cadernos adufrj 3

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Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 A lógica do capital impõe limites devastadores aos sistemas de proteção social no Brasil e no mundo A vida em segundo plano ELNUR/SHUTTERSTOCK Portugal Raquel Varela e Renato Guedes mostram como a crise afeta o dia a dia dos trabalhadores portugueses Joia erudita: os 90 anos da Orquestra Sinfônica da UFRJ

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Page 1: Cadernos Adufrj 3

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

A lógica do capital impõe limites devastadores aos sistemas de proteção social no Brasil e no mundo

A vida em segundo plano

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PortugalRaquel Varela e Renato Guedes mostram como a crise afeta o dia a dia dos trabalhadores portugueses

Joia erudita: os 90

anos da Orquestra

Sinfônica da UFRJ

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VelhiceA contrarreforma da Previdên-

cia Social pós-Constituição de

1988 reduziu a pó direitos dos

trabalhadores. Foi inspirada

nas receitas do Banco Mundial

expressas no relatório Evitando

a Crise da Velhice, de 1994, como

informa, no artigo que publica

nesta edição, o professor da

UFRJ José Miguel Bendrao Sal-

danha. O Brasil alinhava-se, as-

sim, ao cenário voraz do neoli-

beralismo no mundo.

Page 4: Cadernos Adufrj 3

E-mails: [email protected], [email protected] Redação: [email protected] Cadernos Adufrj: [email protected] Diretoria: [email protected] Conselho de Representantes: [email protected] Página eletrônica: www.adufrj.org.br Sede e Redação: Prédio do CT — bloco D — sala 200 Cidade Universitária CEP: 21949-900, Rio de Janeiro — RJ Caixa Postal 68531, CEP: 21941-972 Tel: 2230-2389, 3884-0701 e 2260-6368

Uma publicação trimestral da Coordenação de Comunicação da Adufrj-SSind.

NO FOCO

AUTORES

APRESENTAÇÃO

ENTREVISTA

ARTIGOS

ALMANAQUE

Raquel Varela e Renato Guedes

Estado Social sob ataque em Portugal

Globalização amplia diferenças sociais

Políticas sociais fazem bem à economia

2

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Diretoria da Adufrj-SSind

Presidente: Cláudio Rezende Ribeiro 1ª Vice-Presidente: Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues 2ª Vice-Presidente: Cleusa dos Santos 1º Secretário: José Henrique Sanglard 2º Secretário: Romildo Vieira do Bomfim 1º Tesoureiro: Luciano Rodrigues de Souza Coutinho 2ª Tesoureira: Regina Célia de Souza Pugliese Coordenador de Comunicação: Luiz Carlos Maranhão Editor Adjunto: Kelvin Melo Revisão: Roberto Azul Colaboraram: Aline Durães, Carlos Nogueira, Filipe Galvão e Silvana Sá Edição de Arte e Projeto Gráfico: Gil Castro Pesquisa de imagens: Douglas Pereira, Gil Castro e Kelvin Melo Assistente de Arte: Marvyn CastroTratamento de Imagens: Ramis Nascimento Fotos: Marco Fernandes e Samuel Tosta

Os artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da Diretoria.

Page 5: Cadernos Adufrj 3

Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior

ENTREVISTA

ARTIGOS

André CardosoRegente da Orquestra Sinfônica da UFRJ

Doce sinfonia

A “Ebserh” que ameaça o magistério federal

MENTIRA!

Constituição ferida

Trabalhadores, Uni-vos

Sem Fronteiras

Mercantilização reforçada

Políticas sociais fazem bem à economia

O olhar crítico de Tendler

Portfólio

MÚSICA • CINEMA • LIVRO • FOTOGRAFIA

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ARTE

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Alejandra Pastorini Corleto Professora da Escola de Servi-ço Social da UFRJ. As políti-cas públicas são objeto de suas pesquisas, com destaque para as que se relacionam com a pro-teção social. Por conta disso, seus estudos se voltam para as

questões de seguridade social, assistência social, políticas sociais e Serviço Social. O mestrado e doutorado foram cursados na própria ESS/UFRJ.

Cleusa SantosDocente da ESS/UFRJ, coorde-nadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Seguridade So-cial, Organismos Internacionais e Serviço Social e pesquisadora do Grupo de Estudos do Traba-lho e dos Conflitos Sociais da

Universidade Nova de Lisboa. Atualmente, é direto-ra da Adufrj-SSind e coordena o Grupo (local) de Trabalho de Seguridade Social e Assuntos de Apo-sentadoria – GTSS/A.

Denise GentilProfessora do Instituto de Economia da UFRJ, nas dis-ciplinas de Macroeconomia e Economia do Setor Público. Atualmente, pesquisa na área de macroeconomia, com con-centração em política fiscal,

seguridade social e desenvolvimento econômico. Na contramão dos economistas liberais, Denise Gentil sempre defendeu que a Previdência ajuda a fortalecer o mercado interno no Brasil.

Fátima Siliansky de Andreazzi Docente da UFRJ, atuando na graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Economia da Saúde, atuando nos seguintes temas: seguros privados de saúde, financia-

mento, economia política e saúde, privatização e controle social. Foi diretora da Adufrj-SSind na gestão encerrada em 2013.

José Miguel Bendrao SaldanhaProfessor da Escola Politécni-ca da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Há anos o pro-fessor estuda assuntos ligados ao drama da seguridade social no país. O resultado de suas

reflexões é propagado por meio de entrevistas e palestras, contribuindo para o debate sobre tema tão controverso. É membro do Grupo de Trabalho de Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria da Adufrj-SSind.

Maria Lucia Werneck ViannaProfessora associada aposen-tada da UFRJ. Tem experiên-cia na área de Ciência Políti-ca, com ênfase em Estado e Governo, atuando principal-mente nos temas da segurida-

de social, política social, previdência social, pla-nos de saúde e democracia. Foi decana do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE).

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6 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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Proteção social em x(ch)eque

O debate sobre as políticas de proteção so-cial ganha atenção especial nesta edição dos Cadernos Adufrj. A revista convidou

autores estudiosos do assunto para oferecer aos leitores um rico painel de análises sobre o tema, presente no dia a dia das tensões entre classes no Brasil e no mundo. O resultado foi promis-sor: a leitura dos artigos leva a informações essenciais que não são encontradas na pauta da grande mídia.

A amplitude dos cenários analisados é outro ponto do conteúdo a ser destacado. A agressi-vidade do processo de acumulação capitalista e as tendências daí resultantes são identificadas globalmente – como a crescente mercantilização de bens públicos, expõe o texto inicial da série de artigos. É a mesma lógica (transformar bens

públicos em serviços) que surge com o for-

talecimento das Organi-

zações

Sociais/OSs operando nas áreas da Saúde e da Educação, destaca outro artigo.

A entrevista, que abre a edição, com os autores do livro Quem paga o Estado Social em Portugal?, mostra o efeito devastador da crise financeira nos direitos dos trabalhadores portugueses. De volta ao Brasil, um texto desmonta a tese catastrofista do “rombo da Previdência”, expon-do o viés ideológico e político no ambiente das tensões e desafios do debate sobre a seguridade social. Outro artigo de avaliação macroeconômi-ca defende a tese – na contramão da ortodoxia – do gasto público com políticas sociais como instrumento de política econômica dentro da perspectiva do crescimento.

As mudanças estratégicas da política de assistên-cia social no Brasil são objeto de análise de outra contribuição. Este texto tem o valor particular de marcar a diferença entre as formas tradicionais de ajuda (tipo caridade, filantropia) da assistên-cia como direito – e como o Estado se relaciona com essas mudanças.

A história recente da Previdência Social no país, após a Constituição de 1988, é traçada pelo arti-go que fecha a série de textos da edição nº 3 dos Cadernos Adufrj. O autor combina informação com análise e é leitura indispensável para um juízo crítico sobre as opções políticas tomadas pelos governos na nossa história recente.

Saudações Sindicais,

Diretoria da Adufrj-SSind

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 7

Page 8: Cadernos Adufrj 3

Especial para Cadernos AdufrjEspecial para Cadernos AdufrjEspecial para Cadernos AdufrjEspecial para Cadernos Adufrj

Na prática, uma massa gigante de trabalhadores permanece seis meses do ano desempregada e os outros seis meses em situação de subemprego

Raquel Varela

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Criou-se (nas universidades) uma taxa simbólica para a Educação e, um belo dia, o valor cobrado aumentou significativamente, levando 15% dos estudantes a abandonarem imediatamente seus cursos

Renato Guedes

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Estado Social sob ataque em Portugal

esencadeada nos Estados Unidos, a crise financeira de

2008 rompeu os limites do con-tinente americano e provocou cataclismos violentos em diver-sas economias pelo mundo. Por-tugal foi um dos países da zona do euro mais afetados. O déficit orçamentário somado à escassez de crédito forçou o governo por-tuguês a recorrer a empréstimos de organismos internacionais e a idealizar um plano de austeri-dade que atingiu, em especial, os trabalhadores. São eles que estão pagando o preço da crise.

Com a terceira maior taxa de desemprego da Europa, Por-tugal amarga, hoje, a marca de 1,5 milhão de desempregados, dos quais mais de 40% são jovens. Estima-se que, apesar

dos programas assistencialistas de transferência de renda, 18% da população portuguesa viva em situação de pobreza, o que representa quase dois milhões de pessoas que mal têm dinhei-

ro para se alimentar ao longo do mês.

A política de massacre do proletariado português envolve também duros golpes no Esta-do de Bem-estar Social. A ideia

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Os professores Raquel Varela e Renato Guedes, autores do livro Quem paga o Estado Social em Portugal?, revelam como a crise financeira devasta os direitos dos trabalhadores portugueses

de que parte do salário dos tra-balhadores, em vez de ser paga diretamente a eles, é reverti-da em benefícios sociais, como Educação, Saúde, Cultura e Segurança Social, está ameaça-

da pela faceta mais mordaz do Neoliberalismo. Conquista dire-ta das lutas dos trabalhadores durante a Revolução de 1974, o Estado Social foi, pouco a pouco, desmantelado pelo governo sob

a desculpa de que contribuiria para o crescimento da dívida pública portuguesa.

