a sua respiração estivesse, parou naquela

posição.

Charlotte com a voz ainda aveludada

- Tudo bem Heitor, está tudo bem. Continue concentrado.

Heitor deu uma longa piscadela, o que o fez perder seu

ponto fixo, agora estava perdido, olhou para as mãos, para a

pedra e para baixo, o desequilíbrio se instalou em suas

terminações nervosas e ele voltou a tocar na pedra. Manteve-se

parado e agachado do ponto de início.

Charlotte

- Não há derrotas sem falhas Heitor, e não há problemas em

falhar se você parar para pensar o que fez de errado,

reconhecendo o ponto, avalie-o e não desista. Use seus erros

para te deixar ainda mais forte e esperto, mas só aprenderá com

eles se quiser enxergá-los. Nenhum de nós é tão bom quanto nos

91

julgamos, se estamos aqui independentemente do jeito que

estamos, é porque faltou aprendermos alguma coisa.

Heitor

- Eu vou conseguir.

Heitor olhou para as mãos apoiadas na pedra, buscou

novamente um ponto fixo e concentrou-se, como se estivesse

marcando o compasso de uma música, harmonizou sua

respiração com os batimentos do coração, estava concentrado,

aos poucos foi levantando seu corpo, por um momento parou e

desconectou suas mãos da pedra.

Charlotte

- Não tenha pressa Heitor, confie, confie. A confiança é algo que

se conquista, neste momento precisa confiar em si mesmo e na

sua intuição.

Havia perseverança naquele olhar tão cativante, seu

corpo foi ficando ereto, e à medida que seus olhos ganhavam

aqueles novos territórios de visão panorâmica, o vento batia em

seu rosto esvoaçando seus cabelos e a adrenalina tomava conta

do seu corpo. Finalmente, totalmente de pé com os braços

abertos como se fosse voar, Heitor encheu-se de entusiasmo e

seu sorriso nunca havia sido tão cheio de dentes.

Heitor gritando de felicidade;

- Haaaaa!!!Uhuuuuuuuuu!!! É isso aííí!

Charlotte sorrindo falou com ela mesma;

- Acabei de transpassar seus muros de concreto frio Heitor.

Após ficar ali por um tempo, Heitor desceu daquela

pedra pontiaguda e foi terminar o seu café que já não estava tão

quente, sentado no banco alto para pintar ele apreciava a vista

92

quieto, meio estático. Não era mais estranho o que ele estava

sentindo, talvez agora entendesse o sentido de fazer alguma

coisa que tenha vontade sem deixar o medo reprimir-lhe. A

sensação foi indescritível como Charlotte havia dito. Uma coisa

tão simples. Ele pensava.

Charlotte

- Foi tão simples e importante como aprender a beber água com

copo de vidro usando as duas mãos quando se tem quatro anos,

o importante é não deixar o copo cair, para isso é preciso usar as

duas mãos porque ainda são pequenas para agirem

independentes neste caso. Agora pode parecer meio tolo o que

fizemos. Subir em uma pedra, tentar ficar de pé e abrir os

braços, mas no futuro você entenderá que são os pequenos e

calmos passos que nos ajudam a chegarmos onde queremos, sem

chegarmos lá na frente e não encontrarmos sentido no que

estaremos fazendo.

Os dedos de Heitor firmaram-se no pincel e logo

pinceladas rabiscaram aquela vazia tela branca. O que ele estaria

pintando agora? Seria mais uma paisagem? Algo que vinha de

dentro talvez. Ele não conseguia desgrudar os olhos famintos

daquela imagem que se formava diante dele. E um belo vestido a

voar com o vento deu movimento, de costas a bela senhorita

escondia a sua beleza, os fios de cabelos negros faziam-se sentir

nas mãos tão leves de Heitor, eles voavam e voavam... O rosto

de perfil mal dava para ser percebido com tamanho mistério que

a dama pintada fazia. O jovem pintor quase que pode sentir o

leve perfume de flores que seus sentimentos produziam, a

postura era clássica, feminina e delicada, a dama fora pintada

exatamente ali na beira do penhasco, como se estivesse

caminhando rumo ao horizonte onde dormia o sol para repousar

seu esguio corpo ao lado da luz.

93

O dia passou como as estrelas cadentes passam pelo

planeta, tão rápido que Heitor nem reparou que precisava

acender as velas, seus olhos inclusive habituaram-se ao

escurecer daquele final de tarde no jardim que conservava os cri-

cris dos grilos, permitindo que mesmo no escuro ele enxergasse

tudo ao seu redor. Deitado na grama olhando para as estrelas ele

despertou a curiosidade de Charlotte que o havia avistado da

parede de vidro da sala. Esta se aproximou silenciosamente e

deitou-se ao lado do rapaz sem perguntas, sem querer interferir o

que quer que fosse que se passasse por sua cabeça, ela apenas

deitou ao seu lado.

Heitor

- O céu é azul assim como o mar, ele tem estrelas como o mar, é

imenso como o mar, profundo como o mar, é maravilhoso como

o mar e também assusta como o mar. Pode ser lindo e

assustador, como algo que nós conhecemos, mas não

conhecemos totalmente, sem saber o que vem depois, ficamos

parados, às vezes recuamos, mas não devemos, não devemos

recuar nem ficar parados. (Charlotte vira-se para o lado de

Heitor e olha para o rosto do rapaz que era iluminado pelo

branco reluzente da lua, e ele continuava com os olhos grudados

no teto estrelado). Não precisamos sentir medo de avançar, o

avanço é sempre um progresso e o progresso sempre será uma

coisa boa.

Charlotte

- Acho que estou entendendo.

Heitor

- Mesmo às vezes quando avançamos por um caminho que não

sabemos ao certo onde pode dar, ou quando nossa única saída é

seguir por um túnel escuro, até mesmo quando já estamos na

estrada que pensávamos ser a mais propícia, e no meio do

caminho descobrimos que foi um engano. Hoje descobri que

94

quando passamos por alguma situação difícil é porque

provavelmente faltou aprendermos detalhes, por isso não

devemos recuar nunca, por mais escuro e nebuloso que seja o

caminho, sempre haverá uma luz no fim, e ela crescerá cada vez

mais se não desistirmos, mesmo quando os olhos não a

enxergam.

Charlotte não conseguia parar de olhar para Heitor, com

aquela luz cintilante que tocava sua branca pele e seus

amendoados olhos em contraste com seus cabelos negros, as

palavras do rapaz a enfeitiçavam, e depois de alguns segundos

somente ouvindo os cri-cris dos grilos, os pensamentos de

Heitor se faziam ouvir.

Heitor

- Eu olho para esse céu e sinto vontade de falar com as estrelas,

e elas podem me ouvir, até me respondem. Mas eu queria poder

ir além delas, ver depois dessa camada de pontinhos brilhantes,

aqui deitado sinto como se estivesse colocando a mão dentro de

uma caixinha de surpresas sem saber o que vai sair, a

expectativa quase se torna uma ansiedade.

Charlotte

- A ansiedade anula a perfeição.

Heitor

- O que seria de nós sem toda essa perfeição? Sem a noite e o

dia? Sem o sol e a lua?

E sem encontrar respostas os dois permaneceram ali,

ainda que só por alguns minutos. Já em seu quarto Heitor

preparava-se para dormir, a gata Neblina mal acostumada não

deixara de dormir na cama, às vezes quando Heitor acordava no

meio da noite para ir ao banheiro ou tomar um pouco de água,

pegava delicadamente a gatinha e a colocava em sua grande e

95

aconchegante almofada, mas a gata esperta e luxuosa retornava a

subir na cama e acomodar-se nos inúmeros travesseiros que

rodeavam Heitor. Como se alguém tivesse balançado uma

varinha mágica o tempo começou a mudar, ventos velozes

atingiram a casa trazendo nuvens pesadas de água, as portas

frouxas não paravam de bater, Heitor fechou as janelas e

acomodou-se em sua cama, Neblina sonolenta fechava e abria os

olhinhos amarelados lentamente e sua pequena língua rosada

mostrava-se de minuto em minuto.

Heitor

- Neblina, não vá dormir antes de eu ler o diário da Charlotte.

E ao dizer o nome, como se atendesse a um

chamado, Charlotte surgiu apressada e aflita. No sótão o barulho

que o vento fazia como um zumbido sempre fora mais intenso e

assustador, a corajosa menina agora disfarçava seu temor.

Charlotte

- Vocês iam ler o meu diário sem mim? Mas que disparate!

E quando uma forte chuva com grossos pingos

d’água começou a molhar o vidro das imensas janelas,

sutilmente Charlotte repousou seu corpo na cama cobrindo os

frios pés que sempre andavam descalços pelo chão de madeira,

Neblina ficara entre os dois e Heitor com a voz branda começara

a leitura.

Ontem quando acordei pensei: É um dia comum. Daqueles que você não espera nada demais acontecer sabe? É quando você apenas quer começar a ler um livro, mesmo sabendo que a probabilidade de terminá-lo é pequena, ou simplesmente ficar parada em algum canto pensando,

Diário de Charlotte,

8 de abril de 1880

96

pensando... Em silêncio, e aí tudo em você se acalma e seu corpo parece ficar mais leve, como espumas flutuantes no mar que se deixam levar pelo vento. Eu estava em um clima meio assim, foi quando papai apareceu com aquele short que deixa as finas e peludas pernas dele a amostra, trajando camiseta e finalmente usando as meias que lhe dei de presente com uma espécie de sapato esportivo. Foi demais para mim, caí na gargalhada! Bem humorado como sempre, papai não hesitou em rir comigo de si mesmo, afinal ele sabia que aquele short afinava ainda mais suas longas pernas, fazendo suas canelas parecerem cabos de vassouras, e seu corpo magro e esguio ficava em evidência com a camiseta, sem comentários sobre os pés grandes que me davam uma sensação de estar frente a um gigante desnutrido, mas tentei superar essa impressão e depois de ficar com meu maxilar doendo de tanto rir, fiquei olhando para qualquer outra coisa para não cair na gargalhada novamente. Tentativa falha, pois a imagem vinha em minha mente e eu não consegui parar de rir. Depois de muito tempo entendi que ele estava me chamando para fazermos exercícios físicos. Papai querendo fazer exercícios? Acho que invertemos o papel, mas como ele sempre me acompanha em minhas aventuras, até mesmo quando desconfia delas, resolvi preencher esse espaço vazio da minha semana apoiando sua iniciativa. Foi quando também pus uma roupa que me deixava engraçada, mas nada nos incomoda quando nos divertimos. Fomos para o jardim.

Charlotte

- Como vamos começar papai?

Lenard esticando os braços;

- Primeiro temos que nos alongar, dizem que o alongamento é

primordial.

Charlotte copiando o pai nos movimentos;

- Está bem.

Alguns minutos depois...

97

Charlotte

- Qual será o primeiro exercício?

Lenard

- É melhor começarmos com uma leve corrida para aquecer,

depois veremos o que fazer.

Três minutos depois...

Charlotte e Lenard ainda correndo em volta da mansão;

- Papai você está bem?

Lenard ofegante como se seus pulmões fossem sair pulando

pela boca;

- Sim! Sim! Não, se, pre-o-cu-pe querida, eu, estou, bem!

Charlotte

- Tem certeza papai? Se estiver cansado podemos parar e...

Lenard fez um sinal positivo com a mão interrompendo

Charlotte e sorriu como se tudo estivesse bem;

- Bem! Eu estou, bem!

Mais dois minutos depois...

Charlotte e Lenard se sentam na escada;

- Quer que eu vá buscar um copo d’água papai? (Lenard sem

conseguir falar gesticulou aprovando a ideia).

Alguns segundos depois...

Charlotte

- Aqui está sua água papai, beba devagar.

98

Lenard

- Pode deixar querida, já me estabilizei.

Charlotte

- Ah que bom! Mas papai, o senhor não tem mais idade para se

aventurar a fazer essas coisas.

Lenard riu;

- Charlotte querida, confesso que estou um pouquinho fora de

forma...

Charlotte o interrompe;

- Muito!

Lenard contrariado;

- Está bem! Está bem! Confesso que estou “fora de forma”, mas

não sou um velho sedentário. Você concorda?

Charlotte dizendo com muita naturalidade;

- Não.

Lenard surpreso;

- Como não?

Charlotte

- Ah papai! O senhor passa metade do dia naquela sua poltrona

na sala lendo livros, e a outra metade passa na poltrona aqui da

varanda fazendo a mesma coisa, agora vem me perguntar se não

é sedentário? Não sei como o senhor não é um bolo fofo. (Os

dois começam a rir).

Lenard

- É verdade querida, você está certa. Mas nunca é tarde para se

tentar melhorar, não é mesmo?

99

Charlotte

- Depende da sua força de vontade.

Lenard

- Sim! Sim! Sim! Por isso nós repetiremos tudo amanhã.

