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  • INICIAO

    F O N T I C A E

    F O N O L O G I A Dinah Callou e Yonne Leite

    11a edio

    # COLEO L E T R A S ZAHAR

  • Nascido na Europa na segunda metade do sculo xix, o estudo cientfico da face so-nora da linguagem subdividiu-se a partir dos trabalhos do Crculo Lingstico de Praga nos anos vinte, em duas disciplinas irms: a FONTICA, que se ocupa da descri-o dos sons de um ponto de vista fsico (acstico), assim como de sua produo e percepo, e a FONOLOGIA, que se interessa pela pertinncia lingstica dos elementos sonoros identificados, considerando os sons do ponto de vista de sua distintividade.

    Percebendo lucidamente a interdependn-cia dialtica que se instaura entre funo e realizao concreta de um elemento sonoro, entre forma (fonologia) e substncia (fon-tica), Dinah Callou e Yonne Leite introdu-zem e discutem os principais conceitos e problemas dessas duas faces de uma cin-cia mais abrangente que teria por objeto, como sugeriu Sven hman, a voz humana. Sem privilegiar uma determinada teo-ria em detrimento das demais, as autoras apresentam criticamente as principais ca-ractersticas do estruturalismo europeu e norte-americano, do gerativismo clssico e de suas verses contemporneas, assim como o percurso que vai da fontica arti-culatria e auditiva, de base impressions-tica, moderna fontica experimental.

    A segunda parte da obra dedicada des-crio dos fonemas do portugus, onde so abordados pontos controversos da interpre-tao do nosso sistema fonolgico, quais sejam, a questo do estatuto fonmico das vogais nasais, das vogais assilbicas e da vibrante R, trazendo exemplificao dos nossos atlas lingsticos.

    Especial ateno dada a tpicos como a mudana fontica, examinada luz da teoria da variao, a questo atualssima da notao dos sons da linguagem em sua complexa relao com a ortografia, ou ainda ao campo, praticamente inexplorado entre ns, da fonoestilstica.

  • I N I C I A O FONTICA E FONOLOGIA

  • Dinah Callou Yonne Leite

    Iniciao Fontica e Fonologia

    W - edio

    # ZAHAR Rio de Janeiro

  • Copyright 1990, Dinah Callou e Yonne Leite

    Copyright desta edio 2009: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mxico 31 sobreloja

    20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800

    e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados. A reproduo no autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa

    Edies anteriores: 1990, 1993 (2 ed. rev.), 1994 (3 ed. rev.), 1995, 1997, 1999, 2000, 2001, 2003, 2005

    CIP-Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Callou, Dinah C162i Iniciao fontica e fonologia / Dinah Callou, Yonne Leite. 11 .ed. - 11 .ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

    (Coleo Letras)

    Inclui bibliografia ISBN 978-85-7110-096-1

    1. Fontica. 2. Fonologia. I. Leite, Yonne. II. Ttulo. III. Srie.

    09-2332 CDD: 412 CDU: 81'342

  • Sumrio

    Nota prvia 9

    I O objeto da fontica e da fonologia 11 1. Fontica

    a) A produo dos sons na linguagem humana, 13; b) O aparelho fonador e os mecanismos de produo dos sons, 16; c) O alfabeto fontico, 34

    2. Fonologia a) O fonema, 35; b) Os traos distintivos, 38; c) Fonemas e variantes. O arquifonema, 41; d) Processos fonolgicos, 43; e) Relao grafema-som-fonema, 45

    II A evoluo dos estudos de fontica e fonologia 48 1. Da fontica articulatria aos estudos experimentais 48 2. Do estruturalismo fonologia ps-chomskiana 53 3. Sistemas de traos distintivos 66

    III Descrio fonolgica do portugus 70 1. O sistema consonantal 70

    A interpretao da vibrante 74

    2. O sistema voclico 79 A interpretao das vogais nasais 87

    3. As vogais assilbicas 92 4. Variao fonolgica e mudana 95

  • IV O estado atual das pesquisas em fontica e fonologia no Brasil 101 1. As pesquisas em fontica 101 2. As pesquisas em fonologia 103

    V Domnio da fontica e fonologia: duas aplicaes 105 1 . Estilstica fnica 105 2. Alfabetizao 111

    VI Bibliografia comentada 116 VII Bibliografia geral 118 VIII ndice de nomes e assuntos 123

  • ( ndice das figuras

    Figura 1. Esquema do aparelho fonador 16 Figura 2. Sons egressivos, ejectivos, glotalizados e cliques 1 Figura 3. A laringe vista por trs 19 Figura 4. As posies das cordas vocais 21 Figura 5. Sons orais e nasais 22 Figura 6. Os articuladores 24 Figura 7. As reas de articulao 25 Figura 8. Diagrama das vogais do portugus e do ingls 27 Figura 9. Diagrama das vogais do tikuna 28 Figura 10. As vogais cardeais 28 Figura 11. Sonagrama das palavras rata e reta 52 Figura 12. Carta 12 do APFB (neblina) 81 Figura 13. Carta 11 do EALMG (neblina) 82 Figura 14. Carta 20 do ALP (neblina) 83 Figura 15. Carta 12 do ALSE (neblina, nevoeiro) 84

  • Nota prvia

    Este livro se destina aos alunos de graduao e ps-graduao em lngua verncula ou em lingstica que se iniciam formalmente em fontica e fonologia.

    O que aqui se apresenta fruto de nossa experincia pessoal em cursos individuais e conjuntos dados no decorrer de vrios anos na Faculdade de Letras e no Museu Nacional da UFRJ e de trabalhos de pesquisa com vrios dos temas tratados.

    Os trs primeiros captulos foram construdos de modo a poderem ser usados independentemente. Constantes remisses possibilitam ex-pandir as noes apresentadas em cada captulo.

    Procuramos sempre que possvel usar exemplificao calcada em lnguas do Brasil, quer a oficial o portugus , quer as faladas pelas populaes indgenas que habitam o pas.

    No se privilegiou uma determinada teoria, embora maior nfase tenha sido dada ao estruturalismo do Crculo Lingstico de Praga e ao norte-americano, assim como teoria gerativa por serem estas as correntes em que maior nmero de trabalhos foi produzido.

    O nosso intuito no s apresentar as teorias vigentes, mas sobretudo mostrar como pratic-las, fornecendo as informaes ne-cessrias de trabalhos j feitos, de modo a dar ao leitor a base indispensvel para um entendimento efetivo do pensamento atual em fonologia.

    9

  • II

    O objeto da fontica e da fonologia

    Enquanto a fontica estuda os sons como entidades fsico-articulatrias isoladas, a fonologia ir estudar os sons do ponto de vista funcional como elementos que integram um sistema lingstico determinado. Assim, fontica cabe descrever os sons da linguagem e analisar suas particularidades articulatrias, acsticas e perceptivas. fonologia cabe estudar as diferenas fnicas intencionais, distintivas, isto , que se vinculam a diferenas de significao, estabelecer como se relacio-nam entre si os elementos de diferenciao e quais as condies em que se combinam uns com os outros para formar morfemas, palavras e frases. A fontica se distingue, pois, da fonologia pelo fato de considerar os sons independentemente de suas oposies paradigm-ticas aquelas cuja presena ou ausncia importa em mudana de significao (pala: bala: mala: fala: vala: sala: cala: gala etc.) e de suas combinaes sintagmticas, ou seja, os seus arranjos e disposies lineares no contnuo sonoro (Roma, amor, mora, ramo etc.).

    A unidade da fontica o som da fala ou o fone, enquanto a unidade da fonologia o fonema.

    Fontica e fonologia tm sido entendidas como duas disciplinas interdependentes, uma vez que para qualquer estudo fonolgico indispensvel partir do contedo fontico, articulatrio e/ou acstico para determinar quais so as unidades distintivas de cada lngua. A caracterizao da fontica como cincia que trata da substncia da expresso e da fonologia como a cincia que trata da forma da expresso aceita pela maioria dos lingistas por no implicar a oposio entre os dois campos do conhecimento, nem sua inde-pendncia e autonomia.

    Na escola norte-americana, o termo fonmica em lugar de fono-logia teve grande penetrao, principalmente entre os estruturalistas. Na Europa, alguns fonlogos preferiram a designao fonemtica. No entanto, fonologia e fonmica s podem ser considerados equivalentes se tanto os elementos segmentais quanto os suprassegmentais puderem

    11

  • 12 iniciao fontica e fonologia

    ser analisados como fonemas, viso esta no compartilhada por alguns fonlogos da escola britnica. No modelo firthiano, fonemtica abran-ge apenas o estudo dos fonemas segmentals que ocorrem em seqncia linear, tal como as vogais e consoantes, no incluindo os elementos prosdicos.

    Os termos fontica e fonologia tm em sua composio vocabular a raiz grega phon som, voz. O termo fonologia, cunhado por volta do final do sculo XVIII, teve, a princpio, a acepo de cincia dos sons da fala e s a partir de 1928 passou a ter o sentido que tem hoje. A contribuio de Ferdinand de Saussure e Baudoin de Courtenay foi decisiva para a mudana de interpretao lingstica do termo.

    Baudouin de Courtenay, em fins do sculo XIX, foi um dos primeiros a tentar distinguir de modo mais sistemtico o estudo dos elementos que tm um papel na significao (os fonemas) estudo esse que denominou psicofontica daqueles que so o resultado das realizaes individuais dos falantes (os fones ou sons da fala). A esse estudo deu o nome de fisiofontica.

    Ferdinand de Saussure no Curso de lingstica geral distingue fontica de fonologia, reservando fontica o seu uso original de estudo das evolues dos sons. Segundo ele "a fontica uma cincia histrica, analisa acontecimentos, transformaes e se move no tempo. A fonologia se coloca fora do tempo, j que o mecanismo da articulao permanece sempre igual a si mesmo." (SAUSSURE, 1969, p. 43.)

    Embora essa concepo esteja distinta das acepes atuais dos dois termos, a distino entre fontica e fonologia foi possvel a partir do pensamento saussuriano, pelo uso de suas noes de lngua (langue) e fala {parole), forma e substncia, sintagma e paradigma. somente com os trabalhos de Trubetzkoy, Jakobson e outros componentes do Crculo Lingstico de Praga, no l 2 Congresso Internacional de Lin-gstica (Haia, 1928) que a fonologia se constitui como um campo distinto da fontica, tendo um objeto prprio de estudo.

    A autonomia da fontica em relao fonologia tema contro-verso. Conforme se ver adiante, o termo fontica pode significar tanto o estudo de qualquer som produzido pelos seres humanos quanto o estudo da articulao, acstica e percepo dos sons utilizados em lnguas especficas. No primeiro tipo de investigao fica evidente a autonomia da fontica com relao fonologia, j no segundo as conexes entre as duas cincias se tornam patentes. A perspectiva adotada por LADEFOGED (1971) um excelente exemplo da interde-pendncia dos dois campos, perspectiva essa que ser adotada nos diversos pargrafos da seo seguinte.