A justificativa falaciosa vem sendo desmentida por pesquisa-dores e ativistas. Entre eles está Raquel Varela, coordenadora do Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais da Univer-sidade Nova de Lisboa que tem ganhado notoriedade por suas posições contrárias às estraté-gias de precarização do traba-lho empreendidas pelo governo português.

Acompanhada de Renato Guedes, pesquisador da Univer-sidade de Lisboa e seu parceiro no livro Quem paga o Estado Social em Portugal? (Editora Bertrand, 2012), Raquel esteve no Brasil e conversou com os Cadernos Adufrj. Na entrevista, os inte-

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Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 11

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lectuais confirmam a autossus-tentabilidade do Estado Social português, associam a regres-são dos direitos trabalhistas ao desejo burguês de recuperação de lucros e analisam a desagre-gação da classe proletária frente às medidas aviltantes do Estado português. Leitura obrigatória para quem quer entender melhor a situação real de um país histo-ricamente tão próximo ao Brasil, mas curiosamente ignorado por nossos meios de comunicação de massa. Confira:

Cadernos: Os direitos sociais dos trabalhadores portugueses vinham sendo respeitados até a crise dos anos 1980, quando sofreram o primeiro grande golpe. Em 2008, o processo se agravou. Pode nos falar sobre a precarização/descapitalização da seguridade social?

Raquel Varela: O Estado Social nasce em Portugal pela Revolução dos Cravos, de 1974. Antes disso, a proteção social era exclusiva para algumas áre-as de difícil reprodução da força de trabalho, como médicos, por exemplo, e para setores man-tenedores da Ditadura, como o funcionalismo público. O Esta-do Social é criado em 1975, e a burguesia só o aceita para impe-dir que os trabalhadores tomem o poder. Ele é um dos pilares da tentativa burguesa de estabiliza-ção social.

É neste ano que, pela primeira vez, Portugal reconhece o direito ao trabalho. Esse reconhecimen-to tem três vertentes diferentes: em primeiro lugar, aquela que institui o direito ao trabalho

como direito à vida. Ou seja, se no Capitalismo a única forma de sobrevivência é pelo trabalho, então todas as pessoas devem ter direito a ele; a segunda vertente defende o direito à não demissão. Nesse período, são aprovadas duas importantes leis que impe-dem o desligamento dos traba-lhadores sem justa causa e que elevam o valor das indenizações a serem pagas pelas empresas em

caso de demissão; e, por último, temos o seguro-desemprego e a proteção social que garantem rendimento ao trabalhador no caso de os dois primeiros prin-cípios falharem.

Na crise de 1981-1984, o segu-ro-desemprego passa a ser apli-cado de forma extensiva em Portugal. O país deixa de ter uma situação de pleno empre-go e começa a lidar com grandes

OUTUBRO DE 2012.

Marcha contra o desemprego,

em Portugal

LUIS NUNES/DIÁRIO LIBERDADE

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As ondas de protestos na Europa são, em parte, reflexo de um descontentamento dos trabalhadores em relação às políticas de austeridade, mas a capacidade de mobilização e desmobilização imediata desses atos vem da burguesia, que, da mesma maneira que põe os trabalhadores nas ruas, retira-os

Raquel Varela

demissões, atrasos em salários etc. Nesse momento, na minha opinião, o benefício passa a ser usado para facilitar a criação de um exército industrial de reserva sem causar rupturas sociais. Já o Estado Social começa a ser fur-tado nos anos 1990, quando são criadas as taxas moderadoras da Saúde e da Educação. A destrui-ção da segurança social portu-guesa, no entanto, vem mesmo

com a crise de 2008, muito em função da incapacidade de o pro-letariado vencer a crise anterior, de 81-84.

Renato Guedes: As taxas de Saúde, inicialmente a valores irrisórios, foram criadas com a justificativa de que, em espe-cial a população idosa, super-lotava os hospitais quando, na verdade, deveria se encaminhar a centros de saúde especializa-

dos. A cobrança era, então, uma forma de persuadir as pessoas que não estavam precisando de atendimento em hospitais a pro-curar os centros. Mas isso abriu caminho para o governo, após 2008, aumentar as taxas cobra-das para valores significativos, o que desencoraja os cidadãos a procurar o sistema público de Saúde. O mesmo aconteceu nas universidades: criou-se uma taxa

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simbólica para a Educação e, um belo dia, o valor cobrado aumen-tou significativamente, levando 15% dos estudantes a abandona-rem imediatamente seus cursos.

Cadernos: Vocês compara-ram quanto os trabalhadores entregam ao Estado em con-tribuições e impostos diretos e indiretos e quanto recebem em serviços públicos relacionados à saúde, educação, segurança social, transportes e cultura. Como foi feito esse estudo?

Renato Guedes: Nesse estudo, que está no livro Quem paga o Esta-do Social em Portugal?, utilizamos a metodologia proposta pelo eco-nomista norte-americano de ori-gem paquistanesa, Anwar Shai-kh. Pegamos os dados de 1995 a 2010 e contabilizamos quanto os trabalhadores pagam em impos-tos diretos, indiretos e seguran-ça social e quanto eles recebem desse Estado. Fomos bem con-servadores e assumimos que todos os recursos pagos pelos assalariados à segurança social são revertidos para os próprios trabalhadores, o que está longe de ser verdade. Não levamos em consideração as taxas de Edu-cação e Saúde. Também ignora-mos em nosso cálculo as verbas sociais que o governo usa na cha-mada política ativa de emprego, por meio da qual a empresa con-trata um empregado e o Estado garante parte do salário desse trabalhador, subsidiando clara-mente os capitalistas e não os proletários.

Ainda assim, conseguimos provar que não há déficit; o Esta-do Social é autossustentável.

Cadernos: Se não há défi-cit na seguridade social, qual seria então a principal causa dos desequilíbrios orçamen-tários, estagnação econômica e crescimento da dívida pública portuguesa?

Raquel Varela: A causa é a crescente alocação de capitais públicos no setor privado, esti-mulada pelo Neoliberalismo, sobretudo a partir da década de 1980. Essa alocação se dá de múl-tiplas maneiras, mas nem todas elas estão totalmente estudadas. Pesquisas parciais apontam, por exemplo, que Portugal tem 23 vezes mais parcerias públi-co-privadas do que qualquer outro país da Europa. Mais de um bilhão de euros é investido todos os anos nessas parcerias, o que corresponde a quase 20% do Serviço Nacional de Saúde.

Há ainda outras causas pos-síveis, como as isenções fiscais, subsídios às empresas e a recon-versão da força do trabalho, por meio da qual o Estado promoveu a aposentadoria precoce de traba-lhadores de 45 a 50 anos de idade e os substituiu por trabalhadores precários, aumentando a depen-dência de uma parcela significa-tiva da população aos programas assistencialistas estatais.

Cadernos: É dessa reconver-são da força de trabalho que a senhora fala quando afirma que o desemprego não é inevitável, mas sim uma política conscien-te dos governos europeus, em especial o de Portugal?

Raquel Varela: O Estado não só não tem política de criar emprego como tem política de criar desemprego. Essa é minha crítica às análises marxistas:

PARA RAQUEL VARELA, o Estado não só tem política de criar emprego como tem política de criar desemprego. A última opção leva o povo às ruas

LUIS NUNES/DIÁRIO LIBERDADE

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elas dizem que o Neoliberalis-mo acentua a desregulamenta-ção estatal; não acho que haja uma desregulamentação estatal, mas pelo contrário, há uma for-te regulamentação que promove o desemprego e a flexibilidade.

Quando o Estado aprova o estágio profissional, mas não regulamenta a remuneração desse estágio, ele, de fato, está estimulando o emprego não remunerado. Quando o Estado fixa cota de trabalhadores fixos por escola, ele está dizendo nas entrelinhas que as demais vagas deverão ser preenchidas por tra-balhadores precários.

Há uma multiplicidade de políticas estatais que obrigam o trabalhador a revezar entre o desemprego e o trabalho precá-rio. Quando falamos de preca-riedade e desemprego, estamos falando das mesmas pessoas, pois elas se alternam entre os dois estágios. Na prática, uma massa gigante de trabalhadores permanece seis meses do ano desempregada e os outros seis meses em situação de subempre-go. As pessoas falam dos desem-pregados como se eles estives-sem fora da força de trabalho, e não é. Quando o governo promo-ve a precariedade, promove tam-bém o desemprego e vice-versa.

Renato Guedes: Irônico perceber que as mudanças são anunciadas como melhorias, quando, empiricamente, obser-vamos que não são.

Desde a crise de 2008, o governo português anuncia o aumento da produtividade do trabalho como uma vitória. Mas esse indicador é

acompanhado da queda do produ-to e por uma queda ainda maior do nível de emprego. Fica fácil concluir então que o trabalho só é mais produtivo hoje porque há menos pessoas empregadas pro-duzindo menos produtos.

Cadernos: O discurso con-trário ao Estado de Bem--estar Social é amplamente endossado pela grande mídia e empresariado europeu. Que interesses estão por trás dele?

Raquel Varela: A burguesia está vivendo a sua maior crise desde 1929. Portugal teve uma brutal destruição de capital. As empresas estão indo à falên-cia, os grandes capitais se eva-porando. A saída foi mexer no fator trabalho para recuperar

as taxas de lucro. Mas o custo unitário do trabalho não baixa de jeito nenhum. E isso tem a ver com a economia mundial do Capitalismo e não apenas com o governo português. Este até que tem sido muito competente em suas tentativas de arrasar os tra-balhadores. Temos a maior taxa de desemprego da história: são 26% de desempregados.

Cadernos: Esse processo foi acompanhado de concentra-ção de renda em Portugal?

Raquel Varela: Oitocentas e setenta famílias possuem uma fortuna equivalente a 45% do Produto Interno Bruto portu-guês. E, desde que a crise come-çou, há mais milionários e eles ganham mais.

