caipira sim, trouxa não
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
SOLENI BISCOUTO FRESSATO
CAIPIRA SIM, TROUXA NO.Representaes da cultura popular no c inema de Mazzaropi
e a leitura crtica do conceito pelas Cincias Sociais
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SOLENI BISCOUTO FRESSATO
CAIPIRA SIM, TROUXA NO.Representaes da cultura popular no c inema de Mazzaropi
e a leitura crtica do conceito pelas Cincias Sociais
Trabalho de Concluso de Cursopara obteno do ttulo deDoutor em Cincias Sociais, comrea de concentrao emSociologia da UniversidadeFederal da Bahia.
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Fressato, Soleni Biscouto
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AGRADECIMENTOS
Nomear as diversas pessoas que acreditaram e contriburam para o
desenrolar dessa pesquisa (financiada, por meio de uma bolsa de estudos, pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq), no
das tarefas mais simples. Ao longo desses cinco anos, pois iniciei o meu pr-
projeto no final de 2004, foram diversas as palavras de estmulo e incentivo. Mas,
faz-se necessrio e para mim tambm gratificante, destacar algumas pessoas.
Primeiramente, e sem quem essa tese no existiria, ao Profe Cmara.
Gentil e bem-humorado, ele me orientou com segurana e competncia, sem
nenhum stress, respeitando minhas opinies, questionamentos e limites. Sua
orientao iluminou-me desde o pr-projeto de pesquisa, at as derradeiras
linhas. Afinal, o que seria de mim, meu deus, sem a f em Antnio...
minha famlia, especialmente nas pessoas de minha me, Sirene, e
minha irm, Solange, pela torcida distante.
Ao pessoal da Oficina Cinema-Histria, grupo de pesquisa que integro,
pelas discusses em torno da problemtica das representaes sociais no cinema
e da cultura popular.
Aos professores e colegas de turma que contriburam significativamente
para o meu desenvolvimento intelectual.
banca de defesa, por ter aceitado o convite para participar desse
importante momento de minha vida acadmica. Especialmente a Marcos Silva,
pelas pertinentes consideraes feitas nos vrios congressos que juntos
participamos.
Enfim, como numa torta, que deixamos a melhor parte para o final, a Orfeu,
pequeno ser inteligente e sensvel que acompanhou minha jornada desde o
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ABSTRACT
The object of the present research is the representation of the countryside
cultural practices (i.e. cultural practices of the caipiras) in the cinema of Amacio
Mazzaropi, whose fundamental concepts are related to the notions of culture,
popular culture and mass culture. The theoretical background is mainly based
on the work A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto
de Franois Rabelaisby Mikhail Bakhtin. In this work, the author explains that
popular culture, ruled by comedy, makes use of derision and satire as a form of
resistance against the prevalent values and ideology. Among Mazzaropis 32
films, Chico Fumaa (1958), Chofer de praa (1958), Jeca Tatu (1959) and
Tristeza do Jeca(1961) were selected for this research. In these films the social
reality of the caipiras was represented, especially their conflicting relationship
with the landowners and with the habits and customs of the big city. Based on
the analysis of these films, it is possible to affirm that popular culture
represented by them is characterized by ambiguity: either subordinating to or
rebelling against the prevalent values and the established rules. As regards
methodology, the films were analysed according to the period they were
produced, that is, within the hegemonic context of the national-developmentalist
ideology without, however, agreeing with its principles.
Key-words:Comedy and social critic, Developmentalist ideology, Mazzaropis cinema,
Movies and social reality, Popular culture caipira.
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RSUM
L'objet de la prsente recherche est la reprsentation des pratiques culturelles
caipiras dans le cinema dAmacio Mazzaropi, tant ses concepts directrices
ceux lis aux notions de culture, culture populaire et culture de masse. Le corps
thorique possde comme fondement principal l'oeuvre A cultura popular na
Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelaisde Mikhal
Bakhtin. En elle l'auteur explique que la culture populaire, rgle par le
comdien, est utilise de la raillerie et de la satire comme une forme de
rsistance aux valeurs et l'idologie dominante. Des 32 films de Mazzaropi
avaient t choisi Chico Fumaa (1958), Chofer de praa (1958), Jeca Tatu
(1959) et Tristeza do Jeca (1961). Dans ces films a t reprsente la ralit
sociale du caipirasy compris la relation conflictuelle avec les propritaires de
terre et avec les habitudes et les coutumes urbains. partir de l'analyse de ces
films, nous pouvons affirmer que la culture populaire en ces derniers
reprsente se caractrise par l'ambigut, quelques fois en subordination,
dans d'autres en rbellion contre les valeurs dominantes et les rgles institues.
Combien la mthode, ses films avaient t analys la lumire de la priode
o avaient t produit, c'est--dire, dans le contexte d'hgmonie la politique et
l'idologie desarrollista, toutefois, n'intgrant pas avec ses propositions.
Mont cles:Cinma de Mazzaropi, Cinma e ralit sociale, Comique et critique sociale,
Culture populaire caipira, L'idologie desarrollista.
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SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................11
1 CULTURA: UM TEMA EM DEBATE ...........................................................16
1.1 CULTURA POPULAR:
REFLEXES SOBRE UM CONCEITO COMPLEXO ................................... 22
1.2.1. Cultura popular: a proposta de anlise de Bakhtin .......................... 29
1.2.2. A cultura popular caipira ................................................................... 39
2 A ARTE PARA COMPREENSO DAS SOCIEDADES:
A SOCIOLOGIA DA ARTE ......................................................................... 53
2.1 CINEMA E SOCIEDADE: UMA RELAO INTRNSECA ..................... 60
2.1.1 Cinema, sociedade e ideologia ........................................................ 75
3 O CONTEXTO DE PRODUO DE MAZZAROPI ..................................... 96
3.1 INDUSTRIALIZAO E URBANIZAO, SMBOLOS DA
MODERNIDADE: A IDEOLOGIA NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA .... 97
3.2 A PRODUO CINEMATOGRFICA BRASILEIRA:
CHANCHADA, VERA CRUZ E CINEMA NOVO ........................................ 111
4 O CAIPIRA MAZZAROPI: IMITAO E POPULARIDADE ..................... 131
4.1 O RISO (DES) PRETENSIOSO DO CAIPIRA ...................................... 142
4.2 O CAIPIRA EM 32 FILMES DE SUCESSO .......................................... 153
4.3 A CRTICA ESPECIALIZADA E O PBLICO
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INTRODUO
Quando afirmamos que os filmes de Costa Gavras ou de Ken Loach ou
ainda de Glauber Rocha representam uma determinada realidade scio-histrica,
muitos pesquisadores das cincias sociais concordam prontamente. Os
documentrios tambm so bem recebidos pela academia quando transformados
em objetos de pesquisa para melhor compreender a realidade social. Muito
diferente o comportamento desses mesmos pesquisadores, quando so
utilizados como objetos de investigao, filmes fortemente marcados pelas
prticas industriais de produo, pelo cmico e pela despretenso em fazer um
cinema tipicamente poltico. A esses filmes resta apenas a alcunha pejorativa de
indstria cultural, de cinema para divertir e para alienar. Mas, se todos os filmes
so condicionados pelo perodo scio-histrico em que foram produzidos, todos
eles, mesmo os mais industriais, fantsticos ou surrealistas, no representariam
de forma consciente ou no, a realidade social?
Concordando com Marcos Silva,1consideramos que as artes possuem um
carter humano e social e uma racionalidade prpria, sensvel e esttica. A
esttica realista apenas uma possibilidade de representar a realidade. Ainverso da realidade no deslegitima a produo cinematogrfica e no a afasta
da realidade social. Os exageros narrativos so recursos e no uma infidelidade
ou superficializao factual, so uma forma de expressar a realidade e, por isso
mesmo, so passveis de serem considerados pelos pesquisadores das cincias
sociais. Assim, toda produo humana pode ser objeto de pesquisa, mas comoso objetos diferentes, merecem ser tratados de forma diferenciada, no devemos
procurar nos filmes a mesma objetividade que encontramos numa tabela
estatstica, por exemplo. Embora no sejam produes de pesquisadores e sim
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filmes. Eles so muito mais uma problematizao da realidade, uma forma de
abordar os problemas adormecidos.
Partindo dessa perspectiva, de que todo o filme pode ser objeto de
pesquisa, cabendo ao investigador desconstruir o discurso, para nele encontrar as
evidncias da realidade social que escolhemos os filmes de Amcio Mazzaropi.
A escolha por Mazzaropi no foi fcil. Poucos o consideram como um cinema
digno de maiores estudos. A grande maioria dos estudiosos assume uma
postura mais simples e menos perturbadora de menosprez-lo e tach-lo de
cinema sem nenhum comprometimento social, no sendo merecedor de uma
anlise mais profunda. Digo uma postura menos perturbadora porque os filmes
de Mazzaropi, apesar da aparncia simples e descompromissada, revelam-se
mais incmodos e mais difceis de serem desconstrudos do que muitos cinemas
ditos polticos. Utilizando-se do cmico e da stira, Mazzaropi problematiza, de
forma crtica e questionadora, muitos problemas sociais dos pequenos
camponeses, como a vigncia e os abusos das prticas coronelistas. claro que
seu caipira no o campons consciente e revolucionrio de Glauber Rocha, que
suas solues so conservadoras e seus finais so sempre felizes. Mas tambm claro que seu caipira no tolo e, a seu modo, revela uma grande
complexidade de seu mundo. Ele ajuda a desvendar muitos aspectos da
sociedade que o gerou. Mas, se a arte possui um potencial para apontar
problemas, no quer dizer que ir resolv-los.
Foi com essa idia em mente que elaboramos o objeto da presentepesquisa: a representao da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Mazzaropi
iniciou sua atuao no cinema como ator, no incio dos anos de 1950, mais tarde
j assumia as funes de diretor, roteirista e argumentista, chegando, inclusive, a
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projeto hegemnico, pelo fato de revelarem os antagonismos e os conflitos sociais
latentes ou explcitos. A retomada desses discursos tambm permite esclarecer
que, nem tudo estava (como ainda no est) sob controle das classes
dominantes. Para uma pesquisa sociolgica essas produes so importantes
pelo fato de, nelas, estarem representadas uma multiplicidade de aspectos da
cultura popular e a riqueza de manifestaes sociais diversas.
