calculadoras na sala de matemática, um estudo no 3.º ano de

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104 CALCULADORAS NA SALA DE AULA UMA INVESTIGAÇÃO NO 3.º ANO DE ESCOLARIDADE Marco Pereira Colégio Bernardette Romeira, Olhão [email protected] António Guerreiro Escola Superior de Educação, Universidade do Algarve [email protected] Resumo: Apesar da utilização da calculadora na exploração de regularidades numéricas, em tarefas de investigação e na resolução de problemas, estar explicitamente prevista nas orientações curriculares, a sua utilização no primeiro ciclo do ensino básico tem sido marginalizada pelos professores. Os argumentos contrários à sua utilização, como a crescente incapacidade/preguiça dos alunos na realização de cálculos mentais e na utilização dos algoritmos de papel e lápis, têm sido interiorizados de modo significativos por professores, encarregados de educação e pela sociedade em geral. Assim pareceu-nos relevante tentar perceber se os alunos do 1.º ciclo do ensino básico, após a utilização da calculadora em actividades matemáticas de sala de aula, se tornam dependentes desta e excessivamente preguiçosos para realizar cálculos mentais e utilizar os algoritmos das operações aritméticas fundamentais. Neste sentido, desenvolveu-se uma experiência na sala de aula do 3.º ano do 1.º ciclo do ensino básico do Colégio Bernardette Romeira, instituição do ensino particular e cooperativo, em Olhão, relativamente à utilização da calculadora básica em actividades numéricas. O estudo estruturou-se em três fases: uma primeira fase anterior à utilização da calculadora, uma segunda fase com uma utilização sistemática da calculadora e uma terceira fase em que a utilização da calculadora dependeria da iniciativa dos alunos. Após a realização de variadas tarefas matemáticas pelos alunos, com e sem a calculadora, parece-nos possível realçar a adequação da utilização desta às estratégias matemáticas anteriormente desenvolvidas pelos alunos e o seu recurso como instrumento de cálculo facilitador do método de tentativa e erro. Perspectivas teóricas A utilização da calculadora em actividades matemáticas no 1.º ciclo do ensino básico tem sido uma questão polémica, suscitando opiniões divergentes por parte de professores, investigadores e encarregados de educação. A automatização do cálculo sem compreensão nem esforço, associado ao uso da máquina de calcular básica, parece ser o principal pressuposto teórico dos opositores à sua integração, neste ciclo de ensino, como auxiliar de cálculo. Esta posição é sustentada por argumentos centrados na crescente incapacidade e preguiça dos alunos na realização de cálculos mentais e na utilização dos algoritmos de papel e lápis e na suposta deficiência existente entre os conhecimentos matemáticos dos nossos jovens em confronto com os conhecimentos matemáticos das gerações antecedentes.

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CALCULADORAS NA SALA DE AULA UMA INVESTIGAÇÃO NO 3.º ANO DE ESCOLARIDADE

Marco Pereira Colégio Bernardette Romeira, Olhão

[email protected]

António Guerreiro Escola Superior de Educação, Universidade do Algarve

[email protected]

Resumo: Apesar da utilização da calculadora na exploração de regularidades numéricas, em tarefas de investigação e na resolução de problemas, estar explicitamente prevista nas orientações curriculares, a sua utilização no primeiro ciclo do ensino básico tem sido marginalizada pelos professores. Os argumentos contrários à sua utilização, como a crescente incapacidade/preguiça dos alunos na realização de cálculos mentais e na utilização dos algoritmos de papel e lápis, têm sido interiorizados de modo significativos por professores, encarregados de educação e pela sociedade em geral. Assim pareceu-nos relevante tentar perceber se os alunos do 1.º ciclo do ensino básico, após a utilização da calculadora em actividades matemáticas de sala de aula, se tornam dependentes desta e excessivamente preguiçosos para realizar cálculos mentais e utilizar os algoritmos das operações aritméticas fundamentais. Neste sentido, desenvolveu-se uma experiência na sala de aula do 3.º ano do 1.º ciclo do ensino básico do Colégio Bernardette Romeira, instituição do ensino particular e cooperativo, em Olhão, relativamente à utilização da calculadora básica em actividades numéricas. O estudo estruturou-se em três fases: uma primeira fase anterior à utilização da calculadora, uma segunda fase com uma utilização sistemática da calculadora e uma terceira fase em que a utilização da calculadora dependeria da iniciativa dos alunos. Após a realização de variadas tarefas matemáticas pelos alunos, com e sem a calculadora, parece-nos possível realçar a adequação da utilização desta às estratégias matemáticas anteriormente desenvolvidas pelos alunos e o seu recurso como instrumento de cálculo facilitador do método de tentativa e erro.