Não durou muito e papai estava exausto quase se afogando em seu copo d’água, hoje nem sequer tocou no assunto, fingiu que esqueceu, mas eu deixei passar. Depois de toda essa tentativa frustrada de fazer exercícios o que mais valeu apena foi passar os minutos com meu pai, ele é engraçado, sábio e às vezes consegue me fazer acreditar que é um pouquinho chato, mas só um pouco, coisas de pai. Viver aqui, apenas eu e ele, parece entediante, pode até parecer anormal, mas aprendemos muito um com o outro, e juntos aprendemos com a natureza. É como viver internamente olhando para fora, observando a vida que nos circunda, e a arte da observação é uma prática que requer paciência. Abdicamos de muitas coisas por isso, coisas que outras pessoas julgam incrivelmente essenciais para serem felizes. Mas o que é essencial para a felicidade reinar em qualquer ambiente, independente das dificuldades da vida? Minha humilde resposta: Conciliação. Conciliar toda a sua vida olhando para dentro de si e se conhecendo melhor, reparando qual é o momento de ouvir e o de ser ouvido, são dicas bobas que facilitam boa parte do caminho. Mas a felicidade nunca será algo permanente e sim momentânea, não à cace como se ela fosse um animal em extinção, descubra o amor que está dentro de você pelas coisas simples e saboreie, como acordar pela manhã e se espreguiçar, isso sim é uma boa sensação. Bom, correr em volta da mansão por mais de três minutos acho difícil de acontecer de novo, mas acho que as caminhadas que damos de vez em quando e os alongamentos já estão de bom tamanho. Hoje voltei para meu estado de espumas flutuantes, mas tenho certeza que logo-logo se eu não encontrar alguma coisa para fazer, papai fará isso por mim. Fico por aqui.

100

Heitor fechou o diário, Charlotte e a gata Neblina já

dormiam, ele não pode deixar de soltar um leve sorriso. No dia

seguinte, antes de reparar que Charlotte e Neblina não estavam

na cama, ele se espreguiçou lentamente. A chuva forte da noite

passada fora passageira, mas a grama ficou ensopada, as nuvens

cinzentas retornaram como um filtro não escondendo o sol

totalmente, assim deixando o ambiente agradável e com uma

leve brisa gelada. Após se espreguiçar e esticar o corpo de tudo

quanto é forma, Heitor ficou por uns cinco minutos deitado,

olhando para o teto, parecia tentar entender alguma coisa, seus

pensamentos iam muito longe, ou não, ou ele estava

simplesmente esperando seu corpo acordar totalmente.

Charlote estava sentada no sofá da sala olhando para o

jardim, Neblina se equilibrava entre as prateleiras da estante, ela

subia e descia com suas patinhas fofas e arredondadas bem

devagar, os passos de Heitor descendo as escadas avisaram sua

presença.

Heitor passando pela sala;

- Bom dia!

Charlotte

- Bom dia Heitor!

Neblina descendo da estante e seguindo Heitor;

- Miau...

Heitor

- Então, o que vamos fazer hoje?

Charlotte levantando-se calmamente do sofá e indo até a

cozinha, para onde Heitor estava indo;

- Não sei. Por que não me diz você?

101

Heitor pondo o leite para a gata;

- Humm... Choveu muito essa noite, e ainda parece que vai cair

um pé d’água, só deve ter dado uma trégua. (Heitor põe a

vasilha de leite no chão e Neblina à ataca).

Charlotte

- Não sei não, o sol até ameaçou aparecer.

Heitor preparando seu café quente bem quente;

- Não há muito o que fazer quando está chovendo.

Charlotte

- Às vezes papai e eu jogávamos xadrez, dama, jogos desse tipo.

Heitor

- Meu pai me forçava a jogar uns jogos que só ele ganhava.

(Charlotte ri). Não gosto dessas lembranças.

Charlotte

- Então não lembre.

Heitor

- Tenho que cortar os galhos de algumas plantas.

Neblina no pé de Heitor agarrava uma de suas patinhas no

pijama com as afiadas unhas e puxava;

- Miau...

Heitor dando um de seus biscoitos amanteigados para a gata;

- Você só se lembra de mim quando quer alguma coisa, não é?

Charlotte

- Ah! Isso não é verdade, ela está sempre conosco.

102

Tranquilamente Heitor acabou de tomar seu café quente

bem quente, e depois de se trocar, apenas com a tesoura para

cortar os galhos dirigiu-se para o jardim outrora morto, agora

cheio de vida.

Charlotte acompanhava Heitor assim como Neblina;

- Eu gosto quando o jardim fica molhado. Já reparou que o

cheiro da clorofila sempre fica mais evidente?

Heitor não respondeu, pois aquela pergunta era só mais

uma pergunta como uma frase qualquer apenas para despertar

seu olfato e ele poder sentir o cheiro do verde. Como chovera

muito a maré havia subido, dava para ver a ondulação vindo

cheia do horizonte e quebrando oca perto das pedras, o som era

estrondoso, mas nada que assustasse tanto. Heitor começou a

cortar alguns galhos e Charlotte se distraía no jardim com a gata,

o clima estava frio, as pontas dos dedos das mãos chegavam a

ficar dormentes, assim como a ponta do nariz, mas Charlotte não

se importava e achou engraçado quando reparou pelo reflexo na

grande parede de vidro da sala que suas bochechas estavam mais

rosadas que o normal, Neblina a acompanhava em sua alegria. O

sol sob os filtros de nuvens desaparecera e agora dava para ver

uma nuvem cinza escura que fazia um forte chuvisco cair no

oceano e não estava muito longe dali.

Charlotte

- Ande logo Heitor, daqui a pouco vai cair outra chuva.

E não demorou muito, Heitor ouviu o barulho da forte

chuva se aproximando, olhou para trás e quando deu por si a

nuvem de massa cinzenta estava bem encima da sua cabeça,

despejando toda a sua água fria que parecia energizar ainda mais

a menina Charlotte, que saltitava de felicidade como uma

criança que acabara de ganhar um brinquedo novo, assim

fazendo o extenso laço que havia nas costas de seu vestido

103

balançar, a gata Neblina que mostrava adorar água desesperada

pulava junto com Charlotte a fim de pegar a bendita fita que

para ela parecia ter vida. Heitor apressou-se para sair dali, e sem

ter terminado o que estava fazendo, pôs-se a correr para a

varanda a fim de se proteger da chuva.

Charlotte saltitando debaixo da chuva;

- Ah Heitor, não me venha dizer que tem medo de raios, pois não

vi nenhum caindo.

Heitor ficando parado e olhando com uma cara estranha;

- O que está fazendo ai? Vai pegar um resfriado.

Charlotte

- Depois tomamos um chá! Venha! Está perdendo a melhor parte

da diversão.

Heitor virou-se de costas e deu três passos para frente

como se fosse entrar na casa, mas ele parou por um impacto

como se uma parede imaginária o tivesse impedido de continuar,

virou-se lentamente, e depois de uma longa olhada para a cena à

sua frente, retornou sem ansiedade para seu ponto de partida,

ficou ali, olhando a gata, e a menina Charlotte que não parava de

saltitar, correr e sorrir. De repente tudo estava em câmera lenta,

em absoluto silêncio em sua mente, e quase sinfonicamente ele

via as gotas de chuva estalarem de forma cristalina no louco balé

da gata Neblina e de Charlotte que com seus longos braços fazia

movimentos indecifráveis, mas que tinha uma beleza de se ver, o

sorriso branco, bonito e sapeca conseguia despertar alegria em

qualquer coração partido, fixar o olhar nos olhos negros dela era

mergulhar em um oceano calmo e escuro, nadar cada vez mais

fundo sem conseguir parar, sem ver o que vem pela frente, e

quando se está tão fundo em um oceano, você começa a fazer

parte dele. Heitor abriu um sorriso sem ele mesmo perceber,

ainda tinha dúvidas em relação a água fria, ele arregaçou as

104

mangas da blusa, pôs o braço para fora da varanda deixando

assim a água tocar sua pálida pele, e retirou o braço

imediatamente.

Heitor

- Está muito fria.

Charlotte

- Misture-se a ela e você nem perceberá mais isso. Venha Heitor,

não fique aí parado! Sinta o poder que a natureza tem de nos

purificar.

Heitor respirou fundo, meio indeciso e foi, jogou-se

debaixo de toda aquela água fria... Ficou parado, molhado,

olhou para cima, para Neblina e retornou a olhar para cima.

Heitor

- Hã?!

Charlotte chegou perto do rosto de Heitor e seus lábios rosados

sussurraram perto de seu ouvido;

- Sinta Heitor.

A menina ficou parada do lado dele, abriu os braços para

o céu e fechou os olhos, Heitor fez a mesma coisa, e aos poucos

foi se misturando com os pingos de água que caíam por sua pele

e escorregavam pelo seu corpo.

Charlotte

- Não é bom? A água é fonte de energia, quando ela bate na sua

pele cria uma vibração com o seu corpo que já tem sua própria

energia e assim recarrega sua alma.

A respiração de Heitor estava um pouco pesada e

parecera que todo o seu corpo começara a trabalhar mil vezes

105

mais rápido, os pingos de chuva tocavam sua pele, e era estranha

a sensação que ele descobria naquele momento, podia ser uma

sensação de liberdade, de aproximação do céu, ou de Deus. Era

boa, e isso bastava para acalmar seu espírito. E como um velho

ditado diz: Quem está na chuva é para se molhar. Heitor não

pensou duas vezes quando resolvera transformar seu bonito

jardim em um imaginário parque de diversões, e assim pode

voltar a sua infância e relembrar o antigo sentimento que lhe faz

sentir que é capaz de fazer qualquer coisa e tudo dará certo,

como subir um muro e andar se equilibrando nele, ou escalar

todas as portas de casa com as pernas. Heitor, Charlotte e

Neblina divertiam-se sujos com a lama do jardim, brincando de

escorregar na grama, dando cambalhotas e estrelinhas. Nada é

tão maravilhoso como ser criança e viver a infância da maneira

mais simples que existe, transformar um pneu em um acento de

balanço e o balanço em algo que nos faz voar como pássaros, os

lençóis da cama em refinados vestidos ou a capa de um super

Herói, sob a cama um esconderijo secreto onde os monstros e o

bicho papão não conseguem entrar, e se no meio da noite,

quando todos estiverem dormindo for detectada alguma

presença estranha, o cobertor vira uma supercapa de

invisibilidade que faz desaparecer quem estiver sob ela. E assim

o doce e puro prazer da alma era redescoberto pelo amigo da

menina Charlotte.

No começo da tarde Heitor esquentava a água para

banhar a gata Neblina, que agora depois de toda a euforia ter

passado tremia suas finas perninhas com o pelo lambido pela

lama, e os bigodinhos pesados para baixo também não paravam

de tremer.

Heitor colocando a água quente na banheira para banhar a gata;

- Está vendo? Eu disse que poderia pegar um resfriado.

106

Charlotte já de banho tomado entrando no banheiro;

- Ah Heitor, não chame atenção da Neblina, pois você também

se divertiu muito, não foi?

Heitor

- Tudo bem! Não vou ficar aqui resmungando com você

Neblina, admito que nos divertimos muito, mas assim que

acabar de te lavar vou preparar um chá bem quente.

Charlotte

- Essa ideia foi minha.

Neblina correu para dentro da banheira e se jogou;

- Miau.

Charlotte

- Ouviu? Ela concorda comigo. Você é minha testemunha

Neblina.

Neblina mais confortável dentro da banheira;

- Miau.

Heitor ensaboando a gata;

- Agora está gostando não é? Realmente, tudo neste lugar é

diferente, melhor dizendo, se torna diferente.

Charlotte

- Assim como você meu caro Heitor.

Após lavar Neblina Heitor secava com uma enorme

toalha a gata que lambia delicadamente debaixo de suas

patinhas, o pelo grande e fofo precisava ser esfregado com

insistência e penteado com paciência, pois senão,

definitivamente ela viraria uma bola de pelos, e o felino após se

deixar ser banhado, secado e escovado empinou seu frio

107

narizinho rosa e foi aconchegar-se perto da lareira da sala

conservadora, assim como Charlotte. Heitor aprontou-se e logo

foi para a cozinha, procurando alguma espécie de chá, reparou

que sua dispensa estava praticamente vazia, e os mantimentos

que sobraram não eram muito saudáveis, Heitor ficou parado

olhando para toda aquela comida se perguntando se tinha sido

ele mesmo que havia comprado tanta gordura, Charlotte que

descera até a cozinha para ajudá-lo não hesitou em responder-

lhe.

Charlotte

- Mas claro que foi você, eu e papai nunca comemos esse tipo de

comida. Se há uma coisa que descobrimos, é como folhas,

verduras e cereais podem ser preparados de uma maneira

saborosa. Assim estamos cuidando do nosso corpo e

preservando nossa vida, para que mais tarde nossa indisciplina

alimentar não nos cause um mal maior ou até mesmo nos leve a

morte, pois se isso acontecesse nós seríamos responsáveis pelas

consequências de uma vida que só existiu baseada no prazer que

as coisas podem nos oferecer, uma delas, a alimentação incorreta

cheia de carnes, gorduras e bebidas alcoólicas.

Heitor meio distraído;

- Eu só compro café?! Trinta pacotes de café e nenhum de chá?!

Isso não é nada bom.

Charlotte

- Pois é, eu não sei como é que você consegue ser assim...

(Charlotte olhou de cima para baixo para Heitor meio sem graça

e disfarçou). Desse jeito, com aparência tão saudável, mesmo se

alimentando tão mal.

Heitor mostrou-se a vontade com um agradável sorriso;

- Acho que vou ter que ir até a cidade fazer umas compras.

108

Charlotte

- Vê se compra algo mais saudável para comer, pois eu e

Neblina não aguentamos mais vê-lo mergulhado no café e na

gordura.

