para a minha mãe, charlotte richardson, · para a minha mãe, charlotte richardson, uma fã de...

23

Upload: duongdang

Post on 17-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,
Page 2: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Para a minha mãe, Charlotte Richardson,

uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida;

e para o falecido John Bennett Shaw,

que uma vez me deixou a tomar conta da sua biblioteca.

Sr Sherlock Holmes.indd 5 4/14/15 12:35 PM

Page 3: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

«Tinha a certeza, pelo menos, de que finalmente vira um rosto que tinha um papel essencial na minha vida, e de que ele era mais humano e infantil do que no meu sonho. Mais do que isso não sabia, pois ele já desaparecera de novo.»

Morio Kita, Ghosts

«Que voz estranha e silenciosa é esta que fala com abelhas e mais ninguém consegue ouvir?»

WilliaM longgood, The Queen Must Die

Sr Sherlock Holmes.indd 7 4/14/15 12:35 PM

Page 4: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

PR IME I RA PART E

Sr Sherlock Holmes.indd 9 4/14/15 12:35 PM

Page 5: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

11

1

Ao regressar da sua viagem ao estrangeiro, entrou na casa de campo construída em pedra, numa tarde de verão, dei -

xando a bagagem junto à porta de entrada para que a caseira tratasse dela. Retirou-se então para a biblioteca, onde se sentou tranquilamente, feliz por estar rodeado pelos seus livros e pela familiaridade do lar. Durante quase dois meses, estivera fora, atra- vessando a Índia num comboio militar, num navio da Marinha Real para a Austrália, e depois, finalmente, alcançando as costas ocupadas do Japão do pós-guerra. À ida e no regresso, haviam sido trilhadas as mesmas rotas intermináveis — normalmente na companhia de recrutas barulhentos, poucos dos quais faziam caso do cavalheiro idoso que jantava ou se sentava a seu lado (aquele geronte de andar lento, procurando nos bolsos um fósforo que nunca encontrava, mastigando incessantemente um charuto jamaicano por acender). Só nas raras ocasiões em que acontecia um oficial informado anunciar a sua identidade é que as faces avermelhadas o encaravam com espanto, avaliando-o nesse mo- mento: pois, embora usasse duas bengalas, o seu corpo perma-necia direito, e o passar dos anos não tinha esmorecido os seus olhos cinzentos e entusiásticos; o seu cabelo branco como a neve, espesso e comprido, tal como a barba, achava-se penteado para trás, a direito, à maneira inglesa.

— É verdade? É mesmo você?

Sr Sherlock Holmes.indd 11 4/14/15 12:35 PM

Page 6: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

12

— Creio deter ainda esse privilégio.— É o Sherlock Holmes? Não, não acredito. — Não faz mal nenhum. Eu próprio mal acredito nisso.Mas, por fim, a viagem terminara, embora lhe fosse difícil

citar as particularidades dos dias no estrangeiro. Pelo contrário, toda a viagem — embora o satisfizesse como uma refeição recon-fortante — lhe parecia retrospetivamente insondável, pontuada aqui e ali por pequenas recordações que logo se tornaram impres-sões vagas e foram invariavelmente esquecidas. No entanto, tinha as divisões imutáveis da sua casa de campo, os rituais da sua ordenada vida rural, a fiabilidade do seu colmeal — estas coisas não requeriam um grande, ou sequer pequeno, esforço de memória; simplesmente, haviam-se arreigado nele durante as suas décadas de isolamento. Depois havia as abelhas para tratar: o mundo continuava a mudar, tal como ele, mas, ainda assim, elas persistiam. E, quando os seus olhos se fechavam e a sua respiração ressoava, seria uma abelha que lhe dava as boas-vindas a casa — uma operária que se manifestava nos seus pensamentos, que o encontrava alhures, que se instalava na sua garganta e lhe dava uma ferroada.