Perspectivas teóricas A utilização da calculadora em actividades matemáticas no 1.º ciclo do ensino

básico tem sido uma questão polémica, suscitando opiniões divergentes por parte de professores, investigadores e encarregados de educação. A automatização do cálculo sem compreensão nem esforço, associado ao uso da máquina de calcular básica, parece ser o principal pressuposto teórico dos opositores à sua integração, neste ciclo de ensino, como auxiliar de cálculo.

Esta posição é sustentada por argumentos centrados na crescente incapacidade e preguiça dos alunos na realização de cálculos mentais e na utilização dos algoritmos de papel e lápis e na suposta deficiência existente entre os conhecimentos matemáticos dos nossos jovens em confronto com os conhecimentos matemáticos das gerações antecedentes.

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Esta visão que perpassa na sociedade parece ter bastante influência nos encarregados de educação, nos professores e nos próprios alunos, nos quais parecem predominar as representações da calculadora associadas às ideias de batota matemática e preguiça mental (Cole & Newson, 1996; Guerreiro & Pereira, 2007).

Esta concepção de ensino-aprendizagem, onde está ausente a utilização de máquinas de calcular apesar da sua omnipresença nos contextos sociais e de trabalho, liga-se intimamente às representações tradicionais da escola como local de aprendizagem isolado do contexto social e de trabalho (Cole & Newson, 1996), e ao treino do cálculo algorítmico totalmente descontextualizado das vivências sociais.

Em oposição a esta concepção de ensino, o Programa de Matemática do Ensino Básico reafirma e reforça o Programa de Matemática do 1.º ciclo de 1991 ao defender a compreensão dos procedimentos algorítmicos e outros e a utilização da calculadora, desde os primeiros anos, como auxiliar de cálculo, “na exploração de regularidades numéricas, em tarefas de investigação e na resolução de problemas, ou seja, em situações em que o objectivo não é o desenvolvimento da capacidade de cálculo” (DGIDC/ME, 2007).

Apesar de a utilização da calculadora se encontrar explicitamente prevista na leccionação do 4.º ano, desde 1991, a sua utilização no 1.º ciclo do ensino básico tem sido diminuta (APM, 1998; DEB, 1991). A ausência de calculadoras elementares nestas escolas, não obstante o seu baixo custo, reforça a ideia de um ensino ainda muito remetido para as técnicas de quadro, papel e lápis, e divorciado dos avanços tecnológicos da sociedade.

É certo que as calculadoras facilitam as tarefas de cálculo, mas não compreendem os problemas, não escrevem a expressão de cálculo adequada, não interpretam a solução nem escrevem a resposta apropriada. As calculadoras não compreendem matemática, só executam cálculos eficientes e exactos (Gilliland, 2002), mas podem proporcionar uma outra forma de compreender os processos matemáticos e dar mais tempo aos alunos para verbalizarem as suas estratégias, ideias e significados matemáticos (Assude, 2006).

Deste modo, uma prática de sala de aula onde a calculadora é utilizada de modo inteligente e é recusada na execução de cálculos imediatos, valoriza o conhecimento matemático sem desvirtuar a importância do cálculo mental e da compreensão dos algoritmos de papel e lápis e reforça os momentos de comunicação matemática. Neste tipo de prática de sala de aula, a calculadora não se substitui ao cálculo escrito – algorítmico e outro – ou ao cálculo mental, mas afirma-se como um instrumento de cálculo facilitador de explorações numéricas, resolução de problemas e investigações matemáticas (Ponte, 2003).

O uso apropriado da calculadora não resulta assim no atrofiamento das capacidades de cálculo, mas, em vez disso, providencia uma oportunidade aos estudantes para se focarem na aprendizagem dos conceitos matemáticos (Heid, 1997). A calculadora é também promotora de uma actividade matemática de experimentação, de criação de hipóteses e conjecturas matemáticas, tendo os alunos mais oportunidades para tomar decisões e maior liberdade para discutir os resultados (Mamede, 2002).