Hoje, Portugal tem cinco milhões de pessoas na ativa;

cerca de 3,5 milhões delas são desempregados ou trabalhadores

precários. E os sindicatos não organizam essas classes. Eles são entidades profundamente ligadas a partidos que têm como estratégia a

defesa do regime democrático representativo burguês.

Raquel Varela

MARCO FERNANDES

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 15

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Desde a crise de 2008, o governo português anuncia o

aumento da produtividade do trabalho como uma vitória. Mas esse indicador

é acompanhado da queda do produto e por uma queda ainda maior do nível de emprego. Fica fácil concluir então que o

trabalho só é mais produtivo hoje porque há menos pessoas empregadas

produzindo menos produtos.

Renato Guedes

Renato Guedes: Há uma luta desesperada da burgue-sia para conservar o valor da propriedade.

Cadernos: Qual a posição dos sindicatos e movimen-tos sociais nesse processo de diminuição de direitos?

Raquel Varela: Na minha opinião, os sindicatos atuam como ratos à frente de um leão, utilizando exatamente os mes-mos métodos dos anos 1980 sem lembrar que estão diante de um quadro social diferente. Esta-vam habituados a convocar uma greve para correção do quadro salarial, mas, há pouco tempo, fizeram cinco greves gerais e, mesmo assim, o governo anun-ciou novas medidas de auste-

ridade. Não adianta continuar a fazer o mesmo e querer um resultado diferente.

Hoje, Portugal tem cinco milhões de pessoas na ativa; cerca de 3,5 milhões delas são desempregados ou trabalhado-res precários. E os sindicatos não organizam essas classes. Eles são entidades profunda-mente ligadas a partidos que têm como estratégia a defesa do regime democrático representa-tivo burguês. Querem resolver as crises política e econômica dentro do regime democrático e, portanto, fogem do enfrenta-mento. Lutam não por aumen-tos de salário, mas para frear os cortes salariais. No fundo, os sindicatos sabem que, quando

houver uma luta política séria, o próprio regime capitalista estará em jogo. Os portugueses não têm uma ligação com o regi-me democrático representativo. Eles têm uma relação com seus direitos sociais que, erradamen-te, associam ao regime democrá-tico representativo.

Cadernos: Na sua opinião, a perda progressiva de direitos trabalhistas tem origem nos próprios trabalhadores que, em especial a partir da década de 70, não se mobilizaram em uma resistência estratégica ao Capitalismo?

Raquel Varela: Sim. Os por-tugueses foram derrotados em novembro de 1975, pois, depois da Revolução, não conseguiram criar um poder unificado em nível nacional capaz de derro-tar o Estado. A ideia de que os trabalhadores teriam direitos e os patrões continuariam a ter lucros mostrou-se inviável. Não sou eu que estou falando. Basta olhar em volta. Não dá para os empregos e os lucros aumen-tarem ao mesmo tempo. Se um aumenta, diminui o outro. A quimera do pacto social ruiu.

Cadernos: A senhora já afir-mou que a ideia de uma clas-se trabalhadora, organizada, que luta por seus direitos está desaparecendo. Mas isso não contrasta com as manifesta-ções que varreram a Europa nos últimos anos?

Raquel Varela: Os cientis-tas sociais cometeram o erro de enxergar os trabalhadores por trás de todas as manifestações. Colocaram todos os atos no mes-

MARCO FERNANDES

16 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

Page 17: Cadernos Adufrj 3

A POPULAÇÃO está revoltada

com as políticas

definidas pela Troika (leia-se

Comissão Europeia,

Banco Central Europeu e FMI)

mo saco. Eu estudei esses movi-mentos em detalhe e acho que, numa primeira reação à crise, houve sim participação do pro-letariado. Mas há também outros tipos de manifestação: as orques-tradas pela burguesia, as convoca-das pelos sindicatos com o objeti-vo de realizar novas eleições etc.

As ondas de protestos na Europa são, em parte, reflexo de um descontentamento dos trabalhadores em relação às políticas de austeridade, mas a capacidade de mobilização e desmobilização imediata des-ses atos vem da burguesia, que, da mesma maneira que põe os trabalhadores nas ruas, reti-ra-os. O calcanhar de Aquiles da classe trabalhadora é a sua desorganização.

A força necessária para for-jar esses tipos de manifestação somente a burguesia com seus meios de comunicação, os sin-

dicatos associados a partidos políticos têm. Não há outra for-ça organizativa capaz de mobi-lizar tanta gente.

Cadernos: Com o agrava-mento da crise, pode haver uma ruptura?

Raquel Varela: Acho que sim. A estabilidade social está presa por fios muito finos. O que a segura é a estrutura familiar. No seio da família, quem tem um salário alto garante a renda dos outros integrantes, já que estes se revezam entre o desemprego e o subemprego. Há uma nova onda de emigração, e os progra-mas assistencialistas, histori-camente muito fortes, também estão sendo diminuídos.

Sou muito crítica a esses programas, aliás: três milhões de portugueses dependem hoje mensalmente de políticas assistencialistas estatais que, a rigor, não fazem parte do Estado

Social. O Bem-estar Social é uni-versal, para todos. Já as políticas assistencialistas são direciona-das para gerir o desemprego e a precariedade do trabalho.

Cadernos: A senhora já se mostrou a favor de Portu-gal romper seus acordos, não pagar a dívida e de o povo se autogovernar. A única solução de todo esse caos seria mesmo um processo revolucionário?

Raquel Varela: Não há qual-quer solução sem uma situação revolucionária. Não sei se ela é o caminho natural. Não descarto a barbárie. Tenho confiança que sociedades escolarizadas e orga-nizadas como Portugal consi-gam encontrar um caminho que beneficie a classe trabalhadora, mas não desconsidero a possibi-lidade de um futuro como o da Ucrânia, país onde a classe tra-balhadora está completamente perdida e a ser dizimada.

LUIS NUNES/DIÁRIO LIBERDADE

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 17

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Hamurabi, Charles Dickens, Vargas, OIT... ▼ CARLOS NOGUEIRA*

O processo capitalista de produção teve

na Revolução Industrial o seu mais lúgubre período. Jornadas de 14 a 16 horas em lugares insalubres, mão de obra infantil e nenhuma fiscalização. Na literatu-ra, Oliver Twist, de Charles Dickens está inserido nesse contexto

No âmbito da Organi-zação Internacional

do Trabalho, a proteção social está vinculada ao conceito de risco social – situações que afetam a plenitude das faculda-des físicas e mentais de uma pessoa e diminuem seus recursos econômicos.

O Código de Hamura-bi (Rei da Babilô-

nia, séc. XVIII a.C) foi o precursor dos sistemas legais que regem a maioria das sociedades. Foi no direito da época de Hamurabi que foi criada a técnica dos contratos, inclusive os contratos sociais. Um monólito de rocha com escrita cuneiforme, o Código de Hamurabi está no Museu do Lou-vre, Paris.

ALMANAQUE

* Pesquisador graduado em Letras (UFRJ),

mestre em Memória Social (UniRio)

18 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

Page 19: Cadernos Adufrj 3

Hamurabi, Charles Dickens, Vargas, OIT...

Na fase da coloniza-ção, predominava

no Brasil a ajuda entre as famílias, uma forma de sociabilidade primá-ria entre as gerações, reforçada pelos laços afetivos, a caridade cristã e a filantropia para os pobres e doen-tes. Nestas modalida-des, a mulher sempre teve um papel social de destaque reforçando a imagem da cuidadora por excelência.

No Brasil, o conceito de seguridade social

adotado com a Consti-tuição de 1988 é opera-cionalizado pelas três políticas: previdência, saúde e assistência social, embora a univer-salidade inerente a esse conceito apresente limites, pois apenas a saúde está inscrita como direito do cidadão e dever do Estado.

A Carta del Lavoro, sistema corporativo

da Itália fascista de Mussolini inspirou o sistema político traba-lhista de outros países. No Brasil, a Consolida-ção das Leis do Trabalho – CLT, da ditadura Var-gas, baseou-se na Carta del Lavoro.

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 19

Page 20: Cadernos Adufrj 3

ARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOSH

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O cenário brasileiro atual apresenta grandes desafios, mas também oportunidades para a organização política dos trabalhadores

Globalização do capital amplia diferenças sociais

Page 22: Cadernos Adufrj 3

Nas últimas décadas, o proces-so de acumulação capitalista e de exploração da força de trabalho tem evidenciado a

liberdade de circulação do capital, ex-ponenciando sua concentração e cen-tralização. Por isso, as abordagens da liberdade de circulação do trabalho têm apresentado grandes desafios para os trabalhadores, uma vez que a acu-mulação do capital tem migrado para outras esferas da vida social. A despei-to dos limites dos acordos internacio-nais e de suas condicionalidades para os direitos sociais e trabalhistas e até mesmo os civis (criminalização das lu-tas sociais), a liberdade de movimento empresarial tem sido preservada. Sua

lógica, sabe-se, é de subordinação do trabalhador aos seus padrões de cida-dania e democracia. Sem dúvida que esse quadro se renova a cada época. Quanto mais ele revela aos críticos sociais que o planeta transformou-se numa esfera única de investimento, produção, realização e acumulação do capital, mais ele nos ajuda a desvelar os limites da liberdade individual e da propriedade privada dos meios de produção, pois que o trabalho assala-riado não possui as mesmas condições de movimento do capital.