Claro está, quando era picado na garganta por uma abelha, sabia que era melhor beber água com sal para evitar conse-quências mais graves. Naturalmente, primeiro devia-se extrair o ferrão da pele, de preferência logo após a libertação instan- tânea do veneno. Nos seus quarenta e quatro anos de apicul-tura na encosta sul de Sussex Downs — vivendo entre Seaford e Eastbourne, sendo a povoação mais próxima a minúscula Cuckmere Haven — recebera exatamente 7816 ferroadas de ope- rárias (quase sempre nas mãos ou na cara, às vezes nos lóbulos das orelhas, no pescoço ou na garganta: uma vez a causa ou os efeitos subsequentes de toda e cada picadela devidamente contemplados, estes haviam sido registados num dos muitos cadernos de notas que guardava no escritório do sótão). Com o passar do tempo, estas experiências moderadamente dolorosas tinham-no conduzido a uma variedade de remédios, cada qual

Sr Sherlock Holmes.indd 12 4/14/15 12:35 PM

Page 7: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

13

dependendo da parte do corpo que tinha sido ferroada e da pro- fundidade derradeira alcançada pelo ferrão: sal com água fria, sabão suave misturado com sal, depois meia cebola crua apli-cada sobre a irritação; quando o desconforto era extremo, lama ou argila húmida, às vezes, resolviam o problema, desde que fossem aplicadas de hora a hora, até que o inchaço já não fosse visível; no entanto, para curar a dor, e também para evitar a infla- mação, o tabaco empapado esfregado imediatamente sobre a pele parecia a solução mais eficaz.

Porém, agora — estando sentado na biblioteca e dormitando no cadeirão, ao lado da lareira vazia — fora tomado de pânico no decorrer dos seus sonhos, incapaz de recordar-se do que era necessário fazer face àquela súbita ferroada na maçã-de-adão. Via-se a si próprio, ali, no seu sonho, de pé, direito, no meio de um extenso campo de calêndulas, agarrando o pescoço com os dedos esguios e artríticos. O inchaço já tinha começado, avolu-mando-se sob as suas mãos como uma veia pronunciada. Foi tomado por um medo paralisante, e ficou horrorizado à medida que o inchaço crescia para fora e para dentro (os seus dedos eram afastados pela protuberância em balão e a garganta fecha-va-se-lhe sobre si própria).

E, também ali, naquele campo de calêndulas, via-se a si mesmo contrastando por entre o vermelho e o amarelo dourado que lhe subjaziam. Nu, com a sua carne pálida exposta acima das flores, assemelhava-se a um esqueleto quebradiço coberto por um fino folheado de papel de arroz. Haviam desaparecido as vestes da sua reforma — as lãs, os tweeds, as roupas fiáveis que usara diariamente desde antes da Grande Guerra atravessando a Segunda Grande Guerra e até ao seu nonagésimo terceiro ano. O cabelo ondulante fora rapado até ao escalpe, a barba fora redu-zida a um restolho no queixo saliente e nas bochechas afundadas. As bengalas que ajudavam à sua locomoção — as mesmíssi- mas bengalas que se achavam pousadas sobre o seu colo dentro da biblioteca — haviam desaparecido também no interior do sonho. Mas permanecia de pé, ainda que a garganta obstruída

Sr Sherlock Holmes.indd 13 4/14/15 12:35 PM

Page 8: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

14

bloqueasse a passagem e a respiração se lhe tornasse impossível. Só os lábios se moviam, gaguejando silenciosamente à procura de ar. Tudo o mais — o corpo, as flores que desabrochavam, as nuvens lá no alto — não apresentava qualquer movimento perce-tível, tudo se tornara estático, exceto aqueles lábios trementes e uma solitária abelha operária deambulando com pernas, atare-fadas e negras, pela testa enrugada.

Sr Sherlock Holmes.indd 14 4/14/15 12:35 PM

Page 9: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

15

2

Holmes ofegou ao acordar. As suas pálpebras abriram- -se, e ele olhou a biblioteca em redor, clareando a gar-

ganta. Então, inspirou profundamente, notando a nesga de luz do sol em declínio que lhe chegava da janela virada a oeste: o brilho daí resultante e a sombra lançada sobre o soalho polido do chão, esgueirando-se como ponteiros de um relógio, apenas o suficiente para tocar o rebordo do tapete persa que se achava debaixo dos seus pés, disseram-lhe que eram, precisamente, 5h18 da tarde.

— Acordou? — perguntou a Sra. Munro, a sua jovem caseira que se encontrava por perto, de costas para ele.

— Deveras —, respondeu ele, com o olhar fixado na sua figura ligeira, o cabelo comprido formando um carrapito apertado, com mechas encaracoladas, de um castanho escuro, caindo-lhe sobre o pescoço magro, e as alças do avental escuro atadas atrás. De um cesto de verga colocado sobre a mesa da biblioteca retirou mon- tes de correspondência (cartas com carimbos de correios estran-geiros, pequenas embalagens, grandes sobrescritos), e, tal como fora instruída a fazer uma vez por semana, começou a dividi-la em pilhas apropriadas, consoante os tamanhos.