Sem mais esperar, o jovem Heitor ainda viciado em café

pôs-se a caminho da garagem, antes, ao sair de casa, reparara

que um leve chuvisco conservava a grama ensopada da forte

chuva que havia caído, mas isso não o impediria de ir até à

cidade. Charlotte fez questão de ir com ele, ela não perdia uma

oportunidade de ir até a pequena cidadezinha ver os conhecidos.

Heitor ligou o para-brisa e um pouco ansioso por causa do clima

inconstante, saiu pelos enormes portões de ferro da mansão a

caminho do mercado. Aquela tarde fria no alto do penhasco

conservava suas nuvens densas de chuva que faziam às três

horas da tarde parecer o começo da noite, pedras e buracos na

velha estrada de terra a deixavam ainda menos confortável. O

rapaz não ouvia nada além do chuvisco sendo limpo pelo para-

brisa que parecia arranhar o vidro do carro, e as estrondosas

ondas que batiam impiedosamente nas pedras, resvalando seus

espirros que subiam alto e desciam rápidos e pesados que davam

para se ouvir quando voltavam a cair no mar, logo em segundos

um novo estrondo se fazia repetindo o ciclo.

Charlotte pensando melhor;

- Não devíamos ter saído de casa, a névoa está cobrindo boa

parte da estrada.

Ela tinha razão, a visibilidade era pouca, o chato

chuvisco não parava e a terra estava escorregadia, mas Heitor

insistiu em cumprir seu objetivo, ele estava empolgado demais

em começar uma nova dieta para temer tudo aquilo,

simplesmente continuou dirigindo ansiosamente.

109

Heitor pensava;

- Eu já conheço a estrada mesmo, não vou perder tempo.

Os minutos em silêncio não o amedrontavam, mas de

repente, Heitor piscou os olhos junto com o ponteiro que

marcava os segundos do seu relógio, alguma coisa grande

atravessara o caminho, podia ser um animal ou até mesmo uma

pessoa, não se sabia, os punhos de Heitor agarraram tão fortes o

volante que ele nem conseguia sentir o resto do seu corpo

agindo independente como se respondessem a um reflexo, seus

pés pisaram fundo no pedal do freio, os pneus do carro

deslizaram sobre a lama fazendo uma espécie de zumbido que

lembrava a um grito que podia ser confundido com o de

Charlotte, seus corações pareciam explodir dentro de seus

peitos, foi quando tudo escureceu... Um quase eterno silêncio se

alongou e prolongou aquele momento, nem o arranhar do para-

brisa, nem o estrondoso som das ondas que batiam nas rochas,

nem os pensamentos de Heitor e Charlotte, nenhum som. O

silêncio despertara uma agonia naquele ambiente fazendo com

que todo o resto do mundo se calasse. E assim, como se

estivesse muito longe, o céu se tornava presente, o vento soava

levemente como um pequeno sopro levando anjos pelo ar a

caminho do paraíso, o tempo estava como em câmera lenta sem

deixar claro o que acabara de acontecer. Aos poucos o bater das

ondas começavam a surgir, a névoa que até então era somente

uma cortina suave e leve, agora trazia o frio e o suspense de

como tudo se apresentava naquele momento. O que acontecera?

Tudo acaba assim, tão de repente? A vida passa em fração de

segundos e termina sem deixar recado? Quantas coisas passam

no pensamento quando um fato desses nos chega sem avisar?

Charlotte naquele momento sentiu-se enfraquecida

lembrando-se do susto que a deixou inerte por uns tempos

naquela mansão após a perda de direção do seu pai, quando ela e

Lenard desciam pela mesma estrada há um tempo não muito

distante de um passado meio que esquecido na lembrança.

110

Heitor percebeu que estava de olhos abertos, mas não

conseguia enxergar, em fração de segundos, logo depois da sua

percepção, bolinhas coloridas faziam sua pupila formigar, era

estranho, pois ele não sentia seu corpo, foi quando sua visão

voltou e ele pode visar seus punhos que ainda seguravam forte o

volante. – Que alivio! Pensou ele por estar enxergando. Então

olhou para suas pernas, tentou mexê-las, e com sucesso obteve

resultado, sentiu-se ainda mais aliviado com uma sensação de

um milhão de formigas lhe subindo pelas pernas, ele sorriu

desesperadamente.

Charlotte

- Você está bem Heitor?

Heitor rindo;

- Eu não morri! Estou vivo!

Charlotte ainda fraca para dar algum sermão;

- Por que está rindo? Nós quase morremos.

Heitor se apalpando;

- Posso ver, falar e estou sentindo minhas pernas. Eu estou bem.

(Heitor respira aliviado). Ufa!

Charlotte um pouco mal humorada cruzando os braços;

- Eu também estou, obrigada por perguntar!

Após a euforia da percepção de estar vivo e de ter saído

ileso do grave deslizamento, Heitor foi se acalmando, mesmo

quando a cena voltava em sua mente fazendo-o se perguntar

como ele ainda estava ali, pois o carro fora parar na beira da

estrada e por pouco não despencou de lá de cima caindo nas

rochas do mar. O tempo continuava ruim, não tão ruim como

antes do quase acidente, Heitor decidiu que não iria deixar de ir

até a cidade, meio que tremendo, sem saber se era por causa do

111

frio ou do receio que se instalara em seu corpo, ele continuou o

caminho, Charlotte estranhamente não encontrava forças para

quebrar aquele velho silêncio que a fazia esquecer a sua própria

voz, permaneceu quieta com seus mudos pensamentos, assim

como Heitor que agora ficara sério pensando na gravidade do

acontecido.

Se a cidade já não era muito movimentada em dias de

sol, em dias de chuva mais parecia uma cidade fantasma jogada

as traças. Heitor ainda abalado com a lembrança do som dos

pneus do carro arrastando na terra molhada estacionou o carro

com todo cuidado, entrou no pequeno mercado e concentrou-se

em fazer o que fora fazer. Charlotte resolvera ficar no carro, pois

muito estranhamente não sentia forças para sequer mexer seus

finos e longos braços. A volta para a mansão fora tranquila, pois

a chuva pareceu dar uma trégua e as nebulosas se afastavam

lentamente. Já na casa, Heitor preparou o chá, a gata neblina

com seu super olfato aproximou-se indiscretamente da xícara e

queimou a sensível linguinha áspera ao tentar provar o chá

quente bem quente de Heitor, frustrada miou e voltou para o

lugar onde descansava da sua entediante vida felina.

Heitor

- Está vendo?! Isso é para você se convencer de que é apenas

uma gata e não sair por aí achando que pode fazer o que quiser.

A gata com seus pelos cinzentos, já acomodada com suas

patinhas cruzadas apoiando sua cabeça arredondada, não se

preocupou em mostrar alguma reação, Neblina apenas desviou o

olhar de Heitor mostrando desprezo pelo o que o moço falava, e

como quem estava sonolenta virou a pequena cara achatada para

o lado.

Heitor

- Pode fingir que não está me escutando, pois eu sei que está.

Hoje na estrada o carro derrapou, levei um susto daqueles sabe?

112

E Heitor continuou a confabular com a gata

desinteressada por um longo tempo, ele não conseguia parar de

falar simplesmente, por mais que soubesse que ninguém o

responderia, não estava se importando, continuava a falar sobre

sua infância e seus medos de menino, a grande tristeza do

terrível acidente que levou a vida de seus pais, a consciência de

que sempre há um motivo benéfico até para as mais terríveis

coisas que passamos lhe trouxe certo conforto ao entrar na barca

do terror de sua vida. Um suspiro de alívio ele deu, e então

percebeu que a folgada gata estava emitindo um ruído estranho,

um leve ronronar e os olhinhos fechados faziam parecer que ela

dormia, Heitor se aproximou, e o ruído fez-se ouvir de novo.

Heitor disse baixinho;

- Você está roncando? (Neblina repetiu o som). Mas eu nunca

ouvi um animal roncar! (E mais uma vez ela roncou). Só podia

ser você mesma.

No meio da tarde Heitor andava lentamente de um lado

para o outro, dando-se a desculpa de que precisava pegar algo no

escritório e aí voltava para seu quarto, então ia até a cozinha

tomar um copo d’água mesmo sem sentir sede ou simplesmente

abria a porta da geladeira para pensar, novamente voltava para o

quarto. Ele repetiu suas idas e vindas por inúmeras vezes, tantas

que não dava para se contar. Em alguns momentos parava e

olhava para o nada, que podia ser um tapete ou um quadro

qualquer, parecia estar sentindo falta de alguma coisa, até que

aparentou desistir de procurar o que tanto lhe torturava a

ausência. Havia um pequeno sofá ao lado da grande parede de

vidro, mas Heitor resolveu ignorá-lo, com suas roupas

confortáveis deitou-se no chão de madeira que estava um pouco

frio por causa do tempo, seus olhos vasculharam o teto e não

acharam nada que o surpreendesse naquele momento, então

virou-se de bruços e apoiou sua cabeça em um dos braços,

estranhamente se pegou de olhos fechados pensando na menina

113

Charlotte. A voz aveludada e calma que contrastava com um tom

ousado que levava a boca de Heitor salivar lembrando-o de bala

de tamarindo, doce no começo, um pouco azeda no meio, e

prazerosa no fim misturando os dois sabores fez-se presente e a

beleza de Charlotte perfumou o lugar.

Charlotte

- Ah! Você está aí! (Charlotte deitou-se ao lado do rapaz).

Também gosto de ficar aqui de vez em quando, principalmente

quando está chovendo.

A menina deu uma pausa esperando Heitor dizer alguma

coisa, mas ele apenas ficou ali com seu rosto que aparentava

algum tipo de conforto naquele instante.

Charlotte continuou sem nenhuma preocupação em relação ao

silêncio calmo de Heitor;

- Como eu estava dizendo, gosto de ficar aqui quando está

chovendo. Consegue ver as pequeninas gotas de água que

descem pelo vidro? (Charlotte pegou a mão do distraído Heitor e

a conduziu até o vidro). Elas percorrem muitas vezes lentamente

seus caminhos tortos. (Ela destacou o dedo indicador do rapaz e

o fez seguir uma das gotas que escorregava devagar). Elas

descem, e pelo caminho podem ir se desgastando e ficando cada

vez menor, como também podem colidir com outra gota e se

juntar a ela se tornando ainda maior e mais forte, sua única

preocupação é chegar ao seu destino final. (Charlotte terminou

seu caminho com a mão de Heitor em uma poça d’água que se

formava no chão do outro lado do vidro). São corpos

independentes Heitor, que se unem formando no final da sua

jornada um corpo só, consequentemente tornam-se ainda mais

fortes.

Heitor sentiu sua mão quente, agora não tão distraído

permaneceu deitado naquele chão frio ao lado de Charlotte que

114

sempre tinha algo a dizer, mas para o rapaz era conveniente todo

aquele falatório, pois ele mesmo gostava de ficar calado, mesmo

quando a única coisa a ser ouvida era a respiração da menina

falante, Heitor se sentia a vontade para só se permitir ficar ali

olhando qualquer coisa que não fosse tão interessante.

Os dias passavam como caixinhas de surpresa, o tempo

foi melhorando lentamente como se estivesse passando por um

processo de limpeza, de transformação, assim como Heitor e

Charlotte.

Quando conheci o senhor corretor lhe disse que procurava uma casa longe de todos e de tudo, onde nada ouviria nem veria. Ao chegar aqui, olhei para essa velha mansão, que parecia ter sido feita especialmente para uma família, as únicas coisas que pude enxergar foram as velharias e como ela estava largada as traças. Agora, percebo que todo aquele decorrer de minha vida era eu quem estava largado ao tempo que corria, Charlotte me fez querer mudar e ver as coisas de um novo ângulo, um ângulo vivo, onde cabem todas as coisas, todas as emoções, menos o medo de tentar vivê-las. Não estou longe de todos e de tudo, na verdade nunca estive tão perto de mim mesmo, ouço todos e tudo, até a terra respirar, e me surpreendo a cada novidade que presencio. Acho que nunca saberei como agradecer a ela por me devolver tudo que um dia a mágoa e a ignorância me levaram. Não contarei mais os dias e as noites, porque os dias e as noites são só as voltas que o sol dá em volta da terra e vice-versa, não irei mais me perguntar o porquê das coisas ruins, apenas aguardarei o próximo amanhecer e farei o que for preciso para que seja bom. A vida não pode ser tão difícil quando se tenta entendê-la e compreendê-la, pois ela tem seus motivos, todos fundamentados em alguma coisa que fizemos ou deixamos de fazer. HT

As tardes de Heitor eram preenchidas com as páginas do

diário de Charlotte, isso quando o rapaz que aprendera a não ser

ranzinza não arrumava tantas coisas para fazer. A mais nova

distração era o cultivo de uma pequena horta que ele mesmo

115

fizera após se inspirar em uma das páginas do diário, Heitor

presenciava a cada dia a evolução dos alimentos que agora

recheavam suas prateleiras da dispensa, os pequeninos tomates

verdes cresciam e ficavam vermelhos como sangue, e as mãos

de Heitor tocavam livremente os frutos e as folhagens, as flores

brancas e perfumadas do maracujá já migravam para fora da

plantação. E assim, finalmente ele aprendera a levar a vida,

participando dela.