É neste contexto que alcança visibi-lidade a tendência do comércio mun-dial em transformar bens públicos garantidos pelo Estado como direi-

* Professora da Escola

de Serviço Social da

UFRJ

▼ CLEUSA SANTOS*

A VALORIZAÇÃO DO CAPITAL NA NOVA ORDEM MUNDIAL -

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MILHARES de jovens

protestam em Madri, na

Espanha, contra as políticas de

austeridade

a proteção social entre a superação da pobreza ou a maximização dos lucros

22 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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tos sociais em serviços sociais priva-dos, particularmente aqueles que são constitutivos do sistema de proteção social, como educação, saúde e previ-dência. Para se ter uma ideia, no início da primeira década do século XXI a desproteção social no Brasil atin-gia 40,6 milhões de trabalhadores, e quase uma década depois atinge apro-ximadamente 50% da força de traba-lho. Já os dados do recente relatório da Organização Internacional do Tra-balho (OIT) sobre a proteção social no mundo em 2014-20151 continuam sendo estarrecedores. Os resultados da pesquisa revelam que desde 2008 o número de trabalhadores desempre-gados cresceu em 30,6 milhões, e 899

milhões ganham menos de US$ 2,00 por dia. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), dos 7 bilhões de habitantes no mundo, dois ter-ços vivem com até US$ 8,00 por dia; um bilhão, com até US$ 1,00; e outro bilhão, com até US$ 2,00.

Diante desse quadro, resta-nos indagar: como o setor de serviços (ele não é o único) contribui para a valori-zação do capital? Por que os serviços de saúde e previdência social foram privatizados?

Para responder a essas questões, é importante ter em conta que os ser-viços não são apenas fontes de lucro, mas também fontes de acumulação e reprodução do capital. Isso quer dizer

que a valorização da mais-valia extra-ída do trabalho vivo está relacionada aos meios de mercantilização dos serviços públicos estatais, metamor-foseados nas privatizações, fusões e aquisições. Evidentemente que a imperialização tem um papel central nessas alterações, a qual não preten-demos esgotar nestas páginas. Trata-se de um pressuposto que norteará as reflexões aqui desenvolvidas.

Do outro lado da trincheira, a liberdade é azul?

A estabilidade econômica e política do capitalismo, alcançada após Bret-ton Woods (a paridade ouro-dólar), entra em declínio nos anos 1970,

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dando lugar a uma onda recessiva e a um ciclo de crises que impuseram grandes quedas nas taxas de lucro do capital. Causadas, sobretudo, pelo desenvolvimento tecnológico e pela reestruturação produtiva, tais crises resultaram numa restauração plane-tária do domínio do capital, denomi-nada de mundialização.

Também denominado de globali-zação, este processo de internacio-nalização do capital, consolidado nos anos 1980 e 1990, provocou mudanças substantivas no capitalismo monopo-lista expressas tanto no processo des-trutivo das forças produtivas quanto na predominância da financeirização, assim como nos indicadores sociais, intensificando o processo de acumu-lação, concentração e centralização do capital.

De fato, a flexibilização da produ-ção, pela qual o capital internacional transfere sua produção para países de mão de obra barata, de poucas res-trições ambientais e com incentivos fiscais alentadores, resulta na perda de postos de trabalho nos países cen-trais, reduz o nível geral dos salários,

afetando também o trabalhador imi-grante cada vez mais internaciona-lizado. Já a desregulamentação e a abertura dos mercados para investi-mentos de toda a sorte liberalizaram as relações comerciais e o capital financeiro; criaram políticas destina-das a quebrar o eixo organizacional dos trabalhadores; precarizaram as relações trabalhistas, assegurando a ampliação da liberdade do capital. Sua expansão resultou na concen-tração de 40% das riquezas do pla-neta nas mãos de 1% da população mundial. Portanto, além de alterar o padrão de desenvolvimento das forças produtivas, a globalização também vai alterar o padrão de intervenção do Estado e, consequentemente, de suas funções.

Na verdade, a função econômi-ca do Estado está associada às suas funções políticas. Ambas garantem a legitimidade da produção, reprodução e valorização do capital. Sobre a crise de 2008, divulgava-se que as lucrativas relações comerciais das cor-porações transna-cionais aumentaram 48% em relação a 2008. Isso expli-ca por que a cri-se f inanceira foi vista pelo ex-che-fe de gabinete da Casa Branca, Rahm Emanuel, como um meio para introdu-zir “mudanças e para decidir sacrifícios que seriam inaceitáveis num contexto diferente”. O Global Wealth Report, do Cre-

dit Suisse, divulgou em 2012 que capi-talistas individuais controlam 38,5% da riqueza mundial e que seus bens cresceram 29% em apenas um ano. Dessa forma, o Estado irá centralizar o poder político e controlar os merca-dos através de suas funções econômi-cas diretas e indiretas. Não por acaso alguns analistas concluíram que ele se transforma em instrumento da oligar-quia financeira e seus monopólios em detrimento dos interesses gerais dos trabalhadores.

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Para ficar na memória, 1% dos mais ricos detém a metade do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%.

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PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

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Revela também que no topo do topo estão os indivíduos que detêm mais de um milhão de dólares, são 35 milhões de pessoas no total (0,7% da popula-ção mundial). São 32 milhões de pes-soas que se apropriaram de 41% da riqueza do planeta (patrimônio acu-mulado, não renda), enquanto 68,7%, 3,2 bilhões de pessoas com patrimô-nio inferior a US$ 10 mil, têm apenas 3%. Dowbor chama atenção para a ordem de grandeza desses números: “para ficar na memória, 1% dos mais ricos detém a metade do patrimô-

nio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres

detêm 3%. Não há como equilibrar politica-

mente o planeta com esta situ-

ação, e mui-to menos

quando e s t á

Não há como equilibrar politicamente o planeta com esta situação, e muito menos quando está se agravando. Cifras muito mais impressio-nantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da população mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente

se agravando. Cifras muito mais impressionantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da popula-ção mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente”.

No que diz respeito ao Brasil, não são de menor importância os inves-timentos diretos estrangeiros (IDE), que a partir de 1998 aumentaram sig-nificativamente. Como se sabe, desde 1995 o governo de Fernando Henrique Cardoso promoveu a abertura comer-cial, reduziu as restrições de atuação setorial e renegociou a dívida externa. Promoveu o processo de privatiza-ções, fusões e aquisições, estimulando o aumento de IEDs no país, que foram transferidos para o setor de serviços. Tais investimentos vão dotar os ser-viços públicos, particularmente os privatizados (como o setor de energia elétrica e de telecomunicações, por exemplo), ampliando o mercado para as empresas multinacionais, contri-buindo para as exportações e criando novas formas de geração de riqueza.

cadores da desigualdade social apre-sentados no Relatório do Credit Suis-se de 2014, no qual se verifica que a maioria da riqueza mundial é detida por pouco mais de 8% da população global. “São estes que estão no topo da pirâmide, ao deterem riqueza acima de US$ 100 mil. Desta forma, 8,6% dos habitantes globais detêm 85,3% da riqueza em todo o mundo,

o que equivale a US$ 224,5 b i l h õ e s ” .

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PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

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ARTIGOARTIGO

Serviços de saúde e previdência: direitos sociais ou negócios do capital?

É dentro desse contexto que a libe-ralização do comércio e a desregu-lamentação do mercado de trabalho jogaram um papel decisivo para con-solidar a formação social do sistema capitalista brasileiro que se comple-tou com a conformação dos oligopó-lios. É nesse momento que se encon-tra a predomínio do trabalho assala-riado e da propriedade privada dos meios de produção que deságua em oligopólios, partícipes das relações econômicas típicas da fase impe-rialista do capital. Coerente com a lógica oligopólica, muitos serviços são transformados em mercadorias e entram na esfera industrial, como é caso dos serviços constitutivos da Seguridade Social (saúde e previdên-cia, por exemplo). Trata-se, portanto, do desmonte do sistema de proteção social previsto na Constituição.

As empresas de planos e seguros de saúde e a indústria farmacêutica foram contempladas com a política econômica em curso. Conforme os dados da Agência Nacional de Saú-de Suplementar (ANS), no Brasil, o mercado privado de planos e seguros de saúde aumentou na última década, fazendo saltar o número de benefici-ários de 32 milhões (em dezembro de 2003) para 49 milhões (em dezembro de 2013) e 50,3 milhões em 2014.

A elevada concorrência monopo-lista entre as empresas de planos e seguro contribuiu para acelerar o processo de concentração e centra-lização do capital no setor de saúde. É significativo que o número de 1.814 empresas em 2003 tenha caído para 1.274 em 2013 e para 922 operadoras em 2014. A receita bruta dessas opera-

EM MARÇO DE 2014, A REVOLTA

DOS GARIS. A paralisação de

oito dias gerou importantes

ganhos para a categoria

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doras alcançou o valor de 108 bilhões. O apoio do Governo Federal, por

meio do Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social (BNDES), da Caixa Econômica Federal (CEF) e do Finep – Inova-ção e Pesquisa à lógica financeira do capital também está presente nos aportes de recursos tanto aos setores farmacoquímicos e de medicamentos quanto nas garantias ao mercado de compra desses suprimentos. Estudos mostram que até setembro de 2009 bilhões de reais foram destinados ao financiamento de quase uma centena de projetos de empresas farmacêuti-cas, de equipamentos de saúde, agro-químicas e veterinárias. Destaca-se o Programa de Apoio ao Desenvol-vimento do Complexo Industrial da Saúde (Profarma), que contou, a par-tir de 2004, com financiamento de R$ 5 bilhões. Apoios financeiros às empresas Biolab Sanus, Biosintética, Aché, Nortec Química, JP Indústria Farmacêutica e Neo Química, além

de serem desoneradas das exigências de garantias em reais para operações até US$ 2 milhões para exportações, refletem a parceria entre o público e o privado no Brasil. Em outras palavras, o Estado, para garantir o acréscimo dos lucros, tem como função contro-lar os mercados através de suas fun-ções econômicas diretas e indiretas. Além disso, Fundações de Apoio, Cooperativas e ONGs juntamente com as Organizações Sociais (OSs), OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), Empre-sa Brasileira de Serviços Hospitala-res (EBSERH), fundações, parcerias público-privadas (PPPs), entre outras que compõem o conjunto de empresas de “responsabilidade social” – o deno-minado terceiro setor –, estão substi-tuindo os serviços públicos estatais.

