caipira sim, trouxa não

Upload: laysmara-carneiro-edoardo

Post on 09-Feb-2018

229 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    1/284

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    2/284

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    SOLENI BISCOUTO FRESSATO

    CAIPIRA SIM, TROUXA NO.Representaes da cultura popular no c inema de Mazzaropi

    e a leitura crtica do conceito pelas Cincias Sociais

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    3/284

    SOLENI BISCOUTO FRESSATO

    CAIPIRA SIM, TROUXA NO.Representaes da cultura popular no c inema de Mazzaropi

    e a leitura crtica do conceito pelas Cincias Sociais

    Trabalho de Concluso de Cursopara obteno do ttulo deDoutor em Cincias Sociais, comrea de concentrao emSociologia da UniversidadeFederal da Bahia.

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    4/284

    ______________________________________________________________________

    Fressato, Soleni Biscouto

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    5/284

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    6/284

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    7/284

    AGRADECIMENTOS

    Nomear as diversas pessoas que acreditaram e contriburam para o

    desenrolar dessa pesquisa (financiada, por meio de uma bolsa de estudos, pelo

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq), no

    das tarefas mais simples. Ao longo desses cinco anos, pois iniciei o meu pr-

    projeto no final de 2004, foram diversas as palavras de estmulo e incentivo. Mas,

    faz-se necessrio e para mim tambm gratificante, destacar algumas pessoas.

    Primeiramente, e sem quem essa tese no existiria, ao Profe Cmara.

    Gentil e bem-humorado, ele me orientou com segurana e competncia, sem

    nenhum stress, respeitando minhas opinies, questionamentos e limites. Sua

    orientao iluminou-me desde o pr-projeto de pesquisa, at as derradeiras

    linhas. Afinal, o que seria de mim, meu deus, sem a f em Antnio...

    minha famlia, especialmente nas pessoas de minha me, Sirene, e

    minha irm, Solange, pela torcida distante.

    Ao pessoal da Oficina Cinema-Histria, grupo de pesquisa que integro,

    pelas discusses em torno da problemtica das representaes sociais no cinema

    e da cultura popular.

    Aos professores e colegas de turma que contriburam significativamente

    para o meu desenvolvimento intelectual.

    banca de defesa, por ter aceitado o convite para participar desse

    importante momento de minha vida acadmica. Especialmente a Marcos Silva,

    pelas pertinentes consideraes feitas nos vrios congressos que juntos

    participamos.

    Enfim, como numa torta, que deixamos a melhor parte para o final, a Orfeu,

    pequeno ser inteligente e sensvel que acompanhou minha jornada desde o

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    8/284

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    9/284

    ABSTRACT

    The object of the present research is the representation of the countryside

    cultural practices (i.e. cultural practices of the caipiras) in the cinema of Amacio

    Mazzaropi, whose fundamental concepts are related to the notions of culture,

    popular culture and mass culture. The theoretical background is mainly based

    on the work A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto

    de Franois Rabelaisby Mikhail Bakhtin. In this work, the author explains that

    popular culture, ruled by comedy, makes use of derision and satire as a form of

    resistance against the prevalent values and ideology. Among Mazzaropis 32

    films, Chico Fumaa (1958), Chofer de praa (1958), Jeca Tatu (1959) and

    Tristeza do Jeca(1961) were selected for this research. In these films the social

    reality of the caipiras was represented, especially their conflicting relationship

    with the landowners and with the habits and customs of the big city. Based on

    the analysis of these films, it is possible to affirm that popular culture

    represented by them is characterized by ambiguity: either subordinating to or

    rebelling against the prevalent values and the established rules. As regards

    methodology, the films were analysed according to the period they were

    produced, that is, within the hegemonic context of the national-developmentalist

    ideology without, however, agreeing with its principles.

    Key-words:Comedy and social critic, Developmentalist ideology, Mazzaropis cinema,

    Movies and social reality, Popular culture caipira.

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    10/284

    RSUM

    L'objet de la prsente recherche est la reprsentation des pratiques culturelles

    caipiras dans le cinema dAmacio Mazzaropi, tant ses concepts directrices

    ceux lis aux notions de culture, culture populaire et culture de masse. Le corps

    thorique possde comme fondement principal l'oeuvre A cultura popular na

    Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelaisde Mikhal

    Bakhtin. En elle l'auteur explique que la culture populaire, rgle par le

    comdien, est utilise de la raillerie et de la satire comme une forme de

    rsistance aux valeurs et l'idologie dominante. Des 32 films de Mazzaropi

    avaient t choisi Chico Fumaa (1958), Chofer de praa (1958), Jeca Tatu

    (1959) et Tristeza do Jeca (1961). Dans ces films a t reprsente la ralit

    sociale du caipirasy compris la relation conflictuelle avec les propritaires de

    terre et avec les habitudes et les coutumes urbains. partir de l'analyse de ces

    films, nous pouvons affirmer que la culture populaire en ces derniers

    reprsente se caractrise par l'ambigut, quelques fois en subordination,

    dans d'autres en rbellion contre les valeurs dominantes et les rgles institues.

    Combien la mthode, ses films avaient t analys la lumire de la priode

    o avaient t produit, c'est--dire, dans le contexte d'hgmonie la politique et

    l'idologie desarrollista, toutefois, n'intgrant pas avec ses propositions.

    Mont cles:Cinma de Mazzaropi, Cinma e ralit sociale, Comique et critique sociale,

    Culture populaire caipira, L'idologie desarrollista.

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    11/284

    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................11

    1 CULTURA: UM TEMA EM DEBATE ...........................................................16

    1.1 CULTURA POPULAR:

    REFLEXES SOBRE UM CONCEITO COMPLEXO ................................... 22

    1.2.1. Cultura popular: a proposta de anlise de Bakhtin .......................... 29

    1.2.2. A cultura popular caipira ................................................................... 39

    2 A ARTE PARA COMPREENSO DAS SOCIEDADES:

    A SOCIOLOGIA DA ARTE ......................................................................... 53

    2.1 CINEMA E SOCIEDADE: UMA RELAO INTRNSECA ..................... 60

    2.1.1 Cinema, sociedade e ideologia ........................................................ 75

    3 O CONTEXTO DE PRODUO DE MAZZAROPI ..................................... 96

    3.1 INDUSTRIALIZAO E URBANIZAO, SMBOLOS DA

    MODERNIDADE: A IDEOLOGIA NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA .... 97

    3.2 A PRODUO CINEMATOGRFICA BRASILEIRA:

    CHANCHADA, VERA CRUZ E CINEMA NOVO ........................................ 111

    4 O CAIPIRA MAZZAROPI: IMITAO E POPULARIDADE ..................... 131

    4.1 O RISO (DES) PRETENSIOSO DO CAIPIRA ...................................... 142

    4.2 O CAIPIRA EM 32 FILMES DE SUCESSO .......................................... 153

    4.3 A CRTICA ESPECIALIZADA E O PBLICO

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    12/284

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    13/284

    11

    INTRODUO

    Quando afirmamos que os filmes de Costa Gavras ou de Ken Loach ou

    ainda de Glauber Rocha representam uma determinada realidade scio-histrica,

    muitos pesquisadores das cincias sociais concordam prontamente. Os

    documentrios tambm so bem recebidos pela academia quando transformados

    em objetos de pesquisa para melhor compreender a realidade social. Muito

    diferente o comportamento desses mesmos pesquisadores, quando so

    utilizados como objetos de investigao, filmes fortemente marcados pelas

    prticas industriais de produo, pelo cmico e pela despretenso em fazer um

    cinema tipicamente poltico. A esses filmes resta apenas a alcunha pejorativa de

    indstria cultural, de cinema para divertir e para alienar. Mas, se todos os filmes

    so condicionados pelo perodo scio-histrico em que foram produzidos, todos

    eles, mesmo os mais industriais, fantsticos ou surrealistas, no representariam

    de forma consciente ou no, a realidade social?

    Concordando com Marcos Silva,1consideramos que as artes possuem um

    carter humano e social e uma racionalidade prpria, sensvel e esttica. A

    esttica realista apenas uma possibilidade de representar a realidade. Ainverso da realidade no deslegitima a produo cinematogrfica e no a afasta

    da realidade social. Os exageros narrativos so recursos e no uma infidelidade

    ou superficializao factual, so uma forma de expressar a realidade e, por isso

    mesmo, so passveis de serem considerados pelos pesquisadores das cincias

    sociais. Assim, toda produo humana pode ser objeto de pesquisa, mas comoso objetos diferentes, merecem ser tratados de forma diferenciada, no devemos

    procurar nos filmes a mesma objetividade que encontramos numa tabela

    estatstica, por exemplo. Embora no sejam produes de pesquisadores e sim

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    14/284

    12

    filmes. Eles so muito mais uma problematizao da realidade, uma forma de

    abordar os problemas adormecidos.

    Partindo dessa perspectiva, de que todo o filme pode ser objeto de

    pesquisa, cabendo ao investigador desconstruir o discurso, para nele encontrar as

    evidncias da realidade social que escolhemos os filmes de Amcio Mazzaropi.

    A escolha por Mazzaropi no foi fcil. Poucos o consideram como um cinema

    digno de maiores estudos. A grande maioria dos estudiosos assume uma

    postura mais simples e menos perturbadora de menosprez-lo e tach-lo de

    cinema sem nenhum comprometimento social, no sendo merecedor de uma

    anlise mais profunda. Digo uma postura menos perturbadora porque os filmes

    de Mazzaropi, apesar da aparncia simples e descompromissada, revelam-se

    mais incmodos e mais difceis de serem desconstrudos do que muitos cinemas

    ditos polticos. Utilizando-se do cmico e da stira, Mazzaropi problematiza, de

    forma crtica e questionadora, muitos problemas sociais dos pequenos

    camponeses, como a vigncia e os abusos das prticas coronelistas. claro que

    seu caipira no o campons consciente e revolucionrio de Glauber Rocha, que

    suas solues so conservadoras e seus finais so sempre felizes. Mas tambm claro que seu caipira no tolo e, a seu modo, revela uma grande

    complexidade de seu mundo. Ele ajuda a desvendar muitos aspectos da

    sociedade que o gerou. Mas, se a arte possui um potencial para apontar

    problemas, no quer dizer que ir resolv-los.