A utilização inteligente da calculadora requer uma responsabilidade acrescida do professor, na planificação das tarefas adequadas ao seu uso (Fernandes, 2008), e do aluno, na capacidade de decisão em relação à adequação do uso da calculadora na resolução das tarefas propostas pelo professor.

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Questão de pesquisa

Esta dupla responsabilização remeteu-nos para o questionamento da atitude dos professores na integração da calculadora nas suas práticas de sala de aula e dos alunos em relação ao uso continuado da calculadora, após a realização de um conjunto de tarefas de natureza numérica adequadas ao seu uso. Foi deste questionamento sobre as atitudes dos alunos que resultou a nossa questão de pesquisa:

Será que os alunos do 1.º ciclo do ensino básico, após a utilização da calculadora em actividades matemáticas de sala de aula, se tornam dependentes desta e excessivamente preguiçosos para realizar cálculos mentais e utilizar os algoritmos das operações aritméticas fundamentais?

Participantes e recolha de dados

Tendo presente o papel da calculadora como um recurso de cálculo ao dispor dos alunos, nomeadamente na aprendizagem dos números e operações, delineou-se uma intervenção numa sala de aula do 3.º ano de escolaridade do Colégio Bernardette Romeira, instituição do ensino particular e cooperativo, em Olhão.

A turma é constituída por 16 rapazes e 12 raparigas e tem como professor o primeiro co-autor deste estudo, desde o 2.º ano de escolaridade. Usualmente, os alunos trabalham cooperativamente em grupos de quatro elementos e o professor apresenta a tarefa matemática a realizar, discutindo com eles alguns aspectos como a clarificação de conceitos ou de vocabulário do enunciado da tarefa.

De seguida, os alunos desenvolvem autonomamente as actividades em grupo. Após a realização da tarefa, cada um dos grupos apresenta aos restantes elementos da turma, com apoio nos registos efectuados em folhas de papel A3 ou reescritos no quadro, as estratégias utilizadas, os resultados obtidos e a solução da tarefa proposta.

Com vista ao estudo da influência da calculadora nas atitudes dos alunos em relação ao cálculo mental e algorítmico, estruturou-se uma pequena investigação em três fases: uma primeira fase anterior à utilização da calculadora, uma segunda fase com uma utilização sistemática da calculadora e uma terceira fase em que a utilização da calculadora dependeria da iniciativa dos alunos.

Na primeira fase, recolheram-se dados relativos à utilização de estratégias aditivas, subtractivas e multiplicativas pelos alunos, no contexto da resolução de problemas. Na segunda fase, os alunos familiarizaram-se com a calculadora e utilizaram-na na resolução de um conjunto de tarefas matemáticas envolvendo regularidades e cálculos morosos. Na terceira e última fase confrontámos os alunos com algumas tarefas matemáticas, deixando ao seu livre arbítrio a utilização ou não da calculadora.

Ao longo das três fases, os dados foram recolhidos em registo vídeo e/ou áudio e complementados pelos registos escritos dos alunos. Neste artigo, apresentamos uma leitura global dos dados recolhidos ao longo das três fases, exemplificando com o desempenho particular de alguns dos grupos de alunos.

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Análise de dados

Na análise de dados optou-se por uma visão global do desempenho dos alunos,

através da identificação de regularidades entre os grupos entrelaçadas com alguns aspectos singulares. Para tal, optou-se por centrar a nossa análise em dois dos grupos de alunos que apresentam um percurso significativo e, em muitos aspectos, representativo do desempenho global da turma, conjugando nesta análise uma dimensão colectiva e uma dimensão individual.

Deste modo, a análise de dados foi construída salientando aspectos do desempenho e das justificações dos alunos dos dois grupos referidos. A análise de dados está construída, sequencialmente, em torno das três fases, anteriormente referidas, com incidência nas tarefas pensadas propositadamente para cada uma das fases deste estudo. Dentro de cada uma das fases, não nos pareceu relevante estruturar a análise de dados cronologicamente, mas respeitar a natureza das tarefas matemáticas realizadas pelos alunos.

Estratégias aditivas e multiplicativas dos alunos

A primeira fase decorreu em duas aulas, tendo por base a realização de dois problemas. O primeiro problema remetia os alunos para a identificação do peso total de sete bonecas de ouro, sabendo que cada uma dessas bonecas era 2 gramas mais pesada do que a anterior e que a mais pesada tinha 124 gramas. O segundo problema remetia os alunos para o cálculo da distância percorrida por um asteróide, à velocidade de 12 km por segundo, ao fim de 30 segundos, 1 minuto e 10 minutos.