Meu aniversário está chegando, faltam quatro semanas, eu disse ao papai que não precisava fazer nenhuma estripulia, mas como o conheço bem, ele não deixará passar em branco. Adoro datas comemorativas, onde pessoas queridas se reúnem para festejar qualquer coisa, principalmente seus encontros e reencontros. Com tudo, sei que não estamos podendo dar nenhuma festa como costumávamos dar, mas compreendo que o mais importante não é a festa e sim o sentimento sincero que cada pessoa direciona a nós, mesmo quando estão longe e apenas podem mandar uma carta que seja. Por falar em sentimentos sinceros, acabei de ler aquele livro que mencionei a folhas atrás, aquele onde o cavalheiro e a mocinha se apaixonaram apesar das diferenças enormes que a vida lhes impôs e suas próprias filosofias. Eu estava pensando: O ser humano sempre espera que as outras pessoas ao seu redor não errem, pode ser qualquer bobagem, a nossa falta de preparo para entender suas falhas é muito grande, nos decepcionamos justamente porque não esperamos tal coisa de tal pessoa. Então um pensamento muito lógico me veio à cabeça; Pessoas erram tentando acertar, então devemos viver aprendendo a perdoá-las sempre que for preciso. Os erros só existem para que também a prática do perdão não seja esquecida. Mas isso foi só uma coisa que me veio à cabeça enquanto eu pensava. Eu já ia esquecendo! Teddy, Luísa e Clarinha vieram me visitar, como sempre reclamaram das minhas visitas não tão frequentes a suas casas. Mas o que posso fazer se gosto de passar mais tempo em casa me distraindo comigo mesma? Nada faz eu me sentir tão bem quanto ficar

Diário de Charlotte,

26 de abril de 1880

116

aqui na mansão do penhasco. Boa Noite diário.

Heitor - Finalmente a menina alegre e agitada mostra-se um pouco

reclusa.

Charlotte que estava sentada ao lado de Heitor na pedra que

ficava na ponta do penhasco;

- Todos nós precisamos de momentos solitários, aqueles

momentos em que se conversa consigo mesmo.

Heitor distraído com a paisagem e com a gata Neblina que

lambia sua mão pedindo afagos;

- Vir morar aqui foi a melhor coisa que fiz, aprendi a conviver

comigo mesmo e me conheci melhor. Apesar de não estar em

contato direto com o mundo lá fora, me sinto preparado desta

vez para enfrentar qualquer coisa, pois minha alma está

alimentada com sabedoria e meu corpo reflete compaixão.

Charlotte

- Nós atravessamos a ponte balançante de ventos turvos e

uivantes querido Heitor. (Charlotte olha para o céu). Sinto como

se algo me aliviasse de um peso que eu nem sabia que carregava

antes.

Charlotte e Heitor respiraram e suspiraram juntos

naquele fim de tarde sentados na pedra da ponta do penhasco

com a gata Neblina preguiçosa e dócil. A mesma luz que

iluminava a menina Charlotte, agora iluminava o coração do

menino Heitor, suas almas se reconheciam independente de

qualquer coisa que o destino lhes viesse a por no caminho, a

transparência do sensível sentimento se fazia sentir além da

117

linha tênue do tempo, e a suave brisa que envolvia seus corpos

também unia seus pensamentos como se ao respirar eles

sugassem um o pensar do outro. Nem as brancas nuvens do céu

se sentiriam tão leves como o casal de amigos, nem as riquezas

do mar fariam parte tão perfeitamente do mesmo mundo,

nenhuma gaivota voaria tão alto e tão longe só para aquela tarde

de pôr do sol ser presenciada, apenas existir. Os dias de Heitor

nunca mais foram apagados, eles brilhavam como raios solares

refletindo coloridos em gotas d’água.

Hoje abri os olhos bem devagar ao acordar, depois os fechei, pois a

luz estava tão forte que eles arderam como quando os abrimos debaixo da água do mar, meus passos quase sonâmbulos avisaram ao papai que eu já havia acordado, quando cheguei à cozinha meu café da manhã preferido já estava pronto. Papai tem esse jeito zelador e cultivador de ser, ele cultiva tudo em sua vida, desde a grama do jardim, as cercas da mansão e sua filhinha, claro. Ele tem essa mania de achar que ninguém cuidará das coisas tão bem como ele cuida, então prefere mil vezes fazer ele mesmo, por mais que seja uma coisa que ele não goste muito de fazer. Enfim, eu o deixo a vontade para agir da maneira que se sentir melhor, assim como ele faz comigo. Não falarei do tempo hoje, não importa. Não falarei das árvores nem das plantas, pois elas continuam em seu ciclo a crescer. E o canto dos pássaros que se recolhem para seus cantos tão cedo quanto a minha vontade de viver, ainda soa, assim como soa o eterno som do mar, assim como soa o simplório som do vento nas árvores, assim como ainda soa meu respirar. Estar no meu lugar preferido da mansão é onde gosto de estar, e qualquer lugar aqui será o meu preferido, este é o local onde meus sonhos se permitem viver, e hoje ao acordar pela manhã me pareceu que todas as cores estavam mais vivas e vibrantes, isso não foi só hoje, pois há alguns dias venho reparando que essa tonalidade despertadora de emoções vem ficando cada vez mais intensa. O que será que está acontecendo? Talvez

Diário de Charlotte,

11 de maio de 1880

118

seja a mudança de clima. Mas eu nunca havia reparado este fenômeno antes, chego até a acreditar que papai esteja usando algum pó mágico para deixar o jardim mais bonito para o meu aniversário que se aproxima. Enquanto aguardo ansiosamente pelo dia vou desfrutando desta magia secreta que faz tudo ficar cada vez mais bonito. Até amanhã querido diário.

Heitor fechou o diário com um sorriso enorme no rosto,

parecia orquestrar alguma coisa, Charlotte não resistiu.

Charlotte

- Do que está rindo Heitor? Está com aquela cara de criança

sapeca quando planeja fazer alguma travessura.

Heitor levantando-se do sofá em um pulo;

- Vamos dar uma festa! (Neblina que antes repousava no braço

do sofá deu um pulo de susto e um miado agudo).

Charlotte confusa;

- Uma festa?

Heitor

- Uma festa de aniversário! Está decidido! (Ele andou

rapidamente de um lado para o outro como se não soubesse para

onde ir e finalmente decidiu). Vou até a cidade.

Charlotte o seguiu assim como Neblina;

- Não vou perder essa oportunidade!

Heitor chegando à porta de saída, a abriu, parou

instantaneamente antes de sair e logo foi dizendo;

- Nada disso senhorita, você permanecerá em casa

119

comportadinha. (Ele fechou a porta antes que Charlotte

rebatesse a sua ordem).

Charlotte para Neblina que voltava conformada para seu posto

no braço do sofá;

- Agora você vê Neblina, nós damos a mão e a pessoa puxa logo

o braço todo. Está vendo? Não se pode dar confiança. Mas tudo

bem, desta vez vou deixar passar. Afinal ele disse que iria dar

uma festa não é? Uma festa de aniversário para mim. Papai

podia estar aqui conosco, ele adora festas. (A menina senta

pensativa no sofá).

Sem mais esperar, naquela manhã ensolarada Heitor foi

sozinho até a pequena cidade. A primeira loja a ser visitada foi a

das irmãs gêmeas Agatha e Abigail. O sino da porta fez um

tintilar familiar a Heitor que entrou leve, sorridente e alegre com

a proposta da festa. Ele avistou a senhorinha que parecia falar

sozinha por detrás do balcão.

Heitor

- Olá senhora! (Disse Heitor entusiasmado se aproximando do

balcão).

Abigail levantando os caídos e pequeninos olhos que já eram

quase cobertos por suas pálpebras;

- Olá meu filho!

Heitor

- A senhora se lembra de mim?

Abigail tentando abrir seus olhos desbotados fitou os de Heitor;

- Humm... Lembro-me dos seus doces olhos querido, mas não

me vem o nome a cabeça agora.

120

Heitor sorridente;

- Eu sou Heitor... (A velhinha ficou parada olhando para o rapaz

e depois de alguns segundos, Heitor percebeu que ela não havia

se lembrado). Vim aqui outro dia comprar tintas e telas...

Abigail interrompendo;

- Ah sim! Você é o pintor!

Heitor

- É. Talvez!

Logo, dos fundos da loja surgiu a gêmea idêntica de

nome Agatha, com pernas cansadas arrastando seus chinelos e

voz envelhecida, mas ainda agradável.

Agatha

- Quem está aí Abi? Eu ouvi barulho lá dos fundos.

Abigail

- É aquele rapaz de nome Heitor.

Agatha parou de frente para ele;

- Quem?

Heitor falando mais alto;

- Heitor! (Agatha ficou parada olhando para a fronte do rapaz

tentando buscá-lo em sua memória, depois de alguns segundos,

Heitor desistiu). O pintor!

Agatha

- Ah! Sim! O pintor de olhos fascinantes!

Heitor sorriu mais uma vez;

- Eu mesmo.

121

Abigail

- Ah meu filho! A velhice faz-nos voltar a ser crianças,

esquecemos tudo, quebramos as coisas, isso quando não

voltamos a usar fraldas.

Agatha

- Abigail! Isso são coisas de se falar para um cavalheiro?

Abigail

- Mas eu estou dizendo alguma mentira? Bom, posso te dar uma

certeza querido, se eu fosse jovem me lembraria de você mesmo

sem vê-lo há mais de dez anos, e você com certeza lembrar-se-ia

de mim, pois eu era muito bonita, os homens dessa ilha

arrastavam caminhões por mim...

Agatha

- Deixa de lenga-lenga sua velha metida.

Abigail aproximou-se um pouco mais de Heitor;

- Ela fica assim porque sabe que eu sempre fui mais bonita que

ela.

Agatha

- Mas nós somos idênticas sua tola.

Abigail para Agatha;

- Isso é o que você pensa. (Cochichando para Heitor). Ela

passou a vida inteira querendo acreditar que se parece comigo,

você acredita? Só porque eu sou mais bonita que ela.

Agatha

- Bem, mas o que o trouxe em nossa humilde loja senhor Heitor?

Heitor

- Eu vou dar uma pequena festa...

122

Abigail

- Ah! Eu adoro festas! Uma pena eu não poder ir a sua, sabe?

Minhas pernas parecem gravetos de tão fracas.

Heitor

- É uma pena mesmo. Na verdade estou comemorando o

aniversário de uma amiga, é só uma simples vontade de mudar

um pouco o clima.

Agatha

- Sim, sim! É importante mostrarmos de um jeito ou de outro

nosso afeto pelas pessoas.

Abigail

- Eu concordo plenamente!

Agatha

- Mas o que você vai precisar querido?

Heitor

- Eu não sei. Nunca participei de uma festa antes, meus pais me

compravam apenas um bolo e serviam na hora do almoço.

Abigail

- Ai! Coitadinho, ele nunca teve uma festa de aniversário. Bom

docinho, nós vamos ajudá-lo com a festa para a sua amiga.

Tenho certeza que ela vai adorar!

Agatha

- Ah é verdade! Abigail sempre foi a mais festeira, entende tudo

de festas!

Abigail

- Eu era mais convidada por causa da minha beleza.

123

Agatha rodou seus olhinhos para cima e desabafou:

- Aff!

Heitor

- Se vocês me auxiliarem eu ficarei muito agradecido, quero que

fique perfeito.

Abigail

- Não podemos começar a escolher as coisas sem saber as cores

que você quer meu filho.

Agatha

- É mesmo, tem que escolher uma cor bem bonita.

Heitor pensativo não demorou muito a responder;

- Eu quero todas!

Agatha e Abigail

- Todas?!

Heitor

- Sim! Minha amiga passa uma alegria muito forte, ela não é

dona de uma cor só, ela domina uma aquarela inteira.

Abigail

- Querido, se alguém me dissesse isso cinquenta anos atrás eu

fugiria para casar com essa pessoa no mesmo segundo.

Heitor sorriu distraído, e todas as cores de enfeites de

todas as formas foram compradas para a festa de Charlotte, eram

tantas coisas que mal cabiam no carro. Ao acabar a compra

Heitor se despediu das duas senhorinhas, com extremo cuidado

retornou ao penhasco, do portão de ferro ele se lembrou da

primeira vez que pôs os olhos na antiga mansão, e novamente

sentiu um aconchegante vento o abraçar e fazer com que ele se

124

sentisse intimamente no seu lugar. Era como se seres místicos

lhe soprassem a face e lhe envolvesse em braços maternos.

Charlotte nesse meio tempo roía as unhas até os dedos, pois não

via a hora de descobrir o que Heitor havia comprado para tal

evento. Com inúmeras sacolas nas mãos e por debaixo dos

braços, Heitor mal conseguia abrir a porta, quando finalmente

entrou, Charlotte correu para ajudá-lo.

Charlotte correndo;

- Heitor! Como você demorou! Eu já estava enlouquecendo!

(Charlotte tentou pegar umas sacolas para ajudar Heitor, mas

deixou cair no chão). Desculpe. Como eu sou distraída.

Neblina não deixou de se aproximar ao ver muitas cores

brilhantes e vivazes que despertavam sua curiosidade felina.

Heitor

- Não, não, não, não, não! Não toque em nada. Eu mesmo vou

enfeitar e decorar, sozinho.

Charlotte

- Poxa! Mas eu queria ajudar.