— Estava a fazer aquilo durante a sesta, senhor. Aquele som estrangulado, estava a fazê-lo, tal como antes de partir. Quer que traga água?

Sr Sherlock Holmes.indd 15 4/14/15 12:35 PM

Page 10: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

16

— Não creio que seja necessário neste momento — disse ele, agarrando ambas as bengalas distraidamente.

— Como queira.Continuou a separar — as cartas à esquerda, as embalagens

no meio, os sobrescritos maiores à direita. Durante a ausência dele, a mesa, de costume já insuficiente, enchera-se com pilhas precárias de correspondência. Ele sabia que aí haveria, certa-mente, presentes, coisas estranhas enviadas de longe. Haveria pedidos de entrevistas para revistas e rádios, e haveria pedidos de ajuda (um animal perdido, uma aliança roubada, uma criança desaparecida, uma variedade de outras miudezas sem espe-rança, que seria melhor ficarem sem resposta). Depois, havia os manuscritos ainda a aguardarem publicação: ficções sensa-cionalistas e enganadoras baseadas nos seus feitos de outrora, altivas investigações em criminologia, carradas de antologias policiais — juntamente com cartas elogiosas pedindo-lhe o seu aval, um comentário positivo para a futura sobrecapa, ou, possi-velmente, uma introdução a um texto. Raramente respondia ao que quer que fosse daquilo, e nunca fazia a vontade a jornalistas, escritores ou pessoas em busca de publicidade.

No entanto, costumava ler atentamente todas as cartas que lhe mandavam e examinar o conteúdo de todas as encomendas que lhe entregavam. Naquele dia da semana — independente- mente do calor ou frio da estação — trabalhava à mesa enquan- to a lareira ardia, rasgando sobrescritos, indagando o assunto antes de amarrotar o papel e atirá-lo às chamas. Os presentes, contudo, eram postos de lado, cuidadosamente colocados no cesto de verga, para a Sra. Munro oferecer a quem organizava obras de caridade na povoação. Mas, se uma missiva abordava um assunto específico, se evitava elogios servis e abordava um fascínio mútuo com aquilo que mais lhe interessava — a técnica de produzir uma abelha-rainha a partir do ovo de uma operária, os benefícios para a saúde da geleia real, talvez uma nova pers- petiva acerca do cultivo de ervas aromáticas étnicas, como a planta da pimenta-de-sichuan (as vastas curiosidades da natureza,

Sr Sherlock Holmes.indd 16 4/14/15 12:35 PM

Page 11: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

17

as quais, tal como acreditava ser o caso com a geleia real, podiam estancar a desnecessária atrofia que muitas vezes assolava um corpo e uma mente envelhecidos) —, então, a carta tinha boas hipóteses de ser poupada à incineração; podia, em vez disso, ser encaminhada para o bolso do seu casaco, aí permanecendo até que ele se encontrasse à secretária do seu escritório do sótão, onde os seus dedos, finalmente, recuperariam a carta para uma consideração adicional. Às vezes, estas cartas afortunadas leva-vam-no a outras paragens: a um jardim de ervas junto a uma abadia em ruínas perto de Worthing, onde prosperava um estranho híbrido de bardana e azeda; a um colmeal nos arre-dores de Dublin, agraciado pelo acaso com um lote de mel ligei-ramente ácido, mas não desagradável ao palato, que resultara de a humidade ter coberto as colmeias numa estação particular-mente quente; mais recentemente, Shimonoseki, uma vila cuja especialidade culinária era confecionada com a planta da pimen-ta-de-sichuan, a qual, juntamente com uma dieta de pasta de miso e feijões de soja fermentados, parecia conferir à população local uma longevidade sustentada (sendo a necessidade de docu-mentação e conhecimento em primeira mão dessa rara alimen-tação, que possivelmente prolongava a vida, o principal objetivo dos seus anos de solidão).

— Vai viver uma eternidade com esta bagunça — disse a Sra. Munro, apontando para as pilhas de correspondência. Após baixar o cesto de verga vazio para o chão, virou-se para ele, dizendo: — Ainda há mais, sabe, ali no armário do hall de entrada, as caixas estavam a atravancar tudo.

— Muito bem, Sra. Munro — disse ele cortantemente, no intuito de impedir qualquer elaboração da parte dela.

— Trago o resto para aqui? Ou espero que acabe com este monte?

— Pode aguardar.Olhou para a saída, indicando com os olhos que desejava que

ela se retirasse, mas ela ignorou-lhe o olhar e, em vez disso, fez uma pausa para endireitar o avental, antes de continuar.