    Foi com essa idia em mente que elaboramos o objeto da presentepesquisa: a representao da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Mazzaropi

    iniciou sua atuao no cinema como ator, no incio dos anos de 1950, mais tarde

    j assumia as funes de diretor, roteirista e argumentista, chegando, inclusive, a

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    15/284

    13

    projeto hegemnico, pelo fato de revelarem os antagonismos e os conflitos sociais

    latentes ou explcitos. A retomada desses discursos tambm permite esclarecer

    que, nem tudo estava (como ainda no est) sob controle das classes

    dominantes. Para uma pesquisa sociolgica essas produes so importantes

    pelo fato de, nelas, estarem representadas uma multiplicidade de aspectos da

    cultura popular e a riqueza de manifestaes sociais diversas.

    Delineado o objeto, conduzimos nossas reflexes em torno de um conjunto

    de problemticas que buscassem melhor compreender como a realidade scio-

    cultural do mundo caipira foi representada nos filmes de Mazzaropi: de que

    maneira a cultura popular caipira representada em seus filmes? Como

    representado o confronto entre as prticas culturais mais especficas do meio

    urbano e as mais especficas do meio rural? Como Mazzaropi se utiliza do humore do cmico para apontar os espaos de tenso social? Quais imagens das

    classes populares foram construdas nesses filmes em confronto com as do poder

    ou aquelas da classe dominante? De que maneira a crtica e o pblico receberam

    suas produes?

    Para tal intento, os conceitos norteadores da pesquisa so aquelesvinculados s noes de cultura, cultura popular e cultura de massa. Para tanto,

    recorro a estudos realizados por diversos pesquisadores que refletiram sobre

    esses temas, tanto os mais clssicos como Walter Benjamin e Theodor Adorno,

    como outros estudiosos mais recentes que vm se debruando sobre o tema da

    cultura, como Raymond Williams, Michel de Certeau, Denys Cuche e NestorGarcia Canclini. Especificamente sobre a cultura popular brasileira, conduzo

    minhas reflexes em torno das teses de Oswaldo Elias Xidieh e Renato Ortiz. J

    para analisar as prticas culturais caipiras utilizei a obra referencial de Antonio

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    16/284

    14

    outros aspectos se revelaram interessantes e pertinentes e foram incorporados ao

    corpo terico. Nessa obra, Bakhtin faz um estudo sobre a cultura popular,

    enfatizando sua dimenso cmica. Para o autor, a comicidade, pautada pela

    pardia, pela stira e pelo deboche, um espao, por excelncia, de crtica e

    contestao ordem dominante e ao poder institudo e, por isso mesmo, espao

    de resistncia social.

    As problemticas que elaboramos unidas ao corpo terico referencial

    possibilitaram a formulao do objetivo geral da pesquisa: analisar a

    representao da cultura popular caipira no cinema de Mazzaropi. Sendo que

    outros objetivos especficos podem ser considerados: compreender como ocorre

    o confronto entre as prticas culturais citadina e caipira; analisar o

    posicionamento / a opinio da imprensa paulista e carioca (crtica) sobre os filmesde Mazzaropi; compreender a aceitao generalizada dos filmes de Mazzaropi

    pelo grande pblico; compreender a interao de Mazzaropi com o mundo caipira.

    Quanto ao mtodo, as produes de Mazzaropi foram analisadas luz do

    perodo em que foram produzidas, ou seja, no contexto de hegemonia da poltica

    e ideologia desenvolvimentista, no entanto, no compactuando com suaspropostas. Aps a anlise dos 32 filmes de Mazzaropi, devido impossibilidade

    de um estudo com qualidade de toda a sua obra, optou-se por escolher um

    conjunto mais apropriado e pertinente para atingir os objetivos da presente

    pesquisa. Assim, dois dos oitos filmes da srie Jeca, Jeca Tatu de 1959 (o mais

    emblemtico de seus filmes) e Tristeza do Jeca de 1961, foram privilegiados napesquisa, pois so os mais representativos para a anlise da cultura popular

    caipira. O filme Chico Fumaa (1958) foi incorporado pelo fato de nele tambm

    estar representado o universo do homem do campo. Para a anlise do confronto

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    17/284

    15

    oficial (www.museumazzaropi.com.br). Assim, alm dos filmes, essas publicaes

    tambm sero consideradas e analisadas para o desenvolvimento da presente

    investigao cientfica.

    Insistimos em nos referir a esses 32 filmes como os filmes de Mazzaropi,

    ou ainda, o cinema de Mazzaropi, porque independente do diretor ou do

    produtor, o cineasta, mesmo quando atuando apenas como ator, exercia uma

    grande influncia, apagando da memria nomes como o de Milton Amaral, diretor

    de Jeca Tatu(1959).

    Intitulamos nossa pesquisa de CAIPIRA SIM, TROUXA NO.

    Representaes da cultura popular no cinema de Mazzaropi e a leitura crtica do

    conceito pelas Cincias Sociais. A expresso caipira sim, trouxa no uma

    sntese do personagem de Mazzaropi, um misto de subordinao e rebeldia, detolice e esperteza. Essa oposio na fala e nas atitudes do caipira transforma-se

    na principal caracterstica do cinema de Mazzaropi.

    No 1 captulo sero tratadas as questes tericas relacionadas com o

    tema da cultura, cultura popular e cultura caipira. Em seguida, no 2 captulo,

    analisaremos a pertinncia das representaes cinematogrficas para umapesquisa sociolgica, nos debruando sobre vrios tericos da sociologia da arte.

    O contexto de produo de Mazzaropi, tanto social, poltico e econmico, como

    cinematogrfico (com destaque para a ideologia nacional-desenvolvimentista e as

    produes cariocas da chanchada), ser analisado no 3 captulo.

    Nos captulos 4 e 5, nos deteremos especificamente na produo deMazzaropi. Sendo que no captulo 4 analisaremos de forma geral seus 32 filmes,

    destacando a construo de seu personagem caipira, a forma como se utilizou do

    riso e do cmico e a recepo da crtica especializada e do pblico aos seus

    http://www.museumazzaropi.com.br/http://www.museumazzaropi.com.br/
  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    18/284

    16

    1 CULTURA: UM TEMA EM DEBATE

    Basta ligarmos o rdio ou a TV, ou ainda, navegarmos pela internet, para

    verificarmos que a palavra cultura vem sendo amplamente utilizada. Ela citada

    em noticirios, propagandas, programas de lazer, etc. No Estado a preocupao

    com a produo e o incentivo cultural vem crescendo sobremaneira. No Brasil, as

    Leis de Incentivo Cultura (no mbito federal, conhecida popularmente como

    Lei Rouanet) so apenas exemplos de como, cada vez mais, empresas privadas

    vm investindo em cultura. Na academia a situao no diferente: grande o

    nmero de grupos, revistas e pesquisas que tratam de questes culturais. Cultura,

    multiculturalismo, diversidade cultural, so palavras que nunca estiveram to em

    moda. Porm, muitos pesquisadores esto mais preocupados com questes

    voltadas para a gesto cultural, ou ainda, com os profissionais e trabalhadores dacultura, termos recentemente criados. Percebe-se assim que, se por um lado os

    estudos sobre cultura tm crescido, a grande maioria centraliza a anlise em sua

    industrializao ou mercantilizao, sem que o processo de transformao da

    cultura em indstria e mercadoria seja desconstrudo. Muitas vezes at mesmo

    corroborado. Diante dessa situao, os estudiosos das cincias sociais vm sedebruando cada vez mais sobre o tema, na tentativa de compreender no

    apenas o conceito de cultura, num mundo em franco processo de globalizao,

    mas tambm de apreender seu processo de criao. Dessa forma, o tema revela-

    se polmico e tem provocado grandes debates, pois as discusses abrangem o

    conceito de cultura e o domnio cada vez maior da indstria cultural. Nopretendemos repassar todas as formas de como a cultura vem sendo conceituada

    no meio acadmico, nem traar um histrico do conceito. Contudo, faz-se

    necessrio a anlise de algumas idias significativas sobre o assunto.

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    19/284

    17

    principalmente no alemo e no ingls, a palavra cultura j se referia

    configurao ou generalizao do esprito (WILLIAMS, 2000, p.10), informando

    o modo de vida global de um povo ou de determinado grupo social. Apesar

    desse sentido ser amplamente utilizado, Williams alerta que, ele s eficiente

    para a anlise de sociedades mais simples, onde a relao entre natureza e

    cultura explicativa. Para sociedades mais complexas, com altos ndices de

    transformao social e material, essa polarizao insuficiente e, porconseqncia, tambm o a definio de cultura como modo de vida global.

    Constatada essa insuficincia, Williams parte em busca de um conceito

    mais pertinente para a anlise das sociedades modernas e que facilite o trabalho

    de investigao com o tema da cultura. Organizao social da cultura seria o

    mais indicado para o estudo destas sociedades, por ser um conceito mais geral,sem substituir os sentidos mais especficos, indicando suas complexas inter-

    relaes e fortalecendo o conceito de cultura como um sistema de significaes

    realizado, abrindo espao para o estudo de prticas significativas, ou seja, uma

    srie completa de atividades, relaes e instituies.

    Williams destaca a questo da reproduo nos estudos sobre cultura. Atradio, conceito cultural bsico, o processo de reproduo em ao, um

    processo de continuidade deliberada, no necessria, mas desejada. Enquanto

    herana cultural, a tradio moldada e remoldada por diversos processos

    sociais, sendo sua caracterstica bsica o conflito, a competitividade entre

    tradies antagnicas, na maioria das vezes geradas numa mesma sociedade. Acultura reproduzida, ao mesmo tempo em que um modo de reproduo. No

    apenas a forma como as pessoas esto vivendo num momento isolado, mas uma

    seleo e uma organizao do passado e do presente, e provendo suas

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    20/284

    18

    que no pode ser desprezado que toda re/produo cultural tambm implica em

    dominao. Elas podem at apresentar-se de forma desligada das formas sociais

    dominantes, mas esto em integrao.

    Para Martin-Barbero (2003) a pertinncia das reflexes de Williams est

    em ter primeiramente desconstrudo o conceito de cultura, muitas vezes

    confundido como sinnimo de educao, notadamente a educao superior

    destinada classe dominante. E, num segundo momento, reconstruindo-o nosentido de permitir a abordagem da complexa dinmica dos processos culturais

    contemporneos.

    Williams ultrapassa outros autores, pelo fato de construir um conceito de

    cultura que considera as complexas relaes das sociedades modernas,

    valorizando, assim, as diversas expresses culturais, inclusive as populares. Apartir dessa conceituao, possvel considerar a cultura como um espao de

    conflito, de disputa e de competio.

    O socilogo da cultura latino-americana, Nestor Garcia Canclini, muito

    prximo do pensamento de Williams, em suas reflexes sobre a cultura, a

    considera como o conjunto dos processos sociais de significao ou, de modomais complexo, a cultura abrange o conjunto de processos sociais de produo,

    circulao e consumo da significao na vida social. (CANCLINI, 2003, p. 35) At

    chegar a essa definio, por ele considerada operativa, Canclini percorre um

    interessante caminho enumerando algumas formas de conceituar cultura.