Ainda no âmbito das políticas de Seguridade Social, vale lembrar que a previdência social entra como um importante elemento de formação de poupança, uma vez que, sob a gestão estatal, ela “potencializaria obras, o crescimento da economia, e o cresci-mento da economia possibilitaria que os trabalhadores tivessem reformas”. Assim, sob algumas condições cen-trais – mas não exclusivas – combi-nadas, possibilitaram a existência do Estado social, que, simultânea e con-traditoriamente, tem possibilitado enormes taxas de lucro aos capitais e alguns direitos sociais aos traba-lhadores. Com uma redução relativa entre 2011 (12,5%) e 2012 (7,25%), a taxa básica de juros volta a subir em 2013 (para 10,75%), alcançando 11,15% em 2014. O Brasil continua no topo da pirâmide, mantendo os maiores juros oficiais pagos no mundo. Mantém-se, portanto, a grandeza das taxas de lucro e a volumosa transferência de

A generalização da pobreza registrada no grande índice de desigualdade social, ao reproduzir a superexplora-ção do trabalho assalaria-do, possibilita também aos trabalhadores retomarem a ofensiva

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mais-valia para o setor bancário. Além disso, a privatização “indireta” da previdência é consolidada quando o governo aprova a criação dos Fundos de Previdência dos Servidores Públi-cos (FUNPRESP). Um novo campo de negócios para o capital financei-ro (bancos e os fundos de pensão) é assegurado.

Como se vê, o capitalismo mono-polista incorporou as demandas do capital financeiro para além da explo-ração do trabalho e da produção de mercadorias dotadas de valor de uso: a concentração da riqueza não se limita mais ao social. Ela se expande para novos espaços, independente da expansão da produção e do emprego, e cria uma nova forma de sociabilida-de, garantindo a reprodução contínua do trabalho como valor de troca; tra-balho assalariado, precário, poten-cializador do aumento da mais-valia e das formas de aperfeiçoamento do fetiche da mercadoria e dos processos de estranhamento/alienação dentro da ordem social do capitalismo.

Provas dessa movimentação do capital monopolista no Brasil são os indicadores disponíveis no Relató-rio de Comércio e Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) de 2014. Vê-se ali que os países em desenvolvimento e as economias em transição investiram, em conjunto, US$ 553 bilhões ou seja, 39% dos investimentos globais de IDE, em comparação com apenas 12% no início dos anos 2000, suge-rindo que o crescimento do setor de serviços atraiu para o Brasil 80% do IDE, que atingiu um estoque de US$ 65,9 milhões, isto é, 64% do total de IDE. Já nos períodos de 2012 e 2013, os indicadores do relatório registram

que, apesar da retração na economia mundial em 2012, o Investimento Direto Estrangeiro (IDE) mundial voltou a crescer. Ademais, o relató-rio projeta fluxos de IDE de US$ 1,6 trilhão até o fim de 2014; US$ 1,7 tri-lhão em 2015 e US$ 1,8 trilhão em 2016, principalmente nos países mais desenvolvidos. Economias em desen-volvimento agora constituem metade dos 20 países mais bem classificados por fluxos de IDE. Como consequ-ência, houve um dramático aumento das operações de fusão & aquisição (F&A) no estrangeiro, em detrimen-to do investimento de raiz (greenfield investment), revelando a grande movi-mentação dos monopólios.

Os indicadores até aqui aponta-dos sugerem que ambos os tipos de

inversões colaboram para a crescente concentração mundial do capital. As 100 maiores empresas não financeiras possuíam ativos de aproximadamente US$ 12 bilhões ou quase 1/5 do PIB mundial (19,2%), com cerca de 15,5 milhões de empregados. Seus negó-cios alcançaram o volume de US$ 9,7 bilhões. Destas empresas, 72 eram sediadas nos países do G7 e 21 nos Estados Unidos. Depreende-se des-tes dados o grau de concentração e centralização do capital intensifica-do pelas finanças. Um traço revelador dessa ofensiva do capital monopolista é o processo de valorização do capi-tal resultante da massa de valores excedentes. Dentre eles, o setor de serviços se constituiu numa das for-mas de valorização do capital que, conforme vimos, irrompeu com uma força assombrosa, espalhando-se para além das fronteiras. Se regressarmos ao final do século XX, veremos que no Brasil,

As últimas décadas do século XX, impul-

sionadas pelo desenvolvimento da com-

putação e telecomunicações, foram res-

ponsáveis por outro fenômeno inédito na

história da humanidade: O crescimento

do comércio internacional de serviços

que em 1999 atingiu a cifra de US$ 1,34

trilhão - cerca de 25% do comércio total

de bens. O potencial de crescimento é

nítido quando comparamos essa cifra de

25% ao setor de serviços domésticos de

cada país. Em países desenvolvidos, este

setor representa cerca de 70% do PIB,

enquanto que em países em desenvol-

vimento de alta renda (como o caso do

Brasil) chega a 60%.

De fato, ao serem estimulados pelas privatizações das empresas estatais, os IDEs migraram para este novo espaço de acumulação do capital. Afi-nal, tal como indicou Mandel (1982),

O setor de serviços se consti-tuiu numa das formas de valorização do capital que irrompeu com uma força assombrosa

ARTIGOARTIGO

28 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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o predomínio do capital constante em detrimento do capital variável (força de trabalho) resulta na tendência, ora em curso, de reduzir trabalho vivo e de criar/realizar a mais-valia. Estas, por sua vez, acabam por movimen-tar a necessidade de intervenção do Estado. Assim, se por um lado as duas últimas décadas do século XX regis-traram uma diminuição do número de greves no país, por outro o crescimen-to em 2012 (quando comparado às 446 greves em 2010 e as 554 em 2011) revela uma retomada da paralisação do trabalho como “arma para enfren-tar os baixos salários, a perda de direi-tos dos trabalhadores e as péssimas condições de trabalho, geradoras de uma crescente onda de acidentes de trabalho” (Badaró, 2014). O DIEESE, órgão de assessoria e estudos ligado ao movimento sindical, por sua vez, registrou um crescimento de 58% nas greves no ano de 2012.

Atendo-se aos diversos fatores que explicam o declínio das mobilizações organizadas dos trabalhadores, Bada-ró (2014) apresenta um balanço sobre os diversos fatores que contribuíram para esse declínio. Dentre eles desta-camos: o desemprego e a precariza-ção das relações de trabalho; o pro-gressivo apassivamento da maioria da direção sindical mais combativa (reunida em torno da Central Única dos Trabalhadores – CUT) e a incor-poração de dirigentes sindicais aos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, acompanhada da transformação da CUT em braço sin-dical dos governos petistas e de sua definitiva incorporação à estrutura sindical oficial.

O cenário brasileiro atual apresenta grandes desafios, mas também opor-tunidades para a organização políti-

ca dos trabalhadores. Afinal, confor-me vimos acima, do ponto de vista do capitalismo mundial, a eclosão da cri-se de 2008 ampliou as formas de acu-mulação do capital. Sobre isso, Com-parato (2013), referindo-se às mudan-ças operadas no sistema de produção industrial, derivadas da especulação e financeirização do sistema, observou que “a parte correspondente aos ren-dimentos de capital na formação do produto mundial não cessa de aumen-tar, enquanto a dos rendimentos do trabalho, assalariado ou autônomo, continua a decrescer”.

Por outro lado, é possível vislum-brar que a generalização da pobreza registrada no grande índice de desi-gualdade social sinalizado anterior-mente, ao reproduzir a superexplo-

ração do trabalho assalariado, pos-sibilita também aos trabalhadores retomarem a ofensiva, como assinalou Badaró. De fato, apontamos algumas contribuições de críticos sociais que reconhecem a existência desse ascen-so das lutas de classes. Talvez por isso algumas análises inspiradas na tradi-ção marxista chamem a atenção para dois aspectos que considero nuclea-res: a ausência de articulação de um projeto de sociedade alternativo ao capital e a exigência de superação de nosso déficit organizacional. Entre-tanto, isso exige o máximo conhe-cimento possível da realidade social quanto à centralidade da organiza-ção política orientada por uma teoria revolucionária.

Entendo que o fortalecimento das formas de lutas coletivas das frentes de esquerda brasileira – somado ainda àquelas outras forças políticas con-trárias ao poder do capital – poderá consolidar as transformações sociais necessárias ao país e que foram inicia-das em 1988 com a Nova Constituição Federal. Inserem-se nesse campo de forças, além das duas maiores formas históricas de organização (os parti-dos e os sindicatos), as associações, os movimentos sociais, populares e os movimentos de luta pela terra (MST) e por moradia MTST.

Sobre a tarefa de construção de uma frente de esquerda no Brasil, podemos dizer que ela tem mobilizado diferen-tes forças políticas, que, após as Jor-nadas de Junho de 2013, se posicio-naram contrárias aos desfechos puni-tivos e criminalizatórios que a onda de manifestações e protestos gerou nas franjas da classe conservadora brasileira. Desde então, observamos o aprofundamento de uma tendência em curso no Brasil que tem bloqueado

O fortalecimento das formas de lutas coletivas das frentes de esquerda brasileira – so-mado ainda àquelas outras forças políticas contrárias ao poder do capital – poderá consolidar as transformações sociais necessárias ao país e que foram iniciadas em 1988 com a Nova Constituição Federal.

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sistematicamente as instâncias demo-cráticas e fortalecido os interesses de grupos e frações da classe dominante.

Após as eleições de 2014, inúmeros estudiosos, analistas e articulistas apontaram para algumas manifesta-ções desta tendência e chamaram a atenção para os repasses de recursos públicos ilimitados para o agronegó-cio, priorizando as lideranças latifun-diárias em detrimento dos pequenos agricultores familiares e da reforma agrária; apontam para o crescimento do número de parlamentares repre-sentantes de segmentos religiosos que reivindicam o cristianismo em oposi-ção ao Estado, constitucionalmente laico, assim como para as facilidades concedidas aos canais de televisão das igrejas; constatam o número expres-sivo de delegados e policiais (re) conduzidos no pleito recente, com foco no discurso da violência e da insegurança.