Sr Sherlock Holmes.indd 17 4/14/15 12:35 PM

Page 12: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

18

— Há um monte enorme ali no armário do hall, sabe, nem lhe sei dizer de que tamanho.

— Já percebi. Creio que, por ora, vou concentrar-me no que aqui está.

— Diria que tem com que se entreter, senhor. Se precisar de ajuda…

— Cá me arranjo, obrigado.Acentuadamente desta vez, olhou para a saída inclinando

a cabeça na sua direção.— Tem fome? — perguntou ela, avançando hesitantemente

sobre o tapete persa e para a luz do sol. A carranca dele impediu-a de se aproximar mais, relaxando

um pouco ao suspirar.— De modo nenhum — respondeu ele.— E comerá logo à noite?— É inevitável, suponho. — Imaginou-a, por instantes, a tra-

balhar descuidadamente na cozinha, a entornar resíduos na bancada ou a deixar cair migalhas de pão e fatias de Stilton perfeitamente boas no chão. — Planeia confecionar o seu toad-

-in-the-hole sensaborão?— Disse-me que não gostava disso — disse ela, parecendo

surpreendida.— E não gosto, Sra. Munro, não gosto mesmo, pelo menos,

da interpretação que lhe dá. Por outro lado, o seu empadão é uma raridade.

A expressão dela iluminou-se, mesmo ao franzir o sobrolho contemplativamente.

— Bem, vejamos, tenho uns restos de carne de vaca do assado de domingo. Podia usá-los, só que sei que prefere borrego.

— Os restos de carne de vaca são aceitáveis.— Pronto, então será empadão — disse ela, com a voz subita-

mente urgente. — E, só para que saiba, já desfiz as suas malas. Não sabia o que fazer com aquela faca esquisita que trouxe, pelo que a coloquei junto à sua almofada. Tenha cuidado para não se cortar.

Sr Sherlock Holmes.indd 18 4/14/15 12:35 PM

Page 13: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

19

Ele suspirou com um efeito maior, fechando os olhos comple-tamente, e retirando-a totalmente do seu campo de visão:

— Chama-se kusun-gobu, minha querida, e agradeço-lhe a sua preocupação, não gostaria de ser apunhalado na minha própria cama.

— Quem é que gostaria?A sua mão direita tateou o interior de um bolso do casaco,

com os dedos à procura do resto de um jamaicano meio fumado. Mas, para sua consternação, tinha arranjado maneira de dar sumiço ao charuto (talvez o tivesse perdido quando desembar-cara do comboio, ao dobrar-se para apanhar uma bengala que lhe tinha fugido da mão — possivelmente, o jamaicano tinha-lhe então caído do bolso, tombando na plataforma, e fora esmagado por uma pisadela.

— Talvez — murmurou — ou talvez…Procurou noutro bolso, escutando os sapatos da Sra. Munro

a saírem do tapete, atravessarem o soalho e avançarem pela saída (sete passos, o suficiente para a fazer deixar a biblioteca). Os seus dedos enrolaram-se em torno de um tubo cilíndrico (quase do mesmo comprimento e com a mesma circunferência que o jamaicano reduzido a metade, embora, pelo peso e pela firmeza, tivesse de imediato discernido que não se tratava de um charuto). E, ao abrir as pálpebras, contemplou um tubo de vidro claro, de pé sobre a palma da mão; e, olhando mais de perto, com a luz do sol a reluzir na tampa de metal, estudou as duas abelhas mortas fechadas lá dentro — uma sobrepondo-se à outra, com as pernas entrecruzadas, como se ambas tivessem sucumbido durante um abraço íntimo.

— Sra. Munro…— Sim? — respondeu ela, dando uma reviravolta no corredor

e regressando apressadamente. — Que deseja?— Onde é que está o Roger? — perguntou ele, voltando

a enfiar o tubo na algibeira.Ela entrou na biblioteca, subindo os sete degraus que haviam

marcado a sua partida.

Sr Sherlock Holmes.indd 19 4/14/15 12:35 PM

Page 14: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

20

— Desculpe? — O seu filho, o Roger, onde é que ele está? Ainda não o vi

por aí.— Mas, senhor, foi ele que lhe trouxe as malas para dentro,

não se lembra? E, depois, disse-lhe que fosse esperá-lo ao pé das colmeias. Disse-lhe que o queria lá para fazer uma inspeção.

