camenietzki, carlos ziller. o papel da batalha

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  • 7/25/2019 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. O Papel Da Batalha

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    O papel da batalha: a disputa pela vitriade Montijo na publicstica do sculo XVII*

    Carlos Ziller CamenietzkiUniversidade Federal do Rio de JaneiroRio de Janeiro, RJ, Brasil

    [email protected]

    Daniel Magalhes Porto SaraivaUniversit de Paris IV

    Paris, [email protected]

    Pedro Paulo de Figueiredo SilvaUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    Rio de Janeiro, RJ, [email protected]

    RESUMOA batalha de Montijo, ocorrida no dia 26 de maio de 1644, foi a primeira grande batalha da Guerra daRestaurao Portuguesa (1640-68) e foi vencida por ambos os combatentes. Os comandantes castelha-

    nos declararam sua vitria logo aps o trmino do enfrentamento; houve ainda a publicao de relaes,poemas e crnicas do acontecido. Os portugueses tambm se declararam vitoriosos no mesmo comba-te, publicando folhetos e apologias e inserindo sua narrativa dos acontecimentos em obras de histria.O confronto entre textos de uns e de outros, bem como das circunstncias de suas edies, permiteidentificar o carter poltico da disputa pela vitria em uma batalha j terminada. Com isso, identifica--se o esforo de vencer a batalha na opinio e na diplomacia do sculo XVII.Palavras-chave:Restaurao Portuguesa; batalha de Montijo; imprensa; relaes de guerra; opiniopblica.

    ABSRAC

    Te Battle of Montijo, occurred on May 26 th, 1644, was the first great battle of the PortugueseRestoration (1640-1668), and was conquered by both opponents. Te Castilian commanders declaredtheir victory soon after the end of combat; there was also the publishing of reports, poems, and chroniclesabout the event. Te Portuguese also declared themselves as the winners of the same battle, publishingtracts and apologias and introducing their perspective on the battles narrative into History works. Tecomparison between Portuguese and Castilian texts, as well as the circumstances of their publication,points to the political character of the dispute for victory in a finished battle. It also identifies the effortto win the battle in seventeenth-century public opinion and diplomacy.Keywords:Portuguese Restoration; Montijo Battle; press; war relations; public opinion.

    *Os autores agradecem Capes e ao CNPq por ter fornecido os meios que possibilitaram este trabalho.Artigo recebido em 23 de maro de 2012 e aceito em 14 de maio de 2012.

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    Carlos Ziller Camenietzki, Daniel Magalhes Porto Saraiva e Pedro Paulo de Figueiredo Silva

    No dia 26 de maio de 1644, nos campos de Montijo, na Estremadura castelhana, as foras invasorasportuguesas chefiadas por Mathias de Albuquerque enfrentaram as tropas locais de defesa, comandadas distncia pelo marqus de orrecusa e no terreno pelo baro de Moligen. rata-se do primeiro grandeconfronto em campo aberto da guerra que ops a Monarquia Catlica ao Portugal Restaurado e, ainda

    que os principais interesses militares de Madri estivessem do outro lado da Pennsula, na Catalunha,seu resultado deveria importar bastante no desenvolvimento do conflito. Ao que tudo indica, assim foi.

    de se lembrar que o episdio ocorreu numa poca marcada pelos derradeiros movimentos daGuerra dos rinta Anos, quando as principais foras j haviam iniciado as conversaes que iriam ter-minar na celebrao da Paz da Westflia poucos anos depois. No que toca especificamente PennsulaIbrica, a guerra continuaria intensa por mais uma dzia de anos entre castelhanos e franceses, mesmoaps a tomada de Barcelona e a reduo da revolta catal, e por mais vinte anos entre portugueses ecastelhanos.

    O mais interessante no exame da batalha de Montijo, e o que a torna singular, o fato de queambas as partes em conflito proclamaram imediatamente a vitria; como se possvel fosse haver dois

    vencedores do mesmo combate. Para essa inimaginvel situao, nem mesmo Salomo, nem mesmoa interveno divina direta poderia justificar o que ambos os contendores afirmavam, e o que os his-toriadores de Castela e os de Portugal repetiram insistentemente acerca do feito por longo tempo. curioso constatar que at os nossos dias, j no sculo XXI, o problema da vitria nessa batalha aindase apresente. Em 2005, a populao da cidade de Montijo encenou uma representao teatral, com maisde 250 moradores atuando, em que a vitria castelhana na batalha era o tema principal1. Com isso, ficaaberta uma rica perspectiva no estudo dessa guerra e das principais modalidades de obteno da vit-ria naquele tempo, o que impe um conjunto de interrogaes acerca da opinio pblica e do seupapel na definio das questes polticas daqueles anos.

    O conflito luso-castelhano do qual se trata iniciou-se em dezembro de 1640, poucos meses aps

    a revolta da Catalunha, e alongou-se por 28 anos. Portugueses destronaram d. Felipe IV do reino dePortugal e ali colocaram d. Joo de Bragana, Joo IV, dando incio a um tempo bastante conturbadono reino. Seguiram-se imediatamente esforos de consolidao do novo governo, tentativas de contra-golpe e at mesmo de assassinato do Bragana; despachos acelerados aos domnios do ultramar; prisesde nobres portugueses; fugas de fidalgos e de nobres de um lado ao outro da fronteira etc. De fato, osprimeiros anos da Restaurao foram tempos de grandes tenses e de grandes conflitos em Portugal,sobretudo por envolver a gente nobre, que ademais demorou bastante a se alinhar majoritariamente aonovo governo. Se as populaes urbanas e a maior parte do clero com grande dissenso na mais altahierarquia aderiram quase que imediatamente, a nobreza ficou dividida entre a antiga fidelidade aFelipe IV e a nova, e bastante real, possesso do reino pelo Bragana2. No exagerado afirmar que

    1 Cf. La Ventana de las Vegas Bajas, ago. 2005. p. 16. Disponvel em: .2A bibliografia da Restaurao bastante extensa; comea ainda no tempo em que as armas estavam quentes e se alongamesclada a problemas de pocas posteriores, que nada ou quase nada tinham a ver com a natureza daquele conflito. Nosltimos trinta anos, diversas anlises mostram um renovado interesse pela poca da Restaurao, por exemplo: ORGAL,Lus Reis. Ideologia poltica e teoria de Estado na Restaurao. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. 2 v.;BEBIANO, Rui.A pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (scs. XVI-XVIII). Coimbra: Edies Minerva,2000; ESPRIO SANO, Gabriel. A grande estratgia de Portugal na Restaurao. Casal de Cambra: Caleidoscpio,2009; FREIAS, Jorge Penim de. O combatente durante a Guerra da Restaurao: vivncia e comportamento dos militaresa servio da coroa portuguesa (1640 - 1668). Lisboa: Prefcio, 2007; CURO, Diogo Ramada. Cultura poltica no tempo

    dos Felipes. Lisboa: Edies 70, 2011; CUNHA, Mafalda Soares da; COSA, Leonor Freire. D. Joo IV. Lisboa: Crculo deLeitores, 2006. Na Espanha e ainda em outros pases da Europa, as possibilidades que o tema oferece foram aproveitadaspor diversos estudiosos, por exemplo: SCHAUB, Jean-Frdric. Le Portugal au temps du Compte-Duc DOlivares: le conflitde juridictions comme exercice de la politique. Madrid: Casa de Velzquez, 2001; ALVAREZ, Fernando Bouza. Portugal

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    cerca da metade da nobreza titulada ndice bastante bom para perceber o alinhamento da fidalguia permaneceu fiel ao Habsburgo e desempenhou um papel importante nas aes da Monarquia3.

    Neste quadro, e j iniciados os feitos de guerra em meados de 1641, para Portugal, invadir terras deCastela no representava uma tentativa de tomar efetivamente domnios da Monarquia e submet-los

    ao Bragana, com esperanas de conquistas territoriais duradouras, mas registrar com o sangue inimi-go que os lusitanos tambm mantinham poder de fogo ofensivo. Por outro lado, a vitria em Montijoservia para confirmar a capacidade blica da nobreza fiel ao Bragana, apaziguando assim as tenses deum reino assolado por incertezas e ameaas conspiratrias4. Venc-la era decisivo naqueles primeirosanos da guerra.

    Para Castela, derrotar uma primeira grande incurso lusitana era forma de fortalecer a tese da insu-ficincia portuguesa, da fraqueza dos Bragana e de sua destemperada rebeldia. Embora a MonarquiaCatlica estivesse num perodo de certa debilidade blica, com o arrastar-se do problema catalo, a ir-resoluo do conflito em Flandres e a entrada da Frana na Pennsula via Barcelona no seria facilmen-te absorvvel uma primeira grande derrota na Estremadura castelhana diante dos exrcitos do duque

    rebelde.At ento, mas tambm depois disso, os enfrentamentos nas fronteiras envolviam algumas dezenas,

    ou mesmo centenas, de homens em operaes de pilhagem sobre aldeias e populaes que mal podiamse defender, ou em cercos breves de cidades bem protegidas5. Nos campos de Montijo, o enfrentamentoenvolveu milhares de soldados de cada lado, com mais de mil cavaleiros cada, armamento pesado e tra-lha de guerra volumosa carros, alimentos, munio etc. No estimativa ruim tomar o nmero deenvolvidos na casa de 15 mil pessoas, contando os combatentes de ambos os lados e o pessoal de apoio.Para o sculo XVII, e para tempos posteriores tambm, isso j um nmero bastante elevado.