No primeiro problema, os alunos determinaram os pesos das sete bonecas a partir de subtracções sucessivas de 2, com início em 124. Posteriormente adicionaram os valores obtidos utilizando o algoritmo usual da adição ou a composição e decomposição das parcelas aditivas, na obtenção do valor total do peso das sete bonecas.

No segundo problema, um grupo utilizou a relação de 12 km igual a 1 segundo para efectuar os cálculos referentes à primeira questão – 30 segundos – por duplicação e, em seguida, por decuplicação, utilizando implicitamente o conceito de função na resolução deste problema multiplicativo. Os restantes grupos optaram por efectuar o produto de doze por trinta, através da decomposição do factor 30 em 10 + 10 + 10, que resultou com sucesso, na resolução do problema, ou do factor 12 em 10 + 2.

A utilização pelos alunos de estratégias informais de cálculo, nomeadamente por decomposição dos números em parcelas, por duplicação e decuplicação, é uma das características mais marcantes do trabalho apresentado por estes alunos nesta fase do estudo.

Utilização da calculadora em actividades de investigação

A segunda fase decorreu ao longo de duas semanas em que os alunos utilizaram calculadoras básicas na resolução de tarefas matemáticas com características de investigação numérica e de cálculo de grandes números. Após um primeiro contacto de

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exploração livre da calculadora e de reconhecimento dos procedimentos básicos de cálculo, foram propostas aos alunos quatro tarefas matemáticas, em três aulas, de investigação e cálculo de grandes números. A primeira e a terceira destas tarefas apresentam características de investigação matemáticas, as restantes remetem-nos para grandes números.

Nas duas tarefas com características de investigação – a determinação de números consecutivos, conhecida a sua soma, e a determinação de dois números, conhecida a sua soma e produto – os alunos utilizaram o método de tentativa e erro, apoiados pela calculadora. Nestas tarefas todos os grupos, com mínimas diferenças, utilizaram o mesmo tipo de estratégias e chegaram ao mesmo tipo de resultados.

Na apresentação da primeira tarefa – números consecutivos – alguns grupos apenas apresentavam os resultados obtidos e outros fizeram referência ao método de tentativa e erro e/ou à utilização da calculadora, como por exemplo «Para obter 45, nós fizemos algumas contas, muitas delas não deram, e depois vimos que 14 + 15 + 16 igual a 45» ou «Nós fomos experimentar várias maneiras com a calculadora, que não deram. Então descobrimos que 14 + 15 + 16 era igual a 45».

Quando os grupos foram questionados pelo professor sobre a importância da utilização da calculadora, os alunos referiram que utilizaram a calculadora para fazer as tentativas porque era mais rápido, fácil e divertido, bem como para verificar se as contas estavam correctas:

Professor: – Foi útil usar a calculadora? André B.: – Sim. Professor: – Porquê? Duarte: – Porque nós, algumas contas não tínhamos a certeza… André B.: – E depois íamos corrigir. Duarte: – Íamos corrigir à calculadora. Professor: – Iam como? Duarte: – Metíamos os números e depois, se desse a conta certa, nós

escrevíamos… Um outro grupo na explicação da quarta alínea, que se referia à soma de seis

números consecutivos cuja soma era 75, explicou: Thomas: – A quarta fizemos… Como nós sabíamos que eram seis

vezes fizemos… Como eram seis vezes, se somássemos só as dezenas dava 60, mas tinhas de arranjar números que dessem 15. Assim ficávamos com 75 e depois de muitas tentativas encontrámos. Os números eram 10, 11, 12, 13, 14 e 15.

Professor: – E a calculadora usaram porquê? André C.: – A última não precisámos porque era tipo um padrão. Professor: – Era tipo um padrão? André C.: – Sim. Catorze, dez, catorze, dez nas primeiras [refere-se à

primeira parcela da solução de cada uma das alíneas da tarefa].

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Este grupo explicou ao professor que utilizou a calculadora porque era mais rápido para fazerem as tentativas, mas que sem a calculadora conseguiriam chegar à solução depois de algum tempo. Na outra tarefa realizada com características de investigação – descobrir dois números, conhecidos a sua soma e o seu produto –, os alunos apresentaram do mesmo modo a estratégia associada à tentativa e erro com a utilização da calculadora para facilitar e minimizar o tempo de resolução.