    Primeiramente, numa definio mais bvia, considerando-a como educao,ilustrao e refinamento. Este uso coloquial, com suporte na filosofia idealista,

    tem por base a distino, caracterstica na lngua e filosofia alem, entre cultura e

    civilizao. Para Canclini, essa definio insuficiente, uma vez que, num perodo

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    21/284

    19

    tambm teve como sria conseqncia o relativismo cultural. Para Canclini esta

    definio no est bem especificada porque no existe a certeza de que o termo

    cultura possa abarcar todas as instncias de uma formao social.

    Considerando insuficiente essas formas de conceituar o termo, Canclini

    encontra na relao entre cultura e sociedade o caminho que julga mais

    pertinente. Desde meados do sculo XX, primeiramente com a obra de Ralph

    Linton e, mais recentemente e de forma mais consistente, com Pierre Bourdieu ostermos sociedade e cultura so considerados de forma dialogada. Recuperando o

    pensamento de Jean Baudrillard, Canclini explica que numa sociedade capitalista

    alm dos objetos possurem um valor de uso e um valor de troca, j assinalados

    por Marx, tambm so significativos e simblicos. Por signo entende-se o

    conjunto de conotaes e implicaes associadas aos objetos que nadaacrescentam ao valor de uso e ao valor de troca, referindo-se a elementos poucos

    relacionados com os usos prticos do objeto, a sua cor, por exemplo. J o

    smbolo est relacionado com certos rituais e com atos particulares que ocorrem

    nas sociedades (objetos ganhos como presentes de casamento ou de aniversrio

    possuem um valor maior que os comprados). Nessa linha de raciocnio, Canclinidestaca o pensamento de Bourdieu. Segundo Canclini, para Bourdieu a

    sociedade est estruturada em dois tipos de relaes: as de fora,

    correspondentes ao valor de uso e ao valor de troca, e as de sentido, que

    organizam a vida social, as relaes de significao. O mundo das significaes,

    dos sentidos, o que constitui a cultura. (CANCLINI, 2003, p.35)Assim, tanto para Williams, como para Canclini, cultura o conjunto de

    idias, de prticas, de valores e de representaes, de modos de pensar e de agir

    significativos para determinado grupo social. Adotaremos essa proposta de

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    22/284

    20

    vivem, considerando a relao recproca entre cultura e sociedade: ao mesmo

    tempo em que a cultura produto da sociedade, contribui para a sua re/produo.

    Prximo de Williams e de Canclini, Certeau define a cultura como sistemas

    de referncia e de significados heterogneos entre si (1995, p. 142), ou seja,

    pressupe que para existir cultura necessrio que as prticas tenham

    significado para quem as realiza. Certeau tambm afirma que, uma cultura

    monoltica impediria que as prticas criadoras tivessem significado, destinandoapenas a uma cultura, em detrimento de outras, as criaes de prticas sociais.

    No existe, apesar das inmeras tentativas da classe dominante, um nico setor

    particular da sociedade que possa fornecer a todos o que os prover de

    significao. A cultura no singular para Certeau, uma mistificao poltica e

    mortfera, pois ameaa a criatividade. Para eleacultura no singular traduz osingular de um meio. Ela est na maneiracomo respiramos, nas idias, na presso autoritria de umadeterminao social que se repete e se reproduz (...). Na anlisecultural, o singular traa em caracteres cifrados o privilgio das normase dos valores prprios a uma categoria. (CERTEAU, 1995, p. 227)

    Nesse sentido, Certeau chega a sugerir que a cultura no singular aideologia vestida de cultura. Mesmo reconhecendo que admitir a hiptese da

    pluralidade cultural um problema novo, Certeau defende que, quanto mais as

    estruturas econmicas unificam e homogenezam, mais a cultura deve diferenciar

    e pluralizar.

    O termo pluralidade, utilizado por Certeau, no o mais apropriado paraquestes sobre a cultura, pois sugere a existncia de uma infinidade de culturas,

    quando o que existe so prticas culturais diferenciadas, numa relao tensa e

    conflitiva com a indstria da cultura que insiste na homogeneizao dessas

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    23/284

    21

    Canclini (1997) forja o conceito de hibridismo cultural. Para ele, este termo

    substituiria o de mestiagem, mais utilizado para as questes raciais, e o desincretismo, mais comum em estudos sobre a fuso religiosa; apresentando-se

    mais coerente, pelo fato de abranger as diversas mesclas interculturais.

    Analisando o avano da modernidade cultural e da modernizao socioeconmica

    sobre a cultura popular na Amrica Latina nos anos 1990, Canclini conclui que,

    no existe uma separao estanque entre o popular e o massivo, muitas vezes acultura massiva se apropria e divulga elementos da cultura popular. Como

    tambm, inexiste a dicotomia entre o tradicional e o moderno. De acordo com sua

    proposta, a relao entre o popular e o massivo caracterizada pela dinmica

    conflitiva, ao mesmo tempo esto em constante interao e preservando suas

    especificidades e diferenas.Diferentemente de Canclini, para Canevacci (1996) o conceito de

    sincretismo2pode ser generalizado para a cultura e no est restrito apenas s

    expresses religiosas. Ele recorre a esse termo para melhor compreender as

    transformaes que ocorrem com a produo, o consumo e a comunicao da

    cultura no contexto de globalizao. Tendo sua gnese na poltica o termo passoupara a religio. Com a chegada dos europeus na Amrica, alm de escravizar os

    africanos, era necessrio converter sua alma, impor a religiosidade catlica.

    Porm, para continuar com suas prticas, os africanos disfararam seus smbolos

    e divindades em catlicos. O sincretismo, para Canevacci um orix em

    movimento e do movimento: contra os imobilismos psquicos, as reproduespermanentes, as teorias cclicas, as firmezas tericas, as paradas arquetpicas.

    (CANEVACCI, 1996, p. 16) E ser exatamente no Brasil que o sincretismo

    passar de sua forma religiosa para a cultural. Para Canevacci, o ato simblico de

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    24/284

    22

    Para Canevacci, a cultura no apenas algo unitrio, que compacta e liga

    entre si indivduos, sexos, grupos, classes, etnias; mas sim algo bem mais plural,descentrado, fragmentrio, conflitual.(CANEVACCI, 1996, p. 14) No encontro

    entre os diversos traos culturais no ocorre uma aceitao passiva, existe uma

    seleo, modificao e recombinao, ou seja, o sincretismo cultural. Assim, para

    Canevacci, no mago do conceito de sincretismo existe um misto de desordem,

    de confuso e de inquietude. Porm, o autor no destaca a ambigidade dosincretismo, pois uma forma, e inteligente, de resistncia, de preservao dos

    aspectos culturais africanos numa sociedade europeizada, mas tambm, e

    exatamente pelo fato de ser sincrtico, uma forma de dominao.

    Porm, se o pensamento de Canevacci importante em alguns pontos,

    tambm possui muitos problemas. Ele cita como exemplo de sincretismo musicala gravao de uma faixa do CD Roots do grupo brasileiro Sepultura numa aldeia

    Xavante, com vozes e percusses nativas. Para Canevacci, se encontram de

    forma sincrticas

    a msica popular brasileira, com Paulinho da Viola e o seu berimbau declara origem afro; os ritos musicais nativos dos Xavantes, com suas

    vozes, as palmas repetidas, os tambores; as experimentaes metlicasda msica metropolitana, dura, cida, distorcida, com umaextraordinria voz rouca(...). (CANEVACCI, 1996, p. 54)

    Esse exemplo reduz o conceito de sincretismo apenas como um encontro

    cultural, que nada alterou no modo de compor de Paulinho da Viola, dos Xavantes

    e do grupo Sepultura. Nesse encontro no houve uma apropriao eresignificao de elementos culturais de uma cultura por outra, como ocorreu no

    sincretismo religioso baiano, por exemplo, como o prprio autor cita. Considerar

    esse fato de sincretismo cultural desprezar ou, ao menos, reduzir toda a riqueza

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    25/284

    23

    cultura popular. Longe do consenso, eles acabam por interpret-la de formas

    diferenciadas, atribuindo significados que se no chegam a ser contraditrios,apontam para a complexidade do termo.

    Johann Gottfried Herder foi um dos pioneiros a valorizar a cultura popular.

    Num texto polmico, j em 1774, inserido no debate franco-alemo sobre cultura

    e civilizao,3 opondo-se s idias universalistas e uniformizantes dos filsofos

    iluministas franceses, Herder relacionou e colocou em igualdade a poesia literriae a poesia dos cantos populares, ou seja, valorizou a cultura popular,

    considerando-a espao de criatividade, de atividade e de produo.

    Alertando para o fato de que cultura popular difcil de ser definida devido

    polissemia dos termos que a compem, cultura e popular, Cuche (1999) a

    analisa como uma cultura dominada, que se constri e reconstri numa situaode dominao. No entanto, mesmo sendo dominada, uma cultura inteira,

    baseada em valores originais que do sentido sua existncia, construindo-se na

    histria das relaes entre os grupos sociais e na relao, na maioria das vezes

    conflitiva, tensa e violenta, com outros aspectos culturais. Se numa sociedade

    existe uma hierarquia e uma diferenciao social, essa hierarquia e diferenciaotambm se refletiro na cultura, ou seja, a cultura popular a cultura de grupos

    sociais subalternos, sendo construda numa relao de dominao. Cuche utiliza

    o argumento de que, no admitir a hierarquia cultural seria considerar as culturas

    como independentes entre si e sem relao com os grupos sociais, o que no

    corresponderia realidade. Ele utiliza os termos dominada e dominante como

    3 Segundo Elias, na Alemanha, existe uma ntida distino, atualmente ainda difundida,entre cultura e civilizao. Cultura, a kultur, o cultivo do esprito, se refere mais especificamente aomundo das idias e dos sentimentos elevados aos fatos intelectuais artsticos e religiosos Mas

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    26/284

    2

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    27/284

    25

    foram considerados como expresses nacionais, estes capitais simblicos

    possuem uma posio secundria, de subordinao.A preocupao com questes da cultura popular acompanha os

    pesquisadores brasileiros desde fins do sculo XIX. Celso de Magalhes (1973),

    Jos de Alencar (1962) e Slvio Romero (1977) (de forma mais aprofundada que

    os dois anteriores) so considerados os precursores dos estudos sobre cultura

    popular no Brasil. Um dos aspectos comuns entre eles, e que sobrevive emmuitos pesquisadores da atualidade, terem estudado a cultura popular na busca

    de identificar os traos genuinamente nacionais formadores de uma identidade,

    contrapondo-os aos que representassem Portugal, a antiga metrpole do Brasil.