    No entanto, a vitria no foi resolvida com esses homens. A batalha de Montijo poderia confirmara ideia de que qualquer combate se decide em duas dimenses: uma material, em que os homens se

    enfrentam de fato; e outra simblica, da narrativa do enfrentamento. Porm, nem assim, na sequnciados acontecimentos, se conseguiu consenso sobre o resultado desse embate. Ambas as partes venceram!Ou seja, material ou simbolicamente ningum venceu. Com o passar das dcadas, com a resoluoda independncia poltica portuguesa, o contraste acabou por se transformar em literatura, em mat -ria de historiadores, sem contudo encontrar soluo definitiva at nossos dias, at o tempo de agora! E,certamente, este texto no uma tentativa de atribuir a vitria a uma das partes.

    ***

    Quando derrubaram o governo de seu rei castelhano, os portugueses se viram diante da emergncia

    de recomposio dos grupos dirigentes da sociedade em vista das necessidades imperiosas da formaode um novo governo e do enfrentamento certo com a principal fora militar da Europa daqueles anos.Como a nobreza permaneceu dividida por algum tempo, a poltica acabou se lanando s ruas e s

    no tempo dos Felipes. Poltica, cultura, representaes. Lisboa: Cosmos, 2000; VALLADARES, Rafael. La rebelion dePortugal(guerra, conflicto y poderes en monarquia hispanica). Valladolid: Junta Castilla-Leon, 1998. Obras dos temposanteriores sero referidas ao longo deste trabalho.3Cf. ALVAREZ, Fernando Bouza.Portugal no tempo dos Felipes, op. cit. p. 271-291.4MENESES, Lus de, conde da Ericeira. Histria de Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilizao, 1945. v. I, p. 148.Esta obra foi publicada pela primeira vez ainda em 1679.5 Esta foi a primeira batalha, que nesta guerra se deu de poder a poder, e por tal podem os que observam cousas tomar

    dela indicao ajuizando pelo sucesso dos que pode haver futuros; porque bem mostraram aqui os portugueses, que nemrotos, e desbaratados se podem ter por vencidos, porque em quanto conservam com a vida o valor, nenhuma dificuldadelho pode atropelar. Relaam dos gloriosos svcessos que as armas de Sua Magestade ElRey D. Joo IV N. S. tiveram nas terrasde Castella, neste anno de 1644 at a memorvel Victoria de Montijo. Lisboa: Antonio Alvarez, 1644. p. 22.

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    praas, com manifestaes tpicas do tempo e dentro dos limites que as comportavam: luminrias, pro-cisses etc. A caracterstica que mais importa aqui a surpreendente mar de publicaes que acompa-nhou a abertura do debate poltico nos primeiros anos da Restaurao. Publicava-se intensamente sobreos acontecimentos: livros, tratados, folhetos, cartazes, poemas, at mesmo o primeiro peridico lusitano

    saiu em novembro de 1641. Portugal publicava, e precisava muito disso para consolidar internamentea nova configurao do poder. Esses textos eram o veculo pelo qual as notcias dos acontecimentoschegavam s pessoas, ao pblico, conformando j alguma participao poltica das populaes urbanasdo reino. Eram tambm os meios pelos quais os autores divulgavam suas ideias e apresentavam suaspropostas para a poltica.

    At Montijo, centenas e centenas de impressos j haviam circulado em Lisboa narrando ou discutin-do acontecimentos blicos e polticos ligados Restaurao. Porm, essa batalha acabou gerando maispapis do que qualquer outra nessa guerra. Problema certamente vinculado ausncia total de consensomnimo quanto ao vencedor do confronto, quanto ao nmero de homens envolvidos no combate, quantidade de peas de artilharia, aos cavaleiros etc.

    Em Lisboa, ao que foi possvel averiguar, foram publicados sete textos relativos batalha, ainda queseja imaginvel encontrar outras publicaes especficas e notcias manuscritas nas diversas bibliotecase arquivos. Desse total, dois foram escritos em latim. Em portugus, h uma relao que cobre apenaso incio da expedio de Mathias de Albuquerque at a tomada da cidade de Montijo, outra relao doconjunto dos feitos portugueses, incluindo a batalha, e, finalmente, uma apologia da vitria em respostas publicaes do inimigo, que tambm evocavam para si a vitria na mesma batalha.

    Os impressos favorveis aos castelhanos tambm saram publicados rapidamente em Sevilha, Sala-manca e Madri e, logo aps, se espalharam por vrias cidades da Europa. Seus traos podem ser verifi-cados em folhas volantes e em peridicos da poca, ainda encontrveis diretamente nas bibliotecas docontinente. De fato, o assunto no era algo que se limitava s fronteiras luso-castelhanas. O que estava

    em jogo era uma parte importante daquilo que j se caracterizou de supremacia espanhola no VelhoMundo, ou no mundo todo, caso se prefira6.

    alvez, o nico acordo quanto ao enfrentamento seja a data e o local do combate: 26 de maio de1644 nos campos da cidade de Montijo, das 9 horas da manh at as 3 horas da tarde. Contam tambmas relaes que uma tropa portuguesa entrou pela Estremadura saqueando pequenas vilas e aldeias atque tomou a cidade de Montijo e, na sua retirada do local, foi abordada pelo exrcito de Castela.

    A Relaam dos gloriosos svcessos, publicada apenas em 15 de junho em Lisboa contando 32 pginas,assegura que as tropas portuguesas somavam 6 mil infantes, 1.100 cavalos e seis peas de artilharia.Esse contingente teria enfrentado 2.600 cavalos, muitos de couraa, e 7 mil infantes7. Destacar a su-perioridade da cavalaria inimiga importante, pois as tropas montadas geralmente indicavam o poderofensivo. Nos escritos castelhanos, porm, esses nmeros so diversos. A Relacin Verdadera de lo queSucedi en veinte y seis de mayo pasado, que soma treze pginas, indica cifras bastante diferentes. Osportugueses seriam de 6 a 7 mil infantes, 1.400 cavalos, duzentos drages, seis peas de artilharia eainda mais material blico: un trabuco para bombas, y mil gastadores con sus armas diferentes, con grancantidad de municiones, petrechos de guerra y bastimentos, que conducia consigo para todo su ejrcito paratres semanas8. As tropas castelhanas, por sua vez, reuniam gentes de diferentes lugares, convocadas

    6Cf. ELLIO, John H. et al. (Ed.). 1640: la Monarqua Hispnica en crisis. Barcelona: Crtica, 1992.7Relaam dos gloriosos svcessos, qve as armas de Sua Magestade ElRey D. IOAM IV. N.S. tiuero nas terras de Castela, neste

    anno de 1644 at a memorauel victoria de Montijo. Lisboa: Antonio Alvarez, 1644. p. 12-14.8Relacin Verdadera de lo que Sucedi en veinte y seis de mayo pasado, en el Reencuentro que tuvieron las Armas De S. M. ConLas Del Rebelde Portugus en la Campana del Montijo. In: CALDERON, Serafn Estbanes, d. De la conquista y prdida dePortugal. Madri: Impresso por A. Pres Dubrull, 1853. tomo I, p. 305. Colleccin de Escritores Castellanos - Historiadores.

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    emergencialmente para fazer resistncia a to grande exrcito. Essas estariam na ordem aproximada de4 mil infantes, 1.700 cavalos e duas peas de artilharia, somente9.

    usual que as relaes apresentem as tropas inimigas como superiores tanto em nmero de homenscomo no aparelhamento militar, de forma a reforar a bravura e o herosmo de seus prprios exrcitos.

    Afinal, a excitao do valor heroico uma maneira de qualificar o esforo de guerra elidindo as con-dies de combate dos prprios soldados, do exrcito como um todo e do reino. Do lado portugus,as dificuldades em estabelecer a nova monarquia, e o prprio governo, incidiam diretamente sobre suacapacidade de montar e manter um exrcito em condies de enfrentar a mquina de guerra inimiga.

    J o castelhano se via diante de muitas frentes de batalha, particularmente duas na Pennsula Ibrica, oque impedia uma ao mais eficaz e concentrada contra seus inimigos lusitanos10.

    As relaes de guerra, em geral, eram textos breves e muito informativos, editados rapidamente.Elas so pequenas: a maioria com oito ou doze pginas, e custavam pouco11. Contudo, trazem consigouma grande quantidade de informaes sobre os acontecimentos; so permeadas de passagens catrticasem que os autores apelam para sentimentos religiosos, patriticos, tornando a leitura ainda mais gil,

    entretida e veloz. A essas caractersticas soma-se o frequente apelo verdade, com testemunhos impor-tantes alegados em favor do que se diz. Acrescente-se, ainda, o elogio de um ou outro chefe militar quecomandou a ao descrita. O pequeno tamanho do relato algo a no ser desprezado: tratava-se de uminformativo ligeiro, deveria ser vendido e lido rapidamente; sua validade era muito curta, talvez tocurta quanto o prprio texto. Sempre importante lembrar que no comum a relao apresentar aautoria do texto. De fato, a autoria que importa para estes informativos a autoria do feito e no aquelada narrativa.

    No que toca batalha de Montijo, alguns escritos castelhanos atendem perfeitamente a essas carac-tersticas; o caso da Relacion de la vitoria qve tuuieron las armas, del Rey nuestro seor contra el tyrano dePortugal, ajustada de las personas, que han venido de Estremadura, y de las cartas que ha auido de aquella

    Prouincia12. Essa publicao agrega informaes de cartas e de testemunhos, mas soma apenas trspginas de texto sobre os acontecimentos do campo de batalha. As tropas portuguesas seriam de 8 milinfantes, mais de 1.500 cavalos com muita artilharia e suprimentos de munio e alimentos, enquantoas de Castela seriam de 3 mil infantes e 1.500 cavalos.