  • 111 'hjeto da fontica e da fonologia 13

    I E O N T I C A

    ir) A produo dos sons na linguagem humana

    hilar to natural para os seres humanos, como o so o olfato, a viso c o paladar, que s nos detemos para examinar seu funcionamento nos casos de deficincia ou de privao. No entanto, essa capacidade de talar do modo como o fazemos que singulariza o homem de todos os oulros animais.

    comum, ao falarmos sobre a linguagem, ter como ponto de referncia a lngua escrita. E, muitas vezes, o estudo dessa faculdade distintiva da espcie humana fica reduzido ao estabelecimento das regras do bem escrever das quais se derivariam as regras do bem falar. A linguagem , porm, uma atividade primordialmente oral. A importncia atribuda lngua escrita, importncia essa que oca-siona at mesmo uma inverso dos fatos, advm do papel capital que a escrita desempenha nas sociedades complexas e de massa para a coeso poltica e social e para a comunicao a longa distncia. A histria dessas sociedades revela, contudo, que o uso difundido e sistemtico da escrita relativamente recente em comparao s centenas de anos em que era privilgio de uns poucos ou aos vrios sculos durante os quais nem mesmo existia. Ainda hoje h povos que nunca desenvolveram um sistema de escrita e as lnguas por eles faladas em nada diferem, em essncia, das lnguas faladas pelas populaes letradas.

    Quais so, ento, essas caractersticas definidoras da linguagem humana, que a distinguem de outros sistemas simblicos que tambm servem para a comunicao (os gestos, os vrios tipos de cdigos, a linguagem das abelhas) e de outros sistemas a que tambm se atribuem valores representativos (o simbolismo das flores, das cores etc.)?

    A linguagem humana se distingue dos demais sistemas simblicos por ser segmentvel em unidades menores, unidades essas em nmero finito para cada lngua e que tm a possibilidade de se recombinarem para expressar idias diferentes. O contnuo sonoro pode, pois, ser escondido em segmentos linearmente dispostos cuja presena ou au-sncia, assim como sua ordem, tem uma funo distintiva, isto , ocasiona mudana no significado de uma palavra. Assim distinguimos 'parte' de 'arte' porque na primeira palavra h um segmento p ine-xistente na segunda. J em 'Roma' e 'amor' a ordem dos segmentos que diferencia os dois vocbulos.

  • 14 iniciao fontica e fonologia

    As unidades constitutivas do contnuo sonoro so produzidas por um mecanismo fisiolgico especfico a que se convencionou chamar aparelho fonador, e do qual fazem parte os pulmes, a laringe, a faringe, as cavidades oral e nasal. Observe-se que as partes constitu-tivas do aparelho fonador tm funcionamentos outros, distintos dos usados para a produo dos sons. Assim os pulmes e a cavidade nasal tm um desempenho especfico no processo de respirao, mas para a produo do som servem de cmara iniciadora da corrente de ar, e a cavidade nasal funciona como cmara de ressonncia para a produo dos sons nasais ou nasalizados. A diferena no funcionamento dos pulmes e das fossas nasais para as duas atividades a respirao em repouso e a respirao para a fala se evidencia pelo fato de que na respirao em repouso h uma perfeita sincronia entre a atividade dos msculos inspiratrios e o aumento do volume da cavidade tor-cica, atividade essa que cessa quando se inicia o movimento expiratrio e conseqente diminuio do volume torcico. Para a fala a atividade dos msculos inspiratrios continua na fase expiratria. Na respirao vital o ar sai pelo nariz e na respirao para a fala o ar sai pela boca. Os dentes e a lngua so rgos cruciais para a triturao dos alimentos mas na produo dos sons passam a articuladores que modificam a corrente de ar egressa dos pulmes.

    Costumava-se, por isso, dizer que a linguagem uma funo secundria ou sobreposta, desempenhada por vrios rgos cujas fun-es biolgicas primrias so de outra ordem. Essa perspectiva , hoje em dia, ao menos polmica por estar subjacente teoria psicolgica que considera a linguagem uma capacidade adquirida e no uma faculdade inata da espcie humana. Os argumentos em que se ancora a posio de que a linguagem uma faculdade inata se derivam dos mecanismos do tipo que vimos no pargrafo anterior: qualquer ativi-dade que requeira uma sustentao do movimento inspiratrio penosa e arduamente aprendida, como por exemplo, nadar por debaixo d'gua, tocar flauta etc. Porm, uma criana comea a falar sem que jamais faa um treinamento especfico para controlar esse mecanismo.

    A finalidade ltima da linguagem a comunicao. Um meio de representar esquematicamente o mecanismo da comunicao imagi-nar uma fonte (o falante), um transmissor (o aparelho fonador), um canal (o ar atmosfrico), um receptor (o aparelho auditivo) e um alvo (o ouvinte). Um ser humano tem algo a exprimir a outrem e para tal entra em funcionamento o seu sistema nervoso, impulsionando o aparelho fonador que opera sobre a informao a ser transmitida e a codifica em determinados padres de ondas sonoras (a linguagem, o cdigo, a mensagem). Essa operao denominada codificao. As

  • 111 'hjeto da fontica e da fonologia 15

    ondas sonoras, emitidas pelo falante, so conduzidas pelo ar atmos-frico circundante indo atingir o aparelho auditivo do ouvinte, que capta os sons convertendo as ondas sonoras em atividade nervosa que levada ao crebro. Essa operao denominada decodificao. Est fechado o circuito e o processo pode repetir-se passando o ouvinte a falante. No estudo da faculdade de linguagem costuma-se imaginar uma mesma pessoa como fonte e receptora de um falante-ouvinte.

    A produo dos sons assim estudada de trs ngulos diversos: I) partindo-se do falante (da fonte) e examinando-se o que se passa no aparelho fonador; 2) focalizando-se os efeitos acsticos da onda sonora produzida pela corrente de ar em sua passagem pelo aparelho fonador ou, ento, 3) examinando-se a percepo da onda sonora pelo ouvinte, isto , o estudo das impresses acsticas e de suas interpre-taes no processo de decodificao.

    A tcnica mais difundida a do exame da produo do som pelo aparelho fonador e registro de ouvido. Tal disciplina denominada fontica articulatria ou fontica fisiolgica. Embora os dados pro-porcionados pela anlise acstica sejam mais objetivos, a maior utili-zao da fontica articulatria se deve relativa simplicidade com que pode ser aplicada, em contraposio fontica acstica, a qual exige um aparelhamento mais dispendioso, pouco acessvel em pases em desenvolvimento, ao lado de um conhecimento de fsica, fato pouco comum aos estudiosos da rea de letras e lingstica. Ademais, mesmo nos estudos em que se focalizam as propriedades fsicas da onda sonora, quer na sua produo, quer na sua percepo, os princpios de segmentao e as unidades depreendidas pela fontica articulatria esto presentes, tornando-se indispensvel, portanto, o seu conheci-mento.

    O ser humano capaz de produzir uma gama variadssima de sons vocais. Porm nem todos eles so utilizados para fins lingsticos de gerar, num enunciado, uma diferena de sentido por substituio ou por rearranjo. Por exemplo, o arroto, que um som produzido com ar proveniente do esfago, pode, em algumas culturas, exprimir ple-nitude aps uma refeio. Mas em lngua alguma funciona como um segmento na composio de palavras, formando com outros sons pares distintivos, como acontece, em portugus, na substituio do p de 'pata' por m em 'mata'. E mais, dentro do inventrio de possibilidades usadas com fins fonolgicos, cada lngua seleciona apenas um subcon-junto que utiliza com propsitos distintivos.

    Assim a designao fontica articulatria tem dois sentidos. No mais amplo seu propsito descrever qualquer som produzido pelos

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    seres humanos; no mais restrito trata de esmiuar os mecanismos existentes nas lnguas humanas para comporem a enunciao. Bene-ficia-se da fontica experimental, isto , de estudos que utilizam aparelhos como o oscilgrafo, o quimgrafo, o espectrgrafo, o sin-tetizador de fala, para um exame mais acurado da fisiologia acstica da produo dos sons. No captulo II voltaremos a esse tpico.

    b) O aparelho fonador e os mecanismos de produo dos sons

    A Corrente de Ar

    Os sons utilizados no exerccio da linguagem humana so vibraes com freqncias, intensidades e duraes caractersticas, produzidas por uma coluna de ar em movimento, que, tendo incio nos pulmes na fase expiratria do processo de respirao, percorre o chamado aparelho fonador.

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  • 111 'hjeto da fontica e da fonologia 17

    Para a produo dos sons com funo distintiva utiliza-se a cor-rente de ar egressiva (sons plosivos) , resultante da expulso do ar dos pulmes, devido ao levantamento do diafragma pela ao dos msculos intercostais. No se conhecem lnguas que usem, para fins fonolgicos, a corrente pulmonar ingressiva, isto , a corrente de ar na fase inspiratria da respirao, embora sejam atestados casos em que esse mecanismo tem um uso paralingustico.

    A corrente de ar, iniciada nos pulmes, pode ser interrompida na glote ou na boca, formando, assim, novas cmaras que do origem aos sons denominados ejectivos (ou glotalizados), implosivos e cli-ques. Nos sons ejectivos as cordas vocais ficam retesadas e fechadas, acarretando o levantamento da glote e a compresso da coluna de ar na faringe ou na boca. Nos sons implosivos, a glote se abaixa e o ar dos pulmes faz vibrarem as cordas vocais. Os sons ejectivos e implosivos so concomitantemente modificados pelos modos e reas de articulao na cavidade supragltica. O quchua e o georgiano tm consoantes ejectivas oclusivas e em aramaico h ejectivas oclusivas e fricativas. O karaj, lngua indgena brasileira, tem uma consoante implosiva alveolar [d] que se ope oclusiva explosiva sonora [d] (FORTUNE & FORTUNE, 1963), como se pode ver nos pares [wad'O] 'tosse' [wado] 'minha poro'.

    Fig. 2. Os mecanismos da corrente de ar. 2a - Som egressivo [t]; b - Sons farngeos (a seta dupla para baixo indica a movimentao das cordas vocais para a produo dos sons implosivos, e para cima, dos sons ejetivos) e c - Cliques.

  • 18 iniciao fontica e fonologia

    Os cliques so sons produzidos pelo ar retido na cavidade bucal, devido ao fechamento causado pela elevao da parte posterior da lngua em direo ao palato mole e concomitante compresso dos lbios ou da ponta ou corpo da lngua com os alvolos ou palato. Esse mecanismo sempre ingressivo. Lnguas africanas, como o hotentote, o zulu e o bosqumano, tm cliques como unidades distintivas. Em portugus, os cliques tm um uso paralingustico, por exemplo, o som do beijo que se lana distncia, o do muxoxo da admoestao ou o do estalar da lngua para atiar o cavalo.

    A corrente de ar egressiva e as variaes da presso subgltica tm reflexos nos fenmenos suprassegmentais tais como acento de intensidade e tom; a ao dos msculos respiratrios associados presso subgltica est diretamente envolvida na produo das con-soantes denominadas forte e Iene que ocorrem em coreano (LADEFO-GED 1971, p.24).

    A Fonao

    na laringe, anel cartilaginoso situado na parte superior da traqueia, que se encontra o rgo que desempenha papel bastante complexo na produo dos sons na linguagem humana: as cordas vocais.