Um olhar confuso espalhou-se-lhe pelo rosto pálido e barbudo e aquela perplexidade que ocupava os momentos em que pres-sentia a falência da sua própria memória abateu-se sobre ele (o que mais fora esquecido, o que mais fora filtrado como areia esvaindo-se entre punhos fechados, e, exatamente, o que sabia ainda de certeza?), mas, ainda assim, tentou ignorar as suas preocupações, induzindo uma explicação razoável para o que o confundia de tempos a tempos.

— Claro, tem razão. Foi uma viagem cansativa, bem vê. Não tenho dormido muito. E ele está à espera há muito tempo?

— Um bom bocado, não tomou o chá, mas não me parece, no entanto, que se importe um pouco. Desde que o senhor partiu, ele preocupou-se mais com as abelhas do que com a própria mãe, posso dizer-lhe.

— A sério?— Sim, infelizmente, sim.— Bem, então — disse ele, posicionado as bengalas —, supo-

nho que não vou fazer o rapaz esperar mais tempo.Libertando-se do cadeirão, com as bengalas a colocarem-no

de pé, dirigiu-se à saída, contando em silêncio cada passo — um, dois, três — enquanto ignorava a Sra. Munro, que pronunciava atrás de si:

— Quer-me a seu lado, senhor? Consegue sozinho, sim?Quatro, cinco, seis. Não a concebia a franzir o sobrolho ao

caminhar em frente nem previa que ela achasse o seu jamaicano segundos depois de ele ter saído da sala (dobrando-se frente ao cadeirão, extraindo o charuto malcheiroso da almofada do assento e depositando-o na lareira). Sete, oito, nove, dez — onze passos conduziram-no ao corredor: quatro passos mais do que

Sr Sherlock Holmes.indd 20 4/14/15 12:35 PM

Page 15: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

21

os que haviam sido necessários à Sra. Munro, e dois passos mais do que a sua média.

Naturalmente, concluiu, ao ganhar fôlego junto à porta da rua, que um certo grau de lentidão da sua parte não era inespe-rado; tinha-se aventurado à volta de metade do mundo e regres-sado, abdicando da sua habitual refeição matinal de geleia real barrada em pão frito — a geleia real, rica em vitaminas do complexo B e contendo quantidades substanciais de açúcares, proteínas e certos ácidos orgânicos, era essencial para manter o seu bem-estar e o seu vigor; sem o seu nutrimento, tinha a certeza, o seu corpo sofrera um pouco, tal como sucedera à sua memória.

Mas, uma vez na rua, a sua mente foi revigorada pela terra banhada pela luz do fim de tarde. A flora não colocava qual- quer dilema, nem as sombras apontavam para os vazios em que deveriam residir fragmentos da sua memória. Tudo estava igual havia décadas — e o mesmo acontecia com ele: passeando sem esforço pelo carreiro do jardim, passando pelos narcisos bravos e pelos canteiros de ervas, pelas flores-de-mel de um púrpura-escuro, e os cardos gigantes que se curvavam para cima, sempre inspirando; uma brisa suave agitou os pinheiros circundantes, e ele desfrutou dos estalidos produzidos sobre a gravilha pelos seus sapatos e as suas bengalas. Se, nesse momento, olhasse para trás, por cima do ombro, sabia que a casa de campo estaria ocultada atrás de quatro grandes pinheiros — a entrada da frente e as portadas revestidas por roseiras trepadeiras, os telheiros bolorentos sobre as janelas, as barras de tijolo à vista das paredes exteriores; a maior parte disso mal era visível através do denso entrecruzado de ramos e agulhas de pinheiro. Em frente, onde findava o caminho, esten-dia-se uma pastagem indivisa enriquecida com uma profusão de azáleas, loureiros e rododendros, para lá dos quais emergia um aglomerado isolado de carvalhos. E sob os carvalhos — disposto numa só fila, em grupos de duas colmeias — encontrava-se o seu apiário.

Sr Sherlock Holmes.indd 21 4/14/15 12:35 PM

Page 16: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

22

Nesse momento, estava a caminhar pelo colmeal, enquanto o jovem Roger — ansioso por impressioná-lo com o bem que as abelhas tinham sido tratadas na sua ausência, deambulando agora de colmeia em colmeia, sem véu e com as mangas arre-gaçadas — explicava que, desde que o enxame tinha sido insta-lado, no início de abril, apenas alguns dias antes de Holmes ter partido para o Japão, elas tinham desenhado completamente as fundações de cera dentro dos quadros, construído os favos e enchido cada célula hexagonal. De facto, para seu deleite, o rapaz já tinha reduzido o número de quadros a nove por colmeia, permitindo assim que houvesse bastante espaço para as abelhas prosperarem.