Delineado o objeto, conduzimos nossas reflexes em torno de um conjunto
de problemticas que buscassem melhor compreender como a realidade scio-
cultural do mundo caipira foi representada nos filmes de Mazzaropi: de que
maneira a cultura popular caipira representada em seus filmes? Como
representado o confronto entre as prticas culturais mais especficas do meio
urbano e as mais especficas do meio rural? Como Mazzaropi se utiliza do humore do cmico para apontar os espaos de tenso social? Quais imagens das
classes populares foram construdas nesses filmes em confronto com as do poder
ou aquelas da classe dominante? De que maneira a crtica e o pblico receberam
suas produes?
Para tal intento, os conceitos norteadores da pesquisa so aquelesvinculados s noes de cultura, cultura popular e cultura de massa. Para tanto,
recorro a estudos realizados por diversos pesquisadores que refletiram sobre
esses temas, tanto os mais clssicos como Walter Benjamin e Theodor Adorno,
como outros estudiosos mais recentes que vm se debruando sobre o tema da
cultura, como Raymond Williams, Michel de Certeau, Denys Cuche e NestorGarcia Canclini. Especificamente sobre a cultura popular brasileira, conduzo
minhas reflexes em torno das teses de Oswaldo Elias Xidieh e Renato Ortiz. J
para analisar as prticas culturais caipiras utilizei a obra referencial de Antonio
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outros aspectos se revelaram interessantes e pertinentes e foram incorporados ao
corpo terico. Nessa obra, Bakhtin faz um estudo sobre a cultura popular,
enfatizando sua dimenso cmica. Para o autor, a comicidade, pautada pela
pardia, pela stira e pelo deboche, um espao, por excelncia, de crtica e
contestao ordem dominante e ao poder institudo e, por isso mesmo, espao
de resistncia social.
As problemticas que elaboramos unidas ao corpo terico referencial
possibilitaram a formulao do objetivo geral da pesquisa: analisar a
representao da cultura popular caipira no cinema de Mazzaropi. Sendo que
outros objetivos especficos podem ser considerados: compreender como ocorre
o confronto entre as prticas culturais citadina e caipira; analisar o
posicionamento / a opinio da imprensa paulista e carioca (crtica) sobre os filmesde Mazzaropi; compreender a aceitao generalizada dos filmes de Mazzaropi
pelo grande pblico; compreender a interao de Mazzaropi com o mundo caipira.
Quanto ao mtodo, as produes de Mazzaropi foram analisadas luz do
perodo em que foram produzidas, ou seja, no contexto de hegemonia da poltica
e ideologia desenvolvimentista, no entanto, no compactuando com suaspropostas. Aps a anlise dos 32 filmes de Mazzaropi, devido impossibilidade
de um estudo com qualidade de toda a sua obra, optou-se por escolher um
conjunto mais apropriado e pertinente para atingir os objetivos da presente
pesquisa. Assim, dois dos oitos filmes da srie Jeca, Jeca Tatu de 1959 (o mais
emblemtico de seus filmes) e Tristeza do Jeca de 1961, foram privilegiados napesquisa, pois so os mais representativos para a anlise da cultura popular
caipira. O filme Chico Fumaa (1958) foi incorporado pelo fato de nele tambm
estar representado o universo do homem do campo. Para a anlise do confronto
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oficial (www.museumazzaropi.com.br). Assim, alm dos filmes, essas publicaes
tambm sero consideradas e analisadas para o desenvolvimento da presente
investigao cientfica.
Insistimos em nos referir a esses 32 filmes como os filmes de Mazzaropi,
ou ainda, o cinema de Mazzaropi, porque independente do diretor ou do
produtor, o cineasta, mesmo quando atuando apenas como ator, exercia uma
grande influncia, apagando da memria nomes como o de Milton Amaral, diretor
de Jeca Tatu(1959).
Intitulamos nossa pesquisa de CAIPIRA SIM, TROUXA NO.
Representaes da cultura popular no cinema de Mazzaropi e a leitura crtica do
conceito pelas Cincias Sociais. A expresso caipira sim, trouxa no uma
sntese do personagem de Mazzaropi, um misto de subordinao e rebeldia, detolice e esperteza. Essa oposio na fala e nas atitudes do caipira transforma-se
na principal caracterstica do cinema de Mazzaropi.
No 1 captulo sero tratadas as questes tericas relacionadas com o
tema da cultura, cultura popular e cultura caipira. Em seguida, no 2 captulo,
analisaremos a pertinncia das representaes cinematogrficas para umapesquisa sociolgica, nos debruando sobre vrios tericos da sociologia da arte.
O contexto de produo de Mazzaropi, tanto social, poltico e econmico, como
cinematogrfico (com destaque para a ideologia nacional-desenvolvimentista e as
produes cariocas da chanchada), ser analisado no 3 captulo.
Nos captulos 4 e 5, nos deteremos especificamente na produo deMazzaropi. Sendo que no captulo 4 analisaremos de forma geral seus 32 filmes,
destacando a construo de seu personagem caipira, a forma como se utilizou do
riso e do cmico e a recepo da crtica especializada e do pblico aos seus
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1 CULTURA: UM TEMA EM DEBATE
Basta ligarmos o rdio ou a TV, ou ainda, navegarmos pela internet, para
verificarmos que a palavra cultura vem sendo amplamente utilizada. Ela citada
em noticirios, propagandas, programas de lazer, etc. No Estado a preocupao
com a produo e o incentivo cultural vem crescendo sobremaneira. No Brasil, as
Leis de Incentivo Cultura (no mbito federal, conhecida popularmente como
Lei Rouanet) so apenas exemplos de como, cada vez mais, empresas privadas
vm investindo em cultura. Na academia a situao no diferente: grande o
nmero de grupos, revistas e pesquisas que tratam de questes culturais. Cultura,
multiculturalismo, diversidade cultural, so palavras que nunca estiveram to em
moda. Porm, muitos pesquisadores esto mais preocupados com questes
voltadas para a gesto cultural, ou ainda, com os profissionais e trabalhadores dacultura, termos recentemente criados. Percebe-se assim que, se por um lado os
estudos sobre cultura tm crescido, a grande maioria centraliza a anlise em sua
industrializao ou mercantilizao, sem que o processo de transformao da
cultura em indstria e mercadoria seja desconstrudo. Muitas vezes at mesmo
corroborado. Diante dessa situao, os estudiosos das cincias sociais vm sedebruando cada vez mais sobre o tema, na tentativa de compreender no
apenas o conceito de cultura, num mundo em franco processo de globalizao,
mas tambm de apreender seu processo de criao. Dessa forma, o tema revela-
se polmico e tem provocado grandes debates, pois as discusses abrangem o
conceito de cultura e o domnio cada vez maior da indstria cultural. Nopretendemos repassar todas as formas de como a cultura vem sendo conceituada
no meio acadmico, nem traar um histrico do conceito. Contudo, faz-se
necessrio a anlise de algumas idias significativas sobre o assunto.
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principalmente no alemo e no ingls, a palavra cultura j se referia
configurao ou generalizao do esprito (WILLIAMS, 2000, p.10), informando
o modo de vida global de um povo ou de determinado grupo social. Apesar
desse sentido ser amplamente utilizado, Williams alerta que, ele s eficiente
para a anlise de sociedades mais simples, onde a relao entre natureza e
cultura explicativa. Para sociedades mais complexas, com altos ndices de
transformao social e material, essa polarizao insuficiente e, porconseqncia, tambm o a definio de cultura como modo de vida global.
Constatada essa insuficincia, Williams parte em busca de um conceito
mais pertinente para a anlise das sociedades modernas e que facilite o trabalho
de investigao com o tema da cultura. Organizao social da cultura seria o
mais indicado para o estudo destas sociedades, por ser um conceito mais geral,sem substituir os sentidos mais especficos, indicando suas complexas inter-
relaes e fortalecendo o conceito de cultura como um sistema de significaes
realizado, abrindo espao para o estudo de prticas significativas, ou seja, uma
srie completa de atividades, relaes e instituies.
Williams destaca a questo da reproduo nos estudos sobre cultura. Atradio, conceito cultural bsico, o processo de reproduo em ao, um
processo de continuidade deliberada, no necessria, mas desejada. Enquanto
herana cultural, a tradio moldada e remoldada por diversos processos
sociais, sendo sua caracterstica bsica o conflito, a competitividade entre
tradies antagnicas, na maioria das vezes geradas numa mesma sociedade. Acultura reproduzida, ao mesmo tempo em que um modo de reproduo. No
apenas a forma como as pessoas esto vivendo num momento isolado, mas uma
seleo e uma organizao do passado e do presente, e provendo suas
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que no pode ser desprezado que toda re/produo cultural tambm implica em
dominao. Elas podem at apresentar-se de forma desligada das formas sociais
dominantes, mas esto em integrao.
Para Martin-Barbero (2003) a pertinncia das reflexes de Williams est
em ter primeiramente desconstrudo o conceito de cultura, muitas vezes
confundido como sinnimo de educao, notadamente a educao superior
destinada classe dominante. E, num segundo momento, reconstruindo-o nosentido de permitir a abordagem da complexa dinmica dos processos culturais
contemporneos.
Williams ultrapassa outros autores, pelo fato de construir um conceito de
cultura que considera as complexas relaes das sociedades modernas,
valorizando, assim, as diversas expresses culturais, inclusive as populares. Apartir dessa conceituao, possvel considerar a cultura como um espao de
conflito, de disputa e de competio.
O socilogo da cultura latino-americana, Nestor Garcia Canclini, muito
prximo do pensamento de Williams, em suas reflexes sobre a cultura, a
considera como o conjunto dos processos sociais de significao ou, de modomais complexo, a cultura abrange o conjunto de processos sociais de produo,
circulao e consumo da significao na vida social. (CANCLINI, 2003, p. 35) At
chegar a essa definio, por ele considerada operativa, Canclini percorre um
interessante caminho enumerando algumas formas de conceituar cultura.