O exame deste quadro, minima-mente esboçado, confirma que essa situação resulta na forte regressão da racionalidade moderna, tal como defendiam os iluministas do século XVIII. Ou seja, a racionalidade como “um princípio inerente à realidade” conforme demonstrou Horkheimer. Aliás, nesta perspectiva, o sentido de mediação atribuído à racionalidade confere especial saliência aos desa-fios decorrentes dos antagonismos que levam à luta de classes. Além dessa argumentação, é preciso assi-nalar para a necessidade vital que a classe trabalhadora tem de se associar e de lutar por direitos. Nesse senti-do, é bom frisar que aqueles que lutam por uma transformação revolucioná-ria tem se contraposto ao significado que alguns setores atribuem à orga-nização política. Ou seja, através da

narrativa pós-moderna, esses setores não apenas rejeitam os valores ilu-ministas, mas, sobretudo, justificam o poder que o capital tem sobre as ações transformadoras, convidando-nos a valorizar os mecanismos de alie-nação, fragmentação e conformismo.

Desafios e perspectivas de lutaPor não partilhamos dessa perspec-

tiva ideológica e mistificadora que elimina as dimensões de exploração e acumulação do capital, procuramos reunir aqui um conjunto de elemen-tos, dados e reflexões que ajudam a desnudar a objetividade contraditória desta fase histórica do capitalismo.

Dentre os quais destacamos algumas das suas principais expressões: a cir-culação da força de trabalho, a pre-carização das relações trabalhistas, o desenvolvimento incessante de novas tecnologias e, consequentemente, a reestruturação produtiva e a flexibi-lização do trabalho, a hegemonia do capital financeiro, a desregulamenta-ção e a abertura dos mercados. Daí, apontarmos para a concentração de 40% das riquezas do planeta que está nas mãos de 1% da população mun-dial: 1% dos mais ricos detém a meta-de do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%. Abordamos a mercantili-zação dos serviços públicos, particu-larmente a saúde e a previdência, um dos elos entre a força de trabalho e a valorização do capital.

Para concluir nossa exposição, gostaria de chamar a atenção para as lutas dos trabalhadores. Assim, sem desconsiderar o caráter econômico-corporativo das greves, entendo como legítimas as reivindicações dos sin-dicatos por saúde e educação, assim como a luta dos movimentos sociais contra os gastos com os grandes even-tos esportivos, que trouxeram remo-ções de populações com extrema vio-lência policial. Elas demonstraram o mérito das demandas encaminhadas ao governo, assegurando a responsa-bilidade do Estado com as políticas sociais na garantia dos seus direitos. Também revelaram que o uso da for-ça policial pelo Estado tem sido uma das formas de controle social contra a combatividade dos setores mais orga-nizados ao criminalizar os movimen-tos de massa, reduzir os espaços de resistência, além de cooptar e ressig-nificar as bandeiras de lutas contra a lógica do capital.

O uso da força poli-cial pelo Estado tem sido uma das formas de controle social contra a combativi-dade dos setores mais organizados ao criminalizar os movimentos de massa, reduzir os espaços de resistência, além de coop-tar e ressignificar as ban-deiras de lutas contra a lógica do capital.

ARTIGOARTIGO

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Ora, sabemos que a inseguran-ça gerada por estas práticas trouxe várias consequências para a organi-zação dos trabalhadores, com desta-que para o medo, a paralisia e a sub-missão à lógica instituída. Além disso, ela resultou em posições autoritárias, acríticas e conservadoras desta ordem social. São muitos os desafios para os trabalhadores, mas muitas também são as estratégias de enfrentamen-to, que exigem que os trabalhadores tornem-se sujeitos de sua própria história, visando sua participação e fortalecimento das lutas coletivas, assim como dos instrumentos políti-cos revolucionários (entre os quais o partido e o sindicato), tendo em vista recuperar o caráter internacional da luta proletária. A disputa da hegemo-nia dos trabalhadores requer formu-lações teóricas e políticas a partir da perspectiva crítica e revolucionária.

Nota1 Manchete da matéria do jornal Brasil de Fato, publicada em junho/ 2014 (on-line), destaca que em 2012, na Europa, havia mais 800 mil crianças vivendo na pobreza do que em 2008.

POPULAÇÃO reage à privatização da saúde, em estágio acelerado nesta fase do capitalismo

SAMUEL TOSTA

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Políticas sociais fazem bem à economia

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Diferentemente do que acreditam alguns, os investimentos públicos em Seguridade Social geram muitos ganhos para o país. Mas as debilidades estruturais do atual padrão de crescimento da economia limitam e ameaçam esses resultados

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Políticas sociais fazem bem à economia

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ARTIGO

PROTEÇÃO SOCIAL:

▼ DENISE LOBATO GENTIL*

* Professora do

Instituto de

Economia da UFRJ.

O gasto público com políticas sociais conquistou um lugar de honra entre os instrumen-tos de política econômica,

depois de muitos anos sendo conside-rado uma arma esquecida. Esse posto das políticas sociais foi alcançado no período posterior a 2004, quando um novo padrão de crescimento econômi-co passou a determinar o dinamismo da economia nacional, e ganhou pro-eminência com os constrangimentos impostos pelo aprofundamento da crise econômica mundial que afeta o país desde 2008.

O estudo do impacto das políticas sociais como elemento estratégico do crescimento da economia brasilei-

ra pode criar várias conexões. A pri-meira, entre gasto autônomo na área social e nível de atividade econômica, é decisiva. O gasto com a seguridade social tornou-se impulsionador da demanda agregada ao ativar direta-mente o consumo das famílias. A ele-vada magnitude desse gasto e o seu direcionamento na forma de renda monetária para uma população de ido-sos carentes, pensionistas, enfermos, acidentados do trabalho, famílias de baixa renda e desempregados, trans-forma-se, imediatamente, na aquisição de medicamentos, alimentos, vestuá-rio e outros bens de primeira necessi-dade. O governo gasta e induz gastos privados, transformando a proteção

Avaliação macroecômica crítica ao modelo de crescimento recente (2004/2013)

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social no mais importante componen-te da demanda agregada a influenciar o ritmo da expansão econômica nos últimos dez anos, por intermédio da criação de um mercado interno de con-sumo de massa.

As despesas do governo com bene-fícios sociais são não apenas benéficas para a redução da pobreza e da desi-gualdade social, mas também favoráveis à formação de capital. O suposto “far-do” dos gastos sociais é, na verdade, um esquema favorável ao capital. A razão mais importante para isso é que o capi-tal não é uma entidade autossuficiente que existe independente do consumo. O investimento na ampliação da capa-cidade produtiva só acontecerá diante

do fortalecimento do consumo, quando esta pressão é considerada um fenôme-no permanente.

A segunda conexão importante, por-tanto, se estabelece entre gasto social e ampliação do investimento privado como reação ao consumo. Simultanea-mente, também ocorre a expansão da infraestrutura (capacidade instalada) nas áreas de saúde pública, educação e assistência social. O Estado inter-vém encomendando do setor privado a construção de prédios, a compra de equipamento e de insumos de traba-lho e contratando, diretamente, a mão de obra para operar nesses setores. O investimento privado e o consumo das famílias são induzidos por esse movi-

FEVEREIRO DE 2007. Entrega do Bolsa Família em Teresina (PI)

GLAUBER CAVALCANTE (CC BY-NC-SA 2.0)

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mento ativo da política social, e a eco-nomia nacional cresce ao mesmo tempo que prospera a cidadania.

A terceira conexão é a menos com-preendida e se estabelece entre prote-ção social e elevação da produtividade. O gasto social permite a criação de habilidades e capacitação dos traba-lhadores, aumentando as chances de inclusão no processo produtivo. É o caso das políticas das áreas de educa-ção, cultura e das políticas de trabalho e renda, que buscam a qualificação pro-fissional e a regulação do mercado de trabalho. Assim, a política social pode se tornar um elemento importante para o aumento da inovação e da produtivi-dade do trabalho, fatores decisivos para a melhoria da renda dos trabalhadores e para o crescimento econômico.

Não seria exagero dizer que a cone-xão entre gasto social, redução da pobreza e da desigualdade social foi o traço mais importante dos anos 2000, quando, pela primeira vez na história econômica do Brasil e da América do Sul, foi registrado um período de cres-cimento acompanhado de distribuição de renda. O crescimento real do salário mínimo e sua repercussão no valor das transferências de renda para famílias pobres, associadas à expansão do cré-dito para pessoas de baixa renda e para pequenas e médias empresas, criaram elevado dinamismo no mercado de tra-balho, gerando crescimento do empre-go formal. Esses mecanismos produzi-ram um resultado histórico de impacto político e econômico sem precedentes.

É imprescindível, no entanto, con-textualizar que essa mudança tornou-se viável num cenário de relaxamen-to das restrições externas no Brasil e nos países sul-americanos em função da maior liquidez internacional e da elevação do preço das commodities, o

que induziu e facilitou o crescimento econômico da região apoiado, funda-mentalmente, na expansão do consu-mo. Esse cenário de crescimento levou também a um afrouxamento das res-trições fiscais, com crescimento das receitas tributárias, especialmente daquelas vinculadas aos gastos sociais na área de previdência, saúde e assis-tência social.

Todos os aspectos acima enumera-dos já seriam por si mesmos de enorme significado se não fosse pelas debili-dades estruturais do padrão de cres-cimento da economia nacional, que se tornaram mais evidentes a partir de 2011. Tais debilidades transfor-mam em forte incerteza as chances dessas mudanças positivas do perío-do 2004-2010 se tornarem não apenas o resultado transitório de um ciclo favorável da economia mundial, mas uma mudança social definitiva. A polí-tica social enfrentará obstáculos que colocam em dúvida sua continuidade no futuro próximo, particularmente se a crise mundial se mostrar mais longa.