— Excelente — disse Holmes. — Trataste admiravelmente destas criaturas, Roger. Estou muito agradado pela tua diligência aqui. — Então, recompensando o rapaz, retirou o tubo da algi-beira, apresentando-o entre um dedo torto e um polegar. — Isto era para ti — disse ele, observando Roger a aceitar o invólucro e a olhar fixamente para o seu conteúdo, com um ligeiro espanto. — Apis cerana japonica — ou talvez lhes chamemos apenas abelhas japonesas. Que tal?

— Obrigado, senhor.O rapaz sorriu-lhe e, olhando fixamente para os olhos perfei-

tamente azuis de Roger, afagando suavemente os despenteados cabelos louros do rapaz, Holmes sorriu também. De seguida, encararam as colmeias juntos, nada dizendo por um momento. Um silêncio como aquele, no colmeal, nunca deixava de o satis-fazer completamente; pelo modo como Roger se posicionava a seu lado, ele acreditava que o rapaz partilhava da sua satisfação. E, embora raramente apreciasse a companhia das crianças, era-lhe difícil evitar as agitações paternais que nutria pelo filho da Sra. Munro (perguntara-se muitas vezes como é que aquela mulher sinuosa podia ter dado à luz um rebento tão prome-tedor). Mas, mesmo na sua idade avançada, era-lhe impos- sível expressar os seus verdadeiros afetos, especialmente em relação a um rapaz de catorze anos cujo pai se encontrara entre

Sr Sherlock Holmes.indd 22 4/14/15 12:35 PM

Page 17: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

23

as baixas do exército britânico nos Balcãs e de cuja presença, suspeitava ele, Roger sentia dolorosamente falta. Em qualquer caso, era sempre sensato manter a contenção emocional em relação aos caseiros e à sua prole — era, sem dúvida, suficiente limitar-se a estar com o rapaz, uma vez que era de esperar que a quietude mútua de ambos falasse por si, enquanto os seus olhos inspecionavam as colmeias e observavam os ramos balou-çantes dos carvalhos e contemplavam a transformação subtil da tarde em noite.

Passado pouco tempo, a Sra. Munro chamou-os do carreiro do jardim, desejando o auxílio de Roger na cozinha. Então, relu-tantemente, ele e o rapaz atravessaram a pastagem, fazendo-o com a sua calma, parando para observar uma borboleta azul que esvoaçava em redor das azáleas perfumadas. Momentos antes da descida do crepúsculo, entraram no jardim, a mão do rapaz agarrando-lhe suavemente o cotovelo — essa mesma mão guiando-o em frente, através da porta da casa, ficando a seu lado até ter subido as escadas em segurança e ido para o escritório do sótão (embora percorrer as escadas não fosse uma tarefa difícil, sentia-se agradecido sempre que Roger o apoiava como uma muleta humana).

— Venho buscá-lo quando o jantar estiver pronto?— Se fizeres favor.— Sim, senhor.Portanto, sentou-se à secretária, esperando pelo rapaz para

o auxiliar de novo, para o ajudar a descer as escadas. Durante um bocado, ocupou-se a examinar notas que escrevera antes da sua viagem, mensagens crípticas rabiscadas em pedaços de papel rasgados — a levulose predomina, mais solúvel do que a dextrose —, os significados das quais lhe escapavam. Olhou em redor, aper-cebendo-se de que a Sra. Munro tomara certas liberdades na sua ausência. Os livros que ele espalhara pelo chão estavam agora empilhados, o chão varrido, mas — tal como ordenara expressa-mente — não fora limpo o pó a nada. Tornando-se cada vez mais inquieto por falta de tabaco, mudou cadernos de sítio e abriu