    Logo que inicia seu relato, o texto apresenta uma inusitada situao militar: o filho do conde de Mon-tijo, don Antonio Portocarrero y Luna, teria matado com suas prprias mos 62 soldados portugueses13.Isso significa que em um combate corporal em que a espada era a arma de base, esse bravo castelhano teriamatado mais de dois portugueses a cada quinze minutos! O filho do conde de Montijo teria pelejado deforma tal que at mesmo os heris das narrativas clssicas teriam ficado espantados. Montijo fora destrudapelos lusitanos e seria espervel que o filho do conde vingasse a perda com todo valor que se esperava dele,ainda que se propusesse uma verdadeira carnificina operada apenas por um homem.

    Esta mesma relao qualifica a batalha da seguinte forma: fue mas sangrienta que se ha visto en estaera14. Ora, a mais sangrenta batalha de uma era um evento notoriamente grande, para no dizerenorme, contudo trs pginas foram capazes de resumi-lo numa linguagem simples e objetiva. Entre osacontecimentos narrados, os que fazem aluso a efeitos sobrenaturais, ou ao menos sugerem que Deus

    9Ibidem, p. 307.10Nessa poca, Castela tinha problemas poltico-militares com a Catalunha, os Pases Baixos (Holanda), Portugal, Frana,Inglaterra, alm de pases do norte europeu e reinos alemes, em razo do seu envolvimento na Guerra dos rinta Anos.11H relaes de guerra publicadas em Portugal nos primeiros dois anos do conflito que saram apenas uma semana aps o

    acontecimento descrito. Seu preo mdio pode ser verificado pela taxao que aparece logo aps as licenas de publicao.12Impressa em Salamanca por Antonia Ramirez, 1644.13 Ibidem, p. 1.14Ibidem, p. 3.

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    um agente efetivo, quase sempre se apresentam e a narrativa explora o impacto destas informaes emfavor do que est efetivamente contando15. Na relao que foco desta anlise, uma chuva intensa abreo argumento da colaborao da Providncia com os intentos castelhanos:

    aquel dia del Iueues, en qual, llouio tanto, que ni los nuestros, ni los portugueses, pudieron vsar de mas que dos, tres cargas los que mas, por estar mojada la poluora, y cuerda. Y en dizen que estuuo nuestra dicha, porque si

    se pudiera vsar de las armas de fuego lleuariamos a la peor parte, como inferioes en numero y puesto, porque ellos

    peleauan desde las trincheras, y los nuestros a cuerpo descubierto, pero como inferiores en valor con la ocasion de

    mostrarle espada a espada y pica a pica, llevar la peor parte16.

    Segundo o relato, a chuva seria um castigo em razo da ofensa portuguesa ao provocar uma batalhaem dia de festividades sacras, Corpus Christi.

    De maneira geral, estes impressos ligeiros centram suas atenes no nmero de soldados envolvidose nos virtuosos, ou desvirtuados, valores que seria necessrio apontar. Assim, a caracterizao do sujeito

    envolvido no combate de grande utilidade na construo de uma analogia entre um determinadoexrcito e seu reino (bem como a descaracterizao do alheio). No caso do ltimo trecho, a participaode Deus sugerida e nisso reside grande parte de sua eficcia.

    Em textos como esse, o apelo racional mnimo se comparado ao passional. Mesmo no caso de umabatalha ocorrida aps trs anos do incio de uma guerra que parecia no acontecer, as razes de tal con-flito no so apresentadas. Contudo, apresentam-se o inimigo e o combate de forma bastante restrita,como se todo o demais fosse informao da qual o leitor j dispusesse. Assim, as notcias so narradas apartir de uma breve apresentao dos contingentes e dos movimentos principais, ficando os momentoscatrticos centrados na fria e no desejo da matana, da vingana humana ou do castigo divino.

    A caracterizao feita das pessoas, militares ou no, envolvidas nesta batalha segue um padro que

    pode ser observado em diversos outros relatos de guerra. A coincidncia dos elementos expositivos, antesde ser casual, evidencia os nexos de composio dessas relaes: tratava-se de formar opinio entre os lei-tores quanto ao andamento do conflito. Com isso, as relaes de guerra adotam em sua grande maioriauma espcie de brevssima prosa epopeica17.

    ***

    Ao que se pode constatar no conjunto das relaes de guerra de 1644 e num memorial enviado a d.Joo IV pelo chefe militar portugus, as foras lusitanas intentavam atacar Albuquerque, vila de tama-nho considervel, a fim de responder e estancar as constantes incurses de Castela na raia portuguesa18.Ouguela, por exemplo, foi atacada no incio de abril e a resistncia dos moradores e dos soldados foinarrada em uma relao no menos curta e nem menos heroica, publicada em Lisboa19. Porm, ao final

    15As relaes portuguesas desta mesma poca costumam apresentar passagens em que as proezas dos soldados lusitanosparecem, ou so, milagrosas. Por exemplo, a passagem em que se conta o pouco efeito que os pelouros castelhanos faziamnos portugueses: se isto no he milagre, he couza digna de admirao, & consolao pera os portugueses, & que lhe devedar confiana, de que Deos os ampara na Relaam do Encontro que o mestre de campo Dom Nuno Mascarenhas teve com oinimigo em Montalvo. Lisboa: Manoel da Sylva, 1641. p. A2r.16 Ibidem, p. 2-3. O registro da incidncia de forte chuva no combate tambm pode ser verificado em outro escritocastelhano: PARDO DE GAYOSO, Antonio. Octavas Heroicas. Sevilha: Juan Gomez de Blas, 1644. f. 8.17Cf. CARVALHO, Maria do Socorro Fernandes de. Poesia de agudeza em Portugal.Estudo retrico da poesia lrica e

    satrica escrita em Portugal no sculo XVII.So Paulo: Humanitas Editorial; Edusp; Fapesp, 2007.18PIMENA, Belisrio. O memorial de Mathias de Albuquerque. Boletim da Biblioteca, Coimbra, v. XVI, 1944.19 Cf. Relaam da Famosa Resistencia e Sinalada Vitoria, Qve os Portugueses alcanaro dos Castelhanos em Ouguela este Annode 1644 a 9 de Abril, governando esta praa o Capita Pascoal da Costa. Lisboa: Impresso por Paulo Craesbeck, 1644. Nessa

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    daquele ms, ao chegar aos muros de Albuquerque, o governador das armas portuguesas considerou quea investida seria fracassada, dado o seu slido aparato de defesa. Com a inteno de provocar a primeirabatalha de grandes propores naquela guerra, o governador das armas passou a arrasar diversos povoa-dos da regio: primeiro, Villar del Rey, depois, a Villa Roca de la Sierra, Puebla, Montijo e, ao sair desta

    ltima, encontrou as tropas castelhanas. Eles esperavam a sada dos portugueses, cercando seu caminhode volta para Campo Maior praa portuguesa de onde partiram.

    Para alm da divergncia quanto ao nmero de soldados envolvidos, as relaes castelhanas e asportuguesas tambm destoam quanto ao desenrolar e quanto ao fim do combate. Com os teros forma-dos, os castelhanos investiram com sua cavalaria; as foras de Portugal, tambm prontas para a refrega,resistiram num primeiro momento, mas acabaram por ceder pelo brao esquerdo. interessante notaro cuidado adotado pelos lusitanos para descrever suas perdas. Unnime, entre as verses portuguesas le-vantadas at agora, que os primeiros avanos castelhanos se deram exatamente pelo flanco comandadopor tropas montadas de holandeses. Eles teriam recuado por medo da investida inimiga:

    A [tropa] holandesa amedrontada com o grande nmero da Castelhana voltou logo a fugir, e o fez comtanto desacordo, que virando sobre o esquadro de Ayres de Saldanha, que ia de vanguarda, o deixou roto,e aproveitando-se o inimigo desta desordem, vendo aberto aquele esquadro, o investiu com toda a suacavalaria pelo acabar de romper; mas, ainda que a nossa, que estava no corno direito, no socorreu, no podeacabar de o conseguir pela resistncia, que lhe fez a infantaria, pelejando com muito perigo, pela fronte, elado, que j tinha descoberto20.

    A principal responsabilidade sobre a quebra da formao portuguesa, que teria levado perdada artilharia, recai sobre as tropas de Holanda, empenhada tambm nesta guerra contra a MonarquiaCatlica. A desorganizao dos bravos lusitanos seria, ento, o resultado do medo sentido por seus

    aliados, e no algo prprio daqueles que defendiam sua independncia poltica. A covardia holandesateria desarrumado o esquadro portugus de Ayres de Saldanha, morto em combate, e prejudicadoa ao das tropas lusas. A insuficincia das tropas de Mathias de Albuquerque no incio da batalha,responsvel pela iluso momentnea da derrota, ento atribuda aos holandeses.