    As cordas vocais tm a forma de dois lbios e so constitudas do msculo tireocricoide e de tecido elstico denominado ligamento. Uma de suas extremidades est unida s cartilagens aritenoides e a outra, tireoide. A tireoide vulgarmente conhecida por pomo de ado por ser uma protuberncia no pescoo bem visvel nos homens. As arite-noides so dotadas de vrios movimentos devidos a um intrincado sistema de msculos, movimentos esses que ocasionam posies di-versas das cordas vocais e, consequentemente, sons diferentes. A abertura triangular existente entre as cordas vocais se denomina glote.

    Na respirao em repouso e na produo dos chamados sons surdos ou desvozeados, as cordas vocais esto separadas e a glote est aberta. O ar originado nos pulmes pode passar livremente sem que haja vibraes. Estando a glote fechada e as cordas vocais unidas, o ar tem de forar sua passagem fazendo-as vibrar. Os sons resultantes so chamados sonoros ou vozeados. Exemplo de sons surdos, em portu-gus, a pronncia do primeiro segmento em palavras como 'cinco' e 'ch' e de sons sonoros, o primeiro segmento em 'zinco' e ' j ' . Pode-se sentir essa diferena colocando-se os dedos levemente sobre o pomo-de-ado e dizendo-se essas palavras prolongando bem o

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    primeiro segmento. Sente-se, assim, nitidamente uma vibrao em 'zinco' e ' j ' e sua ausncia em 'cinco' e 'ch'.

    E bastante comum o uso distintivo do vozeamento e do desvozea-mento das consoantes. Em portugus, as sries oclusiva (pote: bote: cela: zela: cama: gama) e a fricativa (faca: vaca: cinco: zinco: ch: j) se opem por esse trao. Em krenak, lngua da famlia botocudo (Minas Gerais), a sonoridade tem um valor distintivo para as consoan-tes nasais (CRISTFARO, 1987). Em outras lnguas a sonoridade ou ensurdecimento pode ter um valor apenas redundante. Em tapirap, lngua da famlia tupi-guarani, as consoantes oclusivas so sempre surdas e as nasais sempre sonoras. J para as vogais, o desvozeamento, na maioria das lnguas em que ocorre, no tem uma funo distintiva.

    Fig. 3. A laringe vista por trs: 1. epiglote; 2. tireoide; 3. aritenoide; 4. cricoide; e 5. traqueia.

    H outras posies das cordas vocais. Nos sons sonoros as cordas vocais esto juntas em toda a sua extenso e a glote est igualmente fechada. Se, porm, devido ao afastamento das aritenoides houver uma pequena abertura na glote, o som resultante no mais sonoro e sim

  • 20 iniciao fontica e fonologia

    sussurrado. Em portugus ocorrem vogais sussurradas em variao com vogais sonoras. Numa palavra como 'lingstica' o i e o a aps a slaba tnica podem ser pronunciados com sonoridade ou com sussurro.

    Quando a corrente de ar bruscamente interrompida na glote pelo fechamento por um perodo mais prolongado das cordas vocais, o som resultante denominado ocluso, ou oclusiva, glotal. A seqncia ' que se usa em portugus como resposta negativa a uma pergunta em lugar do advrbio 'no' muitas vezes tem uma ocluso glotal [?] entre as duas vogais nasais. Porm no h, em portugus, uma oposio distintiva entre a presena e a ausncia da ocluso global. J em tapirap ela indispensvel para que se distinga o enunciado 'carne dele' |a?a] de 'ele vai' [aa].

    Nos sons aspirados, as cordas vocais continuam abertas e no h vibrao por um perodo mais prolongado aps a soltura da articulao da consoante, quando os rgos j esto posicionados para a produo do segmento seguinte. Assim, sons aspirados so vogais surdas pro-duzidas com a mesma protruso labial e altura da lngua da vogai que se segue a uma consoante. Em ingls ocorrem oclusivas aspiradas que so variantes posicionais das oclusivas surdas. Em tai, porm, h oposio distintiva entre oclusivas surdas, sonoras e aspiradas.

    Havendo uma vibrao das cordas vocais, mas a parte das arite-noides permanecendo separada, pode ocorrer um escape extra de ar. Os sons assim produzidos so chamados murmurados. Devido a esse ar suplementar, os sons murmurados tm sido denominados consoantes sonoras aspiradas, confundindo, assim, murmrio e aspirao, que, como se viu, so resultantes de aberturas da glote diferentes, posies essas no combinveis.

    Tremulados so sons produzidos pela vibrao lenta dos ligamen-tos das cordas vocais, permanecendo as aritenoides separadas. Tremu-lao e murmrio podem ser usados com valor distintivo nas lnguas: em gujarati e ndele, o murmrio funciona como um trao fonmico e em margi e lango, a tremulao, tambm conhecida como laringa-lizao, que contrastiva (LADEFOGED, 1971, pp. 13-15).

    O tamanho e a espessura das cordas vocais, juntamente com outros determinantes anatmicos tais como tamanho da lngua, forma e altura do palato, comprimento da distncia entre a laringe e os lbios, so responsveis pela caracterizao individual da voz, distinguindo a voz infantil, a masculina, a feminina.

    Resumindo, por processo fonatrio, ou fonao, entendem-se os diversos estados da glote e conseqente excitao acstica da corrente de ar ao passar pelas cordas vocais.

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    Para vrias lnguas, e entre essas se inclui o portugus, no h um conhecimento aprofundado do processo fonatrio. Essa situao se verifica porque, nesse caso, no se trata apenas de detectar pela audio cuidadosa e imitao, tcnicas por excelncia da fontica articulatria, o mecanismo em funcionamento. Sonoridade, murmrio, tremulao so fenmenos que traduzem graus maiores ou menores de fechamento da glote e de tempo de vibrao dos ligamentos e cordas vocais. Essas quantidades podem ser medidas de modo no impressionstico por meio de aparelhos. As cordas vocais podem ser filmadas e radiogra-fadas. Estudos dessa natureza inexistem ainda para um nmero signi-ficativo de lnguas.

    Nasalizao

    Aps passar pela glote, a corrente de ar, ao encontrar a passagem nasofarngea fechada pelo levantamento do vu palatino, escoa pela cavidade bucal, dando origem aos sons orais. Se, porm, o vu palatino estiver abaixado e a passagem nasofarngea aberta, parte do fluxo de ar se desvia para a cavidade nasal, dando origem aos sons nasais. A figura 5 mostra, do lado esquerdo, a articulao de um som oral

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    (oclusiva bilabial sonora [b]) e direita, a de um som nasal (consoante nasal bilabial sonora [m]).

    Na prtica, distinguem-se os sons nasais dos sons nasalizados. Nos nasais h, alm do abaixamento do vu palatino, uma obstruo na cavidade bucal, causada pela aproximao dos dois articuladores (figura 5b). o que ocorre com as consoantes m [m], n [n] e nh [n] em mama, mana, manha. Para a pronncia do [m], o obstculo formado na cavidade bucal pelo fechamento dos lbios, em [n] pela juno da ponta da lngua com a parte posterior dos dentes e em [n] pela articulao da lmina da lngua com o palato duro. No havendo obstruo total na cavidade bucal o ar escoa tambm pela boca e o som chamado nasalizado. As vogais, as fricativas, as laterais, os flepes e tepes so sons que podem ser nasalizados, uma vez que para sua produo no h a obstruo na cavidade bucal.

    Fig. 5. Sons orais e nasais: a) consoante oclusiva bilabial e b) consoante nasal bilabial.

    Em portugus e em francs ocorrem vogais nasalizadas, mas o valor distintivo da nasalidade voclica nessas lnguas alvo de dis-cusso. Em tapirap ocorre um tepe nasalizado entre vogais nasaliza-das, tepe esse que uma variante posicionai do tepe oral.

    A nasalidade no se restringe a um nico segmento no contnuo sonoro. O abaixamento do vu palatino e a abertura da passagem

    t b ]

    b

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    nasofarngea, mecanismos prprios aos sons nasais e nasalizados, no se do em perfeita sincronia com o levantamento do vu palatino e fechamento da passagem nasofarngea dos sons orais adjacentes. As-sim comum que a nasalidade se estenda ao menos pela slaba. Uma nasalizao retroativa, isto , que alcana vrios segmentos esquerda de uma vogai nasalizada acentuada encontrada em lnguas da famlia tupi-guarani.

    O mecanismo da nasalizao est tambm presente nas consoantes pr-nasalizadas. Na pr-nasalizao h um incio consonntico nasal e uma soltura oral no mesmo ponto de articulao da consoante nasal. Consoantes pr-nasalizadas so muito comuns em lnguas da famlia tupi-guarani e em lnguas africanas.

    Tal como o processo fonatrio, a nasalizao um mecanismo que envolve aberturas e fechamentos de uma passagem que conduz a outra cavidade. Na nasalizao pode-se observar uma gradualidade de maior ou menor abertura e de maior ou menor tempo de durao da abertura nasofarngea. Por isso que em chinanteco (LADEFOGED, 1971, pp.34-5) h graus de nasalidade voclica com valor distintivo: as vogais orais se opem a vogais levemente nasalizadas e a vogais fortemente nasalizadas. E mais ainda a cada vogai nasalizada corres-ponde um grau de nasalidade que lhe intrnseca, grau esse que varia de lngua para lngua.

    Consoantes: Pontos e Modos de Articulao

    A cavidade orofarngea a cmara de ressonncia onde o fluxo de ar modificado pela ao dos chamados articuladores. Os diferentes modos por que o fluxo de ar modificado permite o estabelecimento de duas grandes classes de sons: a classe das consoantes e a das vogais.

    Consoantes so vibraes aperidicas ou rudos ocasionados pela obstruo total ou parcial da corrente de ar devido ao de dois articuladores, obstruo essa que se traduz numa reduo da energia total do espectro acstico. J as vogais so sons que resultam da passagem livre do ar produzindo vibraes peridicas complexas.

    Por modo de articulao entendem-se os diferentes graus de fe-chamento da cavidade orofarngea e as maneiras por que o ar nela modificado escoa pela boca. Pontos ou reas de articulao so os diferentes lugares em que dois articuladores entram em contato.

    Um articulador qualquer parte, na rea orofarngea, que participa na modificao da qualidade do som, por acarretar, em conjuno com

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    outra parte, o aumento ou diminuio dessa cavidade. Os articuladores podem ser ativos, aqueles dotados de movimento (lbios, lngua, vula etc.) ou passivos, sem movimento, mas que o ponto de referncia para onde se move o articulador ativo. Articuladores passivos so, dentre outros, a arcada dentria, os alvolos, a abbada palatina.

    Costumava-se dividir a cavidade orofarngea e a lngua em diver-sas partes que serviro de ponto de referncia para o estabelecimento das reas de articulao. Assim, um som para cuja articulao funcio-nem os lbios chamado labial; se a lngua se dirige para o palato o som palatal; se a vula que est em funcionamento o som uvular etc.

    Algumas possibilidades bastante comuns de reas de articulao so apresentadas esquematicamente na figura 7. Assim um som bila-bial aquele articulado com os dois lbios ([p] de pata, [b] de bata, [m] de mata); um som labiodental com os dentes superiores e o lbio inferior ([f]> em faca, [v] em vaca); um alveolar, com a lmina da lngua e os alvolos (o [s] em sapo); um som velar, com o dorso da lngua e o palato mole ([g] de gato). Um som retroflexo aquele em que a ponta da lngua se curva em direo ao palato duro e um exemplo desse som encontrado na pronncia caipira do r numa palavra como 'carne'. As diferentes pronncias do r no portugus em palavras como 'carro' e 'rua' ilustram sons uvulares, faringais e glotais.