Os desafios não são de pouca monta. O padrão de crescimento da economia brasileira tem sido gerador de baixo dinamismo nos últimos quatro anos. Pode-se atribuir esse comportamento, em parte, à crise mundial que se ini-ciou em 2007, reduzindo nossas expor-tações de produtos primários e, sobre-tudo, de industrializados. Entretanto, há uma parte importante desse resul-tado que decorre da política interna. O governo reage com crédito às famílias, renúncias tributárias, investimentos do PAC e várias linhas de financiamen-tos nos mais diversos programas dos bancos públicos, mas parecem insufi-cientes para induzir níveis maiores de crescimento. O ajuste fiscal, duro para um período de crise mundial, continua

O gasto com a seguridade social tornou-se impulsiona-dor da demanda agregada ao ativar diretamente o consumo das famílias. A elevada magnitude desse gasto e o seu direcionamen-to na forma de renda mo-netária para uma população de idosos carentes, pensio-nistas, enfermos, acidenta-dos do trabalho, famílias de baixa renda e desemprega-dos, transforma-se, imedia-tamente, na aquisição de medicamentos, alimentos, vestuário e outros bens de primeira necessidade.

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O crescimento da produtivi-dade permitirá a elevação dos salários reais (e de benefícios sociais) sem pressões inflacionárias. Cresce, portanto, a neces-sidade de se utilizar estra-tégias emergenciais que elevem a produtividade média da economia para evitar a saída mais fácil através da paralisia da política de recuperação dos padrões salariais dos últi-mos anos.

formatando os parâmetros das políti-cas de gasto público e subordinando as estratégias de Estado que poderiam ter sido mais arrojadas. O investimento público, à altura das mãos do governo federal, continua extremamente bai-xo, não conseguindo chegar sequer a 4,5% do PIB ao ano. Com investimen-to público insuficiente, taxas de juros estratosféricas e câmbio valorizado por longo período, não há como esti-mular o investimento privado produ-tivo, mesmo com gigantescas doses de desoneração tributária.

Em função da desaceleração do investimento, a economia brasileira tem convivido com a estagnação da produtividade em setores estratégicos. A fraqueza do investimento resulta no limitado avanço da investigação cien-tífica e das inovações tecnológicas. As gigantescas carências no campo da educação assim como a urgência na superação dos reconhecidos gargalos na infraestrutura produtiva contri-buem para adicionar mais problemas aos ganhos de produtividade. A ques-tão central é que mais indivíduos só podem ser amparados pelo sistema de proteção social quanto maior for a pro-dução de cada trabalhador ativo. Isto é, a relação PIB/população ocupada deve crescer para atender às necessidades dos que ficam fora do mercado de tra-balho, temporária ou definitivamente. Isso é particularmente válido para os esquemas da previdência pública e da assistência social. Entretanto, salários e benefícios sociais têm crescido acima da produtividade média da economia brasileira. Sem dúvida, este é um resul-tado favorável aos trabalhadores, por-que acarreta melhoras na distribuição funcional da renda. Porém, a redução progressiva do abismo social entre as classes implicará enfrentar e acomodar

o latente conflito distributivo entre capital e trabalho, que se acirra com os efeitos da crise mundial. O cresci-mento da produtividade permitirá a elevação dos salários reais (e de bene-fícios sociais) sem pressões inflacioná-rias. Cresce, portanto, a necessidade de se utilizar estratégias emergenciais que elevem a produtividade média da economia para evitar a saída mais fácil através da paralisia da política de recuperação dos padrões salariais dos últimos anos.

As principais fontes do comporta-mento da produtividade agregada vêm do setor industrial, devido a sua alta capacidade de gerar inovações e de dis-seminar o transbordamento da tecno-logia por toda a economia. Entretanto, a indústria doméstica perdeu a posição de centro dinâmico e não mais recupe-rou esse posto. Tem mostrado reduzi-da diversificação, pouca capacitação para enfrentar a agressiva competição internacional, principalmente chine-sa, e mergulhou num processo gera-dor de reduzidos efeitos dinâmicos. Nos últimos três anos essa situação se tornou muito mais grave. É o setor de serviços e o agronegócio, voltado para a exportação, que têm impulsionado a economia nacional.

A perda de dinamismo econômi-co do Brasil pode ser explicada, em grande parte, pela perda da capaci-dade de liderança do setor industrial. Nos últimos vinte anos, a economia brasileira foi incorporada à economia internacional de maneira assimétri-ca e subordinada, sem participar das grandes transformações que ocorre-ram na cadeia produtiva da indústria manufatureira global. Nossa inserção se deu pela radicalização da condição de produtores de commodities. Dife-rente do que ocorreu na China e no

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restante da Ásia, onde foram usadas estratégias nacionais para incorporar suas economias nas redes de produção global, o Brasil e a América Latina per-deram espaço na expansão industrial do capitalismo. Mergulharam fundo na exportação de alguns poucos produ-tos primários que permanecem sendo o sustentáculo dessas economias.

Além disso, diferentemente dos países asiáticos, o padrão de inser-ção internacional do Brasil prioriza a acumulação financeira em detrimento do investimento produtivo. O Estado brasileiro tornou-se garantidor da con-tinuidade da acumulação financeira através da renda de juros que ele mes-mo se propõe a pagar com as maiores taxas de juros da economia mundial. E, dessa forma, os juros elevados dos títu-los públicos brasileiros e o crescimento do déficit público nominal estrangu-lam o orçamento público, pressionado por metas de superávit primário que se tornaram entraves para a expansão do investimento público e para a amplia-ção das políticas sociais.

Se a indústria não progredir, impul-sionada pelo investimento público e crescendo mais que os outros setores, elevando sua produtividade, se diver-sificando e contribuindo para a diver-sificação da pauta exportadora e para a melhoria da situação externa do país, não haverá como falar em um proces-so de desenvolvimento sustentável. Os sistemas de proteção social são produ-to do avanço do capitalismo, sobretu-do do dinamismo econômico gerado pelo setor industrial. A industrializa-ção é o mecanismo por excelência para impulsionar o desenvolvimento nas economias capitalistas menos desen-volvidas e ainda é a principal estraté-gia de avanço dos sistemas de proteção social. Não é possível avançar no cam-

po social sem buscar a superação da rigidez da estrutura produtiva.

Como consequência da queda da produção da indústria nacional, o crescimento do consumo interno e do investimento privado, impulsio-nados pela política de gastos sociais e pelo consumo do governo, tem sido atendido por importações e produzi-do a deterioração do saldo da balança comercial, o que contribui para elevar o saldo negativo em transações cor-rentes do balanço de pagamentos. Nos doze meses encerrados em setembro, as transações correntes acumularam déficit de US$ 83,6 bilhões, equiva-lente a 3,7% do PIB. A situação exter-na do país se agrava à medida que se alonga o período de queda dos preços das commodities metálicas, agrícolas e energéticas, iniciado em 2011, em fun-ção do menor crescimento da China e da União Europeia e do aumento da oferta mundial, fruto dos investimen-tos realizados no período de alta dos preços das commodities. Para complicar, o anúncio, desde 2013, de mudança na política monetária americana, ame-açando o resto do mundo com juros mais elevados, gera maior volatilidade nos mercados financeiros internacio-nais. As tentativas da política mone-tária do Brasil de compensar os dese-quilíbrios do balanço de pagamentos com atração de capital especulativo e de regular a taxa de câmbio num cená-rio de forte volatilidade dessa variável têm produzido novas rodadas de alta dos juros. Dificilmente conseguiremos produzir resultados sociais favoráveis como os obtidos no passado, diante do uso radical da política monetária con-servadora e francamente amigável ao mercado financeiro.

Por fim, e não menos importante, o governo tem feito uso de desonera-

Se a indústria não progre-dir, impulsionada pelo investimento público e crescendo mais que os outros setores, elevando sua produtividade, se diversificando e contribuin-do para a diversificação da pauta exportadora e para a melhoria da situação exter-na do país, não haverá como falar em um processo de desenvolvimento sustentável.

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ções tributárias em grande escala que prejudicam a sustentabilidade finan-ceira futura das políticas sociais. As desonerações praticadas com o uso da Contribuição para o Financiamen-to da Seguridade Social (Cofins), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do PIS/PASEP, todas elas receitas do sistema de Segurida-de Social, têm gerado perplexidade em função de sua inacreditável magnitu-de. Somente em 2013, o patamar das desonerações nessas três receitas tri-butárias foi estimado em quase R$ 64 bilhões, segundo dados da Receita Federal. Dos benefícios tributários concedidos com a substituição da tri-butação sobre a folha de pagamentos pelo faturamento das empresas, cerca de R$ 10 bilhões não foram compen-sados pela União em 2013, resultando em perdas financeiras ilegais no orça-mento da Seguridade, porque signifi-cam o não cumprimento da legislação que rege a matéria e que recomenda o ressarcimento aos cofres das políticas sociais penalizadas com a desonera-ção. Total dos recursos suprimidos da Seguridade Social com renúncias de receita efetuadas pela União: R$ 74 bilhões somente em 2013.

Desonerações tributárias são estí-mulos utilizados para favorecer o investimento privado, porque redu-zem custos e geram condições de melhor competitividade para o capi-tal nacional num ambiente de acirra-da disputa global. O governo deseja compensar as perdas de competiti-vidade impostas pelo câmbio valori-zado. Entretanto, num cenário onde predominam forças opostas, desfa-voráveis ao investimento privado, vindas da política monetária de juros altos, da política fiscal de reduzido investimento público e da baixa efici-

ência da política de ciência e tecnolo-gia, benefícios tributários funcionam como “enxugar gelo”. O agravante é que seu efeito colateral ameaça a sus-tentabilidade do sistema de prote-ção social sem trazer nenhum efeito positivo sobre o crescimento econô-mico. É o pior dos mundos. Apenas fortalece o falso discurso do déficit previdenciário e avaliza as práticas privatistas nas áreas da saúde, educa-ção e previdência. Seguramente não é uma estratégia convincente de cresci-mento com inclusão social. A retórica governista tem “pés de barro”.