Heitor pegou a gata no colo muito contra a vontade dela e não

hesitou;

- Será que vou ter que te trancar no quarto?

E foi o que ele fez tanto a Charlotte quanto a Neblina, as

duas ficaram trancadas no quarto esperando meio dia para ver os

preparativos de Heitor.

Já havia escurecido, mas como no natal a casa estava

toda iluminada e brilhante, circulava um cheiro de cera

aromatizada pela sala principal que despertava certa vontade de

comer doce, meio intrigante isso. Bolas, pompons, fitas

decorativas e tudo mais que Charlotte tinha direito. A menina foi

125

liberada, e cada degrau que seus pés tocavam, seus olhos viam

uma nova cor, um novo brilho, e a purpurina que realçava todo o

gracejo que havia sido feito pelo esforçado Heitor, tornava tudo

ainda mais enfeitiçado. Os olhos negros de Charlotte

umedeceram e pôde-se ver ainda mais a brancura da sua alma

pura.

Heitor

- Gostou?

Charlotte circulando pela brilhante sala;

- Se eu gostei? Eu amei! Está lindo Heitor!

E com muita música alegre todos se distraíram,

dançaram, pularam, sorriram e brincaram na comemoração

daquele aniversário que ainda nem havia chegado.

Horas depois, quando a música também já estava

cansada, Heitor tomava um suco enquanto estava de pé em

frente à parede de vidro, ele olhava para o horizonte azul

marinho e se seus pensamentos pudessem ser pintados ali, sem

dúvidas veríamos a doce Charlotte, Ela por sua vez ainda se

distraía com os pompons brilhantes que a gata Neblina havia se

enrolado, foi quando sussurrou Heitor:

Heitor

- Gostaria muito que estivesse aqui comigo Charlotte.

Charlotte se levantou do chão e foi ficar ao lado de Heitor;

- Pronto! Já estou aqui. (Heitor virou-se de frente para a moça e

com os olhos perdidos olhou para baixo). Obrigada por tudo

Heitor.

Charlotte aproximou-se e deu um beijo na face de Heitor

que timidamente sorriu e voltou a olhar para o horizonte, e

assim a mansão adormeceu.

126

Raios solares invadiram a grande casa de um momento

para o outro como se uma nuvem saísse da frente do sol, tudo

estava calmo, quieto, apenas os passarinhos brincavam por ali

bicando uns aos outros, nem parecia que uma festa havia sido

dada. Foi quando sapatos brancos subiram os poucos degraus da

varanda que ficava de frente para o chafariz, lentamente eles

caminharam e a porta de entrada da casa se abriu emitindo um

ranger que não chegava a ser desagradável, os calçados largos

continuaram a caminhar, passando pela sala e por toda bagunça

que fora feita, seu toque-toque na escada que dava para o

segundo andar não acordou Heitor que dormia profundamente,

pois também os pés de tão sutis pareciam flutuar, os sapatos se

dirigiram para o sótão. As longas pernas que eram escondidas

por uma calça de linho não muito nobre de cor branca,

dobraram-se ao sentar na cama da menina sonolenta que aos

poucos foi acordando lentamente do maravilhoso sono que

estava tendo. Charlotte esfregou os olhos sem ansiedade, ela

pensava ser Heitor o estranho sentado em sua cama, mas assim

que seus olhos focalizaram a branca imagem pode perceber que

era seu pai Lenard quem estava sentado ali ao seu lado zelando

pelo seu sono. A menina não teve palavras e seu imenso sorriso

não coube em sua pequena e desenhada boca, ela abraçou o pai

que também explodia de felicidade, o abraço apertado rendeu

lágrimas de alegria e certo alívio de ambas as partes. Após um

minuto a menina pode se expressar com sua voz ainda engajada

pela estridente emoção.

Charlotte

- Papai! Não acredito que está aqui!

Lenard

- Sim minha querida filha, eu estou. Eu disse que faria uma

viagem longa, mas que voltaria.

127

Charlotte eufórica abraça o pai novamente;

- Sim, sim... Eu sei, é que aconteceram tantas coisas papai, o

senhor nem imagina. Tenho que contar tudo que aconteceu.

(Charlotte deu um pulo da cama como se lembrasse de algo

muito importante). Heitor! Tenho que avisar a ele que o senhor

já chegou. O senhor vai adorá-lo papai, ele está tão diferente de

como era quando o senhor nos deixou.

Lenard com sua calma foi até Charlotte, segurou em suas mãos

e a conduziu para se sentar na cama com ele novamente;

- Sim minha amada filha. Tenho certeza que você conseguiu

fazer com que Heitor enxergasse a vida, mas creio que este não

seja o momento apropriado para nos apresentarmos mais

intimamente. Eu acabei de chegar, e se não me engano vocês

comemoraram algo ontem a noite, provavelmente ele ainda deva

estar descansando.

Charlotte

- É verdade papai, ontem Heitor fez uma festa de aniversário

para mim, estava tudo tão bonito. Aliás, acabei de lembrar que

estava sonhando com o senhor.

Lenard

- Acredito que sim minha filha. Sei que tens muitas coisas para

falar-me, também tenho muitas coisas para contar-te, os lugares

por onde passei e as coisas que também aprendi.

Charlotte

- Pois eu quero saber tudo papai. Inclusive o que foi que deixou

o senhor com uma aparência tão boa e jovem. O amor bateu em

sua porta?

Lenard solta uma feliz gargalhada;

- Podemos dizer que sim, não desta maneira que estás pensando,

pois o amor desperta em nós de muitas formas. São tantas portas

128

para o amor entrar querida Charlotte, mas isso é uma coisa que

você já sabe.

Charlotte

- Sim papai, foi o senhor quem me ensinou.

Lenard

- Pois então vá se arrumar que nós vamos dar um passeio.

Charlotte

- Mas o senhor acabou de chegar. Para onde nós iríamos?

Lenard

- Sim eu acabei de chegar, mas são tantas coisas para dividir que

as palavras não caberiam nesta casa, e primeiro quero que me

conte tudo que aconteceu enquanto eu estava fora.

Charlotte ainda eufórica;

- Estarei pronta em um minuto papai.

Lenard

- Eu a esperarei no jardim, perto do chafariz onde víamos o

nascer do sol.

Charlotte

- Está bem.

Charlotte ficou pronta, preocupada em não acordar

Heitor andou nas pontas dos dedos dos pés até chegar à varanda,

avistou seu pai de costas apreciando a paisagem, realmente ele

estava muito bem, com uma roupa confortável e límpida como

as águas do mediterrâneo e que cheiravam a lavanda. Os pés da

menina sentiram a grama e seu corpo levou um choque, como se

uma carga muito forte de energia a tivesse atingido, por

coincidência nenhuma Lenard tirara seus sapatos e agora

129

descalço sentia a velha terra.

Charlotte chamando o pai aparentemente distraído;

- Papai?!

Lenard virou-se e fitou o semblante resplandecente de

Charlotte;

- Minha querida filha. (Lenard pegou cuidadosamente uma das

mãos de sua primogênita, a repousou em seu braço dando-lhe

suporte, e os dois começaram a caminhar). Conte minha filha,

como foi esse tempo com o rapaz Heitor?

Charlotte

-Ah papai, ele não me deu tanto trabalho quanto eu imaginei que

teria, pois apesar dele ter conservado toda aquela imagem

grosseira e ignorante, na verdade por dentro sempre foi o Heitor

que está sendo agora, apenas precisava entender muitas coisas

que lhe vieram a acontecer e aceitá-las, compreendendo que

necessitava viver certas decepções para recuperar qualidades

que ele mesmo se esquecera de enfatizar em seu convívio.

Lenard

- Ã... Estou começando a entender.

E Charlotte contou a seu pai suas aventuras com Heitor, e

como fez para que ele compreendesse que devemos preservar

todas as espécies do planeta, pois em tudo há vida e há vida em

todos e isso tem que ser respeitado acima de qualquer motivo,

ela também lhe falara sobre o clima e a grande conexão que

temos com a natureza e todos os seus fenômenos, e que não nos

cabe interferir em uma coisa que foi criada e existe a milhões de

dezenas de bilhões de anos por quaisquer interesses. Eles

passearam pelo jardim que era conservado naturalmente pelo

ambiente saudável e rejuvenescedor, o passeio se estendeu e

Lenard contou como se sentia bem e confortável apesar da

130

viajem longa e meio desgastante, distraidamente Charlotte

avistou a grande parede do jardim secreto.

Charlotte

- Olhe papai! (Ela aponta com o dedo).

Lenard tentando encontrar a coisa misteriosa;

- O que foi minha filha?

Charlotte

- Acho que nunca te contei sobre este lugar papai.

Lenard

- Mas que lugar? Aqui? O meio da floresta?

Charlotte puxa o pai pela mão e anda mais depressa;

- Venha, irei te mostrar.

E quando eles chegaram à grande parede de folhas e

galhos, a menina afastou as folhagens e o jardim novamente se

revelou;

Charlotte

- Este é o jardim secreto.

Lenard

- É secreto mesmo, nunca teria descoberto nada por trás daquela

parede de folhas. Nem sequer desconfiei.

Charlotte entrando no jardim;

- Vem papai, quero que conheça tudo.

Lenard

- Estou indo, estou indo!

131

Não tinha como não se surpreender, ou ver, ou rever

aquelas imensas árvores de troncos absurdamente grossos, e as

flores que formavam um céu de um amarelo vivo e intenso

pareciam nunca morrer, na estradinha longa de terra

avermelhada só se via pegadas de animais, o que indicava que

nunca ninguém andava por ali além de Charlotte, seu predileto

amigo e agora o senhor Lenard.

Charlotte

- Está ainda mais bonito desde a última vez que estive aqui com

Heitor.

Lenard

- Esteve aqui com Heitor?

Charlotte enquanto caminhava ao lado do pai;

- Sim, estive. O senhor sabia que o danado começou a ler o meu

diário sem eu permitir? (Lenard riu). Não, o senhor não sabe,

pois eu evitei contar para não aborrecê-lo. Mas então, mesmo

naquela fase em que nós não nos comunicávamos ainda muito

bem, Heitor descobriu meu diário e o começou a ler sem me

pedir, o que eu achei um disparate, depois da minha pequena

raiva passar e eu compreender sua curiosidade e falta de

habilidade para se comunicar com terceiros, ele descobriu onde

o mapa que fiz do jardim estava. Então, em um belo dia nós

viemos aqui.

Lenard

- E você se lembra do que aconteceu?

Charlotte sorriu;

- Por que papai?

Lenard

- Apenas curiosidade minha querida filha.

132

Charlotte

- Bom... Não me lembro de nada muito significante.

Lenard

- Nada, nada? Comece lembrando-se de como tudo começou.

Charlotte

- Entramos pela mesma parede de folhas, passeamos e... (Como

um estalo Charlotte lembrou). Sim! Houve um momento em que

Heitor estava muito cansado e eu o toquei em seu braço. Senti

uma coisa esquisita, boa e que ao mesmo tempo pareceu me tirar

algo. (Charlotte mostrou-se constrangida). Não sei explicar isso.

Lenard

- Entendo. Não há problema em não entender certas coisas

minha filha. Às vezes isso acontece para o nosso próprio

benefício, devemos esperar a hora certa, aguardar com confiança

e perseverança.

Charlotte

- Sim, o senhor está certo papai. Aliás, o senhor sempre esteve.

Lenard

- Nem sempre minha querida Charlotte, nem sempre. A

imperfeição do ser humano pesa o mesmo quilo que pesa seu

convencimento de perfeição. A perfeição é algo que está tão

longe de nós, só devemos aceitar isso como um longo caminho a

fazer. Como este que fizemos e estamos completando, em parte.

Charlotte

- Eu o compreendo.

Lenard

- Sim, sim. Agora voltemos a nossa mansão do penhasco.

133

E a noite já estava caindo, tão lentamente quanto os

passos de Charlotte e Lenard que chegavam à mansão

iluminada, a cadeira de balanço da varanda de frente para o mar

adormecera Heitor que deixara sua caneca de chá quente bem

quente apoiada na mureta, Neblina sempre ao lado com sua

calda longa envolvendo seu peludo corpinho que de gorducho só

passava impressão. Lenard fez um sinal para a filha afim de não

acordar o menino adormecido que parecia estar nas nuvens.

Então ela passou direto junto com seu pai. E já na sala Lenard

disse sorrindo:

Lenard

- Agora nós temos um gato?

Charlotte

- Não é um gato papai, é uma gata e chama-se Neblina.

Lenard

- Neblina?

Charlotte

- Sim! Heitor a chamou por esse nome quando leu uma parte do

meu diário em que falei sobre a Neblina que me escondia o

horizonte.

Lenard

- Ah... Então seu diário é lido frequentemente por este rapaz?

Charlotte

- Acho que sim. De uns tempos para cá não venho mais

contando os dias nem as tardes. Apenas vivo junto a Heitor o

que temos que viver.

134

Lenard

- Você está certa meu bem. Agora me deixe ir descansar, amanhã

teremos mais um dia trabalhoso.

Charlotte

- O senhor não vai esperar o Heitor acordar do cochilo para lhe

dar um oi?

Lenard

- Não, não minha querida filha. Assim como ele estou caindo

pelas tabelas, preciso recuperar as minhas forças logo. Creio que

haverá inúmeras oportunidades onde nos conheceremos melhor.