    Para a identificao e descrio dos sons consonantais usam-se no s os tipos de articulao mas tambm os modos de articulao. Se a obstruo total, o som resultante denomina-se oclusivo; se o

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    impedimento parcial e provoca frico, a consoante fricativa. Consoante africada aquela que comea como oclusiva e termina como fricativa. O primeiro segmento em 'bata', 'cata', 'gata' oclu-sivo; em 'faca', 'vaca', 'zinco', 'cinco' fricativo. Em 'tia' e 'dia', na pronncia carioca, tm-se exemplos de sons africados.

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    Fig. 7. reas de articulao.

    O fluxo de ar poder escapar pela parte central da cavidade bucal (como nas consoantes fricativas) ou por um de seus lados. Nesse ltimo caso diz-se que o som lateral. E o que se tem nas consoantes intervoclicas em 'fila' e 'filha', por exemplo.

    Quando um articulador mvel (a ponta da lngua ou a vula) bate repetidas vezes num articulador fixo (alvolos, dorso da lngua), o som denominado vibrante. No dialeto paulista (no carioca mais raramente), encontra-se esse tipo de articulao em palavras como 'carro', 'rua', 'rato' etc. Flepes e tepes so sons produzidos por apenas uma batida de um articulador no outro. No flepe a ponta da lngua se encurva para trs e a curvatura se desfaz tocando a regio alveolar. No tepe, a ponta ou lmina da lngua se levanta horizontalmente e bate na rea alveolar. O r em palavras como 'caro' e 'prato' pronunciado em portugus do Brasil geralmente como tepe. Tepes e flepes so tambm denominados vibrantes simples, por serem produ-zidos com apenas uma batida em um articulador, em oposio vibrante mltipla que produzida com vrias batidas.

    Aos modos de articulao vistos at agora podem ainda ser acres-cidas articulaes secundrias como a labializao, a palatalizao, a velarizao e a faringalizao. Na labializao acrescenta-se o arre-

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    dondamento dos lbios a uma articulao primria. O primeiro seg-mento em 'quando' uma consoante oclusiva velar surda labializada. Na palatalizao a articulao primria se faz acompanhar do levan-tamento da lmina da lngua. Em russo, esse procedimento bastante comum, tendo as consoantes palatalizadas um valor distintivo. Na velarizao levanta-se o dorso da lngua e na faringalizao h o recuo da raiz da lngua.

    Essa a nomenclatura mais corrente nos trabalhos de fontica articulatria. Outras terminologias so tambm encontradas de modo mais assistemtico. Assim lquida um termo herdado dos gramticos da antigidade e abrange a classe das laterais e das vibrantes. Contnuos so sons produzidos com a obstruo parcial da cavidade orofarngea e englobam as fricativas e vogais excluindo as oclusivas, nasais e africadas. Constritivos so sons produzidos com o estreitamento da cavidade orofarngea sem que ocorra frico. Vogais, laterais, vibran-tes so sons constritivos.

    Recapitulemos alguns dos processos de modificao do ar egresso dos pulmes at agora vistos. Uma corrente de ar tendo se iniciado nos pulmes (corrente de ar egressiva) ao atravessar a glote (processo fonatrio) pode encontrar as cordas vocais juntas em toda a sua extenso fazendo-as vibrar (som sonoro). Ao continuar seu percurso devido ao levantamento do vu palatino, escapar exclusivamente pela boca (som oral). A cavidade oral pode estar totalmente obstruda (modo de articulao) pela articulao da lmina da lngua e alvolos (ponto de articulao). A designao 'consoante oclusiva alveolar sonora' resume todos esses processos.

    Vogais

    As vogais so sons produzidos com o estreitamento da cavidade oral devido aproximao do corpo da lngua e do palato sem que haja frico de ar. As vogais se opem s consoantes por 1) serem acusti-camente sons peridicos complexos; 2) constiturem ncleo de slaba e sobre elas poder incidir acento de tom e/ou intensidade.

    Na identificao e descrio das vogais usam-se, como parmetros, o avano ou recuo e altura do corpo da lngua e a presena ou ausncia de protruso labial. Pela altura da lngua as vogais so classificadas em altas, mdias e baixas. E pela posio do corpo da lngua em relao abbada palatina em anteriores, centrais e posteriores. A presena de protruso labial produz vogais arredondadas e a sua

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    ausncia, vogais no arredondadas. Assim o u de 'rua' uma vogai posterior, alta, arredondada e o a uma vogai central, baixa, no arredondada.

    Costuma-se visualizar as reas de articulao das vogais repre-sentando esquematicamente a cavidade oral como um trapzio, o lado esquerdo simbolizando a parte anterior do tubo bucal com maior amplitude (devido ao movimento das mandbulas) do que a parte posterior, o que permite um maior nmero de variaes de articulao nas vogais anteriores. Os vrtices superiores indicam as vogais altas e os inferiores as vogais baixas. Nas reas intermedirias, na dimenso horizontal, situam-se as vogais centrais e na dimenso vertical as vogais mdias.

    Com esse tipo de esquematizao o que se intenta to somente ter pontos de referncia para a apreenso de uma realidade altamente varivel de lngua para lngua e mesmo de diferentes enunciaes de uma vogai por um mesmo falante. A figura 8 mostra a relatividade que essa terminologia encobre, usando-se a comparao dos pontos de articulao das vogais do ingls e as do portugus na fala de uma das autoras. E a figura 9 mostra a variabilidade das reas de articulao para as vogais do tikuna (SOARES, 1983).

    Fig. 8. Freqncias mdias em hertz das vogais do portugus de uma das autoras (linha pontilhada) em comparao com as freqncias mdias, segundo Peterson & Barney, das vogais do ingls.

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    Fig. 9. reas de articulao das vogais do tikuna, de oito informantes representados por OAAG*O(Apud Soares).

    Para contornar esse problema JONES (1918) estabeleceu pontos ideais de articulao para as vogais, pontos esses que servem de referncia para a localizao das vogais reais ocorrentes nas lnguas. Essas vogais ideais so chamadas vogais cardeais.

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    Fig. 10. As vogais cardeais.

  • 111 'hjeto da fontica e da fonologia 29

    Fontica articulatria s se aprende tomando conscincia dos mecanismos de produo dos sons e, mais do que isso, tentando reproduzi-los e identific-los, usando para tal os parmetros de des-crio que vimos. Vrios exerccios so teis para se aprender a pronunciar vogais variadas. Por exemplo: posicione a lngua para a produo do i em portugus e v recuando o corpo da lngua em direo ao fundo da cavidade oral, mantendo sempre a mesma altura e os lbios sem arredondamento. O resultado final uma vogai posterior alta no arredondada. Se fizermos o movimento inverso, isto , partir de um u do portugus e avanarmos o corpo da lngua em direo parte anterior da cavidade oral, mantendo sempre a mesma altura e os lbios arredondados, ter-se- como resultado final uma vogai anterior alta arredondada. Voc poder treinar a fazer sons voclicos e identific-los deste modo: indo do [i] para o [u] ou de [i] para o [e], pare em algum ponto do contnuo articulatrio e pela posio e protruso labial procure nomear o som produzido.

    As diversas dimenses que aqui vimos podem ser contrastivas nas lnguas. Assim, o arredondamento dos lbios fonmico nas vogais anteriores em francs e em alemo como se pode ver nos pares: pur 'puro': pire 'pior' (francs); j em algumas lnguas indgenas brasi-leiras na srie das vogais posteriores que a presena ou ausncia de protuso labial tem valor contrastivo, como se pode ver nos seguintes exemplos do txucarrame: [tu] 'estmago'; [to] 'duro' [to] danar; [pi] 'urucu' , [mA] 'o que' , [krp] 'amigo' (STOUT & THOMSON, 1974).

    A Slaba

    Embora intuitivamente sentida pelos falantes nativos de cada lngua, a slaba uma unidade de difcil definio.

    Do ponto de vista articulatrio, a slaba, segundo alguns autores, corresponde a um acrscimo da presso do ar expelido dos pulmes pela atividade de pulsao dos msculos respiratrios que faz com que a sada do fluxo de ar no seja contnua, mas em jatos sucessivos.

    Do ponto de vista da percepo, considera-se a cadeia sonora como composta de aclives, pices e declives de sonoridade, cada slaba sendo constituda de um pice, que o seu ncleo ou centro ocupado por sons de alta sonoridade, como, por exemplo, as vogais. Os aclives e declives constituem 'vales' de sonoridade que determinam as fron-teiras silbicas, suas margens, lugar preferencial das consoantes.

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    Escalas de sonoridade, a qual traduzida em termos de maior ou menor abertura da cavidade orofarngea, foram propostas por lingistas como Saussure, Grammont e Jespersen, a fim de determinar, quer pelo ngulo articulatrio, quer pelo perceptivo, as divises silbicas dos enunciados. Nessas escalas, o menor grau de sonoridade atribudo s consoantes de maior fechamento (s oclusivas) e o maior vogai baixa a.

    Porm, qualquer uma das teorias esbarra com dificuldades, quando se trata de delimitar o fim de uma slaba e o incio de outra (as fronteiras silbicas) ao se examinar a fala que no seja lenta e artifi-cialmente escondida.

    A noo de slaba muito usada para estabelecer a distino entre as duas grandes classes de sons. Assim que se diz que vogais ocorrem como ncleos silbicos e consoantes como margens. E de acordo com cada lngua, nas margens podem ocorrer nenhuma, uma ou mais consoantes. Assim, cada lngua tem seus padres silbicos prprios e permitidos. A ocorrncia de mais de uma consoante no aclive ou declive silbico d-se o nome de grupo consonantal. Uma slaba aberta quando no h consoante em seu declive (ex.: 'm') e travada quando a tem (ex.: 'mar').

    A definio de vogai e de consoante, tendo como linha divisria a noo de slaba, gera alguns conflitos entre a classificao que leva em conta apenas a produo dos sons (fontica) e a que estabelece suas funes em cada lngua (fonmica ou fonologia). Como j se viu, nasais, laterais, flepes e tepes so foneticamente produzidos com o estreitamento da cavidade orofarngea sem a frico da corrente de ar, mecanismo esse tambm comum s vogais. Esses sons tm, pois, algumas qualidades voclicas, mas podem ocupar, e o fazem com freqncia, a posio de margens silbicas. E o que ocorre em palavras como 'mal ' , 'Brasil' em algumas reas do Rio Grande do Sul. tambm bastante comum as vogais altas ocorrerem em aclives ou declives silbicos, constituindo o que se convencionou chamar ditongos e tritongos. Essas vogais so denominadas assilbicas ou glides.

    Vrias solues foram propostas para evitar esse conflito termi-nolgico e uma bastante aceita a do lingista norte-americano Kenneth Pike que cunhou as designaes vocoide e contoide restritas ao nvel fontico ou tico, reservando os termos vogai e consoante para o nvel fonmico ou mico. Assim as vogais assilbicas so foneticamente vocoides que, de acordo com sua distribuio nos padres silbicos de cada lngua, sero interpretadas fonemicamente

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    como vogais ou como consoantes. Pelo mesmo raciocnio, os sons constritivos so foneticamente vocoides, mas quando ocorrem em margens silbicas so fonemicamente consoantes.