Primeiramente, numa definio mais bvia, considerando-a como educao,ilustrao e refinamento. Este uso coloquial, com suporte na filosofia idealista,
tem por base a distino, caracterstica na lngua e filosofia alem, entre cultura e
civilizao. Para Canclini, essa definio insuficiente, uma vez que, num perodo
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tambm teve como sria conseqncia o relativismo cultural. Para Canclini esta
definio no est bem especificada porque no existe a certeza de que o termo
cultura possa abarcar todas as instncias de uma formao social.
Considerando insuficiente essas formas de conceituar o termo, Canclini
encontra na relao entre cultura e sociedade o caminho que julga mais
pertinente. Desde meados do sculo XX, primeiramente com a obra de Ralph
Linton e, mais recentemente e de forma mais consistente, com Pierre Bourdieu ostermos sociedade e cultura so considerados de forma dialogada. Recuperando o
pensamento de Jean Baudrillard, Canclini explica que numa sociedade capitalista
alm dos objetos possurem um valor de uso e um valor de troca, j assinalados
por Marx, tambm so significativos e simblicos. Por signo entende-se o
conjunto de conotaes e implicaes associadas aos objetos que nadaacrescentam ao valor de uso e ao valor de troca, referindo-se a elementos poucos
relacionados com os usos prticos do objeto, a sua cor, por exemplo. J o
smbolo est relacionado com certos rituais e com atos particulares que ocorrem
nas sociedades (objetos ganhos como presentes de casamento ou de aniversrio
possuem um valor maior que os comprados). Nessa linha de raciocnio, Canclinidestaca o pensamento de Bourdieu. Segundo Canclini, para Bourdieu a
sociedade est estruturada em dois tipos de relaes: as de fora,
correspondentes ao valor de uso e ao valor de troca, e as de sentido, que
organizam a vida social, as relaes de significao. O mundo das significaes,
dos sentidos, o que constitui a cultura. (CANCLINI, 2003, p.35)Assim, tanto para Williams, como para Canclini, cultura o conjunto de
idias, de prticas, de valores e de representaes, de modos de pensar e de agir
significativos para determinado grupo social. Adotaremos essa proposta de
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vivem, considerando a relao recproca entre cultura e sociedade: ao mesmo
tempo em que a cultura produto da sociedade, contribui para a sua re/produo.
Prximo de Williams e de Canclini, Certeau define a cultura como sistemas
de referncia e de significados heterogneos entre si (1995, p. 142), ou seja,
pressupe que para existir cultura necessrio que as prticas tenham
significado para quem as realiza. Certeau tambm afirma que, uma cultura
monoltica impediria que as prticas criadoras tivessem significado, destinandoapenas a uma cultura, em detrimento de outras, as criaes de prticas sociais.
No existe, apesar das inmeras tentativas da classe dominante, um nico setor
particular da sociedade que possa fornecer a todos o que os prover de
significao. A cultura no singular para Certeau, uma mistificao poltica e
mortfera, pois ameaa a criatividade. Para eleacultura no singular traduz osingular de um meio. Ela est na maneiracomo respiramos, nas idias, na presso autoritria de umadeterminao social que se repete e se reproduz (...). Na anlisecultural, o singular traa em caracteres cifrados o privilgio das normase dos valores prprios a uma categoria. (CERTEAU, 1995, p. 227)
Nesse sentido, Certeau chega a sugerir que a cultura no singular aideologia vestida de cultura. Mesmo reconhecendo que admitir a hiptese da
pluralidade cultural um problema novo, Certeau defende que, quanto mais as
estruturas econmicas unificam e homogenezam, mais a cultura deve diferenciar
e pluralizar.
O termo pluralidade, utilizado por Certeau, no o mais apropriado paraquestes sobre a cultura, pois sugere a existncia de uma infinidade de culturas,
quando o que existe so prticas culturais diferenciadas, numa relao tensa e
conflitiva com a indstria da cultura que insiste na homogeneizao dessas
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Canclini (1997) forja o conceito de hibridismo cultural. Para ele, este termo
substituiria o de mestiagem, mais utilizado para as questes raciais, e o desincretismo, mais comum em estudos sobre a fuso religiosa; apresentando-se
mais coerente, pelo fato de abranger as diversas mesclas interculturais.
Analisando o avano da modernidade cultural e da modernizao socioeconmica
sobre a cultura popular na Amrica Latina nos anos 1990, Canclini conclui que,
no existe uma separao estanque entre o popular e o massivo, muitas vezes acultura massiva se apropria e divulga elementos da cultura popular. Como
tambm, inexiste a dicotomia entre o tradicional e o moderno. De acordo com sua
proposta, a relao entre o popular e o massivo caracterizada pela dinmica
conflitiva, ao mesmo tempo esto em constante interao e preservando suas
especificidades e diferenas.Diferentemente de Canclini, para Canevacci (1996) o conceito de
sincretismo2pode ser generalizado para a cultura e no est restrito apenas s
expresses religiosas. Ele recorre a esse termo para melhor compreender as
transformaes que ocorrem com a produo, o consumo e a comunicao da
cultura no contexto de globalizao. Tendo sua gnese na poltica o termo passoupara a religio. Com a chegada dos europeus na Amrica, alm de escravizar os
africanos, era necessrio converter sua alma, impor a religiosidade catlica.
Porm, para continuar com suas prticas, os africanos disfararam seus smbolos
e divindades em catlicos. O sincretismo, para Canevacci um orix em
movimento e do movimento: contra os imobilismos psquicos, as reproduespermanentes, as teorias cclicas, as firmezas tericas, as paradas arquetpicas.
(CANEVACCI, 1996, p. 16) E ser exatamente no Brasil que o sincretismo
passar de sua forma religiosa para a cultural. Para Canevacci, o ato simblico de
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Para Canevacci, a cultura no apenas algo unitrio, que compacta e liga
entre si indivduos, sexos, grupos, classes, etnias; mas sim algo bem mais plural,descentrado, fragmentrio, conflitual.(CANEVACCI, 1996, p. 14) No encontro
entre os diversos traos culturais no ocorre uma aceitao passiva, existe uma
seleo, modificao e recombinao, ou seja, o sincretismo cultural. Assim, para
Canevacci, no mago do conceito de sincretismo existe um misto de desordem,
de confuso e de inquietude. Porm, o autor no destaca a ambigidade dosincretismo, pois uma forma, e inteligente, de resistncia, de preservao dos
aspectos culturais africanos numa sociedade europeizada, mas tambm, e
exatamente pelo fato de ser sincrtico, uma forma de dominao.
Porm, se o pensamento de Canevacci importante em alguns pontos,
tambm possui muitos problemas. Ele cita como exemplo de sincretismo musicala gravao de uma faixa do CD Roots do grupo brasileiro Sepultura numa aldeia
Xavante, com vozes e percusses nativas. Para Canevacci, se encontram de
forma sincrticas
a msica popular brasileira, com Paulinho da Viola e o seu berimbau declara origem afro; os ritos musicais nativos dos Xavantes, com suas
vozes, as palmas repetidas, os tambores; as experimentaes metlicasda msica metropolitana, dura, cida, distorcida, com umaextraordinria voz rouca(...). (CANEVACCI, 1996, p. 54)
Esse exemplo reduz o conceito de sincretismo apenas como um encontro
cultural, que nada alterou no modo de compor de Paulinho da Viola, dos Xavantes
e do grupo Sepultura. Nesse encontro no houve uma apropriao eresignificao de elementos culturais de uma cultura por outra, como ocorreu no
sincretismo religioso baiano, por exemplo, como o prprio autor cita. Considerar
esse fato de sincretismo cultural desprezar ou, ao menos, reduzir toda a riqueza
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cultura popular. Longe do consenso, eles acabam por interpret-la de formas
diferenciadas, atribuindo significados que se no chegam a ser contraditrios,apontam para a complexidade do termo.
Johann Gottfried Herder foi um dos pioneiros a valorizar a cultura popular.
Num texto polmico, j em 1774, inserido no debate franco-alemo sobre cultura
e civilizao,3 opondo-se s idias universalistas e uniformizantes dos filsofos
iluministas franceses, Herder relacionou e colocou em igualdade a poesia literriae a poesia dos cantos populares, ou seja, valorizou a cultura popular,
considerando-a espao de criatividade, de atividade e de produo.
Alertando para o fato de que cultura popular difcil de ser definida devido
polissemia dos termos que a compem, cultura e popular, Cuche (1999) a
analisa como uma cultura dominada, que se constri e reconstri numa situaode dominao. No entanto, mesmo sendo dominada, uma cultura inteira,
baseada em valores originais que do sentido sua existncia, construindo-se na
histria das relaes entre os grupos sociais e na relao, na maioria das vezes
conflitiva, tensa e violenta, com outros aspectos culturais. Se numa sociedade
existe uma hierarquia e uma diferenciao social, essa hierarquia e diferenciaotambm se refletiro na cultura, ou seja, a cultura popular a cultura de grupos
sociais subalternos, sendo construda numa relao de dominao. Cuche utiliza
o argumento de que, no admitir a hierarquia cultural seria considerar as culturas
como independentes entre si e sem relao com os grupos sociais, o que no
corresponderia realidade. Ele utiliza os termos dominada e dominante como
3 Segundo Elias, na Alemanha, existe uma ntida distino, atualmente ainda difundida,entre cultura e civilizao. Cultura, a kultur, o cultivo do esprito, se refere mais especificamente aomundo das idias e dos sentimentos elevados aos fatos intelectuais artsticos e religiosos Mas
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foram considerados como expresses nacionais, estes capitais simblicos
possuem uma posio secundria, de subordinao.A preocupao com questes da cultura popular acompanha os
pesquisadores brasileiros desde fins do sculo XIX. Celso de Magalhes (1973),
Jos de Alencar (1962) e Slvio Romero (1977) (de forma mais aprofundada que
os dois anteriores) so considerados os precursores dos estudos sobre cultura
popular no Brasil. Um dos aspectos comuns entre eles, e que sobrevive emmuitos pesquisadores da atualidade, terem estudado a cultura popular na busca
de identificar os traos genuinamente nacionais formadores de uma identidade,
contrapondo-os aos que representassem Portugal, a antiga metrpole do Brasil.