Calculadora e grandes números

Nesta mesma fase foram propostas aos alunos duas tarefas envolvendo grandes números – potências de base dois e produto de algarismos nas ordens das centenas. Nestes casos, os alunos utilizaram uma conjugação de métodos de cálculo informal com a utilização da calculadora.

Na primeira destas tarefas – duplicação sucessiva de uma carta tipo abaixo-assinado até exceder num nível as 15.000 cópias –, os alunos utilizaram um esquema ilustrando a duplicação até à terceira duplicação e depois encontraram o número de cartas por duplicação dos valores. Para os níveis seguintes, os alunos optaram por utilizar a calculadora, como explica um dos alunos:

Duarte: – Resolvemos aquelas contas com a calculadora sempre a duplicar e depois chegámos à conclusão que era preciso catorze duplicações para atingir as 15.000 cartas.

Na outra tarefa – cálculo do tempo necessário para atender 300 pessoas a 30 segundos cada e número de guichés necessário para ao mesmo ritmo se atenderem 600 pessoas em 30 minutos –, os alunos utilizaram o conceito de função na relação de um minuto para duas pessoas ou por multiplicações e divisões directas com a utilização da calculadora. Um dos grupos que utilizou a calculadora obteve por resultado 2,5 horas, o que gerou uma discussão com os colegas sobre o significado matemático da expressão numérica. Para alguns alunos, 2,5 horas representavam 2 horas e 50 minutos, o que foi contestado pelo grupo explicando que 2,5 horas eram 2 horas e 30 minutos.

Quando o professor questionou os alunos sobre a utilização da calculadora nesta actividade com horas, os grupos referiram a pouco utilização que deram à máquina de calcular. O grupo efectuou cálculos, mas não os utilizou:

Duarte: – Nós utilizámos a calculadora, mas não serviu de nada.

Professor: – Porquê?

Duarte: – Porque nós não chegámos a nenhuma conclusão… Professor: – Mas para que é que utilizaram a calculadora? Quais

foram os cálculos que fizeram com a calculadora?

Duarte: – Nós estávamos enganados e pensávamos que era 0,30, mas…

Professor: – 0,30 quê?

Duarte: – Décimas de segundo…

Professor: – Décimas de segundo? E então fizeram o quê? Duarte: – Na máquina fizemos os cálculos…

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Professor: – Mas usaram esses cálculos? É o que eu estou a perguntar.

Duarte: – Não. O outro grupo utilizou a calculadora para calcular o número de segundos

necessários para 10 pessoas utilizando os múltiplos de 30: Professor: – Utilizaram a máquina de calcular?

Thomas: – Para esta não.

Professor: – Para a primeira não utilizaram? Thomas: – Não. Professor: – Em nenhuma circunstância? Thomas: – Só aqui nesta. Professor: – Só na qual? Thomas: – Nesta cor-de-rosa [cor da escrita na folha A3]. Professor: – Como assim? Para fazer o quê?

Thomas: – Para… Foi para descobrir… Nós fizemos assim… Nós carregámos no 30 e depois fomos carregando igual até chegar…

André C.: – Às 10 pessoas. Professor: – Até chegar ao 10 e depois não utilizaram mais? Thomas: – Não.

A segunda parte da tarefa foi resolvida pelos diferentes grupos utilizando

estratégias ligadas à proporcionalidade inversa com e sem o uso da calculadora. Nestas estratégias salienta-se que os alunos já sabiam que em 30 minutos eram atendidas 60 pessoas, resultando que necessitavam de 10 postos de venda. Os grupos utilizaram a divisão de 600 por 60 ou a adição sucessiva de 60 até atingir as 600 pessoas.

Da análise da segunda fase, podemos salientar a utilização pelos alunos de diferentes estratégias complementadas com o uso da calculadora, nomeadamente na descoberta de valores e no cálculo de múltiplos ou potências de um valor. A utilização directa do algoritmo na máquina foi o recurso dos alunos que apresentam mais dificuldades na explicação das tarefas.