    Apesar da validade e importncia desse enfoque sobre a cultura popular, nessa

    pesquisa no iremos nos debruar sobre essa questo, ou seja, a da formao deuma identidade nacional a partir da cultura popular. Escolhemos nos distanciar

    dessa proposta, por acreditarmos ser problemtica a generalizao de

    determinadas manifestaes populares especficas de uma regio para outras do

    pas, que na grande maioria das vezes no se identificam com elas.

    Outra caracterstica marcante desses trs pesquisadores consideraremque a cultura popular mais presente no meio rural ou em cidades interioranas.

    Essa concepo est diretamente associada perspectiva de considerar a cultura

    popular como rude e ingnua, fadada ao desaparecimento pelo fato de no se

    achar em harmonia com o que se denomina progresso e civilizao. Por isso,

    esses pesquisadores queriam registrar rapidamente as expresses da culturapopular, antes que se apagassem da memria do povo. Eles acreditavam que,

    cultura popular e folclore seriam termos sinnimos. Porm, a expresso folclore

    foi utilizada de forma pejorativa, em estudos que analisaram as manifestaes

    26

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    28/284

    26

    Tambm incluram a produo urbana como manifestao da cultura popular e

    passaram a considerar o contexto cultural para melhor compreender asmanifestaes, costumes, crenas e prticas populares mais especficas.

    Seguindo essa linha, Roger Bastide e seus alunos da Universidade de So

    Paulo, dentre eles Florestan Fernandes e Oswaldo Elias Xidieh, consideravam

    cultura popular como um processo atual e no como simples sobrevivncia, por

    isso o contexto cultural e social mais amplo tornou-se passvel de anlise. Elesconsideravam a cultura popular como fruto, tambm, da organizao social, das

    instituies e dos grupos sociais que a realizam. Segundo Bastide (1959), a

    cultura popular no flutua no ar e somente estudando a sociedade em que

    produzida poder ser efetivamente analisada.A perspectiva de Bastide analisar

    a cultura como re/produo das prticas, pois ela s se mantm, desaparece oumodifica, se os homens, vivendo num determinado contexto socioeconmico,

    realizarem ou no aquelas prticas. Assim, surgem em seus estudos as

    condies de vida, os interesses e os conflitos entre os diferentes grupos sociais.

    As afirmaes de Oswaldo Elias Xidieh so as que mais nos interessam,

    pois so as que possibilitam uma melhor anlise da cultura popular caipirarepresentada nos filmes de Mazzaropi. Xidieh aproxima-se das propostas de

    Bastide ao afirmar que as manifestaes populares mais especficas apenas

    sero compreendidas se analisadas num contexto mais amplo da cultura, da

    estrutura socioeconmica e sociocultural mais geral (a sociedade brasileira).

    Estudando as transformaes sociais, econmicas e culturais de So Paulodurante os anos 1940, Xidieh (1967 e 1972) afirma que algumas manifestaes

    culturais mais rsticas e associadas existncia rural tendem a desaparecer com

    a migrao para os grandes centros urbanos. J outras podem ser reelaboradas,

    27

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    29/284

    27

    lado, existe uma resistncia das camadas dominadas em manter sua cultura,

    enfatizando na importncia de analisar as relaes de conflito e dominao entreas classes sociais, para melhor compreender a cultura popular.

    Renato Ortiz um dos pesquisadores brasileiros mais referenciados em

    estudos sobre a cultura popular. Em Romnticos e folcloristas. Cultura popular

    (1992) ele prope-se a fazer uma arqueologia do conceito, debruando-se sobre

    as reflexes e as razes histricas do termo popular. Para tanto, fixa o incio desua investigao no sculo XIX, considerado como estratgico pelo fato de,

    naquele momento, a idia de cultura popular ter sido inventada, sendo

    progressivamente lapidada pelos diferentes grupos intelectuais. (ORTIZ, 1992,

    p.6) A cultura popular considerada, assim, como uma criao dos intelectuais,

    que com diferentes intenes buscam compreender as tradies. Partindo desseprincpio, Ortiz passa a analisar as propostas e os mtodos de investigao de

    trs grupos: os antiqurios, os romnticos e os folcloristas, identificando suas

    propostas em comum e pontos divergentes. Argumenta, ainda que, as reflexes

    dos dois ltimos grupos romnticos e folcloristas so matrizes e incorporam as

    discusses atuais sobre o popular, considerando-os responsveis em cunhar umacompreenso da cultura das classes subalternas. A partir da preocupao,

    notadamente dos folcloristas, em organizar o material sobre o assunto, a cultura

    popular passou a ser considerada como uma categoria de anlise.

    No pretendemos nos deter nas caractersticas e anlises de cada um dos

    grupos mencionados por Ortiz, mesmo porque no objetivo deste trabalho traarum histrico do conceito. Mais pertinente refletir sobre as concluses do autor

    sobre a cultura popular. Para Ortiz, popular um tema que suscita muitos e

    polmicos debates entre os pesquisadores. Apesar de inmeras divergncias, os

    28

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    30/284

    28

    cultura popular, para Ortiz, elemento de extrema importncia para a formao

    da identidade nacional, parte da construo do Estado-Nao, tanto naAlemanha, com destaque para o pensamento de Herder e dos irmos Grimm,

    como no Brasil, o popular simboliza o caminho para a resistncia colonial. A

    cultura popular, conforme Ortiz, o elemento simblico que permite aos

    intelectuais tomar conscincia e expressar a situao perifrica que seus pases

    vivenciam. (ORTIZ, 1992, p. 66-7)Muitos pesquisadores, como Ortiz, tm considerado a cultura popular como

    base para a formao da identidade nacional. Porm, o erro desses pensadores

    idealizarem a cultura popular brasileira como nica e homognea. Prticas e

    representaes significativas para a populao do Rio Grande do Sul, podem

    nada significar para os nortistas ou nordestinos, por exemplo. Assim, a culturapopular em que se baseiam os intelectuais para formulao da identidade

    nacional a tpica dos centros urbanos do sudeste, notadamente de So Paulo e

    do Rio de Janeiro, no considerando as especificidades das manifestaes

    regionais. Outra questo problemtica no pensamento de Ortiz considerar a

    cultura popular apenas como criao dos intelectuais, essa afirmao esvazia asexpresses populares de todo o seu significado e sentido.

    Em contrapartida, consideramos a cultura popular no como um conjunto

    coeso e homogneo de prticas e representaes, mas portadora de conflitos,

    ambigidades e contradies. Consideramos tambm, que as prticas populares

    fazem parte de um contexto sociocultural mais abrangente, que as explica e tornapossvel sua existncia. Quando esse contexto se modifica, as prticas tambm

    se tornam passveis de alterao, sem que isso implique necessariamente em sua

    extino.

    29

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    31/284

    29

    Devido a esse aspecto importante da cultura popular, optamos por privilegiar as

    consideraes de Mikhail Bakhtin em nossas anlises.

    1.2.1 Cultura popular: a proposta de anlise de Bakhtin

    Mikhail Bakhtin (1895-1975), individualmente ou em colaborao, no

    denominado Crculo de Bakhtin, publicou vrios livros e um grande nmero deensaios abrangendo a lingstica, a psicanlise e a crtica literria, dedicando-se a

    analisar, entre outros temas, as obras de Dostoievski, Maiakovski e Rabelais.

    Muitos de seus conceitos, como de circularidade cultural, de heterologia e de

    polifonia, conseguiram ampla divulgao e esto sendo utilizados em pesquisas

    acadmicas de diversas reas. Alguns deles apontam para a heterogeneidadedas manifestaes culturais e para a relao existente entre a cultura popular e a

    cultura hegemnica. Para Bakhtin essa relao ao mesmo tempo em que

    harmoniosa, tambm marcada pelo conflito e pelas dissonncias.

    Em A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de

    Franois Rabelais (1999), Bakhtin tem por objeto especfico estudar a obra deFranois Rabelais, nitidamente marcada pela cultura popular. Por isso, para

    melhor compreender a obra rabelaisiana, ele analisa as diversas manifestaes

    dessa cultura. Porm, a cultura popular tambm importante para Bakhtin, pois

    seu objetivo tambm revelar a unidade, o sentido e a natureza ideolgica

    profunda dessa cultura, isto , o seu valor como concepo do mundo e o seuvalor esttico. (BAKHTIN, 1999, p. 50). Alm de desvendar diversas

    manifestaes da cultura popular, Bakhtin tambm, a partir de sua proposta de

    circularidade cultural, analisa a tensa relao entre a cultura cmica popular e a

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    32/284

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    33/284

    32

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    34/284

    oficiais, durante esse perodo, mesmo que vivendo lado a lado, no se

    misturaram.Foram as festas que sancionaram o riso. Alm do carnaval, em muitas

    festas religiosas da Idade Mdia o riso era uma constante; o riso pascal e o riso

    de Natal so bons exemplos. Mas, sua existncia mais constante foi nas festas

    de alternncia das estaes e do ciclo lunar. Nestes casos, o riso possua um

    sentido mais amplo e profundo, de acordo com anlise de Bakhtin, ele concretizaa esperana popular num futuro melhor, num regime social e econmico mais

    justo, numa nova verdade. (BAKHTIN, 1999, p.70). As festas eram um perodo

    de interrupo da vida cotidiana, do sistema oficial com suas interdies e

    hierarquias. Um perodo em que a legalidade e o sagrado eram esquecidos e

    vigorava uma liberdade utpica.Outro espao do riso era a pardia, que converteu tudo o que era

    importante e sagrado para a ideologia oficial em alegres jogos. Para os parodistas

    no existe o que no possa ser comicamente imitado, o riso universal e abarca

    a totalidade da sociedade e da histria. Assim, existiam as pardias das oraes,

    de hinos, dos evangelhos, de testamentos, dos epitfios e, at mesmo, dagramtica e de textos jurdicos. O riso visava o mesmo objeto que a seriedade,

    construindo seu prprio mundo contra a Igreja e o Estado oficiais.