Apesar da validade e importncia desse enfoque sobre a cultura popular, nessa
pesquisa no iremos nos debruar sobre essa questo, ou seja, a da formao deuma identidade nacional a partir da cultura popular. Escolhemos nos distanciar
dessa proposta, por acreditarmos ser problemtica a generalizao de
determinadas manifestaes populares especficas de uma regio para outras do
pas, que na grande maioria das vezes no se identificam com elas.
Outra caracterstica marcante desses trs pesquisadores consideraremque a cultura popular mais presente no meio rural ou em cidades interioranas.
Essa concepo est diretamente associada perspectiva de considerar a cultura
popular como rude e ingnua, fadada ao desaparecimento pelo fato de no se
achar em harmonia com o que se denomina progresso e civilizao. Por isso,
esses pesquisadores queriam registrar rapidamente as expresses da culturapopular, antes que se apagassem da memria do povo. Eles acreditavam que,
cultura popular e folclore seriam termos sinnimos. Porm, a expresso folclore
foi utilizada de forma pejorativa, em estudos que analisaram as manifestaes
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Tambm incluram a produo urbana como manifestao da cultura popular e
passaram a considerar o contexto cultural para melhor compreender asmanifestaes, costumes, crenas e prticas populares mais especficas.
Seguindo essa linha, Roger Bastide e seus alunos da Universidade de So
Paulo, dentre eles Florestan Fernandes e Oswaldo Elias Xidieh, consideravam
cultura popular como um processo atual e no como simples sobrevivncia, por
isso o contexto cultural e social mais amplo tornou-se passvel de anlise. Elesconsideravam a cultura popular como fruto, tambm, da organizao social, das
instituies e dos grupos sociais que a realizam. Segundo Bastide (1959), a
cultura popular no flutua no ar e somente estudando a sociedade em que
produzida poder ser efetivamente analisada.A perspectiva de Bastide analisar
a cultura como re/produo das prticas, pois ela s se mantm, desaparece oumodifica, se os homens, vivendo num determinado contexto socioeconmico,
realizarem ou no aquelas prticas. Assim, surgem em seus estudos as
condies de vida, os interesses e os conflitos entre os diferentes grupos sociais.
As afirmaes de Oswaldo Elias Xidieh so as que mais nos interessam,
pois so as que possibilitam uma melhor anlise da cultura popular caipirarepresentada nos filmes de Mazzaropi. Xidieh aproxima-se das propostas de
Bastide ao afirmar que as manifestaes populares mais especficas apenas
sero compreendidas se analisadas num contexto mais amplo da cultura, da
estrutura socioeconmica e sociocultural mais geral (a sociedade brasileira).
Estudando as transformaes sociais, econmicas e culturais de So Paulodurante os anos 1940, Xidieh (1967 e 1972) afirma que algumas manifestaes
culturais mais rsticas e associadas existncia rural tendem a desaparecer com
a migrao para os grandes centros urbanos. J outras podem ser reelaboradas,
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lado, existe uma resistncia das camadas dominadas em manter sua cultura,
enfatizando na importncia de analisar as relaes de conflito e dominao entreas classes sociais, para melhor compreender a cultura popular.
Renato Ortiz um dos pesquisadores brasileiros mais referenciados em
estudos sobre a cultura popular. Em Romnticos e folcloristas. Cultura popular
(1992) ele prope-se a fazer uma arqueologia do conceito, debruando-se sobre
as reflexes e as razes histricas do termo popular. Para tanto, fixa o incio desua investigao no sculo XIX, considerado como estratgico pelo fato de,
naquele momento, a idia de cultura popular ter sido inventada, sendo
progressivamente lapidada pelos diferentes grupos intelectuais. (ORTIZ, 1992,
p.6) A cultura popular considerada, assim, como uma criao dos intelectuais,
que com diferentes intenes buscam compreender as tradies. Partindo desseprincpio, Ortiz passa a analisar as propostas e os mtodos de investigao de
trs grupos: os antiqurios, os romnticos e os folcloristas, identificando suas
propostas em comum e pontos divergentes. Argumenta, ainda que, as reflexes
dos dois ltimos grupos romnticos e folcloristas so matrizes e incorporam as
discusses atuais sobre o popular, considerando-os responsveis em cunhar umacompreenso da cultura das classes subalternas. A partir da preocupao,
notadamente dos folcloristas, em organizar o material sobre o assunto, a cultura
popular passou a ser considerada como uma categoria de anlise.
No pretendemos nos deter nas caractersticas e anlises de cada um dos
grupos mencionados por Ortiz, mesmo porque no objetivo deste trabalho traarum histrico do conceito. Mais pertinente refletir sobre as concluses do autor
sobre a cultura popular. Para Ortiz, popular um tema que suscita muitos e
polmicos debates entre os pesquisadores. Apesar de inmeras divergncias, os
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cultura popular, para Ortiz, elemento de extrema importncia para a formao
da identidade nacional, parte da construo do Estado-Nao, tanto naAlemanha, com destaque para o pensamento de Herder e dos irmos Grimm,
como no Brasil, o popular simboliza o caminho para a resistncia colonial. A
cultura popular, conforme Ortiz, o elemento simblico que permite aos
intelectuais tomar conscincia e expressar a situao perifrica que seus pases
vivenciam. (ORTIZ, 1992, p. 66-7)Muitos pesquisadores, como Ortiz, tm considerado a cultura popular como
base para a formao da identidade nacional. Porm, o erro desses pensadores
idealizarem a cultura popular brasileira como nica e homognea. Prticas e
representaes significativas para a populao do Rio Grande do Sul, podem
nada significar para os nortistas ou nordestinos, por exemplo. Assim, a culturapopular em que se baseiam os intelectuais para formulao da identidade
nacional a tpica dos centros urbanos do sudeste, notadamente de So Paulo e
do Rio de Janeiro, no considerando as especificidades das manifestaes
regionais. Outra questo problemtica no pensamento de Ortiz considerar a
cultura popular apenas como criao dos intelectuais, essa afirmao esvazia asexpresses populares de todo o seu significado e sentido.
Em contrapartida, consideramos a cultura popular no como um conjunto
coeso e homogneo de prticas e representaes, mas portadora de conflitos,
ambigidades e contradies. Consideramos tambm, que as prticas populares
fazem parte de um contexto sociocultural mais abrangente, que as explica e tornapossvel sua existncia. Quando esse contexto se modifica, as prticas tambm
se tornam passveis de alterao, sem que isso implique necessariamente em sua
extino.
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Devido a esse aspecto importante da cultura popular, optamos por privilegiar as
consideraes de Mikhail Bakhtin em nossas anlises.
1.2.1 Cultura popular: a proposta de anlise de Bakhtin
Mikhail Bakhtin (1895-1975), individualmente ou em colaborao, no
denominado Crculo de Bakhtin, publicou vrios livros e um grande nmero deensaios abrangendo a lingstica, a psicanlise e a crtica literria, dedicando-se a
analisar, entre outros temas, as obras de Dostoievski, Maiakovski e Rabelais.
Muitos de seus conceitos, como de circularidade cultural, de heterologia e de
polifonia, conseguiram ampla divulgao e esto sendo utilizados em pesquisas
acadmicas de diversas reas. Alguns deles apontam para a heterogeneidadedas manifestaes culturais e para a relao existente entre a cultura popular e a
cultura hegemnica. Para Bakhtin essa relao ao mesmo tempo em que
harmoniosa, tambm marcada pelo conflito e pelas dissonncias.
Em A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de
Franois Rabelais (1999), Bakhtin tem por objeto especfico estudar a obra deFranois Rabelais, nitidamente marcada pela cultura popular. Por isso, para
melhor compreender a obra rabelaisiana, ele analisa as diversas manifestaes
dessa cultura. Porm, a cultura popular tambm importante para Bakhtin, pois
seu objetivo tambm revelar a unidade, o sentido e a natureza ideolgica
profunda dessa cultura, isto , o seu valor como concepo do mundo e o seuvalor esttico. (BAKHTIN, 1999, p. 50). Alm de desvendar diversas
manifestaes da cultura popular, Bakhtin tambm, a partir de sua proposta de
circularidade cultural, analisa a tensa relao entre a cultura cmica popular e a
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oficiais, durante esse perodo, mesmo que vivendo lado a lado, no se
misturaram.Foram as festas que sancionaram o riso. Alm do carnaval, em muitas
festas religiosas da Idade Mdia o riso era uma constante; o riso pascal e o riso
de Natal so bons exemplos. Mas, sua existncia mais constante foi nas festas
de alternncia das estaes e do ciclo lunar. Nestes casos, o riso possua um
sentido mais amplo e profundo, de acordo com anlise de Bakhtin, ele concretizaa esperana popular num futuro melhor, num regime social e econmico mais
justo, numa nova verdade. (BAKHTIN, 1999, p.70). As festas eram um perodo
de interrupo da vida cotidiana, do sistema oficial com suas interdies e
hierarquias. Um perodo em que a legalidade e o sagrado eram esquecidos e
vigorava uma liberdade utpica.Outro espao do riso era a pardia, que converteu tudo o que era
importante e sagrado para a ideologia oficial em alegres jogos. Para os parodistas
no existe o que no possa ser comicamente imitado, o riso universal e abarca
a totalidade da sociedade e da histria. Assim, existiam as pardias das oraes,
de hinos, dos evangelhos, de testamentos, dos epitfios e, at mesmo, dagramtica e de textos jurdicos. O riso visava o mesmo objeto que a seriedade,
construindo seu prprio mundo contra a Igreja e o Estado oficiais.
Contrapondo-se ao riso da cultura popular existia a seriedade da cultura
oficial:
o srio oficial, autoritrio, associa-se violncia, s interdies, srestries. H sempre nessa seriedade um elemento de medo e deintimidao. Ele dominava claramente na Idade Mdia. Pelo contrrio, oriso supe que o medo foi dominado. O riso no impe nenhumainterdio, nenhuma restrio. Jamais o poder, a violncia, a autoridadeempregam a linguagem do riso. (BAKHTIN, 1999, p. 78)
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XVI). O Renascimento francs foi marcado pelos textos retricos e satricos do
final da Antigidade e no por sua tradio clssica. O riso, no perodo doRenascimento, foi considerado uma das formas fundamentais pelas quais se
exprimia a verdade sobre a histria e sobre o homem, estando relacionado aos
problemas filosficos mais importantes. A ele foi atribudo o poder da cura, como
tambm, passou a ter um profundo valor nas concepes de mundo. Nele foi
reconhecida uma significao positiva, regeneradora e criadora. O riso,finalmente, foi equiparado ao tom srio, no podendo mais ser renegado. O
sculo XVI marcaria o apogeu da histria do riso.