Sr Sherlock Holmes.indd 23 4/14/15 12:35 PM

Page 18: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

24

gavetas, esperando encontrar um jamaicano ou, pelo menos, um cigarro. Após a busca se provar fútil, resignou-se à corres-pondência preferida, pegando numa das muitas cartas enviadas pelo Sr. Tamiki Umezaki, semanas antes de ter empreendido a sua viagem ao estrangeiro: Caro Senhor, estou extremamente

grato por o meu convite ter sido recebido com um interesse sério,

e por ter decidido ser meu convidado aqui em Kobe. Desnecessário

será dizer que anseio por mostrar-lhe os muitos jardins dos templos

desta região do Japão, bem como... Também isto provou ser elusivo: mal começara a ler, as suas

pálpebras fecharam-se e o queixo tombou-lhe gradualmente para o peito. Então, dormindo, não sentiu a carta a escorre-gar-lhe dos dedos nem ouviu o ténue engasgamento que lhe emanava da garganta. E, ao acordar, não se lembrou do campo de calêndulas onde estivera, nem se recordou do sonho que aí o colocara mais uma vez. Em vez disso, espantado por encontrar Roger de repente a debruçar-se sobre ele, clareou a garganta, olhou fixamente para a cara atormentada do rapaz e com incer-teza murmurou numa voz rouca:

— Estava a dormir?O rapaz assentiu.— Bem vejo, bem vejo.— O seu jantar será servido em breve.— Sim, o meu jantar será servido em breve — murmurou,

preparando as bengalas.Tal como antes, Roger auxiliou cuidadosamente Holmes,

ajudando-o a levantar-se da cadeira, mantendo-se perto dele ao saírem do escritório; o rapaz percorreu o corredor com ele, depois desceram as escadas, depois entraram na sala de jantar, onde, soltando-se por fim do encosto ligeiro de Roger, avançou sozinho, movendo-se em direção à grande mesa de carvalho vito-riana dourada e ao único lugar posto à mesa que a Sra. Munro lhe preparara.

— Depois de ter terminado aqui — disse Holmes, dirigindo- -se ao rapaz sem se virar —, gostaria muito de discutir o assunto

Sr Sherlock Holmes.indd 24 4/14/15 12:35 PM

Page 19: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

25

do colmeal contigo. Desejo que me relates tudo o que lá se passou na minha ausência. Estou certo de que me poderás brindar com um relatório pormenorizado e preciso.

— Creio que sim — respondeu o rapaz, olhando da entrada enquanto Holmes encostava as bengalas à mesa antes de se sentar.

— Então, muito bem — disse Holmes por fim, olhando fixa-mente do outro lado da sala para onde Roger se encontrava. — Reencontremo-nos na biblioteca daqui a uma hora, está bem? Supondo, claro está, que o empadão da tua mãe não acabe comigo.

— Sim, senhor.Holmes pegou no guardanapo dobrado, abanando-o para

abri-lo e enfiando um canto sob o colarinho. Sentando-se direito na cadeira, levou um instante a endireitar os talheres, posicio-nando-os impecavelmente. Depois, suspirou pelas narinas, descansando as mãos simetricamente de ambos os lados do prato vazio:

— Onde é que anda aquela mulher?— Já vou — gritou subitamente a Sra. Munro. Apareceu de

repente atrás de Roger, pegando num tabuleiro que fumegava com o seu cozinhado. — Desvia-te, filho — disse ela ao rapaz. — Assim, não estás a ajudar ninguém.

— Desculpe — disse Roger, desviando o corpo magro para que ela conseguisse entrar. E, assim que a sua mãe passara apressada, correndo para a mesa, deu um passo lento para trás, e outro, e outro, até ter saído da sala de jantar. No entanto, não haveria mais vadiagem para ele; caso contrário, sabia que a mãe poderia mandá-lo para casa ou, no melhor dos casos, mandá-lo para a cozinha fazer limpezas. Evitando essa eventualidade, empreendeu a sua fuga em silêncio suficiente, enquanto a mãe servia Holmes, escapando-se antes que ela pudesse sair da sala de jantar e convocá-lo pelo nome.

Mas o rapaz não se dirigiu ao exterior, correndo para o apiário como a sua mãe poderia esperar — nem foi para a biblioteca para

Sr Sherlock Holmes.indd 25 4/14/15 12:35 PM

Page 20: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

26

se preparar para as perguntas de Holmes acerca do colmeal. Em vez disso, esgueirou-se de novo lá para cima, entrando naquela única divisão que Holmes reservava só para si: o escri-tório do sótão. Na verdade, durante as semanas em que Holmes viajara pelo estrangeiro, Roger passara longas horas explorando o escritório — inicialmente, tirando das estantes vários alfar-rábios, monografias poeirentas, revistas científicas, e lendo-os atentamente, sentado à secretária. Uma vez a sua curiosidade satisfeita, colocara-os de novo nas estantes, assegurando-se de que pareciam não ter sido mexidos. De vez em quando, fingira até que era Holmes, reclinando-se na cadeira da secretária com as pontas dos dedos encostadas umas às outras, olhando fixa-mente para a janela e inalando um fumo imaginário.