    Contrapondo-se ao riso da cultura popular existia a seriedade da cultura

    oficial:

    o srio oficial, autoritrio, associa-se violncia, s interdies, srestries. H sempre nessa seriedade um elemento de medo e deintimidao. Ele dominava claramente na Idade Mdia. Pelo contrrio, oriso supe que o medo foi dominado. O riso no impe nenhumainterdio, nenhuma restrio. Jamais o poder, a violncia, a autoridadeempregam a linguagem do riso. (BAKHTIN, 1999, p. 78)

    33

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    35/284

    XVI). O Renascimento francs foi marcado pelos textos retricos e satricos do

    final da Antigidade e no por sua tradio clssica. O riso, no perodo doRenascimento, foi considerado uma das formas fundamentais pelas quais se

    exprimia a verdade sobre a histria e sobre o homem, estando relacionado aos

    problemas filosficos mais importantes. A ele foi atribudo o poder da cura, como

    tambm, passou a ter um profundo valor nas concepes de mundo. Nele foi

    reconhecida uma significao positiva, regeneradora e criadora. O riso,finalmente, foi equiparado ao tom srio, no podendo mais ser renegado. O

    sculo XVI marcaria o apogeu da histria do riso.

    Foi no Renascimento que o riso adentrou decisivamente no seio da grande

    literatura, sendo exemplos dessa presena no apenas a obra de Rabelais, mas

    tambm de Boccaccio (Decameron), Dom Quixotede Cervantes e os dramas e ascomdias de Shakespeare. A literatura e a cultura oficial, como um todo, foram

    impregnadas pelo riso:

    Toda uma srie de outros fatores, resultantes da decomposio doregime feudal e teocrtico da Idade Mdia, contribuiu igualmente paraessa fuso, essa mistura do oficial com o no-oficial. A cultura cmicapopular que, durante sculos, formara-se e defendera sua vida nas

    formas no oficiais da criao popular espetaculares e verbais e navida corrente no-oficial, iou-se aos cimos da literatura e da ideologia afim de fecunda-las (...).Mil anos de riso popular extra-oficial foram assim incorporados naliteratura do Renascimento. Esse riso milenar no s a fecundou, masfoi por sua vez por ela fecundado. Ele se aliava s idias maisavanadas da poca, ao saber humanista, alta tcnica literria. Napessoa de Rabelais, a palavra e a mscara do bufo medieval, asformas dos folguedos populares carnavalescos, a ousadia do clero de

    idias democrticas, que transformava e parodiava absolutamente todasas palavras e gestos dos saltimbancos de feira, tudo isso se associou aosaber humanista, cincia e prtica mdica, experincia poltica eaos conhecimentos de um homem que, como confidente dos irmos duBellay4, conhecia intimamente todos os problemas e segredos da altapoltica internacional de seu tempo. (BAKHTIN, 1999, p. 62-3)

    34

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    36/284

    Mdia que se inicia o enfraquecimento das fronteiras entre a cultura oficial e a

    popular, ocorrendo nitidamente uma circularidade entre elas: no fim da Idade Mdia que se inicia o processo de enfraquecimentomtuo das fronteiras entre a cultura cmica e a grande literatura.Formas inferiores comeam cada vez mais a infiltrar-se nos domniossuperiores da literatura. O riso popular penetra na epopia, aumentamas suas propores nos mistrios. (...) A cultura cmica comea aultrapassar os limites estreitos das festas esfora-se por penetrar emtodas as esferas da vida ideolgica. (BAKHTIN, 1999, p. 84)

    No seria apenas na literatura que o cmico ganharia espao. Ele foi

    incorporado pela ideologia, pela medicina, pela filosofia, pela religio, enfim, pela

    cultura oficial.

    No entanto, j nos sculos seguintes (XVII e XVIII) o riso passou a ser

    associado a fenmenos de carter negativo. O cmico teve seu domnio restrito eespecfico: dos vcios individuais e coletivos. Apenas o tom srio era aceito e

    considerado adequado, o riso foi considerado como um castigo para os seres

    inferiores e corrompidos. O sculo XVII marcou a estabilizao de um novo

    regime, a monarquia absolutista, que encontraria sua expresso ideolgica na

    filosofia racionalista de Descartes e na esttica do classicismo. Essas duasescolas refletiriam uma nova cultura oficial, diferente da Igreja e do feudalismo,

    porm, retomando seu tom srio e autoritrio. Apesar de banido da esfera oficial,

    afirma Bakhtin, o riso, curiosamente, continuou a impregnar diversas expresses,

    no apenas na literatura, mas nas festas da corte, nas mascaradas e nos bals,

    onde os personagens de Rabelais tornaram-se heris.

    No sculo XVIII, o riso tornou-se desprezvel e vil. Os filsofos iluministas,

    utilizando a razo pensante como critrio nico, possuindo uma tendncia ao

    racionalismo e universalismo abstratos e desprezando a dialtica, explica Bakhtin,

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    37/284

    36

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    38/284

    intermedirio, podendo deformar a cultura popular, no sendo mais que uma

    interpretao sobre ela. Mas, significativa a anlise desses filtrosintermedirios, uma vez que podem revelar aspectos da cultura popular, que, em

    certa medida, foram desprezados por outras fontes. Ginzburg tambm destaca

    que Bakhtin empregou o conceito de circularidade cultural para designar o influxo

    recproco entre cultura subalterna e cultura hegemnica (GINZBURG, 1987, p.

    20); ou seja, o conceito de circularidade cultural define que a cultura popular dinmica, tendo inclusive o potencial de influenciar uma cultura dita hegemnica.

    O conceito de circularidade, assim, pressupe que, elementos da cultura

    popular interajam e passem a compor a cultura hegemnica, sendo que a

    recproca tambm verdadeira, numa troca contnua. Esse conceito permite

    problematizar a influncia recproca entre as manifestaes populares e ashegemnicas, perceber a impreciso de suas fronteiras, sugerindo, assim, um

    fluxo regular de permeabilidade entre elas. Permite abordar a cultura de uma

    perspectiva social, privilegiando sua dimenso de complexidade e de diversidade

    de valores e sentidos. Partindo do princpio de circularidade, Bakhtin revelou a

    partilha de padres e signos, a existncia de uma intensa relao cultural depermuta contnua e permanente. A cultura transita em vrios sentidos,

    estabelecendo incessantes interaes, determinadas por realidades histricas

    especficas. Ela no pura e secularizada, estando em transformao ao

    mesmo tempo em que permanece em espaos e tempos definidos.

    Apesar de Bakhtin analisar um perodo anterior ao avano dos meios decomunicao de massa e da indstria cultural, quando ainda existia uma ntida

    distino entre a cultura de elite e a cultura popular, suas reflexes permanecem

    vlidas se considerarmos a relao conflitiva entre a cultura popular e a cultura

    37

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    39/284

    sob seu controle, sendo que essas expresses se relacionam de diversas

    maneiras: interagindo, resistindo e at mesmo influenciando umas s outras,revelando-se em permanente construo, reconstruo e desconstruo.

    Para Martin-Barbero (2003a), o perodo analisado por Bakhtin

    exatamente aquele em que a cultura popular passou por um processo de

    enculturao. Durante o perodo medieval, com a ascenso e auge da

    religiosidade crist, e mais especificamente no perodo de formao dos EstadosNacionais na Europa, sculos XVI e XVII, as vrias expresses e manifestaes

    culturais seriam incompatveis com a centralizao do poder estatal. Era

    inadmissvel que numa sociedade em busca da homogeneizao existissem

    mltiplos rituais religiosos e festivos, conseqncia da diversidade de grupos e

    linhagens sociais. Em prol da coeso social, a cultura popular deveria serdestruda, utilizando-se os mais variados mtodos e mecanismos (a caa s

    bruxas e o surgimento e desenvolvimento das prises mencionadas por Michel

    Foucault (1987) so bons exemplos), porque simbolizavam, no contexto

    absolutista, uma fragmentao do poder.

    Interessante observar que, mesmo nesse contexto de represso e apesardos inmeros mecanismos para eliminao das expresses e manifestaes

    populares, enfim, da prpria cultura popular, Bakhtin nos revela a sua

    continuidade, e nos faz refletir que, lentamente assumia um carter de desafio ao

    poder e ideologia dominante, transfigurando-se num espao de protesto e de

    resistncia.Contexto de represso no muito distante ao que Bakhtin vivia, na ento

    Unio Sovitica.5Talvez, por isso Bakhtin tenha se sentido atrado e interessado

    pela obra de Rabelais, autor pouco conhecido e estudado em seu pas.

    38

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    40/284

    Em uma significativa passagem, quando Bakhtin analisa as cenas de carnificina,

    de espancamentos, de ridicularizaes, de destronamentos, de brigas e debatalhas expressas na obra de Rabelais, fica ntido seu posicionamento crtico ao

    poder dominante. O indivduo surrado e injuriado sempre uma aluso a um rei,

    ou um ex-rei ou, ainda, um pretendente ao trono. Esses personagens

    representam o poder e a verdade dominantes. Para Bakhtin,

    o poder dominante e a verdade dominante no se vem no espelho dotempo, assim como tambm no vem o seu ponto de partida, seuslimites e fins, sua face velha e ridcula, a estupidez e suas pretenses eternidade e imutabilidade. (BAKHTIN, 1999, p.185)

    Bakhtin insiste na dimenso cmica da cultura popular medieval, aspecto

    pouco explorado pelos pesquisadores, contrapondo-a a seriedade da cultura

    oficial. Essa escolha no foi feita por acaso. Alm de refletir muito mais sobre ocontexto em que vivia, do que sobre o perodo medieval, Bakhtin transforma a

    comicidade e a seriedade em categorias de anlise para afirmar a existncia da

    cultura popular e da cultura hegemnica. Porm, apesar de possurem fronteiras,

    elas so imprecisas, ocorrendo uma relao constante e conflituosa entre elas.

    Nesse sentido, podemos afirmar que Bakhtin reinventa a cultura popular da IdadeMdia, para melhor refletir sobre a cultura popular de diversos contextos,

    notadamente o da Unio Sovitica stalinista.

    Outros conceitos importantes formulados por Bakhtin, e no distantes do

    de circularidade cultural, so o de polifonia e de heterologia. Em Problemas da

    obra de Dostoievski, Bakhtin transforma a polifonia em problemtica central,definindo-a como as vrias vozes, os vrios pontos de vista presentes num

    mesmo discurso. O tema realizado numa diversidade essencial de vozes, onde

    pode ocorrer a vitria de uma ou de outra ou ainda a sua combinao Para

    39

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    41/284

    reminiscncia e antecipao dos discursos passados e futuros. (BAKHTIN, 2003,

    p. XXX)Tanto o conceito de polifonia como de heterologia apontam para a

    existncia de vrias vozes ou de vrios elementos diferentes e autnomos, no

    entanto, em sincronia, presentes num mesmo discurso, num mesmo texto, ou

    ainda, numa mesma fala.