Foi no Renascimento que o riso adentrou decisivamente no seio da grande
literatura, sendo exemplos dessa presena no apenas a obra de Rabelais, mas
tambm de Boccaccio (Decameron), Dom Quixotede Cervantes e os dramas e ascomdias de Shakespeare. A literatura e a cultura oficial, como um todo, foram
impregnadas pelo riso:
Toda uma srie de outros fatores, resultantes da decomposio doregime feudal e teocrtico da Idade Mdia, contribuiu igualmente paraessa fuso, essa mistura do oficial com o no-oficial. A cultura cmicapopular que, durante sculos, formara-se e defendera sua vida nas
formas no oficiais da criao popular espetaculares e verbais e navida corrente no-oficial, iou-se aos cimos da literatura e da ideologia afim de fecunda-las (...).Mil anos de riso popular extra-oficial foram assim incorporados naliteratura do Renascimento. Esse riso milenar no s a fecundou, masfoi por sua vez por ela fecundado. Ele se aliava s idias maisavanadas da poca, ao saber humanista, alta tcnica literria. Napessoa de Rabelais, a palavra e a mscara do bufo medieval, asformas dos folguedos populares carnavalescos, a ousadia do clero de
idias democrticas, que transformava e parodiava absolutamente todasas palavras e gestos dos saltimbancos de feira, tudo isso se associou aosaber humanista, cincia e prtica mdica, experincia poltica eaos conhecimentos de um homem que, como confidente dos irmos duBellay4, conhecia intimamente todos os problemas e segredos da altapoltica internacional de seu tempo. (BAKHTIN, 1999, p. 62-3)
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Mdia que se inicia o enfraquecimento das fronteiras entre a cultura oficial e a
popular, ocorrendo nitidamente uma circularidade entre elas: no fim da Idade Mdia que se inicia o processo de enfraquecimentomtuo das fronteiras entre a cultura cmica e a grande literatura.Formas inferiores comeam cada vez mais a infiltrar-se nos domniossuperiores da literatura. O riso popular penetra na epopia, aumentamas suas propores nos mistrios. (...) A cultura cmica comea aultrapassar os limites estreitos das festas esfora-se por penetrar emtodas as esferas da vida ideolgica. (BAKHTIN, 1999, p. 84)
No seria apenas na literatura que o cmico ganharia espao. Ele foi
incorporado pela ideologia, pela medicina, pela filosofia, pela religio, enfim, pela
cultura oficial.
No entanto, j nos sculos seguintes (XVII e XVIII) o riso passou a ser
associado a fenmenos de carter negativo. O cmico teve seu domnio restrito eespecfico: dos vcios individuais e coletivos. Apenas o tom srio era aceito e
considerado adequado, o riso foi considerado como um castigo para os seres
inferiores e corrompidos. O sculo XVII marcou a estabilizao de um novo
regime, a monarquia absolutista, que encontraria sua expresso ideolgica na
filosofia racionalista de Descartes e na esttica do classicismo. Essas duasescolas refletiriam uma nova cultura oficial, diferente da Igreja e do feudalismo,
porm, retomando seu tom srio e autoritrio. Apesar de banido da esfera oficial,
afirma Bakhtin, o riso, curiosamente, continuou a impregnar diversas expresses,
no apenas na literatura, mas nas festas da corte, nas mascaradas e nos bals,
onde os personagens de Rabelais tornaram-se heris.
No sculo XVIII, o riso tornou-se desprezvel e vil. Os filsofos iluministas,
utilizando a razo pensante como critrio nico, possuindo uma tendncia ao
racionalismo e universalismo abstratos e desprezando a dialtica, explica Bakhtin,
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intermedirio, podendo deformar a cultura popular, no sendo mais que uma
interpretao sobre ela. Mas, significativa a anlise desses filtrosintermedirios, uma vez que podem revelar aspectos da cultura popular, que, em
certa medida, foram desprezados por outras fontes. Ginzburg tambm destaca
que Bakhtin empregou o conceito de circularidade cultural para designar o influxo
recproco entre cultura subalterna e cultura hegemnica (GINZBURG, 1987, p.
20); ou seja, o conceito de circularidade cultural define que a cultura popular dinmica, tendo inclusive o potencial de influenciar uma cultura dita hegemnica.
O conceito de circularidade, assim, pressupe que, elementos da cultura
popular interajam e passem a compor a cultura hegemnica, sendo que a
recproca tambm verdadeira, numa troca contnua. Esse conceito permite
problematizar a influncia recproca entre as manifestaes populares e ashegemnicas, perceber a impreciso de suas fronteiras, sugerindo, assim, um
fluxo regular de permeabilidade entre elas. Permite abordar a cultura de uma
perspectiva social, privilegiando sua dimenso de complexidade e de diversidade
de valores e sentidos. Partindo do princpio de circularidade, Bakhtin revelou a
partilha de padres e signos, a existncia de uma intensa relao cultural depermuta contnua e permanente. A cultura transita em vrios sentidos,
estabelecendo incessantes interaes, determinadas por realidades histricas
especficas. Ela no pura e secularizada, estando em transformao ao
mesmo tempo em que permanece em espaos e tempos definidos.
Apesar de Bakhtin analisar um perodo anterior ao avano dos meios decomunicao de massa e da indstria cultural, quando ainda existia uma ntida
distino entre a cultura de elite e a cultura popular, suas reflexes permanecem
vlidas se considerarmos a relao conflitiva entre a cultura popular e a cultura
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sob seu controle, sendo que essas expresses se relacionam de diversas
maneiras: interagindo, resistindo e at mesmo influenciando umas s outras,revelando-se em permanente construo, reconstruo e desconstruo.
Para Martin-Barbero (2003a), o perodo analisado por Bakhtin
exatamente aquele em que a cultura popular passou por um processo de
enculturao. Durante o perodo medieval, com a ascenso e auge da
religiosidade crist, e mais especificamente no perodo de formao dos EstadosNacionais na Europa, sculos XVI e XVII, as vrias expresses e manifestaes
culturais seriam incompatveis com a centralizao do poder estatal. Era
inadmissvel que numa sociedade em busca da homogeneizao existissem
mltiplos rituais religiosos e festivos, conseqncia da diversidade de grupos e
linhagens sociais. Em prol da coeso social, a cultura popular deveria serdestruda, utilizando-se os mais variados mtodos e mecanismos (a caa s
bruxas e o surgimento e desenvolvimento das prises mencionadas por Michel
Foucault (1987) so bons exemplos), porque simbolizavam, no contexto
absolutista, uma fragmentao do poder.
Interessante observar que, mesmo nesse contexto de represso e apesardos inmeros mecanismos para eliminao das expresses e manifestaes
populares, enfim, da prpria cultura popular, Bakhtin nos revela a sua
continuidade, e nos faz refletir que, lentamente assumia um carter de desafio ao
poder e ideologia dominante, transfigurando-se num espao de protesto e de
resistncia.Contexto de represso no muito distante ao que Bakhtin vivia, na ento
Unio Sovitica.5Talvez, por isso Bakhtin tenha se sentido atrado e interessado
pela obra de Rabelais, autor pouco conhecido e estudado em seu pas.
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Em uma significativa passagem, quando Bakhtin analisa as cenas de carnificina,
de espancamentos, de ridicularizaes, de destronamentos, de brigas e debatalhas expressas na obra de Rabelais, fica ntido seu posicionamento crtico ao
poder dominante. O indivduo surrado e injuriado sempre uma aluso a um rei,
ou um ex-rei ou, ainda, um pretendente ao trono. Esses personagens
representam o poder e a verdade dominantes. Para Bakhtin,
o poder dominante e a verdade dominante no se vem no espelho dotempo, assim como tambm no vem o seu ponto de partida, seuslimites e fins, sua face velha e ridcula, a estupidez e suas pretenses eternidade e imutabilidade. (BAKHTIN, 1999, p.185)
Bakhtin insiste na dimenso cmica da cultura popular medieval, aspecto
pouco explorado pelos pesquisadores, contrapondo-a a seriedade da cultura
oficial. Essa escolha no foi feita por acaso. Alm de refletir muito mais sobre ocontexto em que vivia, do que sobre o perodo medieval, Bakhtin transforma a
comicidade e a seriedade em categorias de anlise para afirmar a existncia da
cultura popular e da cultura hegemnica. Porm, apesar de possurem fronteiras,
elas so imprecisas, ocorrendo uma relao constante e conflituosa entre elas.
Nesse sentido, podemos afirmar que Bakhtin reinventa a cultura popular da IdadeMdia, para melhor refletir sobre a cultura popular de diversos contextos,
notadamente o da Unio Sovitica stalinista.
Outros conceitos importantes formulados por Bakhtin, e no distantes do
de circularidade cultural, so o de polifonia e de heterologia. Em Problemas da
obra de Dostoievski, Bakhtin transforma a polifonia em problemtica central,definindo-a como as vrias vozes, os vrios pontos de vista presentes num
mesmo discurso. O tema realizado numa diversidade essencial de vozes, onde
pode ocorrer a vitria de uma ou de outra ou ainda a sua combinao Para
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reminiscncia e antecipao dos discursos passados e futuros. (BAKHTIN, 2003,
p. XXX)Tanto o conceito de polifonia como de heterologia apontam para a
existncia de vrias vozes ou de vrios elementos diferentes e autnomos, no
entanto, em sincronia, presentes num mesmo discurso, num mesmo texto, ou
ainda, numa mesma fala.