Naturalmente, a mãe não sabia desta invasão, já que, se tivesse descoberto, teria sido completamente banido da casa. Contudo, quanto mais explorava o escritório (primeiro, à cau- tela, mantendo as mãos nas algibeiras), mais atrevido se tornava — espreitando para dentro das gavetas, tirando cartas de sobres- critos já abertos, pegando respeitosamente na caneta, na tesoura e na lupa que Holmes usara regularmente. Mais tarde, começara a esmiuçar as pilhas de páginas manuscritas que se encontravam sobre a secretária, tendo cuidado para não deixar quaisquer marcas identificativas nas páginas, ao mesmo tempo que tentava decifrar as notas e os parágrafos incompletos de Holmes; porém, a maior parte do que lera era um desperdício para o rapaz — fosse devido à natureza muitas vezes absurda dos rabiscos de Holmes ou como resultado de o assunto ser de certo modo oblíquo e clínico. No entanto, estudara cada página, desejando aprender algo de único ou revelador acerca do famoso homem que agora reinava sobre o colmeal.

De facto, Roger descobriria pouca coisa que revelasse algo sobre Holmes. O mundo do homem, parecia, era feito de provas sólidas e factos incontestáveis, observações pormenorizadas sobre assuntos exteriores, raramente contendo uma frase de contemplação acerca de si próprio. Contudo, entre as muitas

Sr Sherlock Holmes.indd 26 4/14/15 12:35 PM

Page 21: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Sr. Sherlock Holmes

27

pilhas de notas e escritos avulsos, enterrado por baixo de tudo, como se escondido, o rapaz acabara por descobrir um item de verdadeiro interesse — um curto manuscrito inacabado intitu-lado A Tocadora de Harmónica de Vidro, com o molho de páginas mantido junto por um elástico. Ao contrário dos outros escritos de Holmes que se encontravam sobre a secretária, este manus-crito, notara o rapaz imediatamente, fora composto com grande cuidado: as palavras eram fáceis de distinguir, nada fora rasu-rado e nada fora amontoado nas margens ou obscurecido por pingos de tinta. O que então leu captara a sua atenção — pois era acessível e tinha, de certo modo, uma natureza pessoal, narrando um tempo anterior da vida de Holmes. Mas, para grande tris-teza de Roger, o manuscrito terminava abruptamente, ao cabo de apenas dois capítulos, deixando a sua conclusão envolta em mistério. Ainda assim, o rapaz repescá-lo-ia uma e outra vez, voltando a ler o texto na esperança de conseguir alguma infor-mação que antes lhe houvesse escapado.

E agora, tal como durante essas semanas em que Holmes estivera fora, Roger achava-se sentado nervosamente à secretária do escritório, extraindo metodicamente o manuscrito de debaixo daquela desordem organizada. Logo o elástico foi posto de lado e as páginas colocadas junto ao brilho do candeeiro de mesa. Estudou o manuscrito de trás para a frente, examinando rapi-damente as últimas páginas, embora tivesse a certeza de que Holmes ainda não tivera oportunidade de continuar o texto. Então, começou pelo princípio, debruçando-se enquanto lia, virando cada página para cima de outra. Se se concentrasse, sem distrações, acreditava Roger, conseguiria acabar o primeiro capí-tulo nessa mesma noite. Só quando a mãe chamava o seu nome é que ele levantava a cabeça por momentos; ela estava na rua, chamando-o do jardim lá em baixo, à sua procura. Depois de a voz da mãe se ter desvanecido, ele baixou a cabeça de novo, lembrando-se de que já não lhe sobrava muito tempo — daí a menos de uma hora, era esperado na biblioteca; passado pouco tempo, o manuscrito teria de ser escondido exatamente como

Sr Sherlock Holmes.indd 27 4/14/15 12:35 PM

Page 22: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,

Mitch Cullin

28

originalmente fora encontrado. Até lá, um dedo indicador desli-zava pelas palavras de Holmes abaixo, os olhos azuis piscavam repetidamente mas permaneciam focados, e os lábios moviam-se sem som à medida que as frases começavam a invocar cenas familiares dentro da cabeça do rapaz.

Sr Sherlock Holmes.indd 28 4/14/15 12:35 PM

Page 23: Para a minha mãe, Charlotte Richardson, · Para a minha mãe, Charlotte Richardson, uma fã de mistérios e das estradas panorâmicas da vida; e para o falecido John Bennett Shaw,