    1.2.2 A cultura popular caipira

    Se por um lado podemos utilizar as afirmaes de Bakhtin para analisar de

    forma mais generalizante a cultura popular representada nos filmes de Mazzaropi,

    por outro necessitamos nos ancorar, pelo menos a princpio, numa anlise maisespecfica sobre a cultura caipira. Para tanto, utilizaremos dois autores de

    referncia desses estudos no Brasil: Antonio Candido e Maria Isaura de Queiroz.

    Os parceiros do Rio Bonito (2001), de Antonio Candido, tornou-se uma

    obra de referncia para os estudos em torno da cultura caipira. Nela, Candido se

    prope a analisar os meios de vida tradicionais (destacando os aspectoseconmicos) num grupamento de caipiras residentes em Bofete, no interior de

    So Paulo, que visitou durante os anos de 1948 e 1954. Porm, Candido tambm

    visitou localidades caipiras de outros estados (Minas Gerais em 1952, Mato

    Grosso em 1954 e Santa Catarina em 1951, 1952 e 1953), o que confere sua

    obra uma anlise da cultura caipira de forma mais geral. Em seguida, analisa oimpacto e as mudanas provocadas pelo avano do latifndio e pelo

    desenvolvimento urbano e industrial. Vale destacar que, como Candido mesmo

    afirma no Prefcio e na Introduo, sua obra foi fortemente marcada pelas

    40

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    42/284

    senzala (1933), de Gilberto Freire, Razes do Brasil (1936), de Srgio Buarque de

    Holanda, e Formao do Brasil contemporneo (1942), de Caio Prado Jnior,Jackson a considera como um estudo do processo de formao da Nao e do

    Estado brasileiro.

    Candido optou pela denominao de cultura caipira, ao invs de cultura

    cabocla, uma vez que, o termo caboclo foi utilizado para designar o mestio entre

    branco e ndio, enquanto caipira foi diretamente ligado a um modo-de-ser, a umtipo de vida, sendo por isso mais adequado para o seu estudo. A cultura caipira

    resultado da expanso geogrfica dos paulistas os denominados bandeirantes

    pela historiografia, nos sculos XVI, XVII e XVIII, e, citando a obra Mones

    (1945) de Srgio Buarque de Holanda, o autor explica que uma sociedade com

    tendncia ao equilbrio entre o grupo social e o meio.A cultura caipira definida por Candido como uma cultura rstica, marcada

    pela homogeneidade dos indivduos e pelas formas de sociabilidade, sendo

    caracterizada, primeiramente, pela natureza das necessidades de seus grupos. A

    rusticidade est diretamente associada aos elementos de origem nmade (dos

    bandeirantes paulistas), presentes em sua gnese e pode ser mais bemvisualizada em sua casa (mais parecida com um rancho: as paredes so de pau-

    a-pique, muitas vezes apenas varas no barreadas, cobertas com palha), ou

    ainda, na rudeza dos utenslios.

    A base da sociedade caipira, explica Candido, estava numa economia

    fechada, de subsistncia, e no trabalho isolado ou na cooperao ocasional. Ocaipira produzia quase tudo o que precisava para viver, deslocando-se at o

    comrcio raras vezes, apenas para comprar sal. A agricultura praticada era a

    itinerante extensiva, prpria do caboclo brasileiro, com base na queimada que, se

    41

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    43/284

    caipira, porm a forma de prepar-los estava associada aos portugueses ou

    desenvolvida pelos prprios caipiras. De forma geral, o caipira se alimentava trsvezes ao dia (o almoo, a merenda sobras do almoo e o jantar), havendo

    pouca diferenciao dos alimentos entre uma refeio e outra. A alimentao,

    alm de pouca em quantidade, tambm o era em variedade. A carne, raramente

    presente na mesa caipira, era conseguida por meio da caa ou dos animais

    criados (porcos e galinhas). A fartura alimentar ocorria apenas em festas,notadamente nos casamentos. Resumidamente, explica Candido, a alimentao

    caipira tinha regular qualidade energtica e era mal balanceada, sendo que a

    fome no estava ausente. O resultado dessa dieta mal equilibrada era uma fome

    psquica, ou seja, o desejo permanente por misturas, principalmente a carne.

    No filme A marvada carne (Andr Klotzel, 1985), uma das melhoresrepresentaes flmicas sobre a cultura caipira, conhecemos o fascnio que os

    caipiras tinham pela carne. Nh Quim (Adilson Barros) no poupa esforos para

    conseguir provar o seu gosto: abandona seu ranchinho de sap, casa-se, vence

    uma disputa com o diabo e por fim resolve migrar para a cidade, na esperana de

    encontrar o to sonhado sabor da carne. Essa aventura de Nh Quim foi a formaque Klotzel encontrou para explicar como a carne era importante para a cultura

    caipira.

    O dia do caipira iniciava cedo, s 5 horas com uma pequena refeio, logo

    em seguida seguiam para o local de trabalho, onde homens, mulheres e crianas

    trabalhavam com certa diviso sexual das atividades. A jornada diria era de 12

    horas no vero e 10 no inverno, interrompida apenas duas vezes para

    alimentao. Ao chegar em casa, alimentavam a criao e dormiam, raramente

    algum estava acordado aps as 20 horas.

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    44/284

    43

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    45/284

    viajantes, como Saint-Hilaire, consideraram o caipira como primitivo, brutal,

    macambzio e desprovido de civilidade.A vida rude, nmade e isolada da comunicao social foi o alicerce para a

    formao desse carter moral, independente e alheio s mudanas sociais. Para

    Candido uma vida de bandeirante atrofiado, sem miragens, concentrada em

    torno dos problemas de manuteno dum equilbrio mnimo entre o grupo social e

    o meio. (CANDIDO, 2001, p. 60).Candido identifica no bairro a estrutura fundamental da sociabilidade

    caipira. Mas, ele no se aplica para todo o territrio brasileiro, eles so mais

    comuns no sudeste. O bairro um agrupamento de famlias unidas pelo

    parentesco ou no, com moradias prximas ou no, unidas pelo sentimento de

    localidade, pela convivncia, pelas prticas de auxlio mtuo e pelas atividadesldico-religiosas. Pode-se afirmar que cada bairro, e no cada famlia, era

    autrquico devido ao trabalho coletivo, sendo sua manifestao mais importante,

    o mutiro. Tanto as atividades da lavoura, como as domsticas, eram as ocasies

    ideais para a reunio dos caipiras; essa necessidade de cooperao acabou por

    gerar uma convivncia intensa entre eles. Curiosamente, durante o mutiro nohavia uma diviso de tarefas, todos desenvolviam a mesma atividade de forma

    conjunta, ou seja, era o trabalho associado. So as palavras de um velho caipira,

    entrevistado por Candido, que melhor explicam o sentido do mutiro: no h

    obrigao entre as pessoas, e sim para com Deus, por amor de quem serve o

    prximo; por isso, a ningum dado recusar auxlio pedido. (CANDIDO, 2001, p.

    89) Adiante, citando a anlise de Plnio Ayrosa, Candido reitera essa idia sobre o

    mutiro e menciona seu aspecto festivo: ele um gesto de amizade, um motivo

    pra folgana, uma forma sedutora de cooperao. (Idem, p. 92).

    44

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    46/284

    Essa sociabilidade, como tambm a subsistncia, explica Candido, foram

    organizaes rompidas por muitas famlias, surgindo uma estratificao social. Osproprietrios de fazendas (cana, gado e depois caf) eram os mais suscetveis ao

    comrcio e os que menos praticavam as atividades de sociabilidade. Era a

    categoria dos sitiantes, posseiros e agregados que estavam mais incorporados

    economia caipira de subsistncia e a vida de sociabilidade.

    A escravido tambm foi um importante fator de estratificao social nasociedade caipira. Os donos de escravos, que, segundo Candido, seriam um tipo

    social do fazendeiro, abandonaram o sistema de cooperao, enquanto que o

    antigo escravo ou descendente esteve apegado ele, surgindo, assim, uma ntida

    diferena entre fazenda e stio. O sitiante o caipira tpico, apesar de serem

    encontradas diversas prticas caipiras entre os fazendeiros, eram os sitiantes osmais apegados agricultura de subsistncia e s prticas de auxlio mtuo.

    Nesse sentido, vale destacar que, apesar de utilizar Marx como referencial

    terico, como afirma o prprio Candido, nessa anlise ele se aproxima mais do

    conceito de tipos ideais de Max Weber, buscando um tipo social caracterstico

    dos caipiras.Segundo Candido, a partir dos anos 1950, a cultura caipira mudou

    drasticamente, notadamente devido ao avano do latifndio e das prticas

    capitalistas. Os problemas advindos desse impacto seriam a falta de adaptao

    do caipira ao capitalismo. De uma situao de subsistncia, passou para semi-

    subsistncia at a completa dependncia do comrcio e dos centros urbanos,

    tanto para vender seus produtos agrcolas, como para comprar o que no mais

    produzia. Muitos caipiras abandonaram por completo o campo, estabelecendo-se

    nas cidades, onde foram incorporados pelo proletariado urbano.

    45

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    47/284

    As festas e os mutires tambm tenderam a diminuir, o ritmo de trabalho e

    a economia dependente restringiram as prticas ldicas prprias de umaeconomia fechada.

    At mesmo a posse da terra passou por modificaes. De proprietrio de

    seu stio, o caipira passou para a posio de parceiro (o mais comum), ou ainda,

    de assalariado agrcola. Eles passaram pela experincia da degradao

    econmica motivada pela subdiviso da herana, pela impossibilidade de provarlegalmente os direitos territoriais, ou ainda, pela concentrao do latifndio.

    Muitos entrevistados por Candido no sabem como perderam suas terras, ou

    seja, elas passaram de uma mo para a outra de uma forma pouco clara.

    Para Candido, a parceria,6um ponto mdio entre o sitiante e o trabalhador

    assalariado, seria uma forma de resistncia do caipira, pois se apresenta comouma das poucas possibilidades de permanncia no campo e de preservao dos

    hbitos e costumes tradicionais, da o ttulo do livro Os parceiros do Rio Bonito,

    antigo nome do municpio de Bofete. A concentrao da vizinhana efetuada pela

    fazenda, permitia aos caipiras continuarem vivenciando as experincias do bairro.