Charlotte

- Está bem papai, eu deixarei que tudo aconteça ao seu tempo.

Lenard aproxima-se de Charlotte e lhe dá um beijo na testa;

- Assim será minha boa filha. Tenha uma boa noite.

Charlotte

- O senhor também papai.

Antes de dormir, sozinha em seu quarto, Charlotte sentia

a velha sensação de que tudo estava em seu devido lugar, ela

admirou a vista do mar de uma das janelas de vidro, respirou

fundo e seguiu para sua cama que conservava os mesmos

lençóis de seda de cor rosa chá. A menina, Heitor e Lenard

descansavam tranquilamente em suas camas.

Quando os primeiros raios solares aqueceram a mansão e

secaram o sereno da noite passada, Lenard em sua poltrona na

sala do primeiro andar ouviu os passos de Charlotte descendo as

escadas, os mesmos passos que ouvia sempre antes de fazer a

viagem, Neblina que estava sentada no colo do senhor, pareceu

também reconhecer os barulhos que a menina fazia e seguiu para

o primeiro degrau como se a esperasse.

135

Charlotte descendo o último lance de escada;

- Bom dia Neblina! Será que você é a única que acordou até

agora?

Lenard

- Não, eu também já estou acordado.

Charlotte indo até o pai lhe dar um beijo nas magras bochechas;

- Bom dia papai! (Neblina subiu novamente no colo de Lenard).

Hum! Vejo que vocês já ficaram íntimos.

Lenard acariciando a gata manhosa;

- Como eu não ficaria íntimo de uma gatinha tão simpática?

Charlotte

- É verdade, quando Heitor achou Neblina não quis ficar com

ela, mas eu insisti, insisti e insisti, até que ele cedeu.

Lenard

- Sim, mas é claro! A personalidade da Neblina é inconfundível

e incomum, seria impossível não ser conquistado por esses

olhinhos amarelados.

Charlotte

- Às vezes me pergunto se ela não é um cachorro no corpo de

um gato.

Lenard ri;

- Quem sabe ela não seja?

Charlotte

- Mas Heitor, onde está? Ele já acordou?

136

Lenard

- Sim, sim. Disse que iria aproveitar o dia para pintar, pois

estava muito inspirado e não podia perder tempo.

Charlotte

- Ah, que bom que ele se sente assim. Será que eu o atrapalharia

se fosse lá falar com ele?

Lenard sorriu;

- Creio que não minha querida.

Charlotte

- Bom, de qualquer forma acho melhor deixá-lo com suas

inspirações. E nós dois papai? O que faremos hoje?

Lenard levantando-se da poltrona e indo em direção à porta;

- Hoje? Continuaremos.

Charlotte o seguindo;

- Continuaremos com...?

Lenard saiu na varanda e respirou fundo puxando todo ar que

cabia em seus pulmões;

-... Com o ciclo, com a vida, com a conversa de ontem.

Continuaremos com tudo e qualquer coisa, porque a vida não

passa de uma continuação, mesmo quando temos a oportunidade

de começar de novo.

Charlotte

- É impressão minha ou o senhor parece querer me dizer alguma

coisa com tudo isso?

Lenard caminhando junto à filha;

- Mas é claro, eu sempre quis te dizer muitas coisas.

137

Charlotte

- Papai, sua didática às vezes fica meio difícil de entender.

Agora deu para ficar enigmático é?

Lenard

- Não é difícil, é trabalhosa, mas é assim que as coisas devem

ser. Devemos nos esforçar para aprender, não devemos esperar

que os outros nos deem de mãos beijadas. Só damos o real valor

às coisas quando contamos cada gota de suor que se é pingada

em busca daquilo que desejamos.

Charlotte - Está bem, como sou uma garota muito inteligente, muito

mesmo, eu topo.

Lenard

- Sim minha filha, você é muito inteligente, não demorará até

aprender tudo que ainda te falta.

O dia estava ensolarado, uma bola grande de fogo

explodia no céu esquentando todo o universo, a água do mar

estava calma, lisa, mais parecia um tapete espelhado refletindo

as nuvens branquinhas que flutuavam imóveis naquela

imensidão onde não se via o fim.

Sentado na areia da praia, Lenard ouvia o grande silêncio

da filha que apenas olhava para o horizonte sem fim, com os

olhos melancólicos, Charlotte simplesmente sentia vontade de

ficar ali ao lado de seu pai olhando aquela bela vista, vista a qual

fora a única em toda a sua vida, seu quadro vivo quando

acordava de manhã, quando brincava de balanço com apenas

oito anos, era a visão que lhe confortava o coração quando em

raros momentos por algum motivo se entristecia, seu doce

sonífero à noite. O filme da sua vida estava ali, naquela areia na

qual estava sentada ao lado do seu pai, seu melhor amigo, estava

nos rochedos, na água do mar, nas árvores e todo o resto que

138

vivia e crescia junto com a menina de olhos negros, olhos que

agora contemplavam pensativos a paisagem.

Lenard quebrou o longo silêncio;

- Conseguiu trazer Heitor para conhecer nossa praia? Vejo-o de

pele tão pálida.

Charlotte ri ao ouvir a palavra pálida;

- Na verdade ele mesmo tomou partido, uma bela manhã

acordou e resolveu vir brincar com as ondas, como nós

costumávamos fazer, foi um dia surpreendente e impressionante.

(Charlotte fala enquanto admira a paisagem). Aliás, muitos dias

foram impressionantes.

Lenard também olhando para o horizonte;

- Vejo que a amizade de vocês é verdadeira.

Charlotte

- Sim papai, tão verdadeira quanto este momento. (Um silêncio

se fez por alguns segundos, mas Charlotte o quebrou). Em

relação à brancura, não tem jeito. Já até tentei cobri-lo de lama e

nada adiantou.

Lenard riu;

- Imagino esse rapaz coberto de lama. E como conseguiu isso?

Charlotte

- Como já disse Heitor era só uma pessoa confusa com seus

próprios sentimentos, quando conseguiu esclarecê-los e entendê-

los, sua visão se expandiu e ele pode abrir seu coração.

Lenard

- Sabes que tem grande responsabilidade na evolução deste

rapaz, não sabes?

139

Charlotte

- Sei que de alguma forma sinto-me conectada a ele, mesmo no

início quando não nos simpatizávamos muito, eu sentia de um

jeito que não podia fugir da tarefa de mostrá-lo que sua vida

podia ser boa e prazerosa. É estranho, mas... Havia uma razão

convicta dentro de mim desconhecida, como uma voz que me

dizia para eu não fugir do destino.

Lenard pensativo encaminhava a conversa;

- E o início? Lembra-se dele?

Charlotte

- Como não lembraria?! Heitor ignorava-me de todas as formas,

as únicas coisas que não ignorava eram as palavras em meu

diário. Mas hoje me sinto feliz por telo ajudado de um jeito ou

de outro.

Lenard

- E eu estou muito orgulhoso por isso minha filha. (Lenard

envolve seus braços carinhosamente ao redor de Charlotte que

apoia sua cabeça no ombro do pai). Muito orgulhoso,

principalmente por ter seguido a sua consciência.

Charlotte

- Obrigada papai.

E mais um dia se passou na mansão do penhasco,

exatamente assim, entre pai e filha que conversavam e

relembravam. Heitor e seus quadros que lhe distraiam fazendo o

tempo passar calmamente entre canecas de chá quente bem

quente. A gata Neblina que ronronava dormindo como gente,

com as patinhas para cima que se mexiam enquanto ela sonhava

com algum cachorro a perseguindo.

À noite como quase sempre chegava silenciosa, agora

nem mais o vento zumbia e balançava as janelas folgadas e as

140

leves cortinas, Heitor não estranhava mais o lugar perdido em

algum tempo que não era o que ele vivia. Lenard se recolhera

cedo para seu quarto como de costume, e da mesma forma,

Heitor continuava a ler o diário de Charlotte, a menina o

acompanhava sentada ao seu lado assim como preferia.

Essas são minhas últimas palavras como uma menina com dezenove anos, porque amanhã estarei comemorando meu aniversário e farei vinte anos. Gosto de números redondos, vinte é simples, assim como busco que os dias que vivo sejam, até a pronúncia é rápida e prática, vinte. Papai está agindo normalmente, como se nada nos aguardasse, ele falou sobre o tempo, as coisas bonitas que anda lendo. Ultimamente estamos conversando mais do que o comum, mas isso para mim não é um pelejo. Acho engraçado ele tentar disfarçar que não está preparando alguma surpresa para mim, mas como eu já disse, não ficarei sonhando com as surpresas que um dia como “o amanhã” pode está me reservando, eu irei aproveitar o hoje, até porque, qual é o dia em que não estou comemorando alguma coisa? Engraçado eu não ter muito que escrever, pois imaginei que esse seria um dos dias que eu mais teria coisas para falar, mas parece que estou vazia, não vazia de uma maneira ruim, mas sim vazia perdida no meio de uma tranquilidade branda e sossegada. Às vezes me assusto comigo mesma quando isso acontece. Talvez eu esteja acostumada a sempre ter coisas para falar ou pensar, desta vez não. Estou vazia. Vazia de mim, vazia de meus pensamentos, vazia de agonia e até da própria felicidade, e essa sensação de alguma forma me conforta, pois não sinto mais o peso do meu corpo, nem as cicatrizes da alma, e mesmo quando eu voltar a ser eu mesma, permanecerei nesse navio que desliza em águas brancas como as nuvens, nuvens que outrora me serviam como manta para abater o calor do sol que queimava minha grosseira pele, que hoje só quer descansar em paz. Boa Noite!

Diário de Charlotte,

25 de maio de 1880

141

E como não era de costume, Heitor não fechou o diário,

Charlotte já ia se levantando do velho sofá quando ouviu mais

uma página sendo virada, ela sentou novamente e disse

entusiasmada:

Charlotte

- Vamos ler mais?

Sua pergunta não foi respondida, mas o som que aquela

folha amarelada fez ao ser virada foi um som diferente aos

ouvidos da menina e de Heitor, o tempo pareceu congelar, e um

choque adormeceu e fez com que seus corpos começassem a

formigar assim que seus olhos tocaram a folha que estava em

branco. Heitor virou mais uma, e mais uma e folheou o diário

que depois daquela última data não tinha mais nada escrito.

Simplesmente ele acabara. Charlotte sentiu um pouco o ar lhe

faltar, pois não estava entendendo porque seu diário estava vazio

dali para frente.

Ela permaneceu sentada a sentir o formigamento pelo

corpo, enquanto seu amigo Heitor fechava o diário.

Heitor agora mais conformado com o término do livro;

- É, acabou.

Charlotte

- Como pode ser? Não me lembro de ter parado de escrever

nesta parte. E o dia do meu aniversário? Eu provavelmente o

teria descrito. Será que alguém arrancou as páginas do meu

diário?

E mais uma vez sem obter resposta, a menina ficara

olhando Heitor se levantar com o diário, ele o levava consigo

para o lugar de onde fora tirado, o baú de quinquilharias.

142

Charlotte

- O que está fazendo Heitor?

Heitor olhou para trás para a gata Neblina que estava

aconchegantemente sentada ao lado de Charlotte;

- Vamos Neblina, depois que eu devolver o diário da Charlotte

para o baú, vou colocá-la para dormir na sua almofada. Estou

cansado de dividir a cama com você e ainda ter que ouvir seus

roncos. (Neblina obedeceu a Heitor seguindo seus passos).

Charlotte

- Heitor! Por que finge não me ouvir? (Heitor subindo as

escadas fugiu aos olhos de Charlotte). Será que ele voltou a ser

aquele chato só porque meu diário acabou?

As horas daquela estranha noite se passavam lentamente

para Charlotte, que ficara sentada há um longo tempo na

varanda de frente para o mar pensando na confusão dos fatos e

tentando se lembrar por qual motivo o diário estava em branco.

Foi quando Lenard surgiu sem fazer nenhuma espécie de

barulho e se sentou a seu lado.

Lenard

- Vejo que ainda está acordada!

Charlotte desanimada e confusa;

- Sim papai, estou. E o senhor, o que faz a essa hora

perambulando pela casa?

Lenard

- Ã... Vejamos... Estou... Perambulando pela casa. (Charlotte

permaneceu com a mesma expressão triste e confusa). Diga-me,

o que houve? Sei que é difícil você ir dormir tarde desse jeito.

143

Charlotte

- Ah papai, Heitor e eu estávamos lendo o diário hoje, e quando

ele acabou e virou as páginas, não tinha mais nada escrito. Eu

não entendo o porquê, mas o pior foi quando percebi que ele não

estava mais falando comigo, como era quando chegou aqui. Não

sei o que pode estar acontecendo.

Lenard

- Minha querida filha, você quer entender o que está

acontecendo?

Charlotte

- Sim papai, mas do que qualquer coisa.

Lenard

- Pois então eu a ajudarei a descobrir e a entender.

Charlotte deu um abraço em seu pai;

- Obrigada papai por me ajudar, pois me vejo perdida após todos

esses acontecimentos sem sentido.

Lenard

- Bom, então teremos que começar agora.

Charlotte

- Agora?!

Lenard

- Sim, pois o tempo é valioso e não devemos perdê-lo.

Lenard conduziu sua querida filha para o interior da

antiga mansão, especificamente até a sala, lá ambos sentaram-se

e Charlotte olhou para as velas que iluminavam amarelamente o

ambiente como se nunca as tivesse percebido.