Utilização indiscriminada da calculadora

Na última fase, confrontámos os alunos com algumas tarefas matemáticas, deixando ao seu livre arbítrio a utilização ou não da calculadora. Iniciou-se esta fase com um problema em que se pretendia comparar as poupanças de duas amigas – a Mariana poupa 13 € por mês num ano e a Joana poupa 27 € de dois em dois meses durante um ano. No início da actividade, todos os grupos optaram por utilizar a calculadora.

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Os alunos resolveram sem dificuldade a primeira situação, fazendo 13 vezes 12, em geral com a calculadora. Na segunda situação, alguns grupos utilizaram estratégias correctas conduzindo a 27 vezes 6, mas outros grupos apresentaram algumas dificuldades em interpretar o conceito de dois em dois meses. No final das apresentações, aos grupos que não tinham utilizado a estratégia correcta para o cálculo da poupança da Joana foi possibilitada a reformulação dos resultados. Alguns dos grupos, por iniciativa própria, foram rectificar os resultados anteriores.

A utilização da calculadora surge como auxiliar de cálculo sem autonomia de resolução, sendo contudo usada em cálculos que habitualmente os alunos fazem com estratégias mentais e escritas. Um dos alunos refere que «utilizámos a calculadora para saber o resultado, mas sabíamos a conta que tínhamos que fazer». Esta utilização é também justificada pelos alunos como uma opção associada à rapidez: «sem a calculadora levaríamos mais uns 5 ou 10 minutos» a fazer os cálculos. Depois desta actividade, os alunos foram alertados pelo professor em relação à utilização indiscriminada da máquina de calcular e à importância das suas estratégias e raciocínios de cálculo na resolução dos problemas.

De volta aos grandes números

Nesta terceira fase foi apresentada uma tarefa aos alunos a propósito do preço dos almoços no refeitório da sua Escola. Nesta tarefa era-lhes fornecida a informação de que 4 almoços custavam 26 € e eram questionados em relação ao preço de um almoço, ao dinheiro necessário para almoçar durante uma semana, um mês e um ano escolar.

Para determinarem o preço de um almoço, a generalidade dos grupos de alunos utilizaram duas divisões sucessivas por 2, transformando sucessivamente 26 em 13 e 13 em 6,50. Um dos grupos de alunos utilizou uma estratégia diferente para determinar a quarta parte de 26. Apresentou assim a sua estratégia:

Aluna: – Nós fizemos 4 vezes 4, dezasseis, 5 vezes 4 igual a vinte, 6 vezes 4 igual a vinte e quatro…

Aluno: – Sete vezes quatro igual a vinte e oito, e depois nós vimos que aqui entre este [24] e este [28] devia ser 26 e fizemos 6,50, que era os cêntimos, vezes 4 e deu 26.

Os alunos deste grupo clarificaram, junto aos colegas, que utilizaram os valores iniciais de 4 vezes 4, resultando dos 4 dias da semana pelo valor de 4 euros e assim sucessivamente até obterem o resultado pretendido. As estratégias utilizadas nas restantes alíneas do problema resultaram da combinação do valor da unidade com o valor de outros preços calculados anteriormente e/ou da soma dos produtos do número de almoços pela parte inteira e pela parte decimal do preço diário.

Alguns grupos de alunos afirmaram que só utilizaram a calculadora na última alínea [preço do almoço de 44 semanas] para fazer 6,50 € vezes 220 dias, obtendo 1430 €. O grupo que optou por multiplicar 32,5 € [valor semanal] pelo número de semanas, obtendo o valor correcto, explicou a utilização da calculadora do seguinte modo:

Duarte: – Nós achámos que não conseguíamos fazer a conta de cabeça e fizemos na calculadora.

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Dois dos grupos que disseram que não utilizaram a calculadora porque «não queriam ser preguiçosos» obtiveram resultados diferentes. Um dos grupos transformou as 44 semanas em 220 dias, correspondentes a 10 meses [de 22 dias úteis], e calculou o valor do preço dos almoços multiplicando o valor de um mês por 10, obtendo com sucesso o valor de 1430. O outro não calculou o preço dos almoços durante 44 semanas, mas o número de dias úteis correspondentes a este número de semanas. Um terceiro grupo que também não utilizou a máquina de calcular não conseguiu determinar correctamente o preço das quarenta e quatro semanas.