    Dada a complexidade de uma conceituao unvoca de slaba, as anlises propostas para as diferentes lnguas limitariam o seu uso ao levantamento dos padres fonmicos permitidos, reservando-lhes nas descries uma seo especial denominada fonottica.

    A slaba , porm, a unidade indispensvel para os estudos de prosdia e de ritmo. Recentemente esto se intensificando os estudos nessa rea, passando-se de uma fonologia em que os processos eram vistos como decorrentes principalmente da adjacncia de segmentos para uma fonologia em que se privilegiam elementos como durao, intensidade e altura (elementos suprassegmentais) e a slaba como unidades detonadoras de processos fonolgicos. Leva-se em conta no s, como era mais usual, a fala lenta e pausada mas tambm os diversos ritmos e velocidades. Essas vertentes da fonologia recebem designa-es como fonologia natural, fonologia autossegmental, fonologia mtrica em oposio fonologia estruturalista e gerativa.

    Prosdia

    At a seo a respeito das vogais tratamos de elementos que compem o enunciado e que podem ser descritos em termos de movimentos articulatrios que aumentam ou estreitam a cavidade orofarngea. Uma caracterstica desses elementos sua disposio linear no contnuo da fala. No entanto, da fala participam outros elementos que se sobrepem aos segmentos lineares, elementos esses cuja descrio no se faz em termos dos movimentos dos articuladores, mas, sim, em termos da ao dos msculos respiratrios que aumentam ou diminuem a energia do fluxo de ar, ocasionando duraes, freqncia fundamental e in-tensidade diferentes das vibraes sonoras. Durao, freqncia fun-damental e intensidade so termos acsticos para os correlatas per-ceptivos quantidade, altura e volume, aos quais se d o nome de suprassegmentos.

    No fcil isolar o mecanismo fisiolgico envolvido na produo dos suprassegmentos. Por exemplo, a maior quantidade devida a um esforo suplementar do ar pulmonar pela ao dos msculos respira-trios e a ajustamentos na laringe. Porm esses mesmos mecanismos tambm resultam em tom mais alto e maior volume (LADEFOGED, I971, pp.22-3, 82). Assim, uma slaba que mais longa geralmente

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    tambm mais alta, quer em seu tom, quer em seu volume, fenmeno complexo a que se denomina acento.

    Outra caracterstica dos elementos suprassegmentais sua relati-vidade: diz-se que um som longo em relao a outro menos longo, que um tom alto na fala masculina sempre mais baixo do que o da fala feminina por ser a tessitura da voz nos homens mais baixa do que a das mulheres. Alm disso as diferentes vogais tm qualidades pro-sdicas que lhes so inerentes e que as caracterizam: as vogais de articulao mais alta so sempre menos longas do que as vogais baixas, as vogais silbicas mais longas do que as assilbicas, maior quantidade essa que tambm se verifica quando a vogai seguida de uma con-soante sonora.

    Esse conjunto de fenmenos dos quais se derivam tipos de acento, padres entoacionais, ritmos e velocidades de fala so estudados sob o rtulo de prosdia.

    Para os falantes do portugus bem conhecido o acento de intensidade, que tem um papel distintivo em palavras como 'sbia', 'sabia', 'sabi'. As variaes de tom tm uma funo distintiva em portugus no nvel da frase, distinguindo, por seus padres entoacio-nais, as frases declarativas das frases interrogativas. A quantidade, em portugus, acompanha, em geral, o acento de intensidade com o qual coocorre uma slaba longa. A quantidade pode, porm, ter uma funo expressiva, tal como no alongamento da slaba ma de 'maravilhoso', ou o reforo da quantidade em 'gol', dito por locutores de futebol no momento em que um tento marcado.

    Em outras lnguas, como o latim e o italiano, a quantidade que tem uma funo distintiva no nvel da palavra. Em latim vogais longas se opem a vogais breves e em italiano, consoantes longas a consoantes breves. A unidade que se usa para medir a durao dos segmentos e slabas a mora. Na mtrica latina uma slaba longa eqivalia a duas breves, isto , a slaba longa tem duas moras e a slaba breve, uma s.

    J em chins, em algumas lnguas africanas (iorub) e indgenas brasileiras (nambiquara, tikuna, piranh, munduruku) so as diferenas de altura que produzem significados diferentes no nvel da palavra.

    Lnguas que funcionem usando essa distino so chamadas ln-guas tonais.

    As lnguas de acento de altura se dividem em lnguas de tom de con-torno e lnguas de tom de nvel. O chins uma lngua de tom de contorno, isto , na slaba o tom no estvel mas varia gradativamente num ascendente ou descendente. J em lnguas de tom de nvel como

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    o iorub e o tikuna, o tom de cada slaba se mantm fixo em seu nvel alto, mdio ou baixo. No quadro abaixo so dados alguns exemplos dos diferentes tons em tikuna (ANDERSON, 1959) e nambiquara (dados d e D . CALLOU).

    Tom de contorno Tom de nvel

    nambi quara tikuna dsu 'urucum' ne?e 'mulher' dus 'mulher' n e ? e 'guariba' dijfc 'bambu' na e 'capim' d* 'cuda' ma'e 'vespa'

    Recentemente, foneticistas e fonlogos tm voltado sua ateno para o estudo do ritmo na fala comum, estudo que esteve mais restrito, por tempos, poesia. Segundo ABERCROMBIE (1967), as lnguas se dividem em lnguas de ritmo silbico e lnguas de ritmo acentuai. Nas lnguas de ritmo silbico, todas as slabas tm durao aproximada-mente igual. Um exemplo de lngua de ritmo silbico o francs. E nas lnguas de ritmo acentuai a durao entre os intervalos das slabas acentuadas isocrnico, isto , as slabas inacentuadas diminuem sua durao de acordo com o nmero delas ocorrente entre duas slabas acentuadas. Por exemplo, se entre duas slabas acentuadas ocorrem trs slabas no acentuadas, a durao de cada slaba no acentuada ser proporcionalmente menor durao de cada uma de duas slabas no acentuadas ocorrentes entre duas slabas acentuadas. O portugus e o ingls so lnguas basicamente do tipo acentuai.

    Slabas, moras, ps, pausas e grupos tonais so unidades que se usam para a descrio dos ritmos nas lnguas.

    Ritmo no se confunde com velocidade de fala e para esta a terminologia empregada calcada nos andamentos musicais. Os tra-balhos modernos de fonologia levam em considerao diferentes ve-locidades denominadas largo, andante, allegretto, e esto se tornando mais comuns trabalhos em que se relacionam os processos fonticos, os padres rtmicos e as diferentes velocidades de fala.

    Na escola inglesa de R. Firth, o rtulo prosdia abrange fenmenos geralmente tratados como segmentals, por poderem afetar mais de um segmento. Tal o caso da nasalizao, labializao, velarizao que podem acarretar processos de harmonizao. E o que ocorre com a nasalidade voclica nas lnguas tupis que pode retroagir para as slabas a ela anteriores. Assim a nasalidade voclica pode ser interpretada como um trao prosdico, tal como o acento de intensidade, a durao

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    ou o tom. Do mesmo modo em turco, o arredondamento dos lbios e a posteriorizao podem ser analisados como fenmenos prosdicos, uma vez que ocorre nas palavras a harmonizao, quanto a esses traos, das vogais dos sufixos com as vogais dos radicais.

    c) O alfabeto fontico

    No decorrer das sees precedentes lanou-se mo, em alguns exem-plos, de uma grafia que utilizava colchetes com um smbolo em seu interior. Assim, ao se tratar da ocluso global, usou-se o smbolo [?]. A esse tipo de escrita, feita com smbolos de um alfabeto especfico entre colchetes, se denomina transcrio fontica. Uma transcrio fontica uma tentativa de se registrar de modo inequvoco o que se passa na fala. E um alfabeto fontico uma conveno para se escreverem os sons das lnguas independentemente da conveno que cada uma utiliza para sua escrita em cotidiano.

    Um smbolo fontico sintetiza os diversos processos vistos nas sees anteriores de produo de um som. Assim [p] simboliza que o som produzido com a corrente de ar egressiva, sem vibrao das cordas vocais (surdo), com obstruo total na cavidade oral (oclusivo) e contato dos articuladores labiais (bilabial). O smbolo [p] traduz a descrio 'oclusiva bilabial surda'. Pelos mesmos princpios o smbolo |d] representa uma oclusiva implosiva alveolar.

    A finalidade de uma transcrio fontica e do alfabeto fontico possibilitar a transcrio e a leitura de qualquer som em qualquer lngua por uma pessoa treinada. Assim, o que se requer de um alfabeto que as convenes usadas sejam inequvocas e estejam explicitadas. Algumas dessas convenes j se tornaram bastante difundidas e so de conhecimento geral, tal como o alfabeto proposto pela Sociedade Internacional de Fontica denominado alfabeto fontico internacional. Como esse alfabeto emprega tipos no comuns em mquinas de escrever e em tipografias comuns, PlKE (1947) elaborou, para contor-nar essas dificuldades, um outro alfabeto, tambm bastante difundido, principalmente no Brasil. Enquanto no alfabeto fontico internacional os smbolos [p] [8] [y | representam as fricativas sonoras labial, alveolar e velar, respectivamente, no alfabeto de Pike esses sons so transcritos como [b] [d] [g], que podem ser batidos numa mquina comum pela superposio do hfen aos tipos b, d, g. Observe-se que h princpios gerais convencionais: um hfen cortando um smbolo empregado sistematicamente para indicar consoante fricativa.

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    Nos estudos sobre o portugus bastante difundido o alfabeto de LACERDA & HAMMARSTRM ( 1 9 5 2 ) .

    Uma comparao entre as vrias propostas de alfabetos fonticos mostra que h uma base comum advinda do alfabeto fontico interna-cional. E, na prtica, qualquer que seja o alfabeto adotado ocorrem sempre adaptaes determinadas por convenincias ocasionais tais como facilidades de datilografia, tipogrficas, maior legibilidade etc.

    2. FONOLOGIA

    a) O fonema

    A distino feita tradicionalmente entre fonologia e fontica na lin-gstica a base do conceito original de fonema, desenvolvido por volta de 1920.

    Atravs dos tempos, desde o aparecimento do termo, o fonema tem sido encarado sob diversas formas: de incio, igualado a som da linguagem; depois conhecido sob um prisma essencialmente psquico, como inteno de significado; mais tarde, sob um prisma fsico, funcional e abstrato.

    O termo fonema j era usado no sculo XIX, mas se referia a uma unidade de som, isto , a uma unidade fontica (a que hoje se chamaria fone) e no a uma noo abstrata, que envolve oposio. Em fins daquele sculo, nos trabalhos de Baudouin de Courtenay, surge, ao lado da noo de som da fala, a noo de fonema, a partir de uma conceituao psicolgica. Courtenay via o fonema como um som ideal que o falante almejava alcanar no exerccio da fala, na qual realizava sons prximos a esse prottipo idealizado. Segundo ele o fonema era o equivalente psquico do som da fala. A figura 9, que mostra a variabilidade de pronncia para as vogais do tikuna, um exemplo da variabilidade encontrada na fala, e dentro de uma concepo de Baudouin de Courtenay as realizaes do falante em suas tentativas de reproduzir seus equivalentes psquicos seriam os fonemas.