    Nos anos de 1950, na regio de Bofete, estudada por Candido, mais de 50% do

    territrio pertencia apenas 34 fazendeiros. Muitas dessas fazendas no

    passavam de grandes stios, sendo mal explorados por falta de aperfeioamento

    tcnico. O recurso encontrado pelos proprietrios foi recorrer ao sistema de

    parceria, onde o pagamento era efetuado com o produto a ser colocado no

    mercado. No contrato, normalmente verbal, era estipulada a quota de produto

    para ambas as partes, as obrigaes da conserva de moradia e os dias devidos

    gratuitamente ao proprietrio, geralmente trs dias. Entre os caipiras, a parceria

    era mais bem vista que o arrendamento, pois no caso de uma colheita ruim os

    46

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    48/284

    grandes fazendeiros. Nas festas e nas conversas da vila, Candido os encontrou

    em situao de igualdade.Nesse processo de grande alterao cultural, onde a tradio est sendo

    esquecida,7 os caipiras se comportam com certo saudosismo, idealizando o

    passado: local de abundncia, solidariedade e conhecimento.

    Sem dvida as consideraes de Antonio Candido sobre a sociedade

    caipira so ainda muito importantes e pertinentes, ainda mais para essa pesquisa,pois os filmes de Mazzaropi escolhidos para anlise so exatamente os que

    representam o caipira durante os anos de 1950, perodo de estudo de Candido.

    Porm, como todo estudo, o de Candido tambm possui lacunas. Nenhum

    comentrio feito sobre a relao de mandonismo e coronelismo que existia

    entre os parceiros (fazendeiros e caipiras). As suas afirmaes de que poucadistncia havia entre eles, encontrando-os em situao de igualdade, camufla

    todo o conflito entre as duas classes e a situao de dependncia e subordinao

    sofrida pelos caipiras.

    Analisando a obra de Antonio Candido, Jackson (2002) explica que a

    existncia da pequena propriedade, comum na sociedade caipira, no est

    necessariamente ligada decadncia do latifndio, mas convivem, de forma mais

    ou menos subordinada. A existncia de pequenas propriedades permite a sua

    reproduo, mesmo que de forma limitada pelo processo de modernizao.

    Finalmente, influenciado pela noo de cultura funcionalista, Candido, segundo

    Jackson (2002), considera que a cultura caipira est condenada ao

    desaparecimento devido ao contato com a sociedade capitalista.

    Alm dessa obra referencial de Antonio Candido sobre a cultura caipira,

    Maria Isaura de Queiroz (1973 e 1973a) tambm se debruou sobre as

    47

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    49/284

    comrcio. Para melhor compreender o que um campons, a pesquisadora

    recorre aos estudos do historiador francs Marc Bloch. Para Bloch, explica MariaIsaura, os camponeses foram os primeiros a habitar a Frana formando as

    comunidades campesinas e representando um importante papel, tanto na

    economia, como na demografia. Com a queda do Imprio Romano surgiu a

    camada senhorial, de extrema importncia para a definio do campesinato, um

    substantivo coletivo que significa conjunto de camponeses. Apesar da falta deconscincia social desses camponeses ser um fato social, o campesinato se

    definiu sociologicamente em oposio ao senhoriato, a quem era subordinado e

    com quem mantinha laos de dependncia, determinando uma explorao do

    homem pelo homem. Mesmo com alteraes nos contextos polticos e

    econmicos, as caractersticas fundamentais do campesinato permaneceram asmesmas: a famlia a unidade social de trabalho e de explorao da propriedade,

    sendo as tarefas divididas entre os seus membros, organizados pelo pai, ou seja,

    trata-se de uma comunidade autrquica e autoritria. Porm, entre uma famlia e

    outra sempre existiram diferenas, revelando que a camada camponesa nunca foi

    homognea e igualitria.

    No Brasil, assim como na Frana, a relao do campons com a terra

    revela a ausncia de uma homogeneidade: as propriedades poderiam ter um

    tamanho maior, sendo que os minifndios so mais comuns, alm de proprietrios

    os camponeses ainda poderiam ser posseiros (ocupantes de terras pblicas ou j

    apropriadas, mas sem autorizao do proprietrio), parceiros (pagantes do

    aluguel da terra, proporcional produo, na forma de produtos ou dinheiro),

    arrendatrios (pagantes de um aluguel fixo da terra, independente da quantidade

    que colhem), ou ainda, agregados (habitantes nas propriedades de monoculturas,

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    50/284

    49

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    51/284

    Paraibuna e do serto de Itapecerica, concluindo que eles se definem muito mais

    pelas relaes sociais do que por um regime econmico especfico.Contrariamente proposta de Candido, segunda a qual os bairros rurais, ainda

    permaneceria um tipo de vida tradicional, as localidades estudadas revelaram a

    existncia de dois tipos de bairros rurais: um formado por camponeses (os

    verdadeiros caipiras), pequenos proprietrios rurais, cultivando roas de

    subsistncia, e outro, formado por agricultores que vivem do plantio e venda deum produto principal. Ou seja, de acordo com os pressupostos de Maria Isaura,

    nem sempre um bairro rural est vinculado forma de viver caipira.

    Porm, apesar das heterogeneidades econmicas, os bairros

    apresentaram elementos de sociabilidade que os aproximavam. Para esta

    pesquisa, esses elementos apontados por Maria Isaura so os que mais nos

    interessam, pois so eles os mais comumente representados nos filmes de

    Mazzaropi.

    O primeiro elemento apontado por Queiroz a reunio dos habitantes do

    bairro em famlias, tendo um chefe frente dos empreendimentos (agrcolas e

    pecurios) que possuam a responsabilidade da iniciativa e execuo dos

    trabalhos, onde ainda vigorava a ajuda mtua. Um segundo aspecto a ausncia

    de nveis sociais. Em nenhum dos bairros estudados apareceram indcios claros

    de subordinao de um grupo de indivduos por outros. O casamento com a filha

    do patro e o compadrio seriam as formas encontradas para preservar a estrutura

    igualitria. Porm, afirma Maria Isaura, apesar do nvel social igualitrio, a posio

    social diferente, existindo indivduos mais influentes e com mais prestgio que os

    demais. Essa diferenciao da posio social que pode advir do casamento ou de

    uma herana, no entanto, nem sempre fruto da aquisio de bens econmicos.

    50

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    52/284

    econmicas como em outros campos sociais. As festas religiosas (momento em

    que os caipiras teriam a verdadeira noo do sentimento de localidade) seriam osmomentos ideais para o desenvolvimento desse vnculo, alis, elas s se

    realizavam devido sua existncia, revelando a essncia do grupo. Cada bairro,

    ou ainda, cada famlia, possui um padroeiro de sua devoo, sendo necessrio

    cultu-lo para receber em troca a proteo indispensvel. As festas raramente

    duram menos de dois dias e durante elas so executadas certas tarefas(construo de ranchos, abate de animais para as refeies, corte de rvores

    para a lenha), alm de ritos religiosos (procisses, novenas, ladainhas) raramente

    organizados por um padre. A relao dos caipiras com os santos praticamente

    pessoal. Eles habitam as dependncias das casas na forma de imagens

    colocadas em oratrios ou capelas. A reciprocidade domina a relao entre os

    santos e seus fiis: ofertando-lhes novenas e velas, os caipiras esperam que os

    santos os auxiliem em situaes difceis e os protejam, enfim, que estejam

    sempre prontos a auxiliar e intervir em situaes cotidianas e at corriqueiras. A

    separao entre o mundo sagrado e profano praticamente inexistente para os

    caipiras. Para Maria Isaura (1973a), essa predominncia de devoo aos santos

    nas sociedades rsticas, deve-se a influncia de dois fatores: a do catolicismo

    popular portugus com forte tendncia ao culto dos santos e a ausncia de

    sacerdotes no territrio brasileiro desde o perodo colonial, notadamente no meio

    rural.

    Apesar de utilizar como ponto de partida os estudos de Candido, Maria

    Isaura (1973a) dele se afasta no sentido de que se contrape a uma de suas

    principais afirmaes: que os bairros rurais estariam fadados ao desaparecimento

    com o avano das prticas capitalistas. Para Maria Isaura no existe uma regra

    51

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    53/284

    caipira seria a presena de grandes fazendas monoculturas, pois elas

    determinariam um ritmo e um tempo diferente de trabalho, interferindo noapenas na rotina da vida caipira, como tambm na organizao de festas.

    Para Maria Isaura os bairros rurais possuem uma dinmica interna prpria,

    que apesar de influenciada, diferente e distinta da dinmica urbana e da regio

    onde esto localizados. Eles no so grupos estagnados e seu movimento no

    depende apenas do ritmo exterior. Mesmo sem nenhuma influncia externa, osbairros podem modificar-se. Foi o que aconteceu, por exemplo, nos bairros de

    Paraibuna, que no lugar da roa de subsistncia passaram a criar gado, sem

    abalo na sua maneira de viver.

    Sobre a relao da cultura caipira com uma cultura mais global citadina,

    Maria Isaura afirma que, a cultura global fornece novos modelos e sugestes

    diferentes das antigas, mas no uma fora impositiva que determina as

    transformaes. Os caipiras seriam livres para escolher o caminho que querem

    trilhar. Para a autora, os bairros desenvolvem diversos mecanismos que anulam a

    ao da cidade.

    Maria Isaura se contrapondo a muitos estudiosos, inclusive Candido, que

    vislumbravam a sociedade caipira como isolada, defende a tese de que ela est

    ligada sociedade global e dela parte integrante. O fator mais importante de

    integrao seria a economia, que obriga os caipiras a romperem seu isolamento,

    se desejarem ter um nvel satisfatrio de vida. O seu contato com a sociedade

    global varia de acordo com as necessidades do bairro: naqueles em que vigora a

    agricultura de subsistncia, o contato com a sociedade global secundria, j

    naqueles em que vigora a agricultura comercial, o contato ganha importncia.

    Assim, regularmente o caipira entraria em contato com uma realidade diferente da

    52

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    54/284

    Muitas das caractersticas da cultura caipira apontadas por Candido e

    Maria Isaura so comumente representadas nos filmes de Mazzaropi. A parceriacomo forma de apropriao da terra, o auxlio mtuo (mutiro), a preguia, a

    rusticidade, a valentia e o patriarcalismo so algumas delas. Porm, tambm se

    percebe algumas ausncias. A mais importante a questo religiosa, tanto a

    relao pessoal que os caipiras mantinham com os santos, como as benzedeiras

    e os curandeiros, to comuns nas sociedades caipiras. Outro elemento totalmente

    esquecido por Mazzaropi a fome psquica, mencionada por Candido. Todos

    esses elementos sero mais amplamente discutidos no captulo 4.

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    55/284

    54

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    56/284

    Gluck e Wolfgang Amadeus Mozart. E praticamente desconhece Ludwig van

    Beethoven e Christian Rauch, seus contemporneos.Nessa obra, Hegel estudou com mais profundidade a arte, notadamente

    sua relao com a realidade. A arte uma manifestao sensvel e perceptvel

    que os homens conceberam devido ao seu esprito e exprimiram graas

    criao de obras de arte concretas. Dessa forma, o nico belo que interessa a

    Hegel o belo artstico das produes humanas, ele ignora o belo natural, porque

    inferior e no uma produo do esprito. A beleza da natureza no pertence

    a ela mesma, mas subjetividade humana, que lhe confere vida. Assim, a arte e

    o belo so essencialmente humanos.