    Contudo, em um momento de breve concordncia entre as relaes de Castela e as portuguesas, possvel identificar uma reao das tropas de Mathias de Albuquerque. Porm, as verses divergemquanto ao grau de sucesso dessa nova investida. Diz a verso verdadera de Castela:

    se deshicieron todos los escuadrones enemigos, no quedando de ellos sino un pequeo cuerpo apiado, el cual se retir

    un poco atrs, y nuestros soldados, no mirando deshacer aquellos pocos que quedaban, aunque lo procuraron los

    cabos, sino se dieron al pillaje y desbalijo, no tratando de otra cosa sino de sto y de salvar la presa, y ponerla en

    seguridad, cortando las cuerdas de las muas de tiro de artillera del enemigo y llevndoselas, se retiraron Lobn y

    alavera y por todos aquellos lugares, mucha gente nuestra, as de caballera como de infantera, unos retirando los

    heridos, otros retirando la presa y otros llevando prisioneros, con que se nos deshicieron de todo punto los escuadrones

    y nuestra artillera y carros de municiones, y vindolos mezclados con los enemigos, se retiraron Lobn, dando

    relao podem ser vistos diversos dos argumentos heroicos aqui debatidos. Entre eles destaca-se a descrio da batalha que,alm de contar com a ajuda heroica da populao, se dist ingue pela oposio de foras: quarenta soldados da companhiado capito Pascoal da Costa, vinte cavalos holandeses e setenta moradores (inclusive mulheres) que defendiam juntos umpequeno castelo contra mil cavalos de Castela. interessante ressaltar que o documento indica ser a vila povoada por

    pouco mais de oitenta vizinhos, o que reala o comprometimento dos setenta portugueses que se arriscaram na defesa,quase um portugus por casa. ambm possvel observar o caso de um portugus que, mantendo-se fiel a Castela, atacoucom posto de oficial o reino de Portugal.20 Relaam dos gloriosos svcessos, op. cit. p. 15.

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    por excusa que los cortaba el enemigo con su caballera; aunque se torn enviar por la artillera, no fu posible

    el volver, y la poca gente que qued no fu posible en mucho rato tornarla rehacer y formar escuadrones, por

    diligencias ordinarias v extraordinarias que se hicieron, y gran trabajo del General de la artillera, Maestre de

    campo Monroy, Pinatelo y Xedler, con lo cual se dio tiempo al enemigo rehacerse cuanto pudo y sin que nadie se

    lo estorbase; y si le quedara valor entonces para acometernos, juzgo que nos deshiciera, por hallarnos desordenados,y cabo de este trabajo se hizo frente al enemigo y se rehizo nuestra gente. Y marchamos la vuelta de donde estaba,

    y fu tan poca, as de la caballera que pudo recoger el barn de Molingen y el eniente General, como de la

    infantera, que no fu bastante para acometerle al enemigo y acabarle de deshacer, el cual, cobrando su artillera y

    disparndonos algunos caonazos nuestros escuadrones, tom su marcha bien cerrada, encaminndose la vuelta

    del bosque del camino de Rotoba, siguindole algunas pequeas tropas de nuestra caballera que haban quedado y

    nuestra infantera en escuadrones su vista, le fuimos costeando hasta que se fu alargando mucho; con que despus

    nos fuimos retirando al puesto de donde habamos salido aquella maana21.

    Assim, a cobia dos soldados de Castela ao pilhar o campo abandonado pelos portugueses teria

    permitido uma reorganizao das tropas j derrotadas. O contra-ataque lusitano ter-se-ia limitado retomada das peas de artilharia. Em seguida, eles teriam bombardeado os desorganizados castelhanose partido em fuga acelerada, perseguidos por tropas da cavalaria do baro de Molingen.

    Na relao portuguesa que foi tomada como modelo de comparao, os acontecimentos da batalhaso tratados de modo bastante diferente. Afinal, o embate foi descrito por inimigos que se enfrentavammaterialmente e seria estranho encontrar a mesma descrio em ambos os relatos.

    Estava a nossa gente to cortada pela do inimigo, que quando comeou a melhorar-se, nem se podia servirdos piques, nem dos mosquetes, e arcabuzes; circunstncias que todas mostram com evidncia, quanto o valorexcelente pode em muitos casos ser superior a toda a m fortuna. Assim o mostrou Mathias de Albuquerque,

    e os que nisto o acompanharam, porque sem embargo de se verem reduzidos a estado, que quaisquer outrosnimos, ainda que fossem valorosos, se descompuseram, e procuraram s algum meio para salvar as vidas, o nofizeram, antes aconselhando-se com o General da artilharia, e com os Mestres de Campo Luis da Sylua elles,

    Joo de Saldanha, Francisco de Mello, e Martim Ferreira, resolveram todos pelejar espada, no havendoj ento dez soldados compostos, e unidos, e com esta resoluo investiram ao inimigo espada, pelejandodivididos como estavam, com to deliberado valor, que lhe tornaram a ganhar a artilharia, e bagagens, e lhemataram tanta gente, que o obrigaram a largar o campo, e ir se retirando descomposto contra Guadiana, quedista mais de uma lgua do lugar da batalha, deixando toda esta campanha coberta de corpos mortos e armas,porque como a clera dos nossos, com o aperto do perigo, se refinou, rompeu com fria inexorvel, e nenhumprisioneiro tomaram, pelejando to encarniadamente, que a ningum concediam vida. Quando o inimigo

    chegou ao Rio ia j desacordadamente fugindo, porque s nove tropas da sua cavalaria, e trs esquadres deinfantaria dos nove com que entrou na batalha, se podero ali formar para o passarem unidos, e muita gentese lhe afogou com a pressa; que se davam em passar da outra banda para se salvar 22.

    Alguns poucos e motivados portugueses foram capazes de reverter um dramtico revs militar,amparados apenas em sua determinao. Ao contrrio do relatado por Castela, no s eles recuperaramtodos os seus canhes, como puseram em fuga acelerada as tropas fiis a seu antigo rei. O desacordo

    21CALDERON, Serafn Estbanes, d. De la conquista y prdida de Portugal, op. cit. p. 311-312. Outro impresso, contudo,destaca que sequer isso ocorrera: omararse al enemigo quinhetos cauallo para poder seruir, tres piezas de artilleria, otros

    dizen seis. Ciento y cinquenta carros con el tren de la artilleria, y bagaje riquisimo. Relacion de la vitoria qve tuuieron lasarmas, del Rey nuestro Seor contra el tyrano de Portugal, ajustada de las personas, que han venido de Estremadura, y de lascartas que ha auido de aquella Prouincia. Salamanca: Antonia Ramirez, 1644. p. 3.22Relaam dos Gloriosos Sucessos, op. cit. p. 17-18.

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    quanto ao trmino da batalha no poderia ser maior: para as relaes de Castela, os portugueses fogemperseguidos pelos castelhanos; para as relaes de Portugal, os castelhanos deixam o campo perseguidospelos portugueses.

    ***

    Em qualquer batalha daquele tempo, e de outros, sempre foram feitos prisioneiros. Em princpio,o vencedor aprisionava soldados derrotados ou vencidos e os trocava por soldados seus ou por dinheirovivo, bens mveis etc. Assim, o registro dos soldados nesta batalha alcana uma dimenso bastanteimportante quando se leva em considerao o fato de os castelhanos, ao menos em suas relaes da ba-talha, apresentarem um elenco de prisioneiros portugueses. Afinal, prender combatentes coisa prpriade vencedores.

    Logo aps a batalha, sai publicada em Sevilha uma carta que o marqus de orrecusa teria enviado ad. Felipe IV, no prprio dia 26 de maio, mesmo no tendo sido testemunha dos acontecimentos, em que

    ele afirma terem feito muitos prisioneiros portugueses: los prisioneros es grande cantidad, y entre otros,son el hijo del General de la Cavalleria, el Conde de Fiesco, um Coronel Aleman, um eniente de Maesse decampo general23. Outros impressos j citados fornecem lista mais detalhada.

    Os lusitanos reconheceram a priso de diversos dos seus no embate de Montijo j desde a Relaamdos gloriosos svcessos. O problema exposto de modo a certificar o leitor da normalidade de uma situaoque deveria ser invertida; afinal, quem vence aprisiona, no aprisionado. O autor do texto expe esseproblema do seguinte modo:

    E dos soldados se averiguou pelas listas depois do exrcito recolhido, que faltavam novecentos, mas entramneste nmero muitos dos bisonhos do tero novo que fugiram, que seriam mais de trezentos, e pouco menos

    de outros tantos, que o inimigo levou presos, e com estes forma o Conde Fiesco francs, o Mestre de CampoEustachio Pique, Dom Diogo de Menezes e Ferno Pereira, Capites de cavalos, Manoel de Saldanha, Jorgede Mello filho do General da cavalaria, e Dom Francisco de Almada Capites de infantaria, e outros trs, ouquatro capites, que foram presos depois de muito feridos, pelejando na primeira refrega24.

    AApologiade Lus Marinho de Azevedo, escrita em setembro, trata da priso em termos bastantediferentes. Seu texto era obra de controvrsia contra escritos de Castela e no faria sentido expor essamatria sem detalhar o que teria movido os bravos portugueses a carem aprisionados pelos inimigos:

    Lo cierto es que en la [batalla]de Montijo nos llevaron ducientos prisioneros la mayor parte bisioos, que viendosemuchos dellos heridos, y la confusion de nuestro exercito, entendiendo que estava de todo perdido, dejando la

    batalla, encaminaron a Lobon, y alavera pensando que eran lugares nuestros, y esta fue la causa de aver tantos

    prisioneros25.

    Azevedo reconhece bem o problema e busca justificar e resolver a contradio com exemplos histri-cos: no es esta la ves primera, que a un exercito vencedor, le tomo el contrario prisioneros con su cavalleria26.