    O conceito de fonema, porm, s foi formulado com maior pre-ciso a partir de 1930 nos trabalhos do Crculo Lingstico de Praga. A noo tal como usada hoje em dia j estava implcita em Saussure em sua dicotomia langue-parole (lngua-fala). O fonema uma uni-dade da lngua e sons ou fones so unidades da fala. At aquela data muitas vezes difcil saber quando os autores se referem ao fonema

  • 36 iniciao fontica e fonologia

    (na sua concepo atual) ou a um som da linguagem. O primeiro passo para sua conceituao foi dado por Saussure ao fazer a distino entre o estudo sincrnico e o estudo diacrnico das lnguas. Antes fontica competia a descrio dos sons das lnguas e fonologia o estudo histrico da mudana.

    A noo atual do termo fonema estava latente, portanto, na dis-tino langue-parole de Saussure e a idia do contraste fonmico estava presente nos trabalhos iniciais de E. Sapir. Saussure no chegou a formular sua conceituao, mas j tinha uma idia bastante clara de que os fonemas so antes de tudo entidades opositivas, relativas e negativas. Essa concepo de entidades opositivas em Saussure apli-ca-se a todas as unidades lingsticas. Os fonemas se caracterizam no por uma qualidade particular positiva de cada um, mas simplesmente pelo fato de que no se confundem uns com os outros.

    O primeiro tratamento de profundidade dado ao conceito de fo-nema encontra-se nos trabalhos dos lingistas do Crculo Lingstico de Praga. Para Trubetzkoy, o fonema passou a ter uma conceituao funcional abstrata, a unidade mnima distintiva do sistema de som, e como uma unidade funcional que deve ser definido. O fonema ento a menor unidade fonolgica da lngua.

    BLOOMFIELD (1933) definiu o fonema como uma unidade mnima de trao fnico distintivo, indivisvel.

    Foi o conceito de fonema como elemento mnimo do sistema da lngua que permitiu lingstica moderna um enorme avano meto-dolgico, pois lhe forneceu uma unidade discreta, isto , segmentvel, de anlise. As tcnicas seguidas para o estabelecimento dos fonemas foram estendidas aos demais nveis de descrio gramatical.

    Roman Jakobson veio a ter um papel decisivo dentro dos estudos fonolgicos, contribuindo para reformular o conceito de unidade m-nima, indivisvel, do fonema como unidade no suscetvel de disso-ciar-se em unidades inferiores ou mais simples os traos fnicos.

    Foi ele quem definiu o fonema como um 'feixe de traos distin-tivos', com base na idia de que o fonema era divisvel em unidades menores. A partir de ento o fonema passou a ser visto pelos seguidores da escola de Praga como a soma das particularidades fonologicamente pertinentes que uma unidade fnica comporta. Nesse novo conceito de fonema, em termos mais abstratos e menos fsicos, salientava-se o papel funcional que o elemento fnico desempenha na lngua. Com essa conceituao estruturalista do fonema, atingia-se o plano abstrato e a superao do plano natural.

    Especialmente preocupado em determinar o valor semitico do fonema, viu Jakobson esse valor na funo que tem de distinguir entre

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    si os elementos lexicais enquanto estes apresentam uma significao prpria e constante, aquele no apresenta uma significao prpria positiva. Citando Husserl, JAKOBSON (1967, p.30) chama a ateno para o fato de corresponder o fonema a um 'ato de atribuio de significado e jamais um ato de plenitude de significao'. O fonema , assim, uma subunidade carente de significado.

    A viso abstrata do fonema defendida com maior vigor na escola conhecida como glossemtica, criada pelo lingista dinamarqus Hjelmslev. Na glossemtica, onde no se leva em considerao a substncia fnica, a definio de fonema tem de ser diversa e mesmo a palavra fonema substituda pela de cenema, mais neutra no que se refere substncia. Para Hjelmslev, cenemas so figuras do plano de expresso, 'unidades vazias', sem contedo correspondente. A cene-mtica designaria a cincia que trata dos cenemas como elementos de lngua. Uma das vantagens da preferncia pelo termo cenema para o lingista dinamarqus residiria no fato de aquele ser formado sobre a raiz grega de kens, 'vazio', o que caracterizaria melhor o aspecto no substancial da unidade.

    O fonema um som que, dentro de um sistema fnico determinado, tem um valor diferenciador entre dois vocbulos. A realizao fnica em si vai interessar fontica, fonologia interessa a oposio dos sons dentro do contexto de uma lngua dada.

    Nossa percepo da fala sofre influncia do sistema fonolgico. Um falante do portugus sabe produzir o som [p] e sabe que este som ocorre em palavras como 'pata', 'pingo' etc. Da mesma forma conhece o som [b] em palavras como 'bata', 'bingo' etc. Os segmentos fnicos [p] e [b] ocorrem, portanto, em portugus e a diferena entre eles constitui uma diferena fonolgica, pois corresponde a uma diferena no significado das palavras pata: bata, pingo: bingo. Esses dois sons possuem caractersticas comuns e opem-se apenas pelo fato de um ser sonoro (b] e o outro surdo [p]. No verdade, porm, que a mesma unidade fonolgica se manifeste sempre como a mesma unidade fontica. A lngua , como sabemos, um sistema de identidades e diferenas: as unidades lingsticas conhecem-se por suas identidades e distinguem-se por suas diferenas. A gramtica de uma lngua in-forma quais as unidades fonolgicas, distintivas, de uma lngua, quais traos fonticos so fonolgicos e quais so no fonolgicos ou pre-dizveis. fonologia interessam apenas os traos distintivos enquanto fontica interessam todos os traos.

    Alm da funo opositiva, que diferencia palavras, assinala Tru-betzkoy uma outra funo, delimitativa ou demarcativa, que o fonema

  • 38 iniciao fontica e fonologia

    pode ter dentro da cadeia fnica. A debilidade mxima da slaba tona final e a mnima da slaba tona inicial concorrem para a delimitao de vocbulo, por exemplo em de leite: deleite; de vida: dvida; contra pr: contrapor; de sabores: dissabores; s sobraram: soobraram.

    No ltimo exemplo a delimitao se faz a partir da tonicidade do monosslabo e a atonicidade da slaba inicial. Vale lembrar, a esta altura, que numa anlise fontica elementar podemos distinguir slabas acentuadas (tnicas) e inacentuadas (tonas). O acento tnico em portugus tem valor fonmico oposio significativa a partir da sua posio e pode ser denominado fonema suprassegmental, e expresso foneticamente no s pelo aumento da intensidade como tambm pela durao e por uma variao da altura meldica (som). A posio da slaba tnica no vocbulo varivel (ltima, penltima e antepenltima) e pela variabilidade de sua posio que o acento tnico tem valor fonmico, isto , distintivo. Em 'sabi', 'sabia', 'sbia' o nico trao a diferir os vocbulos o acento tnico. Em relao s slabas tonas possvel a depreenso de graus variveis de atonicidade a partir de sua posio no sintagma: pretnica (inicial de vocbulo ou no), postnica (final ou no final). So estes graus (mximo, mdio, mnimo) de atonicidade que concorrem para a deli-mitao do vocbulo dentro da cadeia fnica, como assinalamos h pouco.

    Os traos prosdicos ou suprassegmentais, como a durao, o tom, a intensidade, tm tambm funes expressivas e, portanto, devem ser levados em conta numa descrio fonolgica.

    Um outro elemento prosdico que deve ser considerado a pausa que, na escrita, representada pelos sinais de pontuao. A pausa pode ter uma funo distintiva ou apenas expressiva.

    b) Os traos distintivos

    Em fonologia traos distintivos, tambm chamados funcionais, perti-nentes ou relevantes, referem-se a unidades mnimas, contrastivas, e so aqueles que para alguns lingistas, especialmente os seguidores da escola de Praga, iro distinguir entre si os elementos lexicais. O carter infinito das possibilidades humanas de articulao e o fato admitido de que um mesmo indivduo no realiza nunca, duas vezes seguidas, o mesmo som de maneira idntica, no impedem que se identifique sempre determinado som de uma lngua, cada vez que ouvido, como sendo o mesmo som e no outro. Para aqueles lingistas,

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    o que torna essa identificao possvel o chamado trao distintivo, que pode ser definido, por seus componentes articulatrios e/ou acs-ticos.

    A. Martinet define o trao distintivo ou pertinente como aquele trao fnico que, sozinho, permite distinguir um signo, uma palavra ou um enunciado de outro signo, palavra ou enunciado.

    O fonema pode ser realizado por vrios traos de sons. A presena ou ausncia de certos traos ope, por sua vez, o fonema a todos os demais fonemas da lngua. So esses traos que constituem as unidades mnimas e indivisveis, e Jakobson vem a estabelecer mais tarde no o quadro de fonemas, mas o de traos fnicos que funcionam numa lngua e caracterizam os fonemas. Resta depreenderem-se os traos distintivos da fonmica de uma lngua dentre todos os que a fontica nos faz conhecer. Sabe-se que nem todas as particularidades fnicas do fonema so relevantes (ou pertinentes), isto , desempenham funo lingstica dentro do sistema cada fonema se caracteriza por algu-mas de suas particularidades fnicas em oposio a outro.

    Muitos sons diferentes podem ter a mesma funo de distinguir palavras. O lingista ir consider-los variantes no distintivas de uma nica unidade estrutural, o fonema. Os fonemas, por sua vez, podem ser organizados em sistemas maiores, tais como um sistema de voc-licos e um sistema de fonemas consonnticos.

    So os traos articulatrios ou acsticos pertinentes aqueles que servem para caracterizar um fonema em face de outro que tem com ele traos comuns que importam ao lingista. a partir desses traos que se organizam os sistemas fonolgicos das lnguas. Nem todos os sistemas so iguais, eles apresentam divergncias de lngua para lngua, seja pelo nmero diferente de fonemas, seja pela distri-buio desses fonemas no sistema (cf. II, 2).

    Uma diferena mnima entre duas unidades da lngua constitui um trao distintivo. Mediante um ou outro trao distintivo, uma unidade lingstica ope-se a outros elementos. Tomando por base o sistema fonolgico da lngua portuguesa, a consoante [b] funciona como sonora e no surda em relao ao |p], como no nasal em relao ao [m], como no contnua em relao ao [v]. A articulao labial comum aos trs segmentos fnicos, a sonoridade e a articulao labial a [b] e [m] e a no nasalidade a [b] e [p]. A oralidade, a labialidade e a sonoridade so comuns a [b] e [v]. Certos elementos constantes numa unidade no implicam uma oposio: diante de [i], as consoantes [t] e [d] apresentam freqentemente palatalizao sem que nenhum par de palavras da lngua portuguesa se oponha porque

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    essa palatalizao existe ou no: o significado da palavra ser sempre o mesmo, independente da forma como pronunciado.