1.2.2 A cultura popular caipira
Se por um lado podemos utilizar as afirmaes de Bakhtin para analisar de
forma mais generalizante a cultura popular representada nos filmes de Mazzaropi,
por outro necessitamos nos ancorar, pelo menos a princpio, numa anlise maisespecfica sobre a cultura caipira. Para tanto, utilizaremos dois autores de
referncia desses estudos no Brasil: Antonio Candido e Maria Isaura de Queiroz.
Os parceiros do Rio Bonito (2001), de Antonio Candido, tornou-se uma
obra de referncia para os estudos em torno da cultura caipira. Nela, Candido se
prope a analisar os meios de vida tradicionais (destacando os aspectoseconmicos) num grupamento de caipiras residentes em Bofete, no interior de
So Paulo, que visitou durante os anos de 1948 e 1954. Porm, Candido tambm
visitou localidades caipiras de outros estados (Minas Gerais em 1952, Mato
Grosso em 1954 e Santa Catarina em 1951, 1952 e 1953), o que confere sua
obra uma anlise da cultura caipira de forma mais geral. Em seguida, analisa oimpacto e as mudanas provocadas pelo avano do latifndio e pelo
desenvolvimento urbano e industrial. Vale destacar que, como Candido mesmo
afirma no Prefcio e na Introduo, sua obra foi fortemente marcada pelas
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senzala (1933), de Gilberto Freire, Razes do Brasil (1936), de Srgio Buarque de
Holanda, e Formao do Brasil contemporneo (1942), de Caio Prado Jnior,Jackson a considera como um estudo do processo de formao da Nao e do
Estado brasileiro.
Candido optou pela denominao de cultura caipira, ao invs de cultura
cabocla, uma vez que, o termo caboclo foi utilizado para designar o mestio entre
branco e ndio, enquanto caipira foi diretamente ligado a um modo-de-ser, a umtipo de vida, sendo por isso mais adequado para o seu estudo. A cultura caipira
resultado da expanso geogrfica dos paulistas os denominados bandeirantes
pela historiografia, nos sculos XVI, XVII e XVIII, e, citando a obra Mones
(1945) de Srgio Buarque de Holanda, o autor explica que uma sociedade com
tendncia ao equilbrio entre o grupo social e o meio.A cultura caipira definida por Candido como uma cultura rstica, marcada
pela homogeneidade dos indivduos e pelas formas de sociabilidade, sendo
caracterizada, primeiramente, pela natureza das necessidades de seus grupos. A
rusticidade est diretamente associada aos elementos de origem nmade (dos
bandeirantes paulistas), presentes em sua gnese e pode ser mais bemvisualizada em sua casa (mais parecida com um rancho: as paredes so de pau-
a-pique, muitas vezes apenas varas no barreadas, cobertas com palha), ou
ainda, na rudeza dos utenslios.
A base da sociedade caipira, explica Candido, estava numa economia
fechada, de subsistncia, e no trabalho isolado ou na cooperao ocasional. Ocaipira produzia quase tudo o que precisava para viver, deslocando-se at o
comrcio raras vezes, apenas para comprar sal. A agricultura praticada era a
itinerante extensiva, prpria do caboclo brasileiro, com base na queimada que, se
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caipira, porm a forma de prepar-los estava associada aos portugueses ou
desenvolvida pelos prprios caipiras. De forma geral, o caipira se alimentava trsvezes ao dia (o almoo, a merenda sobras do almoo e o jantar), havendo
pouca diferenciao dos alimentos entre uma refeio e outra. A alimentao,
alm de pouca em quantidade, tambm o era em variedade. A carne, raramente
presente na mesa caipira, era conseguida por meio da caa ou dos animais
criados (porcos e galinhas). A fartura alimentar ocorria apenas em festas,notadamente nos casamentos. Resumidamente, explica Candido, a alimentao
caipira tinha regular qualidade energtica e era mal balanceada, sendo que a
fome no estava ausente. O resultado dessa dieta mal equilibrada era uma fome
psquica, ou seja, o desejo permanente por misturas, principalmente a carne.
No filme A marvada carne (Andr Klotzel, 1985), uma das melhoresrepresentaes flmicas sobre a cultura caipira, conhecemos o fascnio que os
caipiras tinham pela carne. Nh Quim (Adilson Barros) no poupa esforos para
conseguir provar o seu gosto: abandona seu ranchinho de sap, casa-se, vence
uma disputa com o diabo e por fim resolve migrar para a cidade, na esperana de
encontrar o to sonhado sabor da carne. Essa aventura de Nh Quim foi a formaque Klotzel encontrou para explicar como a carne era importante para a cultura
caipira.
O dia do caipira iniciava cedo, s 5 horas com uma pequena refeio, logo
em seguida seguiam para o local de trabalho, onde homens, mulheres e crianas
trabalhavam com certa diviso sexual das atividades. A jornada diria era de 12
horas no vero e 10 no inverno, interrompida apenas duas vezes para
alimentao. Ao chegar em casa, alimentavam a criao e dormiam, raramente
algum estava acordado aps as 20 horas.
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viajantes, como Saint-Hilaire, consideraram o caipira como primitivo, brutal,
macambzio e desprovido de civilidade.A vida rude, nmade e isolada da comunicao social foi o alicerce para a
formao desse carter moral, independente e alheio s mudanas sociais. Para
Candido uma vida de bandeirante atrofiado, sem miragens, concentrada em
torno dos problemas de manuteno dum equilbrio mnimo entre o grupo social e
o meio. (CANDIDO, 2001, p. 60).Candido identifica no bairro a estrutura fundamental da sociabilidade
caipira. Mas, ele no se aplica para todo o territrio brasileiro, eles so mais
comuns no sudeste. O bairro um agrupamento de famlias unidas pelo
parentesco ou no, com moradias prximas ou no, unidas pelo sentimento de
localidade, pela convivncia, pelas prticas de auxlio mtuo e pelas atividadesldico-religiosas. Pode-se afirmar que cada bairro, e no cada famlia, era
autrquico devido ao trabalho coletivo, sendo sua manifestao mais importante,
o mutiro. Tanto as atividades da lavoura, como as domsticas, eram as ocasies
ideais para a reunio dos caipiras; essa necessidade de cooperao acabou por
gerar uma convivncia intensa entre eles. Curiosamente, durante o mutiro nohavia uma diviso de tarefas, todos desenvolviam a mesma atividade de forma
conjunta, ou seja, era o trabalho associado. So as palavras de um velho caipira,
entrevistado por Candido, que melhor explicam o sentido do mutiro: no h
obrigao entre as pessoas, e sim para com Deus, por amor de quem serve o
prximo; por isso, a ningum dado recusar auxlio pedido. (CANDIDO, 2001, p.
89) Adiante, citando a anlise de Plnio Ayrosa, Candido reitera essa idia sobre o
mutiro e menciona seu aspecto festivo: ele um gesto de amizade, um motivo
pra folgana, uma forma sedutora de cooperao. (Idem, p. 92).
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Essa sociabilidade, como tambm a subsistncia, explica Candido, foram
organizaes rompidas por muitas famlias, surgindo uma estratificao social. Osproprietrios de fazendas (cana, gado e depois caf) eram os mais suscetveis ao
comrcio e os que menos praticavam as atividades de sociabilidade. Era a
categoria dos sitiantes, posseiros e agregados que estavam mais incorporados
economia caipira de subsistncia e a vida de sociabilidade.
A escravido tambm foi um importante fator de estratificao social nasociedade caipira. Os donos de escravos, que, segundo Candido, seriam um tipo
social do fazendeiro, abandonaram o sistema de cooperao, enquanto que o
antigo escravo ou descendente esteve apegado ele, surgindo, assim, uma ntida
diferena entre fazenda e stio. O sitiante o caipira tpico, apesar de serem
encontradas diversas prticas caipiras entre os fazendeiros, eram os sitiantes osmais apegados agricultura de subsistncia e s prticas de auxlio mtuo.
Nesse sentido, vale destacar que, apesar de utilizar Marx como referencial
terico, como afirma o prprio Candido, nessa anlise ele se aproxima mais do
conceito de tipos ideais de Max Weber, buscando um tipo social caracterstico
dos caipiras.Segundo Candido, a partir dos anos 1950, a cultura caipira mudou
drasticamente, notadamente devido ao avano do latifndio e das prticas
capitalistas. Os problemas advindos desse impacto seriam a falta de adaptao
do caipira ao capitalismo. De uma situao de subsistncia, passou para semi-
subsistncia at a completa dependncia do comrcio e dos centros urbanos,
tanto para vender seus produtos agrcolas, como para comprar o que no mais
produzia. Muitos caipiras abandonaram por completo o campo, estabelecendo-se
nas cidades, onde foram incorporados pelo proletariado urbano.
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As festas e os mutires tambm tenderam a diminuir, o ritmo de trabalho e
a economia dependente restringiram as prticas ldicas prprias de umaeconomia fechada.
At mesmo a posse da terra passou por modificaes. De proprietrio de
seu stio, o caipira passou para a posio de parceiro (o mais comum), ou ainda,
de assalariado agrcola. Eles passaram pela experincia da degradao
econmica motivada pela subdiviso da herana, pela impossibilidade de provarlegalmente os direitos territoriais, ou ainda, pela concentrao do latifndio.
Muitos entrevistados por Candido no sabem como perderam suas terras, ou
seja, elas passaram de uma mo para a outra de uma forma pouco clara.
Para Candido, a parceria,6um ponto mdio entre o sitiante e o trabalhador
assalariado, seria uma forma de resistncia do caipira, pois se apresenta comouma das poucas possibilidades de permanncia no campo e de preservao dos
hbitos e costumes tradicionais, da o ttulo do livro Os parceiros do Rio Bonito,
antigo nome do municpio de Bofete. A concentrao da vizinhana efetuada pela
fazenda, permitia aos caipiras continuarem vivenciando as experincias do bairro.