    23 Copia de Carta que el excellentissimo seor Marques de orrecusa embio a su Magestad. Sevilha: Juan Gomez de Blas, 1644.24

    Relaam dos gloriosos Svcessos, op. cit. p. 19-20.25AZEVEDO, Luiz Marinho de. Apologia militar en defensa de la victoria de Montijo contra las relaciones de Castilla, ygazeta de Genoba, que la calumniaron mordaces, y la usurpan maliciosas. Lisboa: Loureno de Anveres, 1644. p. 20.26Ibidem.

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    Na verdade, a ao dos combatentes remete diretamente o leitor sua condio ptria, de maneiraa convenc-lo de que aqueles que estavam no campo de batalha se identificavam com o prprio reino eseu povo. Assim, a emulao do valor patritico no se limita ao soldado, mas feita de forma a con-firmar a superioridade de uma populao inteira que passa a ser apresentada como de to nobre valor

    quanto seus governantes o so de ttulo. A origem social passa a importar menos, pois o que se objetiva a formao de uma opinio pblica que facilite a consolidao do projeto poltico do Bragana e auxi-lie na sua defesa. Essas caractersticas so observadas em relatos sobre diversas batalhas, como em umarelao sobre os eventos de abril e maio de 1644:

    Est no termo de Vila de Serpa uma aldeia de poucos vizinhos chamada a Aldeia Nova fortificada com suastrincheiras, e guarnecida com uma companhia de gente paga. Saram os inimigos de Paymogo, Alcaaria,Serra, e Arouche com trs tropas de cavalos, e trezentos infantes para roubarem algum gado, que os destaaldeia tinham, e assim levaram todos os que acharam vista do lugar: desmandou-se um dos castelhanos decavalo, e o alcaide da aldeia lhe atirou uma pedrada, de que o derrubou desacordado, e correndo a ele o matou

    com uma faca, e subindo no seu cavalo foi dar aviso ao alcaide-mor de Serpa, o qual acudiu com grande pressaao socorro, mas j a tempo que o inimigo se tinha recolhido com o gado. Os moradores da aldeia quandoviram que os inimigos lhe levavam seu remdio, imaginando que era menos o poder contrrio, foram emalcance dos castelhanos como lees furiosos, e sendo vinte e cinco somente se empenharam com eles de sorteque para salvarem as vidas lhes foi forado o pelejar to desesperadamente, que mataram dos castelhanosvinte e sete, morrendo dos nossos os treze e escapando os doze muito feridos. Foi muito honrado, e digno dememria pela desigualdade, que havia no nmero da gente castelhana ao dos nossos portugueses, pelejandomais a desesperao de sua perda, que algum bom discurso que os movesse a faco to temerria27.

    No h nenhuma referncia condio social dos 25 portugueses que realizaram essa surpreendente

    empreitada. De fato, o que importa a demonstrao do esforo dos lusos no enfrentamento dos cas-telhanos. Nenhum nobre, fidalgo ou mesmo homem de guerra nesse confronto: s h moradores e oalcaide da aldeia. Eles defendiam seus bens, seus remdios, contra seus inimigos de sempre, que agoralhes roubavam armados.

    O tema recorrente nas relaes portuguesas. Pelo mais comum, o anonimato cumpre esse papel,estimulando a identificao dos combatentes com todos os portugueses. H relaes em que nenhumdos que resistem ao ataque inimigo identificado por seu nome ou condio social, outras que contama resistncia da populao de uma vila ou aldeia, em que os combatentes so identificados por suas fun-es locais (padeiro, campons, religioso etc.), como a relao da defesa de Santo Aleixo28.

    Ocorrncias como essas so indcios de que estes textos no eram voltados a um pblico seleto. Aocontrrio, eram minuciosamente preparados para um pblico abrangente e deviam ser adequados a pes-soas com diferentes nveis de alfabetizao e leitura29. Afinal, aos envolvidos com a publicao dos tex-tos importava tratar da coeso dos portugueses, de todos, independentemente de sua condio social.

    27Relao verdadeira da entrada que Governador das armas Mathias de Albuquerqe fez em Castella neste mes de Abril anoprezente de 1644 & Sucesso de Montijo. Lisboa: Paulo Craesbeck, 1644. Sem paginao.28

    AZEVEDO, Lus Marinho de. Relaam de duas Vitorias que os moradores da aldeia de S. Aleixo, & das villas de Mouro,& Monsaras alcanaro dos castelhanos.Lisboa: Jorge Rodrigues, 1641.29 MARQUILHAS, Rita.A faculdade das letras. Leitura e escrita em Portugal no sc. XVII. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000.

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    No que respeita batalha que mais importa aqui, Montijo, a abordagem dos temas religiosos,tanto no que toca a uma possvel interveno divina direta, quanto ao respeito pelas igrejas em terrasadversrias, sempre um dos pontos mais importantes relatados. Ao invadirem Castela, os portuguesestinham por objetivo inicial tomar a vila de Albuquerque, conforme j foi dito. Uma vez constatada a

    inviabilidade da empresa, as tropas portuguesas se voltaram a arrasar diversos povoados nas proximi-dades, sendo o ltimo deles Montijo. Antes disso, ao passarem por Vilar del Rey, as tropas portuguesasteriam arrasado uma igreja que servira de refgio para os castelhanos30.

    A relao que analisamos faz ressalvas que poderiam suavizar a notcia do incndio do templo. Nolugar de Membrilho, ainda no mesmo texto, os lusitanos teriam preservado o edifcio religioso:

    dentro de quatro horas foi assaltada, entrada, saqueada, e queimada, sem lhe ficar uma s casa, e somenteescaparam os que se recolheram a uma Igreja, que estava bem fortificada, que da mesma maneira lhes valera,ainda que o no estivera, porque a venerao dos lugares sagrados aplaca logo a fria dos nossos31.

    Apenas a casa de Deus pareceu tocar os coraes desses portugueses. Porm, o mais curioso no a venerao lusitana pela igreja ter salvado alguns poucos castelhanos, mas o efeito discursivo dessapassagem; afinal, depois de ter arrasado um templo em outra vila, os portugueses pouparam os inimi-gos recolhidos naquela de Membrilho. Na descrio do ataque Villa Roca de Almananete, o chefedas armas portuguesas, Mathias de Albuquerque, teria poupado o edifcio religioso por no ocorrer alios mesmos acontecimentos de Vilar Del Rey32. Com isso, ficavam ento bastante comprovados osvalores acertadamente cristos destes soldados que, em vez de devastarem lugares santos, os preservame cuidam, salvo quando serviam de fortalezas para seus inimigos, quando eles trocavam sua funoreligiosa por outra militar. Nesses casos, o argumento deixa claro que, antes de ser perverso atacar osque de dentro resistem, erro de quem se vale desses lugares para se proteger das armas portuguesas.

    ***

    A notcia do desfecho da batalha de Montijo correu rapidamente nos territrios da Monarquia.Embora as relaes de Castela no tragam a data da publicao, alguns elementos nos permitem asse-gurar que o assunto tomou importncia em Madri ainda antes do dia 31 de maio, conforme se podeverificar nosAvisosdo cronista Jos de Pellicer de ovar. As informaes ali recolhidas mostram umembate definitivamente ganho pelas foras da Monarquia sob o comando do baro de Molingen, com3.500 inimigos mortos e a captura de onze peas de artilharia33. Nas suas anotaes seguintes, de 14de junho, Pellicer de ovar precisa suas informaes da batalha, aps avisar que lhe viera uma relaodo conflito34.

    30 Mathias de Albuquerque (...) saindo de Campo Mayor pessoalmente com seis mil infantes, e mil e cem cavalos e seispeas de artilharia, marchou contra Villar Del Rey, que tinha quatrocentos vizinhos, e a rendeu e arrazou derrubando-lhea Igreja porque servia ao inimigo de fortificao. Relaam Verdadeira, op. cit. p. 12-13.31Ibidem, p. 10.32 O general (...) mandou queimar a Vila, e conservar a Igreja, sem que se tocasse a cousa alguma dela, porque noconcorria nesta a mesma razo, que na de Vilar del Rey. Ibidem, p. 13.33 Haviendo precedido algunas hostilidades entre los nuestros i los portugueses, i quemado el portugus un lugar llamado Zarai nosotros el de Villarmayor, quiso el portugus poner sitio sobre Albuquerque. Y ayer por la maana, vino aviso como, haviendosabido este desgnio el de orrecuso, trato de prevenir el dao; i contandole el passo, vino com el a las manos. Consegui uma

    victoria no menos famosa que la de Lrida. Matole 3500 hombres, prendio 600 cavallos i once pieas de artilleria. Muri suGeneral de la artilleria, i huyo Mathias de Albuquerque, su capitan general, yendo em su alcance el seor Baron de Molingen,nuestro Maestre de Campor Genral. OVAR, Jos de Pellicer de.Avisos. Paris: Editions Hispaniques, 2002. v. I, p. 515.34Cf. Ibidem, p. 519.

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    Se as relaes, cartas e outros informativos de Castela saram rapidamente da prensa, o materialportugus demorou mais um tanto. Alm disso, no se encontram relaes curtas, de quatro ou de oitopginas, apenas uma relativamente grande, de 36 pginas e preo no indicado, a Relaam dos gloriosossvcessos, j citada. Esse texto foi enviado publicao em 11 de junho e saiu da prensa depois de 14 do

    mesmo ms; tempo incomum na publicao das relaes de guerra e um tanto suspeito, tendo em vistaque se tratou do primeiro grande enfrentamento da guerra e da presteza das publicaes do inimigo.