    Aos elementos que, ao menos em certos contextos, so constantes embora no constituam uma oposio, chamamos de redundantes: no so funcionais e tm apenas uma funo auxiliar. Duas unidades so opostas entre si quando possuem um trao ou traos comuns e outro diferente. O trao de sonoridade que distingue as consoantes [b] e Cp] distingue tambm [t] e [d], [f] e [v] etc. O elemento, marcado, tem valor positivo ao passo que o outro ser negativo: ([b] [+ sonora] e [p] [ - sonora], o que eqivale a dizer que o primeiro sonoro e o segundo surdo, sem vibrao das cordas vocais.

    Os traos tm de abranger todos os contrastes necessrios dentro de uma lngua, j que devem diferenar fonemas. Com referncia a traos que indicam caractersticas opostas podemos empregar um sistema binrio. O esquema classificatrio tradicional, em que h trs alturas para as vogais (alta, mdia, baixa) ou vrios pontos de articu-lao para a consoante (bilabial, labiodental, linguodental) uma classificao no binria. Num sistema binrio, ao invs de dois rtulos separados como, por exemplo, surdo e sonoro, podemos estabelecer apenas um trao distintivo sonoro, antepondo um sinal positivo (+) ou negativo (-) para mostrar se o atributo se faz presente ou no.

    Os traos distintivos so binrios apenas no nvel fonmico clas-sificatrio ou sistemtico, no necessariamente no nvel fontico. Neste, diferentes graus de sonoridade, nasalidade, aspirao etc. podem ser expressos por meio de dgitos.

    Qualquer sistema lingstico pode ser descrito em termos dos valores (+) ou (-). Dois segmentos so distintos se os valores (+) ou (-) se contrapem apenas por um dos traos, j que certas caracters-ticas fsicas so decisivas para a identificao de unidades e outras no o so.

    Os traos tm sua base na fontica. Podem ser articulatrios ( alto, soante etc.), perceptual ( silbico, acento), acstico ( compacto). Estabelecer um conjunto de traos suficientes e necessrios para dar conta dos contrastes e processos uma das tarefas da fonologia (cf. II. 3 ) .

    Os mais difundidos nos trabalhos sobre o portugus so os de JAKOBSON, FANT & HALLE ( 1 9 6 1 ) e o s d e CHOMSKY & HALLE ( 1 9 6 8 ) . Estes dois sistemas diferem em seus objetivos e em seus pontos de partida. O de Jakobson, Fant & Halle parte da caracterizao acstica dos sons e visa a fornecer um nmero mnimo de traos capazes de distinguir todos os contrastes existentes nas lnguas. J o de Chomsky

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    & Halle tem uma base articulatria e foi construdo no apenas para dar conta de todas as oposies mas tambm formular as regras fonolgicas de forma a mostrar a naturalidade dos processos gerais comuns aos diferentes nveis. MARTINET (1968) critica o sistema de traos distintivos de Jakobson-Fant-Halle por consider-lo apriorstico, um sistema preestabelecido para o qual seus autores postularam uma validez geral. Admite aquele lingista a necessidade de definir as oposies em termos da substncia sonora, mas no aceita a validade geral do princpio de eleio binria.

    A gramtica gerativa contestou o arcabouo organizacional da gramtica estruturalista. Para os estruturalistas, a gramtica de uma lngua se constituiria em diversos nveis de descrio. O nvel fono-lgico seria distinto do morfofonmico e morfolgico. Segundo os gerativistas esta concepo de gramtica na qual o fonema repre-senta um papel capital s servia para atomizar a descrio do processo. A gramtica gerativa passou a operar com os traos, aban-donando o fonema como unidade necessria.

    No se chegou a um acordo satisfatrio sobre as propriedades formais da teoria fonolgica, se a anlise em termos de traos distin-tivos por demais complexa, ou se pressupem sempre os fonemas como unidades. Ainda parece til para alguns admitir um conjunto de abstraes subjacentes fonemas, ou algo semelhante que podem manifestar-se de diversas formas sob certas condies. HALLE (1964) dizia textualmente que o status do fonema da lingstica anlogo ao dos elctrons na fsica, e, assim como no se considera serem estes fices, no h motivo para se aplicar o termo aos fonemas. Eles so to reais quanto qualquer outra unidade terica na cincia.

    Nos estudos fonolgicos, nesses ltimos anos, novas teorias foram surgindo. fonologia estrutural e fonologia gerativa seguem-se a fonologia natural, a fonologia gerativa natural, a fonologia autosseg-mental etc., sempre visando a solucionar e/ou simplificar problemas de descrio levantados por cada uma dessas ao longo do tempo.

    O trabalho atual em fonologia est demonstrando que a riqueza dos sistemas fonolgicos no consiste nos arranjos estruturais de fonemas, mas antes nos intrincados sistemas de regras pelas quais esses arranjos so formados, modificados e elaborados.

    c) Fonemas e variantes. O arquifonema Mantenha-se ou no o conceito de fonema na lingstica futura, ter sido ele extremamente valioso para outros aspectos da estrutura lin-gstica.

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    H, como sabemos, vrias definies de fonema. O que importa que todas elas o veem como uma entidade abstrata que se manifesta atravs de segmentos fnicos.

    Se eliminarmos os detalhes fonticos, que no tm papel distintivo na lngua, poderemos representar os segmentos fnicos atravs de uma escrita fonmica. O fonema individualiza-se e ganha realidade pelo seu contraste com outros feixes em idnticos (ou anlogos) ambientes fonticos. A operao de comutao, usada para depreender os fone-mas de uma lngua determinada, consiste em substituir num vocbulo uma parte fnica por outra de maneira a obter um outro vocbulo da lngua: pala: bala: mala: sala: fala: vala etc.

    Cada lngua tem os seus prprios fonemas, que so elementos fnicos dotados de funo representativa no sistema. Vimos que nem todas as particularidades fnicas do fonema so relevantes ou perti-nentes, isto , tm funo distintiva. Cada fonema se caracteriza por algumas de suas particularidades fnicas em oposio a outro. Se examinarmos os vocbulos pala, bala, tua, sua, cinco, zinco, podemos concluir que segmentos que se diferenciam por apenas um trao podem representar dois fonemas distintos.

    Temos na lngua portuguesa 26 fonemas segmentals (19 consoan-tes e 7 vogais). Possumos, ainda, um fonema suprassegmental, o acento, que no um segmento e sim uma qualidade que se superpe a certos segmentos. Formas como pique:piqui, beijo:beiju, dvida:di-vida opem-se entre si apenas pela posio do acento tnico.

    O fonema pode variar na sua realizao. Aos vrios sons que realizam o mesmo fonema damos o nome de variantes, elementos que a descrio fonolgica de uma lngua no deve deixar de lado. Uma variante apresenta-se como manifestao substancial de uma unidade abstrata ou como variante do padro que representaria essa unidade. A fonemizao implica a reduo de um nmero ilimitado de variantes a um nmero limitado de invariantes.

    Diz-se tradicionalmente que as variantes ou alofones podem ser de vrios tipos: posicionais, regionais, estilsticas, livres ou facultati-vas. As variantes posicionais ou combinatrias so as que mais inte-ressam aos foneticistas, pois decorrem do prprio contexto fnico em que ele realizado. Por exemplo, os fonemas /t/ e /d/ apresentam em certos dialetos do portugus uma realizao palatal diante de /i/ (tira, ditado, limite) e uma realizao alveolar ou dental diante das outras vogais (tua, tela, docas, dado).

    O tipo de variao que os lingistas chamavam, tradicionalmente, variao livre, era explicado como decorrente de caractersticas indi-

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    viduais do falante, independente de qualquer fator condicionante. LABOV (1969) veio a demonstrar que a variao aparentemente livre sempre determinada por fatores extra e intralingusticos de forma predizvel e existe at no nvel do idioleto. O pesquisador no ter condies de predizer em que ocasio um indivduo falar desta ou daquela maneira, dir (kru] ou [khu] (carro), por exemplo, mas poder mostrar que, dependendo da classe social a que pertena, do sexo, da idade etc., ele usar uma outra variante, aproximadamente x por cento em mdia numa dada situao. A variao lingstica, em geral, condicionada de forma consistente dentro de cada grupo social, dentro de cada regio e seria parte integrante da competncia lings-tica. A formulao de Labov pressupe, portanto, ser a variao inerente ao sistema da lngua.

    Dentro do estruturalismo europeu, temos de lembrar ainda o conceito de neutralizao, que no deve ser confundido com o de variao. Existe neutralizao quando h uma supresso das oposies entre dois ou mais fonemas em determinados contextos, isto , quando uma oposio anulada ou neutralizada. No sistema fonolgico do portugus, em posio pretnica, h uma neutralizao entre [e] e [s] e [o] e [o], cuja oposio funcional em posio tnica. Em posio tona os dois fonemas correlativos tornam-se intercambiveis sem que isso altere o significado da forma. O conceito de neutralizao e o de arquifonema (realizao no marcada resultante da neutralizao) aparece com Trubetzkoy e seus companheiros do Crculo Lingstico de Praga. Em casos de neutralizao a realizao acstica j no corresponde a um dos fonemas intercambiveis, mas a um arquifonema que compreende ambos. Lembrando a distino do lingista Eugnio Coseriu entre sistema norma fala, vale observar que a realizao indiferente do ponto de vista do sistema funcional mas poucas vezes ser indiferente do ponto de vista da norma. No Rio de Janeiro e no Sul do pas, em geral, esse arquifonema ser realizado com timbre mais fechado, [e] ou [o], enquanto no Nordeste o timbre mais aberto ocorre com maior freqncia, [e] e [D] AS normas variam, portanto, de regio para regio.

    Algumas correntes no aceitam a noo de neutralizao e prefe-rem tratar o fenmeno dentro da morfofonologia ou morfofonmica.

    d) Processos fonolgicos

    A lngua dinmica por sua prpria natureza e est sujeita a modifi-caes. Em qualquer momento, quando se combinam elementos para

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    formar palavras ou frases ocorre uma srie de modificaes, determi-nadas por fatores fonticos, morfolgicos e sintticos. Fatores pros-dicos como o acento da palavra ou da frase, a entoao ou a velocidade da elocuo so aspectos que tambm devem ser levados em consi-derao. Por exemplo, uma vogai em slaba no acentuada no se comporta da mesma forma que a sua correspondente tnica. As posi-es tonas, por serem mais dbeis, favorecem o processo fonolgico da neutralizao, j referido em item anterior.

    Temos de levar em considerao tanto os processos fnicos que ocorrem nas palavras isoladamente quanto as modificaes que sofrem as palavras por influncia de outras com que esto em contato na frase.

    As modificaes sofridas pelos segmentos no eixo sintagmtico podem alterar ou acrescentar traos, eliminar ou inserir segmentos. Algumas dessas alteraes ocorrem sistematicamente e atuam sobre o nvel fonolgico da lngua, outras afetam apenas o nvel fontico, ocorrendo assistematicamente. Podemos observar o funcionamento desses processos fonolgicos (e/ou fonticos) do portugus no mo-mento sincrnico, assim como possvel encontrar exemplos na evo-luo do latim para o portugus. Os processos que produziram mu-danas histricas so os mesmos que estamos testemunhando a cada momento hoje. O comportamento fonolgico no amorfo, mas, ao contrrio, o aspecto mais estruturado da lngua.