Ainda em torno dos cálculos com grandes números foi proposta aos alunos uma tarefa que consistia na determinação das páginas em que um livro estava aberto, sabendo que o seu produto era 12 656. Esta tarefa foi realizada pelos alunos por tentativa e erro com a utilização da calculadora. Um dos grupos começou por multiplicar dois valores que excediam o resultado e foram rapidamente diminuindo os valores, atingindo a solução procurada. A generalidade dos grupos utilizou a mesma estratégia, mas iniciando o cálculo a partir de valores inferiores na ordem das centenas.

Os alunos foram unânimes na justificação da utilidade da máquina de calcular na rapidez da multiplicação de centenas por centenas. Como explicam os alunos de um dos grupos, que utilizaram uma estratégia de tentativa e erro mas com apoio em um livro concreto, a utilização que deram à calculadora relaciona-se com a multiplicação de centenas por centenas:

Thomas: – Nós estávamos a fazer muitas contas numa folha que não serviam para nada. Depois o professor deu-nos um livro e depois nós fomos às páginas grandes…

André C.: – Abrimos o livro e calhámos nas páginas 106 e 107 e ainda não nos dava o número. Depois fizemos mais uma página a seguir [108 e 109] e também não dava, até chegar a 112 e 113. Fizemos na calculadora 112 vezes 113 que …

Thomas: – Deu-nos o número 12 656. André C.: – Perguntas? (…) Professor: – Por que é que utilizaram a calculadora? Thomas: – Nós não conseguíamos fazer aquelas contas todas, não

tínhamos… Aquelas contas como eram muito grandes, não conseguíamos saber se estavam bem.

Professor: – Porquê? Thomas: – Porque tínhamos que fazer todas para saber se era 12 656.

Nós não conseguíamos fazer aquelas contas todas, não tínhamos… Aquelas contas, como eram muito grandes, não conseguíamos saber se estavam bem.

Em ambas as situações os alunos associam a utilização da calculadora à rapidez

dos cálculos com grandes números ou a certificação de resultados. A calculadora aparece sempre como um recurso ao cálculo de valores encontrados por meio de uma estratégia, não se substituindo aos alunos no pensamento matemático.

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Padrões e regularidades Ainda nesta última fase, o professor propôs aos alunos duas tarefas relacionadas

com regularidades. A primeira consistia na determinação das regularidades da adição e multiplicação de números pares e ímpares. Os alunos apresentaram uma sistematização algébrica dos resultados, utilizando a simbologia P (par) e I (ímpar), a partir de muitas somas e produtos, envolvendo números pares e ímpares, que efectuaram mentalmente e com o apoio da máquina de calcular.

A segunda tarefa questionava os alunos sobre «quantas vezes é possível subtrair o número 9» sucessivamente de 9, 19, 29, 39, 49, 59, 69, 79, 89, 99 e 999. Os grupos de alunos começaram por utilizar o cálculo mental nas primeiras quatro a seis alíneas e depois recorreram, especialmente na última alínea, à máquina de calcular para situações que envolviam números maiores.

As estratégias utilizadas são diversificadas e envolvem subtracções sucessivas, adições sucessivas e associações com o acréscimo de 10, de uma alínea para a seguinte. Alguns grupos indicaram correctamente que de 99 era possível subtrair 11 vezes o número 9 e que sobrava zero. Outros grupos, influenciados pelo aparente padrão de mais uma vez, indicaram incorrectamente que no 99 era possível subtrair 10 vezes o número 9.

Questionados sobre a utilização da calculadora, alguns alunos rejeitaram-na por simbolizar uma atitude de preguiça ou facilitismo. Contudo, todos os grupos a utilizaram nos cálculos com números maiores, mesmo aqueles que não a utilizaram nos primeiros cálculos:

Vitória: – Era mais fácil com a calculadora, mas se calhar era mais divertido sem a calculadora…

Professor: – Para?

Vitória: – Porque aprendemos mais ou menos a tabuada. Os alunos utilizaram diferentes estratégias, umas mais ligadas ao cálculo, outras

mais ligadas à visualização de padrões. Em ambos os casos sentiram necessidade de utilizar a máquina de calcular nas operações com números maiores. Destas actividades parece ser possível salientar que os alunos não recorreram à calculadora para identificar os padrões, mas para se assegurarem da correcção dos cálculos com os números maiores.

Visões sobre a calculadora… antes e depois

No início da segunda fase e no final da terceira fase, recolhemos junto aos alunos

as suas opiniões sobre a calculadora a partir de um texto escrito iniciado por «A calculadora é…». Das opiniões recolhidas no início do contacto com a máquina de calcular emergem três ideias: a calculadora como objecto atractivo; a máquina que faz contas, nomeadamente difíceis; e é útil à sociedade.