Nos anos de 1950, na regio de Bofete, estudada por Candido, mais de 50% do
territrio pertencia apenas 34 fazendeiros. Muitas dessas fazendas no
passavam de grandes stios, sendo mal explorados por falta de aperfeioamento
tcnico. O recurso encontrado pelos proprietrios foi recorrer ao sistema de
parceria, onde o pagamento era efetuado com o produto a ser colocado no
mercado. No contrato, normalmente verbal, era estipulada a quota de produto
para ambas as partes, as obrigaes da conserva de moradia e os dias devidos
gratuitamente ao proprietrio, geralmente trs dias. Entre os caipiras, a parceria
era mais bem vista que o arrendamento, pois no caso de uma colheita ruim os
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grandes fazendeiros. Nas festas e nas conversas da vila, Candido os encontrou
em situao de igualdade.Nesse processo de grande alterao cultural, onde a tradio est sendo
esquecida,7 os caipiras se comportam com certo saudosismo, idealizando o
passado: local de abundncia, solidariedade e conhecimento.
Sem dvida as consideraes de Antonio Candido sobre a sociedade
caipira so ainda muito importantes e pertinentes, ainda mais para essa pesquisa,pois os filmes de Mazzaropi escolhidos para anlise so exatamente os que
representam o caipira durante os anos de 1950, perodo de estudo de Candido.
Porm, como todo estudo, o de Candido tambm possui lacunas. Nenhum
comentrio feito sobre a relao de mandonismo e coronelismo que existia
entre os parceiros (fazendeiros e caipiras). As suas afirmaes de que poucadistncia havia entre eles, encontrando-os em situao de igualdade, camufla
todo o conflito entre as duas classes e a situao de dependncia e subordinao
sofrida pelos caipiras.
Analisando a obra de Antonio Candido, Jackson (2002) explica que a
existncia da pequena propriedade, comum na sociedade caipira, no est
necessariamente ligada decadncia do latifndio, mas convivem, de forma mais
ou menos subordinada. A existncia de pequenas propriedades permite a sua
reproduo, mesmo que de forma limitada pelo processo de modernizao.
Finalmente, influenciado pela noo de cultura funcionalista, Candido, segundo
Jackson (2002), considera que a cultura caipira est condenada ao
desaparecimento devido ao contato com a sociedade capitalista.
Alm dessa obra referencial de Antonio Candido sobre a cultura caipira,
Maria Isaura de Queiroz (1973 e 1973a) tambm se debruou sobre as
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comrcio. Para melhor compreender o que um campons, a pesquisadora
recorre aos estudos do historiador francs Marc Bloch. Para Bloch, explica MariaIsaura, os camponeses foram os primeiros a habitar a Frana formando as
comunidades campesinas e representando um importante papel, tanto na
economia, como na demografia. Com a queda do Imprio Romano surgiu a
camada senhorial, de extrema importncia para a definio do campesinato, um
substantivo coletivo que significa conjunto de camponeses. Apesar da falta deconscincia social desses camponeses ser um fato social, o campesinato se
definiu sociologicamente em oposio ao senhoriato, a quem era subordinado e
com quem mantinha laos de dependncia, determinando uma explorao do
homem pelo homem. Mesmo com alteraes nos contextos polticos e
econmicos, as caractersticas fundamentais do campesinato permaneceram asmesmas: a famlia a unidade social de trabalho e de explorao da propriedade,
sendo as tarefas divididas entre os seus membros, organizados pelo pai, ou seja,
trata-se de uma comunidade autrquica e autoritria. Porm, entre uma famlia e
outra sempre existiram diferenas, revelando que a camada camponesa nunca foi
homognea e igualitria.
No Brasil, assim como na Frana, a relao do campons com a terra
revela a ausncia de uma homogeneidade: as propriedades poderiam ter um
tamanho maior, sendo que os minifndios so mais comuns, alm de proprietrios
os camponeses ainda poderiam ser posseiros (ocupantes de terras pblicas ou j
apropriadas, mas sem autorizao do proprietrio), parceiros (pagantes do
aluguel da terra, proporcional produo, na forma de produtos ou dinheiro),
arrendatrios (pagantes de um aluguel fixo da terra, independente da quantidade
que colhem), ou ainda, agregados (habitantes nas propriedades de monoculturas,
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Paraibuna e do serto de Itapecerica, concluindo que eles se definem muito mais
pelas relaes sociais do que por um regime econmico especfico.Contrariamente proposta de Candido, segunda a qual os bairros rurais, ainda
permaneceria um tipo de vida tradicional, as localidades estudadas revelaram a
existncia de dois tipos de bairros rurais: um formado por camponeses (os
verdadeiros caipiras), pequenos proprietrios rurais, cultivando roas de
subsistncia, e outro, formado por agricultores que vivem do plantio e venda deum produto principal. Ou seja, de acordo com os pressupostos de Maria Isaura,
nem sempre um bairro rural est vinculado forma de viver caipira.
Porm, apesar das heterogeneidades econmicas, os bairros
apresentaram elementos de sociabilidade que os aproximavam. Para esta
pesquisa, esses elementos apontados por Maria Isaura so os que mais nos
interessam, pois so eles os mais comumente representados nos filmes de
Mazzaropi.
O primeiro elemento apontado por Queiroz a reunio dos habitantes do
bairro em famlias, tendo um chefe frente dos empreendimentos (agrcolas e
pecurios) que possuam a responsabilidade da iniciativa e execuo dos
trabalhos, onde ainda vigorava a ajuda mtua. Um segundo aspecto a ausncia
de nveis sociais. Em nenhum dos bairros estudados apareceram indcios claros
de subordinao de um grupo de indivduos por outros. O casamento com a filha
do patro e o compadrio seriam as formas encontradas para preservar a estrutura
igualitria. Porm, afirma Maria Isaura, apesar do nvel social igualitrio, a posio
social diferente, existindo indivduos mais influentes e com mais prestgio que os
demais. Essa diferenciao da posio social que pode advir do casamento ou de
uma herana, no entanto, nem sempre fruto da aquisio de bens econmicos.
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econmicas como em outros campos sociais. As festas religiosas (momento em
que os caipiras teriam a verdadeira noo do sentimento de localidade) seriam osmomentos ideais para o desenvolvimento desse vnculo, alis, elas s se
realizavam devido sua existncia, revelando a essncia do grupo. Cada bairro,
ou ainda, cada famlia, possui um padroeiro de sua devoo, sendo necessrio
cultu-lo para receber em troca a proteo indispensvel. As festas raramente
duram menos de dois dias e durante elas so executadas certas tarefas(construo de ranchos, abate de animais para as refeies, corte de rvores
para a lenha), alm de ritos religiosos (procisses, novenas, ladainhas) raramente
organizados por um padre. A relao dos caipiras com os santos praticamente
pessoal. Eles habitam as dependncias das casas na forma de imagens
colocadas em oratrios ou capelas. A reciprocidade domina a relao entre os
santos e seus fiis: ofertando-lhes novenas e velas, os caipiras esperam que os
santos os auxiliem em situaes difceis e os protejam, enfim, que estejam
sempre prontos a auxiliar e intervir em situaes cotidianas e at corriqueiras. A
separao entre o mundo sagrado e profano praticamente inexistente para os
caipiras. Para Maria Isaura (1973a), essa predominncia de devoo aos santos
nas sociedades rsticas, deve-se a influncia de dois fatores: a do catolicismo
popular portugus com forte tendncia ao culto dos santos e a ausncia de
sacerdotes no territrio brasileiro desde o perodo colonial, notadamente no meio
rural.
Apesar de utilizar como ponto de partida os estudos de Candido, Maria
Isaura (1973a) dele se afasta no sentido de que se contrape a uma de suas
principais afirmaes: que os bairros rurais estariam fadados ao desaparecimento
com o avano das prticas capitalistas. Para Maria Isaura no existe uma regra
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caipira seria a presena de grandes fazendas monoculturas, pois elas
determinariam um ritmo e um tempo diferente de trabalho, interferindo noapenas na rotina da vida caipira, como tambm na organizao de festas.
Para Maria Isaura os bairros rurais possuem uma dinmica interna prpria,
que apesar de influenciada, diferente e distinta da dinmica urbana e da regio
onde esto localizados. Eles no so grupos estagnados e seu movimento no
depende apenas do ritmo exterior. Mesmo sem nenhuma influncia externa, osbairros podem modificar-se. Foi o que aconteceu, por exemplo, nos bairros de
Paraibuna, que no lugar da roa de subsistncia passaram a criar gado, sem
abalo na sua maneira de viver.
Sobre a relao da cultura caipira com uma cultura mais global citadina,
Maria Isaura afirma que, a cultura global fornece novos modelos e sugestes
diferentes das antigas, mas no uma fora impositiva que determina as
transformaes. Os caipiras seriam livres para escolher o caminho que querem
trilhar. Para a autora, os bairros desenvolvem diversos mecanismos que anulam a
ao da cidade.
Maria Isaura se contrapondo a muitos estudiosos, inclusive Candido, que
vislumbravam a sociedade caipira como isolada, defende a tese de que ela est
ligada sociedade global e dela parte integrante. O fator mais importante de
integrao seria a economia, que obriga os caipiras a romperem seu isolamento,
se desejarem ter um nvel satisfatrio de vida. O seu contato com a sociedade
global varia de acordo com as necessidades do bairro: naqueles em que vigora a
agricultura de subsistncia, o contato com a sociedade global secundria, j
naqueles em que vigora a agricultura comercial, o contato ganha importncia.
Assim, regularmente o caipira entraria em contato com uma realidade diferente da
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Muitas das caractersticas da cultura caipira apontadas por Candido e
Maria Isaura so comumente representadas nos filmes de Mazzaropi. A parceriacomo forma de apropriao da terra, o auxlio mtuo (mutiro), a preguia, a
rusticidade, a valentia e o patriarcalismo so algumas delas. Porm, tambm se
percebe algumas ausncias. A mais importante a questo religiosa, tanto a
relao pessoal que os caipiras mantinham com os santos, como as benzedeiras
e os curandeiros, to comuns nas sociedades caipiras. Outro elemento totalmente
esquecido por Mazzaropi a fome psquica, mencionada por Candido. Todos
esses elementos sero mais amplamente discutidos no captulo 4.