    A Relaammais parece uma crnica que um relato de combate. Ela abre seu contedo usando umvocabulrio incomum nestas publicaes, mais afeto s profisses letradas que aos leitores vidos deinformaes ligeiras: fala-se de direito das gentes, das conquistas do ultramar, dos antigos reis de Por-tugal, da defesa da liberdade da ptria etc. Ainda trata de outros enfrentamentos com os castelhanos naBeira e em outras partes do territrio, ocorridas em abril e maio. A Relaamtermina com uma passagemque justifica o atraso na publicao pela certeza na veracidade dos acontecimentos narrados:

    Ainda que a relao da batalha de Montijo era desejada de muitos, pareceu que se devia deter alguns dias

    para que neles se pudesse apurar a verdade de todas as circunstncias que dela aqui se referem, porque comonestas matrias as primeiras novas sempre so confusas e vrias, no era bem que relao de coisa to grandese estampasse menos comprovada do que convinha. Para o que aqui se escreve se juntaram as mais apuradasnotcias que se puderam alcanar por avisos de pessoas que se acharam presentes, e tinham obrigao deescrever a verdade, e o fizeram depois de a averiguar bem35.

    De certa forma, o texto foi composto e publicado para contraditar os rumores que o inimigo difun-dia dentro e fora de Portugal para enfraquecer os nimos, manter a desconfiana entre os portuguesese debilitar as alianas que o reino recm-liberto vinha fazendo com a Catalunha, a Frana, os PasesBaixos, a Inglaterra e a Sucia36. O problema no era pequeno e envolvia um esforo incomum do novo

    governo em manter a confiana, j adquirida, na capacidade militar portuguesa entre os inimigos daMonarquia Catlica.

    De fato, Castela no descansou: certamente depois do dia 2 de julho de 1644, saiu publicada em Se-vilha uma Relacion en Octavas Heroicas, composta por Antonio Pardo de Gayoso, capito de armas, queteria participado do combate37. O editor era Juan Gomez de Blas, cujo importante papel na imprensasevilhana j foi estudado recentemente38.

    Neste movedio terreno da viabilizao da vitria em solo estrangeiro, para o novo governo portu-gus um sucesso na primeira grande batalha contra o castelhano viria a calhar, ainda que ele fosse pro-clamado tambm pelo inimigo. De fato, to logo o governo de Portugal assentou sua prpria verso dabatalha, foram publicadas duas relaes em latim, evidentemente destinadas a um pblico extrapenin-sular. Os textos so relatos sumrios, elaborados a partir daquilo que ficou dito na Relaam dos gloriosossvcessos. Uma delas saiu sem indicao de autor e sem cpia das licenas. A outra foi escrita por Franciscode Santo Agostinho de Macedo e saiu publicada depois de 2 de setembro de 164439. Portugal disputavasua vitria sobre os castelhanos na diplomacia europeia, no mais em Lisboa, ou nos campos de Montijo.

    35 Relaam dos gloriosos svcessos, op. cit. p. 34.36Ibidem, p. 23.37GAYOSO, Antonio Pardo de. Relacion en Octavas Heroicas, En que contiene todo lo real y verdadero del sucesso de la batalladel Montijo, auendose primero inuestigado las noticias mas indiuiduales: juntamente con aquellas de que fue testigo de vista,como quien se hall en la batalla.Sevilla: Iuan Gomez de Blas, 1644.38

    Cf. CALA, Carmen Espejo. El impressor sevillano Juan Gomez de Blas y los origenes de la prensa peridica. Zer, n. 25,p. 243-267, 2008.39 Cf. MACEDO, Francisco de Santo Agostinho de. Montigiensis de Castellano Hoste Victoria, auspiciis invictissimi Regis

    Joannis IV Portugaliae XVIII. Lisboa: Antonio Alvarez, 1644 (publicada depois de 2 de setembro de 1644).

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    O governo da Monarquia Catlica tambm no deixou de lado as possibilidades que se abriam emsua diplomacia com uma vitria no primeiro grande combate com as foras rebeldes do Bragana. Em

    junho de 1644, a Gazzetta di Genovapublicou uma notcia da vitria das foras comandadas pelo mar-qus de orrecusa sobre as de Mathias de Albuquerque. A iniciativa compunha o quadro de afirmao

    do vigor castelhano j divulgado nas relaes de Madri, de Salamanca, de Sevilha e talvez ainda poroutras.

    bastante curioso constatar que a imprensa peridica portuguesa, inaugurada na Restaurao,simplesmente ignora o conflito de Montijo. A Gazetasequer trata da matria em seus nmeros de maioe junho, nem nos de julho e agosto. Certamente, essa aparente indiferena se deveu aos conflitos que le-varam supresso das notcias do reino naquele peridico, o que vem a somar evidncias, ainda que sejapela ausncia de registro, de que a vitria portuguesa foi fabricada entre o campo da batalha e Lisboa.

    Neste novo campo de embate, o das publicaes, respondeu Portugal s iniciativas castelhanas pelapena do capito Lus Marinho de Azevedo, um j celebrado autor de relaes de guerra. Sua resposta a Apologia Militar em Defensa de La Victoria de Montijo contra las relaciones de Castilla, y gazeta de

    Genoba, que la calumniaron mordaces, y la usurpan maliciosas, publicada em 15 de outubro de 1644, masescrita antes de 15 de setembro40. rata-se, de fato, de uma obra de controvrsia em que Lus Marinhorebate as relaes de Castela sobre o feito de Montijo. Ao todo, ela conta 24 pginas.

    Sua carga descritiva bastante reduzida, afinal, trata-se de uma apologia, de um texto destinado adefender a vitria portuguesa em controvrsia com os textos de Castela e com a Gazzetta di Genova.No se tratava de um informativo. Outra diferena bsica: a lngua. O autor no perde tempo em suanarrativa e explica, j no comeo, a razo pela qual adotou o castelhano em seu texto: y para que loentiendan mejor se lo escriviremos en su lengua materna41, como se o problema fosse a compreenso dalngua portuguesa por parte dos castelhanos.

    Esse impresso carrega ainda certa carga de erudio no registrada nos demais impressos sobre o

    mesmo feito. Na verdade, esse texto no est somente dirigido a concretizar uma realizao do povoportugus, est ainda orientado a debater diretamente com os defensores das outras verses. Assim,fica seguramente apontada uma disputa poltica voltada a solucionar um problema que comumente sepensa ser apenas blico. O prprio Azevedo deixa isso expresso em palavras:

    pues no puede ser mayor para nuestra reputacion, que vender Castilla por suya la victoria de Montijo, theatro fatal

    de la noblea de Estremadura; hablando con estylo repugnante a toda urbanidad, verdad, y noticias, affectando

    jactancias, y divulgando uanidades. Es la defensa cosa natural, y saben los Portuguezes disponerla con espada, y con

    la pluma, sustentando con las armas su justicia, y con las letras el derecho della, que eran las leyes de que se valia

    Pompeyo en Plutarcho42.

    Azevedo, de fato, j havia mostrado um tipo de alinhamento bastante expressivo no conjunto dosescritos da Restaurao. Suas relaes de guerra revelam que se trata de autor que sempre apresenta osfeitos portugueses resultantes da ao da gente comum das cidades, em defesa de seus bens e de sualiberdade, ou do empenho de seus soldados. No se trata de autor engajado na celebrao de um chefemilitar ou outro que, por suas virtudes especiais, consegue uma vitria miraculosa. Ele exalta a ao doschefes, mas tambm a dos homens que combatem! Para Lus Marinho de Azevedo, o reino se libertoude Castela; no foi libertado por d. Joo de Bragana. Mais que tanto, ele deixa claramente expostaa participao da populao dentro das fronteiras do reino, quando narra que o novo rei saiu a p do

    40 Cf. Lisboa: Loureno de Anvers, 1644 (publicada em 15 de outubro de 1644).41AZEVEDO, Lus Marinho de.Apologia Militar, op. cit. p. 2.42Ibidem.

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    palcio e se dirigiu S de Lisboa, acompanhado de toda a corte, aos olhos das gentes da cidade 43. Aofinal, Azevedo completa seu elogio aos muros da ptria:

    Despues de aver respondido a las calumnias de nuestros enemigos nos quedava largo campo, para encarecer con los

    hyperboles mas levantados las acciones particulares del Governador de nuestras armas, y de las de mas personasde puestos superiores, Capitanes, y officiales que las mandaron, y exercitaron en batalla tan bien peleada: per

    temiendo la pluma el caudal que demanda tanto empeo retrocede al querer hacerlo por evitar las queixas de los

    que en la estimacion de sus meritos afianan la singularidad de sus hazaas, que est mas obligado a referir el

    que escriviere historia. Mudando de estylo hablo con vosotros soldados de menos nombre, que pues en tan gallarda

    accion mostrastes ser los muros de vuestra patria; como Agesilao publicava por excellencia de los lacedemonios. Si

    falta siempre escriptor de vuestros hechos, el ignorar vuestros nombres me priva de que no lo sea, con elogios devidos

    a la fama que os immortaliza; para que la gloria que se compro con vuestra sangre, no se adjudique a algunos que

    en ella tubieron menor parte44.

    O prprio autor explica o abandono da gravidade de seu texto, mudando de estilo, por fora talvezde um desejo de impactar os muitos nobres e fidalgos portugueses que, por fidelidade ou inseguranaquanto ao projeto poltico brigantino, permaneceram em Madri obedientes a Felipe IV. Percebe-seento que a interveno poltica feita por meio destes impressos, e ainda pelos impressores, era tambmvoltada ao pblico lusitano, configurando assim importante arma poltica no estabelecimento do novogoverno de Portugal.