    Podemos agrupar esses processos fonolgicos em: 1) processos que acrescentam traos ou mudam a especificao

    dos traos (o processo de assimilao um dos mais conhecidos e tambm responsvel por um grande nmero de alteraes fnicas). Podemos citar os processos de nasalizao e palata-lizao que fazem com que, por exemplo, uma vogai se torne nasalizada diante de consoante nasal (cama, tnica) ou uma consoante se realize como palatal quando diante de vogai anterior palatal (tira, diabo) etc. Os processos conhecidos como harmonizao voclica e metafonia tambm se incluem neste item. No primeiro caso, ocorre uma ao assimilatria da vogai tnica sobre a pretnica (m[i]nino, f[i]liz, f[u]rmiga, c[u]stu-me); no segundo, ao assimilatria da tona sobre a tnica. A metafonia o processo diacrnico que ir explicar a passagem de metu a m[e]du; sincronicamente, plurais como form[o]sos, comp[o]stos que a norma culta rejeita explicam-se tambm por extenso da regra de metafonia;

    2) processos que inserem segmentos (por exemplo, a ditongao, a epntese etc., que iro explicar o aparecimento de uma

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    semivogal em rapa[y]z e de uma vogai em ab[i]soluto, ad[i]vo-gado, t(a]ramela, respectivamente);

    3) processos que apagam segmentos (pronncias como o[kl]os, xi[kr]a, 'pera' por 'espera a', tradicionalmente denominados sncope, afrese, apcope, a depender da posio em que se encontre a vogai).

    Esses trs grupos de processos abarcam numerosos exemplos de mudanas e atuam sobre a estrutura da slaba. Podem ocorrer alteraes na distribuio de vogais e consoantes, mudana de classe principal, enfraquecimento ou reforo, sempre segundo a posio do segmento no vocbulo ou no sintagma. No registro informal e na linguagem popular podemos encontrar a cada passo exemplos que demonstram essa dinmica da lngua.

    Tratamos aqui apenas de alguns processos, mas queremos deixar assinalado que a maioria deles pode ser explicada por fenmenos articulatrios e perceptuais.

    e) Relao grafema-som-fonema

    Para reproduzirmos na escrita as seqncias fnicas da nossa lngua, usamos sinais grficos representativos desses sons: so os chamados grafemas ou letras. No h uma correspondncia exata entre o nmero de grafemas e o de fonemas na lngua. Dois grafemas (dgrafos) podem representar um fonema, como o caso de rr, ss, ch etc. Existe um sistema ortogrfico que rege essa representao na lngua escrita. A ortografia vigente hoje no Brasil a oficialmente adotada nas normas do Vocabulrio Ortogrfico de 2008 com as alteraes determinadas pelo Decreto n2 6.583 de 29 de setembro de 2008.

    Discute-se muito atualmente a possibilidade de uma reforma or-togrfica que leve em conta no apenas as relaes entre a pronncia e a ortografia portuguesas (do Brasil e de Portugal) mas tambm procure aproximar o sistema de fonemas do sistema de grafemas. No podemos esquecer, no entanto, que quanto mais uma lngua se desen-volve, mais o sistema ortogrfico se afasta do sistema fonolgico, como ocorre no ingls e no francs.

    Um sistema integrado grafema-fonema parece ser invivel. Num pas como o Brasil (oito e meio milhes de quilmetros quadrados e cerca de cento e cinqenta milhes de habitantes) qualquer tentativa de aproximao seria precria e deixaria a desejar, j que teramos de levar em conta todas as diferenas regionais, socioculturais e at

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    mesmo se chegarmos s ltimas conseqncias individuais. Que pronncia, que variante tomar como base, como modelo? A dos grandes centros urbanos (que no so tantos e so to diferenciados), a da classe social mais privilegiada, que representa uma minoria, em nosso pas?

    O problema da relao grafema-som-fonema coloca-se de imedia-to no momento da alfabetizao (ler e escrever) (cf. V. 2). A esta altura, no podemos esquecer que a) quando falamos no realizamos fonemas (entidade abstrata), realizamos fones (elemento concreto) e b) quando escrevemos devemos representar esses sons atravs de grafemas ou letras. No nos parece impossvel procurar mostrar que-les que se alfabetizam que um determinado som da nossa lngua pode ser representado por diferentes grafemas e, por outro lado, que um nico grafema pode corresponder a diversas realizaes fnicas. As razes para o alto ndice de analfabetismo em nosso pas so muito mais poltico-sociais que lingsticas.

    Sistemas de transcrio fontica e fonmica existem vrios e j nos do a indicao da dificuldade de uma nica forma de repre-sentao grfica. Um exemplo clssico dessa simplificao ortogrfica por muitos proposta a da letra s para representar o som [z] (casa, mesa) e de ss, c, ex (posso, cedo, lao, prximo) para representarem o som [s]. Por que no representar o som [s] sempre por j e o som [z] pela letra z, indagam alguns. Poderamos lembrar: 1) o problema das palavras homfonas como coser, cozer; expiar, espiar; cesso, sesso, seo etc.; 2) um exemplo como o das palavras aterrisar e subsdios, para as quais existem normalmente duas pronncias aterri[s]ar e aterri[z]ar, sub[s]dios e sub[z]dios. Para resolver o caso dessa variao transcreveramos, opcionalmente, das duas maneiras, (s ou ss) como j o fazem alguns lexicgrafos brasileiros para o primeiro exemplo? Para a alternncia do tipo Rlejcife, R[i]cife, R[e]cife, teramos uma dupla possibilidade, tambm?

    O estudo das relaes entre grafemas e sons tem sido objeto de reflexo por parte de lingistas, nacionais ou no, sempre atentos ao aspecto da variao dialetal. Deixando de lado o problema de uma reforma ortogrfica radical, poderamos tentar estabelecer quadros de correspondncias dos dois sistemas.

    No primeiro estgio do processo de alfabetizao, a criana (ou adulto) vai aprender que as letras servem de smbolo para os segmentos fnicos da lngua. A dificuldade inicial que a hiptese de biunivo-cidade letra-fone limitada e varia de dialeto para dialeto. Um exame de erros de ortografia na escola deveria constituir um mtodo valioso

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    de investigao para o lingista, pois esses erros refletem geralmente uma falta de correspondncia entre o sistema de fonemas e o sistema de grafemas (cf. V. 2).

    Os estudiosos que preconizam uma reforma ortogrfica pautada na pronncia parecem partir do pressuposto de que s existe uma apenas uma pronncia aceitvel para cada palavra da lngua. As pesquisas empreendidas nos ltimos anos mostram que no h uma unidade de pronncia no Brasil e que o nvel fontico aquele que reflete mais imediatamente as diferenas regionais e sociais. No se pode tomar como modelo, como norma, a pronncia de uma pessoa, de uma nica classe social e at de uma nica regio. Tomar como base o sistema fonolgico que talvez seja um s seria tambm complexo, pois aquele deveria reproduzir o que o falante tem inter-nalizado.

    Mudanas fonticas e fonolgicas esto sempre em curso e um sistema ortogrfico no poder nunca acompanh-las. A ortografia no acompanhou, por exemplo, as mudanas do [1] velarizado de final de slaba em [w] nem tampouco a monotongao do ditongo [ow] em [o] ocorridas em grande parte do Brasil.

    Para as dificuldades ortogrficas que os estudantes (at mesmo universitrios) muitas vezes apresentam no haveria tambm razes de carter educacional, da prpria poltica de ensino no pas? A reforma que acabou com a obrigatoriedade do ensino do latim no primeiro e segundo graus em nossas escolas certamente trouxe prejuzos numa aprendizagem mais globalizante, j que se passou a conhecer menos a histria de nossa lngua e consequentemente a no reconhecer, por exemplo, a grafia de uma palavra por motivos etimolgicos. Tambm o enfoque puramente sincrnico dado ao ensino contribui negativa-mente para um conhecimento mais aprofundado da lngua portuguesa.

    Acreditar que se possa chegar a um sistema de escrita homogneo e que reproduza de forma biunvoca a fala, como soluo para o problema dos erros ortogrficos, ignorar a enorme variabilidade do comportamento lingstico e sociocultural.

  • II

    A evoluo dos estudos de fontica e fonologia

    1. DA FONTICA ARTICULATORS AOS ESTUDOS EXPERIMENTAIS

    a partir do sculo XIX que a fontica, entendida como cincia dos sons e sua classificao, comea a se constituir como um domnio definido nos estudos das lnguas, separando-se do estudo da pronncia correta dos smbolos grficos.

    Durante a hegemonia do pensamento grego, e, posteriormente, do mundo latino, o estudo fontico se limitava ao estabelecimento do valor das letras do alfabeto da lngua escrita e os sons das lnguas estrangeiras eram aproximados e reduzidos ao valor das letras do alfabeto grego e do latino.

    Mesmo assim, deve-se a Plato um primeiro embrio de classifi-cao dos sons, ao colocar em grupos distintos as vogais e as con-soantes do grego e, dentre estas, separar as oclusivas das contnuas. E foram os estoicos os primeiros a reconhecer que o estudo dos sons deveria ser diferenciado do estudo da escrita, ao atriburem para cada letra um valor fontico (a pronncia), uma forma escrita (a,13) e um nome (alfa, beta etc.).

    Porm, tal como nas descries dos romanos, suas classificaes eram calcadas em termos acsticos e, por no contarem com a apare-lhagem indispensvel para esse tipo de estudo, a terminologia era inapropriada e impressionstica. Os rabes e os hindus tiveram mais sucesso nesse empreendimento ao tomarem como base uma descrio articulatria.

    Uma das primeiras descries fonticas independente da escrita se deve a um gramtico islands annimo, que, no sculo XII, preo-cupado com a reforma ortogrfica, fez meticulosas observaes sobre a pronncia de sua lngua. Mostrou ele a potencialidade de 36 seg-mentos voclicos diferenciados e conseguiu elaborar um sistema de

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  • a evoluo dos estudos de fontica e fonologia 49

    transcrio com o uso de novos smbolos e letras j conhecidas, aos quais foram acrescidos diacrticos. Assim, alm de antecipar um alfabeto fontico, adiantou alguns princpios fonmicos, que s viriam a ser elaborados plenamente no sculo XX, ao estipular que s deveria ser transcrito o que constitusse uma pronncia contrastiva. Infeliz-mente, seu trabalho s foi publicado no sculo XIX e seu conhecimento se restringiu Escandinvia, ficando sua contribuio margem do desenvolvimento ocorrido durante aquele sculo na Europa.

    No mundo islmico, o persa Sibawaih de Basra merece uma meno especial. Ele e outros gramticos rabes correlacionaram de modo sistemtico os rgos da fala e os mecanismos de produo de sons, interpretando as diferenas como causadas por obstrues diver-sas no aparelho fonador. Falharam, porm, na identificao do meca-nismo que produz a oposio surdo/sonoro, feito que se deve aos gramticos hindus. O interesse pela fontica demonstrado pelos gra-mticos rabes provinha do desejo de reconstituir a pronncia original dos textos sagrados do Coro. Entre os hindus o alvo era tambm fixar uma norma para os textos sagrados escritos em snscrito vdico, lngua dos hinos antigos. Para tal era necessrio reconstituir a pronncia antiga, reconstituio primordial,