    Ao lado da religio e da filosofia, a arte uma das responsveis em elevar

    a conscincia humana ao seu auto-conhecimento. Hegel compreende a arte como

    uma relao entre a singularidade e a universalidade, como a forma singular de

    experincia e de apreenso da realidade. A arte torna-se, assim, numa

    manifestao do universal na singularidade e nica esfera da realidade onde a

    aparncia coincide com a essncia.

    Graas aos vestgios artsticos das culturas antigas (esttuas, esculturas,

    monumentos, mosaicos, etc.) pode-se reconstituir o que foram as idias e as

    crenas que animavam os homens de pocas anteriores. Seguindo essa

    perspectiva de Hegel, se podemos compreender as sociedades do passado pelo

    que chega at ns de sua arte, tambm podemos analisar as sociedades do

    presente pela arte que produzem, o que inclui o cinema.

    Influenciado por Hegel e dele se afastando em alguns aspectos, Karl Marx,

    mesmo no tendo se ocupado de problemas estticos em trabalhos especficos,

    revelou um profundo interesse pela esttica em geral, e pela arte e literatura em

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    57/284

    56

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    58/284

    Apesar dessas importantes consideraes, seria a teoria de Engels sobre o

    triunfo do realismo, formulada a partir da literatura de Balzac, uma das

    formulaes mais importantes da esttica materialista, pois conduz a investigao

    no ao inventrio das idias pessoais do artista e sim obra, com seus

    problemas, suas idias e sua estrutura prpria.

    Vrios so os autores influenciados pelas idias de Marx e Engels,

    reconhecendo na arte um modo vlido para desvendar a realidade. Eles admitem

    a hiptese, de forma quase unssona, assim como o fez Lnin, de que a arte um

    reflexo aproximadamente fiel da realidade, um desvendamento em seus nveis

    mais essenciais, considerando a esttica como integrante da teoria materialista do

    conhecimento.

    Mesmo j tendo sido mencionada por Plato e Aristteles, a teoria do

    reflexo foi conceituada de forma diferente pelos adeptos da esttica materialista.

    Analisando os escritos de Lnin (depois de Marx e Engels, um dos grandes

    tericos para a formulao de uma esttica materialista), Vzquez (1978) conclui

    que a obra de um artista uma reflexo sobre si mesmo. E esse homem (o

    artista), como qualquer outro, no est desvinculado de sua classe, de sua poca.

    Assim, sua obra tambm uma reflexo sobre a sociedade em que vive e sobre

    suas prprias idias. Claro que essa reflexo est carregada de subjetividade,

    est fortemente marcada pela concepo de mundo do artista e o que nos

    fornece no uma nica verdade sobre a realidade social. Para Vzquez, (1978)

    a teoria do reflexo artstico de Lnin no pode ser considerada a chave para

    uma esttica materialista, porm contribuiu para esclarecer as relaes entre a

    concepo do mundo do artista e a verdade que sua obra pode oferecer.

    57

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    59/284

    em sua conscincia. Para Lukcs, o reflexo da realidade na obra de arte sempre

    totalizante, que aprofunda e amplia o conhecimento do mundo humano.

    O problema da teoria do reflexo no reside na teoria em si, mas no termo

    que a designa. O reflexo como noo pressupe algo direto e imediato,

    desprezando a tensa, e s vezes contraditria, relao entre a arte e a realidade

    social.

    Analisando as idias de Lukcs, Konder (1967) conclui que por meio da

    arte, os homens revivem o passado e o presente da humanidade, mas no como

    fatos exteriores, e sim como algo essencial para a sua prpria vida, para a prpria

    existncia individual. A arte no apenas um mero registro ou documento, que

    possa informar sobre as condies polticas, econmicas e sociais de

    determinada poca. Mas, fundamentalmente permite ver por dentro uma

    determinada experincia histrica e social.

    Goldmann (1973) afirma que, existe uma estreita relao entre o contedo

    das obras literrias e o contedo da conscincia coletiva, ou seja, com as

    maneiras de pensar e de se comportar dos homens na vida cotidiana. Procurando

    nas obras literrias mais o documento do que a literatura, o autor se prope a

    analisar a reproduo da realidade emprica nas obras. Para Goldmann, mesmo

    que escrita por uma nica pessoa, possvel utilizar uma obra literria como

    representativa de determinada sociedade, porque o seu autor no uma ilha, ou

    seja, a mentalidade no um fenmeno individual, mas coletivo. Para

    exemplificar sua tese, Goldmann cita a pea teatral Don Juan (1665) de Molire,

    onde conhecemos um jovem sedutor que se casava todos os meses. No sculo

    XVII, perodo em que foi escrita o maior nmero de obras literrias com esse

    personagem, era impossvel casar-se todos os meses. Como ento essa

    58

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    60/284

    Porm a arte no pode ser reduzida s condies de sua gnese histrica e

    social, transcendendo-as historicamente. Marx (1974) exemplifica esse fato com a

    arte grega. Mesmo fortemente influenciada pela classe dominante, ainda hoje,

    ultrapassada a sociedade escravista, a arte grega reconhecida pelo seu forte

    valor esttico. Para Marx, essa permanncia da arte que revelaria a verdadeira

    obra de arte. A arte capaz de nos fornecer um conhecimento bem particular da

    realidade humana, ou seja, da realidade mais imediata. Se esse desvendamento

    for desprezado, a compreenso do real estar mutilada, e o conhecimento

    artstico estar sendo renunciado, o que acarretar, de forma mais ampla, numa

    renncia da autoconscincia.

    Para Vzquez (1978), um dos estudiosos das idias estticas materialistas,

    arte e sociedade no podem se ignorar, uma vez que a arte um fenmeno

    social: primeiro porque o artista um ser social; segundo porque a arte sempre

    um trao de unio entre o artista e outros membros da sociedade; terceiro porque

    a arte, de forma negativa ou positiva, sempre comove as pessoas. Nenhuma arte

    foi impermevel influncia social nem deixou de influenciar na sociedade. A arte

    to velha quanto o homem, isto , quanto a sociedade. Se considerarmos a

    forma artstica como um caminho para refletir sobre a realidade, a arte no ser

    distinta de outras manifestaes de conscincia social. E se ignorarmos o

    contedo e objeto da arte, considerando-a apenas em sua forma, desprezaremos

    a peculiaridade da arte como conhecimento. De outro modo, no existe uma obra

    que seja apenas forma sem contedo e vice-versa.

    J Bakhtin, refletindo especificamente sobre a literatura, afirma que, numa

    obra artstica existem vrios aspectos da realidade vivida, no entanto, so

    organizados de um outro modo. Isso ocorre porque o autor-criador possui um

    59

    S d B tid (2006) i l i d t d t d l

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    61/284

    Segundo Bastide (2006) a sociologia da arte deve estudar as correlaes

    entre as formas artsticas e as formas sociais, no sobrepondo uma outra (a

    esttica sociedade), antes considerando o perptuo dilogo entre uma e outra, e

    que esse dilogo possui um duplo sentido, pois o criador ao mesmo tempo em

    que pode modelar seu pblico, tambm influenciado por ele, impondo-lhe seus

    gostos e desejos. A arte no plana no espao, ela vive num certo meio social e

    est sempre subordinada a um conjunto de foras que tendem a mant-la ou

    modific-la, a propiciar sua difuso ou restringi-la a estreitos limites. A arte, assim,

    socialmente produzida, como linguagem e valor.

    Superando as interpretaes tradicionais que consideram o contexto social

    como causa ou significado das expresses artsticas, Antnio Candido (2000),

    socilogo da literatura, prope analisar o que ele denomina de externo, ou seja, o

    social como elemento constitutivo da estrutura, tornando-se, por isso, elemento

    interno. Para aprofundar essa questo menciona um trabalho escrito por Lukcs

    em 1914 (Zur Soziologie des modernen dramas), onde o autor se perguntava se o

    elemento histrico-social possui significado para a estrutura da obra, tornando-se

    elemento determinante, ou seria apenas a sua possibilidade de realizao. Ou

    seja, a sociedade fornece apenas a matria (ambiente, costumes, idias) para a

    realizao de uma obra de arte ou se, alm disso, um elemento que atua e

    determinante na constituio da sua essncia? Para exemplificar, Candido analisa

    a obra Senhora de Jos de Alencar. Como em toda obra de arte, nesta h

    referncias a lugares, a modas e usos, a costumes especficos de uma classe. No

    entanto, ao transformar a compra de um marido como temtica central de sua

    obra, Jos de Alencar faz uma anlise radical da sociedade, resumindo o enlace

    sagrado do matrimnio num simples contrato de compra e venda. Esse elemento,

    60

    a influncia do meio social sobre a obra mas tambm que abarquem a influncia

  • 7/22/2019 Caipira sim, trouxa no.

    62/284

    a influncia do meio social sobre a obra, mas tambm que abarquem a influncia

    da obra de arte sobre o meio, superando o carter mecanicista e aproximando-se

    de uma interpretao mais dialtica:

    Para o socilogo moderno, ambas as tendncias tiveram a virtude demostrar que a arte social nos dois sentidos: depende da ao defatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos desublimao; e produz sobre os indivduos um efeito prtico, modificandoa sua conduta e concepo do mundo, ou reforando neles o sentimentodos valores sociais. (CANDIDO, 2000, p.19)

    Considerando esses dois aspectos (a influncia dos aspectos sociais sobre

    a arte e como a arte influencia a sociedade), Candido prope no apenas

    investigar as influncias dos fatores scio-culturais, ligados aos valores e

    ideologias e s tcnicas de comunicao, mas tambm analisar a repercusso

    social da obra, uma vez que a arte um sistema simblico de comunicao inter-humana. A perspectiva ideal a que considera esse duplo aspecto, num

    movimento dialtico que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema

    solidrio de influncias recprocas. (CANDIDO, 2000, p. 22)

    Se as artes plsticas e a literatura podem ser objetos de estudo para

    compreenso de uma determinada realidade social, o mesmo poderia acontecercom o cinema? As produes flmicas tambm poderiam ser transformadas em

    objetos para uma pesquisa sociolgica?

    2.1 Cinema e sociedade: uma relao int rnsecaO sonho de capturar a vida em movimento e de recriar o mundo sua

    imagem no foi especfico do homem de fins do sculo XIX. As sombras chinesa