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Gluck e Wolfgang Amadeus Mozart. E praticamente desconhece Ludwig van
Beethoven e Christian Rauch, seus contemporneos.Nessa obra, Hegel estudou com mais profundidade a arte, notadamente
sua relao com a realidade. A arte uma manifestao sensvel e perceptvel
que os homens conceberam devido ao seu esprito e exprimiram graas
criao de obras de arte concretas. Dessa forma, o nico belo que interessa a
Hegel o belo artstico das produes humanas, ele ignora o belo natural, porque
inferior e no uma produo do esprito. A beleza da natureza no pertence
a ela mesma, mas subjetividade humana, que lhe confere vida. Assim, a arte e
o belo so essencialmente humanos.
Ao lado da religio e da filosofia, a arte uma das responsveis em elevar
a conscincia humana ao seu auto-conhecimento. Hegel compreende a arte como
uma relao entre a singularidade e a universalidade, como a forma singular de
experincia e de apreenso da realidade. A arte torna-se, assim, numa
manifestao do universal na singularidade e nica esfera da realidade onde a
aparncia coincide com a essncia.
Graas aos vestgios artsticos das culturas antigas (esttuas, esculturas,
monumentos, mosaicos, etc.) pode-se reconstituir o que foram as idias e as
crenas que animavam os homens de pocas anteriores. Seguindo essa
perspectiva de Hegel, se podemos compreender as sociedades do passado pelo
que chega at ns de sua arte, tambm podemos analisar as sociedades do
presente pela arte que produzem, o que inclui o cinema.
Influenciado por Hegel e dele se afastando em alguns aspectos, Karl Marx,
mesmo no tendo se ocupado de problemas estticos em trabalhos especficos,
revelou um profundo interesse pela esttica em geral, e pela arte e literatura em
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Apesar dessas importantes consideraes, seria a teoria de Engels sobre o
triunfo do realismo, formulada a partir da literatura de Balzac, uma das
formulaes mais importantes da esttica materialista, pois conduz a investigao
no ao inventrio das idias pessoais do artista e sim obra, com seus
problemas, suas idias e sua estrutura prpria.
Vrios so os autores influenciados pelas idias de Marx e Engels,
reconhecendo na arte um modo vlido para desvendar a realidade. Eles admitem
a hiptese, de forma quase unssona, assim como o fez Lnin, de que a arte um
reflexo aproximadamente fiel da realidade, um desvendamento em seus nveis
mais essenciais, considerando a esttica como integrante da teoria materialista do
conhecimento.
Mesmo j tendo sido mencionada por Plato e Aristteles, a teoria do
reflexo foi conceituada de forma diferente pelos adeptos da esttica materialista.
Analisando os escritos de Lnin (depois de Marx e Engels, um dos grandes
tericos para a formulao de uma esttica materialista), Vzquez (1978) conclui
que a obra de um artista uma reflexo sobre si mesmo. E esse homem (o
artista), como qualquer outro, no est desvinculado de sua classe, de sua poca.
Assim, sua obra tambm uma reflexo sobre a sociedade em que vive e sobre
suas prprias idias. Claro que essa reflexo est carregada de subjetividade,
est fortemente marcada pela concepo de mundo do artista e o que nos
fornece no uma nica verdade sobre a realidade social. Para Vzquez, (1978)
a teoria do reflexo artstico de Lnin no pode ser considerada a chave para
uma esttica materialista, porm contribuiu para esclarecer as relaes entre a
concepo do mundo do artista e a verdade que sua obra pode oferecer.
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em sua conscincia. Para Lukcs, o reflexo da realidade na obra de arte sempre
totalizante, que aprofunda e amplia o conhecimento do mundo humano.
O problema da teoria do reflexo no reside na teoria em si, mas no termo
que a designa. O reflexo como noo pressupe algo direto e imediato,
desprezando a tensa, e s vezes contraditria, relao entre a arte e a realidade
social.
Analisando as idias de Lukcs, Konder (1967) conclui que por meio da
arte, os homens revivem o passado e o presente da humanidade, mas no como
fatos exteriores, e sim como algo essencial para a sua prpria vida, para a prpria
existncia individual. A arte no apenas um mero registro ou documento, que
possa informar sobre as condies polticas, econmicas e sociais de
determinada poca. Mas, fundamentalmente permite ver por dentro uma
determinada experincia histrica e social.
Goldmann (1973) afirma que, existe uma estreita relao entre o contedo
das obras literrias e o contedo da conscincia coletiva, ou seja, com as
maneiras de pensar e de se comportar dos homens na vida cotidiana. Procurando
nas obras literrias mais o documento do que a literatura, o autor se prope a
analisar a reproduo da realidade emprica nas obras. Para Goldmann, mesmo
que escrita por uma nica pessoa, possvel utilizar uma obra literria como
representativa de determinada sociedade, porque o seu autor no uma ilha, ou
seja, a mentalidade no um fenmeno individual, mas coletivo. Para
exemplificar sua tese, Goldmann cita a pea teatral Don Juan (1665) de Molire,
onde conhecemos um jovem sedutor que se casava todos os meses. No sculo
XVII, perodo em que foi escrita o maior nmero de obras literrias com esse
personagem, era impossvel casar-se todos os meses. Como ento essa
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Porm a arte no pode ser reduzida s condies de sua gnese histrica e
social, transcendendo-as historicamente. Marx (1974) exemplifica esse fato com a
arte grega. Mesmo fortemente influenciada pela classe dominante, ainda hoje,
ultrapassada a sociedade escravista, a arte grega reconhecida pelo seu forte
valor esttico. Para Marx, essa permanncia da arte que revelaria a verdadeira
obra de arte. A arte capaz de nos fornecer um conhecimento bem particular da
realidade humana, ou seja, da realidade mais imediata. Se esse desvendamento
for desprezado, a compreenso do real estar mutilada, e o conhecimento
artstico estar sendo renunciado, o que acarretar, de forma mais ampla, numa
renncia da autoconscincia.
Para Vzquez (1978), um dos estudiosos das idias estticas materialistas,
arte e sociedade no podem se ignorar, uma vez que a arte um fenmeno
social: primeiro porque o artista um ser social; segundo porque a arte sempre
um trao de unio entre o artista e outros membros da sociedade; terceiro porque
a arte, de forma negativa ou positiva, sempre comove as pessoas. Nenhuma arte
foi impermevel influncia social nem deixou de influenciar na sociedade. A arte
to velha quanto o homem, isto , quanto a sociedade. Se considerarmos a
forma artstica como um caminho para refletir sobre a realidade, a arte no ser
distinta de outras manifestaes de conscincia social. E se ignorarmos o
contedo e objeto da arte, considerando-a apenas em sua forma, desprezaremos
a peculiaridade da arte como conhecimento. De outro modo, no existe uma obra
que seja apenas forma sem contedo e vice-versa.
J Bakhtin, refletindo especificamente sobre a literatura, afirma que, numa
obra artstica existem vrios aspectos da realidade vivida, no entanto, so
organizados de um outro modo. Isso ocorre porque o autor-criador possui um
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S d B tid (2006) i l i d t d t d l
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Segundo Bastide (2006) a sociologia da arte deve estudar as correlaes
entre as formas artsticas e as formas sociais, no sobrepondo uma outra (a
esttica sociedade), antes considerando o perptuo dilogo entre uma e outra, e
que esse dilogo possui um duplo sentido, pois o criador ao mesmo tempo em
que pode modelar seu pblico, tambm influenciado por ele, impondo-lhe seus
gostos e desejos. A arte no plana no espao, ela vive num certo meio social e
est sempre subordinada a um conjunto de foras que tendem a mant-la ou
modific-la, a propiciar sua difuso ou restringi-la a estreitos limites. A arte, assim,
socialmente produzida, como linguagem e valor.
Superando as interpretaes tradicionais que consideram o contexto social
como causa ou significado das expresses artsticas, Antnio Candido (2000),
socilogo da literatura, prope analisar o que ele denomina de externo, ou seja, o
social como elemento constitutivo da estrutura, tornando-se, por isso, elemento
interno. Para aprofundar essa questo menciona um trabalho escrito por Lukcs
em 1914 (Zur Soziologie des modernen dramas), onde o autor se perguntava se o
elemento histrico-social possui significado para a estrutura da obra, tornando-se
elemento determinante, ou seria apenas a sua possibilidade de realizao. Ou
seja, a sociedade fornece apenas a matria (ambiente, costumes, idias) para a
realizao de uma obra de arte ou se, alm disso, um elemento que atua e
determinante na constituio da sua essncia? Para exemplificar, Candido analisa
a obra Senhora de Jos de Alencar. Como em toda obra de arte, nesta h
referncias a lugares, a modas e usos, a costumes especficos de uma classe. No
entanto, ao transformar a compra de um marido como temtica central de sua
obra, Jos de Alencar faz uma anlise radical da sociedade, resumindo o enlace
sagrado do matrimnio num simples contrato de compra e venda. Esse elemento,
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a influncia do meio social sobre a obra mas tambm que abarquem a influncia
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a influncia do meio social sobre a obra, mas tambm que abarquem a influncia
da obra de arte sobre o meio, superando o carter mecanicista e aproximando-se
de uma interpretao mais dialtica:
Para o socilogo moderno, ambas as tendncias tiveram a virtude demostrar que a arte social nos dois sentidos: depende da ao defatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos desublimao; e produz sobre os indivduos um efeito prtico, modificandoa sua conduta e concepo do mundo, ou reforando neles o sentimentodos valores sociais. (CANDIDO, 2000, p.19)
Considerando esses dois aspectos (a influncia dos aspectos sociais sobre
a arte e como a arte influencia a sociedade), Candido prope no apenas
investigar as influncias dos fatores scio-culturais, ligados aos valores e
ideologias e s tcnicas de comunicao, mas tambm analisar a repercusso
social da obra, uma vez que a arte um sistema simblico de comunicao inter-humana. A perspectiva ideal a que considera esse duplo aspecto, num
movimento dialtico que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema
solidrio de influncias recprocas. (CANDIDO, 2000, p. 22)
Se as artes plsticas e a literatura podem ser objetos de estudo para
compreenso de uma determinada realidade social, o mesmo poderia acontecercom o cinema? As produes flmicas tambm poderiam ser transformadas em
objetos para uma pesquisa sociolgica?
2.1 Cinema e sociedade: uma relao int rnsecaO sonho de capturar a vida em movimento e de recriar o mundo sua
imagem no foi especfico do homem de fins do sculo XIX. As sombras chinesa