Como objecto atractivo surgiram ideias como: Uma máquina para fazer contas, que tem muitos botões e também

podemos brincar. [Paula]

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Inteligente, rápida a resolver as contas, engraçada, escreve palavras, as cores delas são muito bonitas, tem números de 0 até 9, e é do tamanho de um palmo de uma mão. [Dúnia]

Estas ideias de objecto atractivo predispõem os alunos a trabalharem com a

máquina de calcular. A ideia da máquina que faz contas é universal e aparece referida nas ideias de todos os alunos:

Uma máquina para fazermos contas de multiplicar, subtrair, adicionar e dividir. [Sara]

Uma máquina electrónica que é feita para os senhores conseguirem fazer as contas mais depressa, mas eu não preciso muito. [Guilherme]

Associada à ideia de fazer contas estão as quatro operações elementares, bem

como o seu uso associado à preguiça em relação a outros métodos mentais ou manuais. A ideia de utilidade social aparece também como um dos aspectos significativos:

Inteligente, trabalha muito e nunca pára. Serve para ajudar a pensar nas contas. [Carina]

Um instrumento de trabalho muito útil para fazer contas e para nós não errarmos nas contas que temos dúvidas. [Vitória]

A sua utilidade parece estar associada à correcção dos resultados, aos valores

exactos. Estas ideias, no essencial, foram mantidas pelos alunos ao longo do estudo. Contudo, quando inquiridos uma segunda vez, no final da terceira e última fase, as suas representações da calculadora deslocaram-se sensivelmente: o aspecto atractivo quase que desapareceu; a vertente de fazer contas manteve-se, mas especificando o grau de dificuldade; e a dimensão de utilidade social foi reforçada. Salientam-se algumas opiniões:

Máquina que diz a resposta das contas, mas só para as contas mais difíceis. Também acho que errei quando fiz contas fáceis com ela. Se eu fizer contas fáceis nela estou a chamar nomes aos meus neurónios. [Eva]

Serve para fazer contas com números difíceis. Os meninos que a utilizam para fazer contas fáceis ficam preguiçosos. [Beatriz]

É uma máquina que sabe tudo. Sabe fazer as contas de somar, dividir, subtrair e multiplicar. Serve para fazer as contas que nós não sabemos resolver. Acho que é importante porque serve para fazer contas difíceis. Umas trabalham com luz solar e outras a pilhas. [Eduardo] As novas ideias dos alunos aparecem associadas às suas vivências anteriores,

nomeadamente em relação à sua utilização nas contas difíceis, na correcção de resultados e no cálculo com grandes números. A sua utilização indiscriminada aparece associada à preguiça.

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Algumas considerações finais

Deste estudo sobre o uso da calculadora, como auxiliar de cálculo, parece-nos possível realçar alguns aspectos que foram emergindo ao longo da investigação: a adequação da utilização da calculadora às estratégias matemáticas anteriormente desenvolvidas pelos alunos e o seu recurso como instrumento de cálculo facilitador do método de tentativa e erro.

Os alunos mantiveram as estratégias de cálculo e de resolução de problemas que possuíam após a utilização da calculadora, utilizando-a apenas como auxiliar de cálculo. Neste sentido, os alunos valorizaram o pensamento matemático para além da obtenção numérica do valor de uma operação aritmética, reforçando a ideia de que a máquina de calcular, apesar de ser eficiente e exacta, não substitui o pensamento matemático.

Esta visão da Matemática, que é mais do que cálculos, assumida pelo discurso destes alunos parece proporcionar uma adequada utilização deste instrumento de cálculo na determinação de regularidades, como múltiplos, potências, e de cálculos exactos com grandes números, sem desvirtuar os processos de pensamento matemático.

Os alunos utilizaram também a calculadora como apoio à estratégia de tentativa e erro em actividades numéricas de investigação matemática, sem a qual seria demasiado difícil ou moroso a resolução de algumas das tarefas propostas. Esta utilização potenciou, aos alunos, o conhecimento de tarefas de natureza de investigação e de generalização. O contacto com este novo tipo de actividades parece ter influído nas suas representações sobre a utilidade da máquina de calcular na realização de cálculos morosos e exactos. Referências

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