144

Lenard

- Minha amada filha. (Lenard disse acariciando o bonito rosto da

menina). Disse que não consegue se lembrar o porquê de seu

diário ter acabado naquela data, então comece tentando lembrar

da noite em que escreveu a última página.

Charlotte

- Eu não consigo papai.

Lenard

- Você não consegue ou você não quer?

Charlotte

- Sim eu quero, mas como posso me lembrar de algo tão

distante?

Lenard

- Você terá que se esforçar. Charlotte, eu sei que já entendes

muitas coisas, inclusive que quando queremos alguma coisa

devemos buscá-la com perseverança.

Charlotte

- Está bem. Vou fazer o que posso.

Lenard

- Tenho certeza que irá conseguir.

Charlotte fitou os olhos verdes do pai antes de fechar os

seus como se confirmasse alguma coisa, ela se concentrou e por

alguns segundos não se pode ouvir sua doce voz, respirou fundo,

Lenard segurou as mãos da menina que pareciam suar, foi

quando seus lábios se mexeram e ela começou a narrar o dia da

última data do diário.

145

Charlotte

- Eu estava calma apesar da pontinha de ansiedade para o dia do

me aniversário chegar, quando acordei passeei por todo o

jardim. (Seus lábios sorriram). Lembro-me de sentir o aroma das

flores quando um vento suave soprou e quase me levou para

longe, quase não, ele me levou...

E como se a menina estivesse assistindo ao filme do que

estava falando, as cenas foram se formando em sua mente como

se projetassem em uma tela de cinema. Ela contava ao pai e

relembrava para si mesma.

Charlotte continuando;

-... Naquele dia eu senti como se estivesse memorizando a casa e

tudo mais, não sei o porquê desta iniciativa boba, mas foi o que

me deu vontade de fazer. Então eu adormeci bem cedo, porque

queria que a noite passasse bem depressa para o dia seguinte

chegar bem rápido, o dia do meu aniversário...

E novamente as cenas voltaram a aparecer nos olhos

fechados de Charlotte.

Naquele dia, ouviu-se passos correndo sobre a casa,

Lenard estava sentado em sua poltrona, com seus grandes óculos

e um livro pequeno sobre a mão, olhou para o teto ouvindo os

risos de Charlotte dando bom dia a tudo que via, as leves rugas

de seus olhos verdes frisaram-se quando a aniversariante desceu

a escada.

Charlotte correndo entusiasmada ao encontro do pai;

- Bom dia papai!

Lenard levanta-se com os braços abertos recebendo toda a

felicidade de sua filha;

- Bom dia minha filha! Como se sente neste dia glorioso?

146

Charlotte

- Radiante como sempre papai. Especialmente hoje! Afinal, não

é todo dia que fazemos vinte anos.

Lenard

- Sim! E por este motivo, hoje iremos à cidade comprar seu

presente.

Charlotte sentando-se no sofá junto a Lenard;

- Ah não papai! Sei que não podemos gastar dinheiro. Não se

preocupe com isso, me contento em passar o dia aqui com o

senhor. Ser sua filha já é o meu maior presente.

Lenard

- Não, não, não, não, não! Você é a felicidade desta casa e vamos

à cidade sim, e a senhorita poderá escolher o presente que quiser

para dar um novo colorido a essa luz que irradias. Afinal não é

todo dia que fazemos vinte anos. Não é mesmo?

Charlotte o abraça e dá um grande beijo na bochecha do pai;

- Está bem! Já que insiste. (Ela levanta-se). Então tomamos

nosso breakfast e partimos em seguida.

Eles seguiram de carro para a cidade que não ficava

muito longe dali, apenas tinham que descer a estradinha de terra

pela montanha, que em algumas curvas dava para desfrutar da

paisagem do oceano.

Lenard

- Charlotte, como já sabe, estamos passando por um momento

difícil economicamente falando. Andei pensando em alugar

parte da casa para alguém bem recomendado e que seja de bom

grado para nós.

147

Charlotte

- Mas papai! Não tem outra maneira de conseguirmos nos

manter sem ter um estranho convivendo conosco?

Lenard

- Infelizmente não vejo outra saída minha querida. Ou isso, ou

em breve não sei o que será de nós. Com a população da Irlanda

fugindo nos últimos anos por causa do tifo, a crise da batata em

nossa terra e tudo mais, ficamos a mercê de uma grande queda

econômica.

Charlotte relutou mais um pouco com expressão de quem não

gostou, mas compreensiva e doce como sempre, a moça abriu

um sorriso e disse ao pai:

- O que decidir está decidido, pois o senhor é pai e mentor da

nossa casa, e graças aos seus ensinamentos sou tão feliz como

sou. Isto quer dizer que o senhor sempre sabe o que faz, por isto

devo confiar que tudo ficará bem.

Lenard olha para Charlotte e sorri;

- Vou deixar a encargo de um corretor que conheci na cidade.

Dizem que ele é o melhor para nos ajudar a encontrar a pessoa

certa como inquilina.

Lenard e Charlotte cantavam e brincavam pelo caminho,

estavam felizes e distraídos com aquele dia tão esperado pela

carismática menina. Quando de repente, em uma das curvas,

Lenard avistou um carneiro perdido no meio da estrada, tentou

desviar pisando no pedal de freio e virando o volante

bruscamente, o carro deslizou sobre a pequena estradinha de

terra e quase que inevitavelmente despencou do alto do

penhasco caindo nos enormes rochedos do mar.

Charlotte abriu os olhos negros como um estalo e os

arregalou, ela estava tão chocada que não conseguia nem sequer

148

falar, os verdes olhos de Lenard pareciam calmos e entendidos.

Com a voz trêmula a meiga menina criou o mínimo de coragem

e perguntou ao pai falando baixo como se estivesse fraca:

Charlotte

- O que aconteceu?

Lenard segurou ainda mais firme nas mãos da menina ainda

com toda delicadeza e respondeu suavemente;

- Naquele dia minha querida filha, enquanto nós seguíamos para

a cidade, houve o acidente que acabaras de lembrar.

Charlotte

- Não pode ser verdade papai.

Lenard

- Sim é. Foi tão verdadeiro quanto este momento que estamos

tendo. O carro em que estávamos despencou e caiu nos

rochedos.

Charlotte deixou seus olhos encherem de lágrimas e

transbordarem como uma cachoeira;

- E como nós sobrevivemos? Como não pude me lembrar de

tudo isso durante todo esse tempo? Por acaso perdi parte da

minha memória?

Lenard sorriu;

- De certa maneira sim, mas isso foi propositalmente minha

querida.

Charlotte

- Papai, eu não entendo!

Lenard respirou fundo e continuou calmo e sereno;

- Minha filha, nós não sobrevivemos ao acidente.

149

Charlotte não se levantou de onde estava, não por não estar

desesperada, mas porque nada lhe fazia sentido, e além disso, se

sentia um pouco fraca para se levantar e esbravejar;

- Papai não é hora para brincadeiras, estou em uma agonia só

agora que acabo de me recordar dessa triste tragédia, sinto como

se um parasita me consumisse de dentro para fora.

Lenard

- Fique calma minha filha, já já irá passar essa terrível sensação

que infelizmente não posso aliviar. Mas permita-me explicar

tudo.

Charlotte

- Então explique-me, por favor.

Lenard

- O carro despencou, e como nós estávamos dentro dele não teria

como sobrevivermos a tal ponto. O que acontece é que quando

nosso corpo morre, nossa alma continua, mas todos nós temos

um caminho a seguir, seja na vida terrena ou na espiritual, e esse

caminho é traçado conforme nosso aprendizado, nossas atitudes

e inúmeras outras coisas. Eu, quando morri, acordei ao lado de

amigos que me ajudaram a entender o que tento te passar agora.

Charlotte

- Papai,estou confusa.

Lenard

- Espere-me terminar. Como estava dizendo, minha alma foi

acolhida em um novo lar devido ao meu entendimento e

comportamento. Já você minha amada filha, não estava

preparada para seguir em frente, você sempre amou muito a vida

e tudo que tinha, ainda não estava pronta para entender que

sempre estamos partindo para algum lugar, e isso não

necessariamente seja ruim.

150

Charlotte ainda tristonha;

- Acho que estou começando a entender.

Lenard

- Sim, sei que está. Você também ainda tinha uma missão que

não deu tempo de completar.

Charlotte

- Tinha? Qual papai?

Lenard

- Fazer com que o rapaz Heitor enxergasse a vida e perdoasse

seu passado.

Charlotte curiosa gritou o nome do rapaz;

- Heitor! Ele também está morto?

Lenard riu sem aguentar a ironia;

- Agora não mais.

Charlotte estranhou;

- Papai, o senhor enlouqueceu. Se Heitor está vivo e eu

não,como conversei com ele todo esse tempo? Como ele “quase

sempre” me respondeu? Como brincamos juntos? Até a Neblina

consegue me ver!

Lenard

- Sim é verdade, Neblina apenas consegue vê-la por ser um

animal, e os animais são muito sensíveis, eles conseguem captar

uma mínima vibração, seja positiva ou negativa.

Charlotte

- E Heitor? Vai me dizer que ele também é sensitivo?

151

Lenard

- Não Charlotte, Heitor não tem nada de mediúnico, muito pelo

contrário, ele não acredita de maneira nenhuma nesse tipo de

coisa. Suas conversas com ele, os momentos em que se tocaram,

só provocavam reações porque a conectividade entre vocês dois

vai muito além do que ele acredita ou deixa de acreditar, e mais

além ainda do que você conhece ou desconhece. Vocês dois são

como almas gêmeas, não se perdem um do outro nunca.

Charlotte não pode esconder sua tristeza;

- Então me diga papai. Heitor nem sabe que eu existo não é?

Lenard acariciou a filha mais uma vez;

- Sim sabe, mas não como no plano em que ele vive. O que você

fez é uma prova disso. Hoje ele é um rapaz completamente

diferente daquele que apareceu aqui com sapatos brilhantes e

figura arrogante, soberbo, não suportava a própria existência.

Agora todas as manhãs que acorda agradece, inclusive seus

agradecimentos também são direcionados a você.

Charlotte levantou-se e seguiu para a parede de vidro, Lenard a

seguiu;

- Então nada foi em vão? Apenas lamento por não poder dizer

um olá a ele.

Lenard

- Não lamente minha querida filha, agradeça pela oportunidade

que tivestes de ficar e cumprir o que já te estava determinado.

Charlotte

- Papai, ainda tenho muitas dúvidas. Aconteceram muitas

coisas...

152

Lenard

- Eu sei querida Charlotte, vim justamente para ajudá-la a

entender.

Lenard e Charlotte continuaram por ali conversando, a

menina ficara triste como nunca antes na vida, melhor dizendo,

na morte. Trovões e raios escandalosos acordaram Heitor no

meio daquela noite que tirara o sossego do rapaz, ele se sentia

estranho, agoniado, como se uma mão estivesse apertando seu

coração, assim como Charlotte. O tempo parecia se revoltar

contra aquela parte do penhasco, ventos furiosos balançavam as

janelas e os pesados e grossos pingos de chuva caíam tão rápido

que se alguém ficasse debaixo da chuva, sentiria como se seu

corpo estivesse sendo perfurado. A menina continuava a fazer

milhões de perguntas que explicavam tudo, e talvez, se ela

encontrasse algo que não fizesse sentido, poderia fazer tudo

aquilo cair por água, poderia ainda haver a esperança de que

tudo não passasse de um longo pesadelo.

Charlotte

- Mas papai, quando fui até a lojinha da dona Abigail e de sua

irmã gêmea Agatha, ela acenou para mim.

Lenard

- Sim, pois elas são médiuns.

Charlotte andou de um lado para o outro tentando lembrar-se de

fatos que comprovariam sua existência material;

- E no jardim secreto? Lembro-me de tocar Heitor

especificamente no ombro.

Lenard ainda parado respondia com total paciência as questões

da filha;

- Mas você o tocou, não fisicamente, pois não possuis mais o

corpo material e sim apenas seu perispírito que é uma áurea,

153

uma forma fluídica de você mesma, e essa forma contém a sua

energia que quando empregada a alguma coisa provoca reações.

Às vezes os espíritos ainda encarnados costumam sentir

quenturas sobre partes do corpo ou até beliscões, o que também

pode ser uma segunda energia agindo sobre aquela matéria.

Charlotte parou desanimada;

- Então estás me dizendo que...

Lenard aproximou-se da filha;

- Estou dizendo que a união de vocês dois é muito forte, Heitor

sempre a sentiu, mesmo sem perceber. Todas as suas conversas,

seus toques e tudo que vocês viveram. Tudo foi verdade, é

verdade. E você sempre esteve tão viva para ele que tudo que

acontecia só os unia ainda mais. Com você, apesar dele sempre

estar sozinho, Heitor aprendeu a conversar com sua própria

consciência, era o que às vezes acontecia, e coincidentemente

você falava, assim parecia que ele a respondia. Não se preocupe

querida filha, você está no coração de Heitor.

Charlotte respondeu ainda mais desanimada;

- Sim, eu sei.