    Mas o problema principal naquela altura dos acontecimentos era o enfrentamento dos escritosde Castela. Em especial, o contraste apresentado por Azevedo s Octavas Heroicasde Antonio Pardo deGayoso.

    O autor das Octavasdedica alguns versos em agradecimento a Deus, ao marqus de orrecusa e

    ao baro de Molingen, a quem o marqus atribuiu a misso de expulsar as tropas de Mathias de Albu-querque. Dirigindo-se a Deus, ele lembra a profanao da igreja feita pelos portugueses e reconhece aderrota lusitana como justo castigo por a terem queimado:

    Vos solo sois el justo y todo santo,

    Castigando en sacrilegia indecencia,

    Lo que ofreceis en tan seuero exemplo,

    A quien profana vuestro sacro emplo45.

    al e qual a Relaamportuguesa, a vitria atribuda vontade divina, como se o Deus dos caste-lhanos no fosse o mesmo! Azevedo avana sobre as Octavasusando recursos literrios bastante eficien-tes, especialmente a ironia, quando aborda o espinhoso problema do nmero de combatentes de cadalado. O sargento-mor de Castela afirmou que as tropas seriam da ordem de 1.200 infantes castelhanosamparados por 1.300 cavalos e quatro peas de artilharia, j as de Portugal somariam 6 mil infantes,1.500 cavalos e seis peas de artilharia, alm dos carros de bagagens e butim das vilas devastadas46. Masos esquadres de infantaria formavam em quadrados compactos para as batalhas daquele tempo, e cabiaexatamente ao sargento-mor a ordenao dos homens nessa forma especfica. Assim, ele deveria extraira raiz quadrada do total para definir o nmero de soldados em cada linha do esquadro. O capito por-

    43

    Ibidem, p. 22-23.44 Ibidem, p. 23.45 GAYOSO, Antonio Pardo de. Octavas Heroicas, op. cit. p. 12.46 Ibidem, p. 3, 4, 7.

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    tugus ridiculariza o sargento lanando mo de seus conhecimentos de aritmtica, fazendo trocadilhoscom o nome de seu oponente e com elementos da mitologia grega:

    Dice tambien el mayor de los sargentos, que sus infantes eran tres mil, y mil, y trecientos los cavallos, y que los

    nuestros eran mil, y quinheientos, y seis mil infantes, y si no sabe mejor Arismetica para formar esquadrones dehombres, que numero de cavallos sabr para sacar la raiz quadrada: pero como devi de contarlos con nubes pardas

    en los ojos, o con antojo de larga vista no acert bien los guarismos: si no es que el dicho poeta Pardo bevio en la

    fuente del cavallo Pegaso tales spiritus cabalinos, que pone, y quita cavallos con la facilidad, que el lo sabe hacer47.

    De fato, aApologiano era um informativo ligeiro como os muitos que Azevedo escreveu nos pri-meiros anos desta guerra. Aqui, ele no s se refere erudio militar que obriga certo conhecimentoaritmtico, mas tambm ao rio Hipocrene que, segundo a mitologia, nasceu de um coice do cavaloPgaso e cujas guas tornariam poeta qualquer um que as bebesse. Azevedo sugere que os nmeros deGayoso so mais liberdade potica que fato.

    Mas, como o problema no se restringe aritmtica, Gayoso avana uma descrio do confronto.O final da batalha apresentado pelo poeta de Sevilha faz depender do descuido de um nico soldadode Castela todo o destino da artilharia portuguesa capturada e, com isso, o elemento bsico utilizadopelos escritores de Portugal a seu favor:

    Ganose de vez su Artilleria,

    dezandola por nuestra retroguarda,

    sin que aduirtiesse nuestra Infanteria,

    retirarla, ponerla alguna guarda:

    Vn traydor de los nuestros, que serra

    de lealtad sospechosa, si bastarda,por lleuarse las mulas que la tira,

    queda oluidada, y nadie la retira48.

    Ao contrrio da Relacion Verdaderacastelhana, Gayoso culpa um soldado, no nomeado, por seudescuido em deixar a artilharia levando os animais. Contudo, uma curiosa contradio se apresenta:se os canhes encontravam-se agora sem as mulas que os puxassem, como foram deslocados pelos por-tugueses, que, alis, j tinham perdido seus haveres? Nenhum relato portugus ou castelhano explicacomo eles conseguiram lev-los, uma vez que j no contavam com auxlio de seu gado. Porm, para asOctavas, a infmia portuguesa permanece no s pela derrota material, mas tambm pela fuga desorde-nada que os fez perder muitos ganhos, salvo os canhes.

    Azevedo desperdia essa contradio em favor de um desfecho que valoriza o comando portugusda batalha. As decises do governador das armas se do amparadas em um profundo conhecimentodasArtes Militares, que Azevedo d mostras de tambm conhecer. Segundo o capito, aps uma brevereunio dos comandantes ficou decidido que

    avian de hacer aprieto semejante: siguieron el parecer del tragico Seneca, que en los males ciertos se avia de tomar

    el camino mas arriscado. Este lo fue sacar las espadas, y animando a los soldados, exortalos a hacer lo mismo, por

    consistir en la resolucion de defenderse con ella en la mano, el morir honrados, haciendo las ultimas pruebas del

    47AZEVEDO, Lus Marinho de.Apologia Militar, op. cit. p. 25.48 GAYOSO, Antonio Pardo de. Octavas Heroicas, op. cit. p. 10.

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    balor Portuguez, ya que no les quedava mas esperana de remedio, que la de su propria virtud y fureas: considerado

    el sitio en que se hallavan para pelear como el acito encarecia del balor de los soldados Romanos en otro aprieto 49.

    Mesmo numa passagem catrtica como essa, a erudio que estrutura o argumento diferencia a

    Apologiadas relaes de guerra: aqui, a fria douta. O autor concilia a ao dos soldados com a sabe-doria de Sneca e de cito e em escolhas acertadas que soam frias e lgicas. A essa reao das tropasportuguesas seguiu uma reestruturao das formaes e, consequentemente, a vitria final. A escolhadesses argumentos com certeza ocorreu em funo do carter de rplica assumido pelo impresso. Apesardo debate promovido por Azevedo e pelas grandes divergncias dos fatos narrados, o que nos mos-trado pelo conjunto de textos uma histria resolvida, embora com duas verses bastante diferentes. necessrio sublinhar que todos esses textos so conformadores de duas histrias consistentes sobre ummesmo evento.

    Entre os autores portugueses, tambm outros se dedicaram publicao de crnicas da guerra comCastela naqueles primeiros anos do conflito. Joo Salgado de Arajo, por exemplo, adiou a publicao

    de sua crnica dos primeiros anos da guerra em funo do andamento dos combates, de questes outras,mas tambm da importncia da controvrsia sobre o resultado da batalha de Montijo. O livro Sucessos

    Militares das Armas Portuguesasobteve as licenas de publicao ainda em abril de 1644 (22 de abril,precisamente); mas a obra s veio luz em 17 de dezembro aps uma segunda rodada de aprovaes.O problema que tratamos aparece logo no incio da narrativa:

    Ainda que a batalha de Montijo anda pontualmente escrita numa relao de grande crdito, me pareceu iriafalto este papel sem ela, pela terribilidade e esforo valoroso, que nossa gente nela mostrou no cabo de algumtempo, que pisavam terras do inimigo, sem haver algum que lhes ousasse sair, carregada de muitos e ricosdespojos que traziam. O qual poder ser causa dos castelhanos desbaratar e vencer nosso exrcito, mas eles

    no prestaram para isso, nem puderam aproveitar-se da ao, remeteram o crdito de suas armas ao estrondodos seus gazeteiros, com s isso se consolaram das muitas mortes que padeceram50.

    A relao de grande crdito certamente o texto j citado, a Relaam dos gloriosos svcessos. Mas foio estrondo dos gazeteiros de Castela que lhes salvou o crdito nas armas, e no os feitos de armas quesustentaram seus animados impressores. No segundo semestre de 1644, ainda se disputava a vitria demaio em Montijo.

    ***

    Quando o assunto ainda estava quente, nos meses que seguiram a maio de 1644, a batalha viroumatria para o periodismo emergente na Europa de ento e para a campanha publicstica dos pasesque se opunham Monarquia Catlica. A lgica da viabilizao da vitria em Montijo por meio dasrelaes informativas ultrapassou as fronteiras de Portugal, chegando Frana e Catalunha, como jfoi dito. Expressivo seu desembarque na Inglaterra ainda em 1644, com a publicao de um folhetosobre a polmica. O texto inicia com uma passagem que declara exatamente o ponto que mais interessano presente trabalho:

    49AZEVEDO, Lus Marinho de.Apologia Militar, op. cit. p. 11.50ARAJO, Joo Salgado de. Sucessos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real Aclamao contraCastela. Lisboa: Paulo Craesbeeck, 1644.

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    It is so fatall to the spaniard to be beaten by the portuguesses, that not content to overcome by force of armes, they

    invent new wayes to augment their own overthrows: and this appeareth evident by their late publishing a mighty

    victory which they (forsooth) had newly obtained over the portugesses in the skirts of Spaine; whereas within very

    few days after this lowd lyes publication, there arrived here most certain newes of the selfsame defeat given in the

    same time and place, unto the spaniards, by the portuguesses, which they had vapoured to have bin given by thenunto the portuguesses, so that by this we see the Spaniards are not content to be quelled by the sword of the portugall,

    but they must needs also be confounded by their own lies, to make their shame the greater51.