Lenard

- Charlotte, eu sei que amas a vida mais que qualquer outra

coisa, mas sabes que não podemos ser egoístas, a nossa hora de

morrer sempre será a hora certa, seja ela por um acidente ou um

crime brutal, o propósito está em tudo e sempre temos que

buscar entender com coerência que mensagem está sendo

passada. Não julgue nem condene o destino, pois senão estarás

julgando e condenando a si mesma.

154

Charlotte abaixou sua cabeça;

- Eu o entendo papai, apenas preciso de mais um tempo para

assimilar as coisas.

Lenard

- Tem todo o tempo que quiser. Eu estarei por aqui, qualquer

coisa é só me chamar. (Charlotte acenou positivamente com a

cabeça de uma maneira não muito animadora).

E Lenard pôs-se a subir a escada ao mesmo tempo em

que Heitor a descia, o rapaz passou por ele segurando um

candelabro cheio de velas, então antes de cruzar a sala foi até a

parede de vidro onde estava Charlotte, ele permaneceu lá

olhando a terrível tempestade.

Heitor naturalmente falando;

- Mal posso acreditar.

Charlotte aproximou-se do rapaz e lhe encarou com seu rosto

tristonho, mas ele continuou a olhar para o horizonte;

- Nem eu Heitor.

Heitor

- Até ontem o tempo estava perfeito, agora isto. Esperemos que

melhore.

Charlotte

- Sim, esperemos.

O rapaz continuou seu trajeto até a cozinha e Charlotte o

seguiu observando todos os seus movimentos, ele se sentou a

mesa após pegar um copo de leite na geladeira, a menina sentou-

se a seu lado, experimentando sua nova condição, ela aproximou

seu rosto do de Heitor e nenhuma diferença na reação do moço

obteve, assoprou-o uma vez, e nada. Um pouco mais forte desta

155

vez, e absoltamente nada, Heitor continuava a tomar

tranquilamente seu leite. Charlotte pareceu desistir, então

respirou fundo e soltou ferozmente o ar bem em frente ao rosto

do rapaz.

Heitor olhando para os lados;

- Uma brisa?! Será que deixei alguma janela aberta?

Charlotte riu suavemente;

- Só se foi a da minha alma.

Charlotte se permitiu apenas ficar ali observando Heitor,

e quando ele se dirigiu para o seu quarto, ela o seguiu, pois ele

não à via mesmo. Neblina estava em sua grande almofada ao

lado da cama, finalmente pareceu que a gata aprendera a dormir

em seu lugar, e seu ronronar quase se tornava um fundo musical,

tirando algumas vezes em que ela parecia engasgar, mas isso não

a acordava. Da janela do quarto, Heitor olhava a chuva

inquietamente.

Charlotte ainda triste se sentia melhor ao lado do rapaz;

- O que foi Heitor? Parece agitado.

Heitor não a respondeu e seguiu para sua cama deitando-

se de lado, vagarosamente Charlotte caminhou e se deitou ao

lado de frente para o moço, já amanhecia.

Charlotte

- Sei que de alguma forma você pode me sentir, mas não fique

assim, agoniado como estou, deves apenas sentir as coisas boas

que há em mim. Sabe Heitor, não existiria como eu reagir de

outra forma a uma realidade dessas, apesar de eu já entender

muitas coisas em relação à morte, não teria como eu a receber

sem lamentos. (Charlotte deixa o quarto).

156

E Heitor adormeceu profundamente, sua visão no escuro

de seus olhos fechados girava e girava, de repente como um

sonho ele estava na janela olhando as estrelas que ainda

brilhavam naquele céu que acordava, mas aquela janela não era

a do seu quarto e sim a do sótão onde Charlotte ficava. Ele se

virou lentamente sem entender o que fazia ali, uma emoção forte

lhe tomou conta e ele caminhou até a cama de lençóis rosados,

sentou-se nela, e sua mão pode tocar os negros cabelos macios

que se esparramavam sobre os inúmeros travesseiros.

Heitor falou tranquilamente;

- Você é exatamente como eu sempre imaginei.

Charlotte que estava deitada na cama abriu os grandes e

puxados olhos;

- Heitor!

Heitor

- Charlotte. Minha querida amiga Charlotte. (A menina por um

impulso o abraçou e fora retribuída fortemente, Heitor sorriu).

Também é bom te ver!

Charlotte

- Não sabe como é bom poder falar com você Heitor!

Heitor

- Sim, sinto o mesmo. (Heitor acomodou-se na cama). E como

você está?

Charlotte entristeceu-se;

- Não muito bem.

Heitor se levantou em um pulo e saiu andando;

- Então eu vou embora!

157

Charlotte também se levantou em um pulo;

-Por quê? Para onde?

Heitor parou e deu meia volta;

- Oras! Você não é a Charlotte, a minha grande amiga.

Charlotte

- Sim, eu sou!

Heitor aproximou-se;

- Não, não é! (Heitor pegou Charlotte pela mão e a girou como

em um passo de balé). Charlotte rodopiava como um pião

sempre que estava feliz, e olha que engraçado, ela nunca ficava

tão triste. (Após rodopiar, Charlotte parou tonta de frente para

Heitor e já havia um grande sorriso em sua fronte). (Heitor

gritou animado). Charlooooootte! Você apareceu! Sabia que

tinha uma menina meio antipática aqui dizendo que era você?

Charlotte mais descontraída;

- É mesmo?

Heitor voltando a dançar com a moça;

- Siimmm! Ela até era bonitinha assim como você. (Heitor riu

do que falou). Mas não tinha esse sorriso, nem esses olhos

coloridos.

Charlotte

- Meus olhos não são coloridos Heitor, eles são negros como

jabuticabas.

Heitor

- Sim, e os meus são como balas de caramelo. Se misturássemos

isso daria um doce, “Jabutimelos!”.

158

Charlotte

- Eu que não vou provar desse doce. (Heitor parou de dançar e

começou a procurar alguma coisa). O que você está procurando?

Heitor voltou a encarar Charlotte;

- Você de novo! Roubou a Charlotte de mim! Ela nunca negaria

provar algum doce, ainda mais um criado por mim. Cadê ela?

(Heitor começou a fazer cócegas na menina). Anda! Vamos!

Tem que me dizer ou eu a torturarei para todo o sempre com

meus deedoosss...

Charlotte parou de gargalhar e de fugir de Heitor quando eles

caíram na cama e o rapaz se calou;

- Com seus dedos o que Heitor?

Heitor

- Não sei, não achei nenhum nome pra eles.

Charlotte sorridente;

- Então tá! Estou de volta.

Heitor respirou fundo;

- Ufa! Não deixe mais esses alienígenas tomarem conta de você,

dá um trabalhão expulsá-los.

Charlotte

- Pode deixar! Serei forte.

Heitor disse sério olhando para a moça;

- Você é o que há de mais sublime no meu mundo, e nada

existiria para mim se você não existisse. (Heitor se levantou e

foi até a janela). Você me apresentou o canto dos pássaros, o

cheiro do verde, a visão do infinito e o sabor da vida. Como

agradecer a toda essa gentileza?

159

Charlotte indo até Heitor;

- Não precisa Heitor, nós estamos quites. Você também me

ensinou muitas coisas. A ter paciência, a respeitar a

individualidade dos outros, a não exigir que todos tenham a

obrigatoriedade de saber tudo que sei e de entender do mesmo

jeito que entendo. Diante disso não esperar que as atitudes de

outrem sejam as mesmas que as minhas, e também me ensinou a

não cobrar e sim doar. Se eu quero carinho, devo primeiro dar

amor.

Heitor

- Fico feliz!

Charlotte

- É bom que fique mesmo, pois em breve terei que partir.

Heitor

- Sabe Charlotte, é difícil quando nos adaptamos a algum lugar,

ou quando nos apegamos a alguém, deixar esse ambiente

costumeiro ou a pessoa querida, partir sem saber para onde e

quem nos espera. Mas a vida é assim, cheia de surpresas e

desafios, e pode ser que o mais difícil seja conseguirmos superar

o nosso grande egoísmo de querermos as pessoas para sempre

conosco. Não minha querida Charlotte, devemos deixá-las

seguir, seja em vida ou em morte, pois nós não somos daqui, nós

apenas estamos aqui. O Fim nada mais é que a passagem para

um novo começo e uma nova possibilidade de acertar seus

antigos erros. A evolução sempre andará de mãos dadas ao fim e

ao recomeço, como um ciclo.

E os dois amigos passaram um longo tempo ali

conversando e relembrando suas aventuras. Era de se admirar o

quanto o menino Heitor estava mudado, feliz e bem resolvido

com sua própria vida. Charlotte não estava mais triste e chorona,

pois seu amigo lhe mostrara que o que eles viveram fora um

160

momento, e que momentos vão e vem, mas independente disso o

que eles aprenderam um com o outro, e o amor que surgiu,

perdurará para todo o sempre. A mancha da dor desaparecera do

coração de Charlotte que agora ria da maneira que Heitor

contava sua história. Foi quando Lenard aparecera na porta do

sótão orgulhoso e contente em ver os dois amigos juntos que na

mesma hora perceberam a presença dele.

Heitor perguntou baixinho para Charlotte;

- Ele é o seu pai? O senhor Lenard?

Charlotte disse orgulhosa;

- Sim Heitor, ele é o meu pai!

Lenard ainda parado na porta;

- Olá Heitor! Como vai?

Heitor

- Eu vou bem senhor, obrigado!

Lenard

- Charlotte!

Charlotte

- Sim papai!

Lenard

- Está na hora de irmos. (Charlotte olhou para Heitor).

Heitor

- Também sentirei sua falta minha amiga. Não se preocupe mais,

tudo ficará bem. (Heitor abraçou a moça que não conseguiu

segurar suas lágrimas). Não chores!

161

Charlotte

- Choro de felicidade Heitor, choro por termos vivido essa

amizade tão bonita.

Heitor sorridente segurou no rosto da menina com as duas mãos

e lhe beijou o nariz, Charlotte sorriu.

- Até logo.

Charlotte

- Até mais tarde.

Os olhos de Heitor se abriram, ele acordou com Neblina

lambendo seu ouvido.

Heitor acordando sonolento;

- Neblina não faça isso! (Ele pega o relógio). Que horas devem

ser? Meu Deus! O dia se passou e eu nem reparei, por isso você

está quase devorando todo o meu rosto. (Ele se levanta).

Heitor na cozinha após ter posto a comida da gata lembrava-se

vagamente do sonho;

- Neblina, acho que tive um sonho com a Charlotte. Não me

lembro muito bem como foi, mas... Acreditaria se eu dissesse

que ela pode ter vindo visitar-nos? (A gata miou). É, eu também.

E no final da tarde, o tempo já havia melhorado como em

um passe de mágica, Heitor saiu na varanda, não acreditou e

mais uma vez repetiu que aquele lugar era louco, e era mesmo,

movido pela grande energia da paixão. A tela que estava sendo

pintada por Heitor terminara, se chamava “A Mansão do

Penhasco”.

O sol ainda brilhava ausente de nuvens, assim o céu azul

era todo para ele que expandia seus raios ofuscando a visão de

quem tentasse contemplá-lo, tocando o oceano, em um momento

de concentração dava-se para ouvir o seu chamuscar, o horizonte

162

era onde o sol dormia. Heitor sorridente estava parado no meio

do jardim admirando a paisagem. Charlote e seu pai também

estavam lá, a menina olhou para trás e para a mansão que

passara toda sua vida, sem mais demora sorriu quando seu olhar

cruzou com o de Heitor, e em direção ao sol seguiu com seu

querido pai sumindo dentro da luz.

163

Texto encontrado por Heitor numa folha de papel bem dobrada à

parte entre as páginas do diário de Charlotte.

Para sermos felizes, não precisamos estar cercados por pessoas, pois ao percebermos toda a natureza, a cada detalhe em que Deus criou as árvores, as folhas, as flores, a terra, os grãos de terra, e em cada grão de terra, encontramos uma cor, um formato, uma beleza própria... É onde percebemos não estarmos sozinhos. Temos toda a companhia de Deus em tudo que nos cerca. Somos menores que um grão de terra, onde fazemos parte de um espaço infinitamente sem limites, se você não aprende a viver e a conviver consigo mesmo sem pessoas ao seu redor numa mansão vazia, sem ninguém, como aproveitar a vida e estar em paz na solidão, quando percebemos e nos deparamos com uma realidade muito maior do quê essa de uma casa tão grande sem pessoas? Pois é! Ao aprendermos a viver sozinhos, acabamos encontrando tempo para observarmos pequenos detalhes que normalmente passam desapercebidos como os que citei anteriormente, árvores, folhas, terra, grãos de terra e etc. Ao olharmos para o céu, notamos infinitas estrelas, planetas, estrelas cadentes, infinitas possibilidades de vida onde não estamos sozinhos nunca, pois Deus está em toda parte, ele está nisso tudo, sendo assim, está comigo, com você, está em todos nós seres vivos que fazemos parte desta criação. Não precisamos nos sentir sozinhos, sempre estaremos muito bem acompanhados por Ele.

Charlotte

FIM

164

Título: A MANSÃO DO PENHASCO

Autora: CAMILA DE ALMEIDA

Membro Titular da ACLAC

Capa, Diagramação e Edição:

LENARDO SANCHES

EDIÇÃO 2015

(PRODUÇÃO INDEPENDENTE)

CONTATOS:

[email protected]

http://camiladalmeida.blogspot.com/

https://www.facebook.com/escritoracamiladealmeida?fref=ts