    Este folheto certamente foi publicado depois de junho de 1644. Afinal ele faz referncia elevaode Mathias de Albuquerque a conde de Alegrete, o que ocorreu no ms seguinte batalha52. A apressadaatribuio desse ttulo de nobreza soa forte como mais um elemento de viabilizao da vitria portu-guesa do que uma merc sobre servios prestados monarquia portuguesa. No deveria ser comum umfidalgo militar de vida bastante conturbada, tendo estado preso pelo antigo governo castelhano pelaperda de Pernambuco e, depois de julho de 1641, novamente preso por suspeita de traio, receber um

    ttulo de nobreza com tanta rapidez aps uma vitria militar controvertida. importante lembrar quea atribuio de ttulos de nobreza era prmio maior na sociedade portuguesa daquele tempo.

    Algumas dcadas depois, as histrias da retomada da independncia portuguesa acessaram as infor-maes ento disponveis sobre a batalha. Enfim, a guerra fora vencida pelos lusitanos e aquela que teriasido a primeira vitria se apresentava como um elemento slido para propagar a constncia portuguesaem seus esforos de reconquista da liberdade. O conde da Ericeira, em sua clssica Histria de PortugalRestaurado, publicada ainda no sculo XVII, reproduz o contedo bsico da Relaam, agregando dis-cursos patriticos e regalistas atribudos a Mathias de Albuquerque e ao baro de Molingen, coagulan-do uma verso j bastante conhecida e debatida dos acontecimentos.

    Mas o assunto no era apenas lusitano ou ibrico e o feito portugus, que demorou quase trinta

    anos para se efetivar, interessava sobremaneira aos inimigos da Monarquia Catlica. De fato, na sriede obras publicadas na Europa, sobressaem as verses que estamos analisando. Por exemplo, na obrado veneziano Giovanni Battista Birago sobre a Restaurao de Portugal, publicada em Lyon, ainda em1646, v-se claramente que o texto da Relaamportuguesa foi praticamente traduzido ao italiano53. Aobra de Birago apresenta-se como um escrito de uma guerra que apenas comeava quando foi editada eno havia nada que sugerisse a definio de seu resultado.

    Mais de vinte anos depois de terminado o conflito, outra obra de autor veneziano sai da prensacontando a histria da Restaurao; trata-se do livro de Alessandro Brandano, Histria delle Guerre diPortogallo, em que as informaes sobre Montijo repetem os ditos de Birago e da Relaamcomentadosmais acima54. importante registrar que, enquanto o primeiro veneziano foi patrocinado pelo rei daFrana, o segundo foi financiado por d. Pedro II de Portugal, filho de d. Joo.

    A Monarquia Catlica, mesmo obrigada a aceitar a independncia portuguesa, perdida a guerra,no deixou de financiar quem contasse sua histria. O rei Carlos II patrocinou a obra latina de GaetanoPassarello sobre a Restaurao, publicada em 168455, que conta verso castelhana da batalha de Monti-

    jo,grosso modo, a mesma que comentamos anteriormente.

    51 Te Reall Victorie of Portugall. Londres: 1644. p. 1.52[the King] creating the general of this victorious armie Mathias de Albuquerque Count of Alegrete, gave him a revenue of4000 ducats a yeare. Ibidem, p. 5.53

    BIRAGO, Giovanni Battista. Historia della Disunione Del Regno di Portogallo dalla corona di Castiglia. Amsterdam:Nicolau Van Ravesteyn, 1647. p. 713-722.54 BRANDANO, Alessandro. Historia delle Guerre di Portogallo, Veneza: Paolo Baglioni, 1689. p. 306-310.55 PASSARELLO, Gaetano. Bellum Lusitanum Ejusque Regni Separatio a Regno Castellenensi. Lyon: Rigaud, 1684. p. 201-206.

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    Ao longo dos sculos seguintes, Portugal contentou-se com reedies da grande obra do conde daEriceira, cujo contedo relativo a Montijo, como vimos, depende do texto publicado em junho de 1644.O tema chega aos nossos dias praticamente inalterado. De fato, boa parte das obras mais recentes repeteo enquadramento de Ericeira, sem maiores consideraes crticas. o caso do livro do general Gabriel

    do Esprito Santo56, publicado recentemente. J Fernando Dores Costa, em seu estudo de h algunsanos, identifica uma controvrsia sobre a vitria de Montijo e adota uma posio que parece aceitar quehouve duas vitrias na batalha: uma primeira, castelhana, ganha no incio do combate, e a segunda, por-tuguesa, quando os lusitanos recuperaram seu armamento pesado. De fato, no esto entre suas preo-cupaes o significado da propaganda na diplomacia e na guerra, e o que isso revela acerca do papelda opinio no desfecho dos grandes conflitos militares do sculo XVII e nesse conflito ibrico 57. Essaguerra, ou qualquer outra, no era apenas um feito de homens armados; envolvia tambm aqueles queos mantinham, que participavam dos acontecimentos distncia, e cuja opinio sobre os feitos blicosera fundamental tanto para a formao do exrcito quanto para a prpria sustentao do governo. Cer-tamente no ser opo radical escrever uma nova histria militar sem considerar a disputa pela opinio

    como elemento central dos acontecimentos.Neste esforo mais recente de analisar a guerra e fixar uma verso dos acontecimentos ligados re-

    tomada da independncia portuguesa, Castela tambm no abriu mo da vitria. Perdera a guerra apsuma srie longa de batalhas importantes em que no era possvel sustentar que vencera, mas Montijocontinuou a ser sua. Com a consolidao da independncia portuguesa foi-se uma parte importantssi-ma de suas conquistas e no caberia disputar por longo tempo a histria de sua derrota, mas no conce-deu a vitria na batalha aos portugueses58. Confirma isso Serafn Estebaez Calderon quando escreveu,no sculo XIX, sobre a conquista e perda de Portugal. Em seu tratado, o autor assegura que Montijo foiuma batalha vencida por Castela; porm, mal vencida, pois permitiu aos portugueses a retomada de suaartilharia e, com isso, a possibilidade da defesa errnea de sua vitria. Em alguns momentos, d. Serafn

    parece escrever no prprio tempo em que os acontecimentos ocorreram59; sua anlise da batalha baseia--se exclusivamente no material castelhano: cartas oficiais, relaes impressas etc. Sua concluso sobre abatalha de Montijo parece emergir diretamente das relaes da poca, num esforo de reviver a batalhae seu desfecho, sculos aps os acontecimentos:

    Albuquerque, quebrantado en sus nimos y en sus fuerzas, hubo de retirarse a Portugal; mas, satisfecho de haber

    cobrado su artilleria, llevo su jactncia hasta atribuirse la victoria. Braganza, porque le importava tambien

    disimular este reves, adopto la prpia mentira, y mando celebrar el sucesso con fiestas publicas en todos sus domnios,

    bien que harto contradijeron aquellas muestras el luto y pesar de que se cubrio Lisboa, con tantas famlias como

    hubo que llorasen alguno de los suyos, muertos o prisioneros en la batalla60.

    Embora a importncia desta batalha tenha praticamente desaparecido ao longo dos sculos, at hojeas interpretaes do acontecido permanecem deste mesmo modo: duas vitrias num mesmo confronto

    56 ESPRIO SANO, Gabriel do.A grande Estratgia de Portugal na Restaurao, op. cit.57 COSA, Fernando Dores.A Guerra da Restaurao. Lisboa: Horizonte, 2004. p. 56.58 O exame mais detalhado da historiografia espanhola sobre suas antigas guerras no consta entre nossas intenes e nemcorresponderia ao escopo deste trabalho. al limitao decorre de opes primeiras do trabalho, concentrando nossasatenes nos estudos portugueses.59 Ya eran transcurridos cuatro aos de guerra, y corria el de 1644, cuando la indignacin de los castellanos, al verse burlados

    por los portugueses, pueblo pequeo y encerrado en un confn de la Peninsula, encendi de nuevo y con ms furor las hostilidades,CALDERON, Serafn Estebaez. De la Conquista y Prdida de Portugal. Madri: Perez Dubrull, 1885. v. I, p. 107.60 Ibidem, p. 124. Aqui, o historiador castelhano praticamente repete o dito de Gaetano Passarello, cf. PASSARELLO,Gaetano. Bellum Lusitanum Ejusque Regni Separatio a Regno Castellenensi, op. cit. p. 206.

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    Carlos Ziller Camenietzki, Daniel Magalhes Porto Saraiva e Pedro Paulo de Figueiredo Silva

    militar. O assunto no fica restrito aos debates de historiadores militares de Portugal e da Espanha mo-dernos: a prpria populao da cidade de Montijo demonstrou seu ponto de vista numa representaopblica envolvendo mais de 250 moradores da cidade h uns poucos anos, conforme j dissemos noincio deste trabalho.

    De fato, nesta altura dos acontecimentos, no sculo XXI, pouco importa a materialidade do des-fecho dessa batalha; salvo para os moradores de Montijo e para os historiadores militares de Portugal.

    J se foi o tempo em que as animosidades ibricas governavam temas da cultura poltica; elas estorestritas ao anedotrio de vizinhos e parecem no ter mais qualquer eficcia. Vive-se hoje a estratgiada submerso de tenses ancestrais num quadro de fortalecimento da unificao poltica continental daEuropa. Assim, o debate sobre a conquista da vitria numa batalha antiga mergulha na obsolescncia. tarefa difcil talvez impossvel averiguar qual verso dos fatos obteve maior credibilidade. Sejacomo for, no ser exagerado dizer que, quem quer que tenha sido seu vencedor material no distantetempo em que ocorreu, a batalha de Montijo foi ganha no grito.