Todo esse cenário remete à necessi-dade fundamental de se compreender o sistema de proteção social e as polí-ticas de alívio à pobreza e desigualda-de social considerando os limites do arcabouço material do sistema produ-tivo brasileiro, assim como a política macroeconômica extremamente con-servadora que permanece “sagrada” desde 1999, cujos efeitos foram suba-valiados pelos governos dos últimos doze anos. Não é suficiente manter o gasto social em patamares elevados como se fez até aqui. Não basta que o sistema de proteção social seja o motor do crescimento (e o fiador dos arranjos políticos), se tal crescimento não via-bilizar políticas complementares que modifiquem o rumo do investimento, da indústria nacional, do aumento da produtividade média da economia e da fragilidade externa. O avanço pro-gressivo da proteção social depende de transformações estruturais que fica-ram pendentes. Em outras palavras, exige um projeto sólido de desenvol-vimento, cuja precária existência tei-ma em ser denunciada pela política macroeconômica liberal-ortodoxa, que caminha em sentido contrário aos discursos políticos oficiais.

Não basta que o sistema de proteção social seja o motor do crescimento (e o fiador dos arranjos políti-cos), se tal crescimento não viabilizar políticas complementares que modi-fiquem o rumo do investi-mento, da indústria nacio-nal, do aumento da produtividade média da economia e da fragilidade externa.

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Mercantilização reforçada

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Os “novos modelos de gestão”, materializados através das organizações sociais ou fundações estatais de direito privado, são atuais exemplos desse processo de privatização da saúde e da educação em andamento no país

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Mudanças estratégicas da política de assistência social no Brasil

▼ ALEJANDRA PASTORINI*

* Professora da Escola

de Serviço Social da

UFRJ

O reconhecimento da assistência social, na Carta Constitucio-nal de 1988, como uma política pública de seguridade social e

não contributiva recolocou as discus-sões acerca das funções do Estado e da responsabilidade com a proteção social dos segmentos trabalhadores histori-camente excluídos do âmbito proteti-vo público. Esse debate foi tensionado pelas lutas dos movimentos sociais, ca-tegorias profissionais, organizações dos trabalhadores, entidades e instituições que se vinculavam de variadas formas com as ações assistenciais.

Assim, tardiamente foi sendo deli-neada mais uma política setorial, neste caso integrante do tripé da seguridade social conjuntamente com a previdên-cia e saúde.1 Entretanto, o processo de reconhecimento da assistência social como um direito e responsabilidade do Estado não veio acompanhado de

ARTIGO

uma estatização das ações, optando o legislador por consolidar uma política social baseada na combinação de ações de iniciativa pública e da sociedade, criando brechas para a permanência e protagonismo das entidades assisten-ciais e beneficentes que, desde o século anterior, atuavam nessa área.

Na busca por diferenciar as tradicio-nais formas de ajuda (caridade, filan-tropia) da assistência como direito, vai sendo reforçada a ideia, tanto no âmbi-to do Estado quanto na academia, que a assistência social diz respeito a uma área específica da atuação do Estado no social (definindo-a assim como uma política setorial de proteção social); dessa forma, passa a ser entendida como uma política com particularidades que se diferencia da dimensão assistencial das diversas políticas sociais: educação (assistência estudantil), previdência (renda mensal vitalícia), entre outras.

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Assim sendo, a política de assistência social constitui, na virada dos anos 1980 para os 1990, uma importante estratégia concreta para incluir, no âmbito da pro-teção social do Estado, uma parte dos trabalhadores sem acesso aos benefícios e programas previdenciários. Ao mesmo tempo, o reconhecimento da assistência como política social setorial foi central para depurar a previdência social (do ponto de vista institucional e da gestão orçamentária), deslocando o conjunto de ações, programas e benefícios não contributivos para além dos recintos da previdência.

De tal modo, foi sendo consolidada, no Brasil, uma política social perpassa-da por concepções de assistência con-trapostas que expressavam interesses antagônicos; a definição constitucio-

nal da assistência social – reafirma-da pela Lei Orgânica da Assistência Social de 1993 – como política pública de seguridade social, não contributiva, destinada a todos os que dela necessi-tam,2 viu-se polarizada por uma com-preensão de assistência minimalista e restrita, que visava ao atendimento das necessidades mínimas dos não contri-buintes através de ações de enfrenta-mento da pobreza e da garantia da segurança social às populações mais fragilizadas e vulnerabilizadas.

Ao longo da década de 1990, ensaiam-se os primeiros programas, benefícios e ações dando forma concreta à política de assistência social, assumindo lugar de destaque o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e demais programas de transferência de renda de abrangên-

Foi sendo consolidada, no Brasil, uma política social perpassada por concepções de assistência contrapostas que expressavam interesses antagônicos

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cia e cobertura restritas sob a respon-sabilidade de governos municipais, que tinham como alvo prioritário crianças e adolescentes pauperizados, idosos e pessoas com deficiência.

A centralidade que adotam os pro-gramas de transferência de renda no conjunto da atuação do Estado nesta área é um traço marcante a partir do primeiro governo de Fernando Henri-que Cardoso, momento em que tam-bém começa a ser construída uma

estrutura assistencial paralela – tendo como pilar o Programa Comunidade Solidária – que disputava os recursos públicos com a política de assistência social e reforçava as entidades sociais integrantes do denominado “terceiro setor” (subsidiadas jurídica e financei-ramente pelo Estado).

Essas características acima men-cionadas não são uma particulari-dade única do Brasil, pelo contrário, apresentam-se como tendência em grande parte dos países do continente latino-americano3 que, na década de 1990, encontravam-se sob governos com uma clara adesão ao ideário neo-liberal e sofrendo as consequências dos denominados “pacotes de ajuste estrutural” (contendo a reforma fis-cal, programas de privatização, pla-nos de estabilização monetária, refor-ma do Estado e da seguridade social, da educação, entre outros).

Contudo, a marca da assistência social brasileira, expressa na forte presença das entidades sociais priva-das como responsáveis pela execução das ações, é interpelada oficialmente a partir da aprovação da última Polí-tica Nacional de Assistência Social (PNAS) em 2004, que pretende avan-çar na direção da consolidação de um sistema único de assistência social (SUAS), através da criação e reforço de uma rede socioassistencial que tenha como pivô os equipamentos públicos (principalmente os centros de referên-cia de assistência social).

Essas propostas de mudanças na política de assistência, aprovadas no primeiro governo nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), por um lado, acontecem num contexto societário adverso para a ampliação da garantia dos direitos sociais, assim como para o alargamento da função protetiva

A marca da assistência social brasileira, expressa na forte presença das entidades sociais privadas como responsáveis pela execução das ações, é interpelada oficialmente a partir da aprovação da última Política Nacional de Assistência Social

A CENTRALIDADE que adotam os programas de

transferência de renda no conjunto da atuação do Estado nesta área é um

traço marcante a partir do primeiro governo de Fernando Henrique

Cardoso

ALESSANDRO COSTA/O DIA

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do Estado; por outro lado, no âmbito nacional essas mudanças produzidas na política de assistência social não se articulam com transformações estru-turais efetivas. É assim que, nos fatos concretos, essas propostas conduzem a uma reformulação aparente da assis-tência social (no espaço da organização e instrumentos de gestão) sem produzir transformações essenciais na sua lógi-ca e fundamentos que pudessem contri-buir para consolidar um projeto demo-crático, participativo, redistributivo e universalizante de seguridade social tal como previsto na Carta Magna.

É importante mencionar que na pas-sagem do século XX para o XXI pre-senciamos uma inflexão no atendi-mento das manifestações da questão social nas sociedades dependentes localizadas na periferia do capitalis-mo, mudanças que se relacionam com as novas demandas colocadas para o Estado como parte das requisições do processo de acumulação e valorização do capital.4 Nesse contexto, o capital exige novas formas de controlar o tra-balho, de contribuir com a explora-ção intensiva (onde a reestruturação produtiva cumpre um papel central) e administrar a superpopulação relativa.

Essas mudanças e “reformas” contri-buem com a cronificação do desempre-go, com a perda do poder de compra do salário e a deterioração da qualidade de vida dos trabalhadores, com a flexi-bilização das contratações e dos direi-tos trabalhistas, entre outros. Também é perceptível uma redução da garantia dos direitos sociais em decorrência dos processos de privatização dos serviços públicos em áreas como saúde, educa-ção e previdência.

Todas essas transformações apro-fundam o traço dual da proteção social no Brasil,5 contribuindo ao mesmo

tempo com o processo de desproteção de uma parte dos trabalhadores outro-ra protegidos que não conseguem comprar no mercado os bens e servi-ços sociais necessários para atender a suas necessidades básicas, nem acessar os programas assistenciais focalizados na pobreza extrema.

Assim vai sendo processada uma importante transformação no aten-dimento das necessidades sociais no Brasil, aumentando a distância com a proteção social definida nos preceitos constitucionais.

As políticas sociais sofrem os reba-timentos da reorganização do capital (sob a hegemonia do capital financei-ro 6 ) para enfrentar a crise, incentivan-do a ampliação da participação do setor privado no provimento das necessida-des sociais, reforçando o processo de

As políticas sociais sofrem os rebatimentos da reorganiza-ção do capital (sob a hegemo-nia do capital financeiro) para enfrentar a crise

É PERCEPTÍVEL uma redução da garantia dos direitos sociais em decorrência dos processos de privatização dos serviços públicos

em áreas como saúde, educação e previdência

SEVERINO SILVA / O DIA

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mercantilização dos serviços sociais. Os denominados “novos modelos de ges-tão” materializados através das organi-zações sociais, das fundações estatais de direito privado, das empresas brasilei-ras de serviços hospitalares (EBSERH), entre outras, são atuais exemplos des-se processo de privatização da saúde e da educação em andamento no país. Fazem parte dessa estratégia o Progra-ma Universidade para Todos (Prouni), que incentiva e facilita o acesso às ins-tituições privadas de ensino superior a estudantes brasileiros “carentes”, e o Programa de Reestruturação e Expan-são das Universidades Federais (REU-NI), com seus restritos programas de assistência estudantil,7 que limitam a permanência do aluno na universidade e a conclusão dos cursos.

Em contrapartida, para atender às necessidades dos setores mais pau-perizados, buscam ser estruturadas redes mínimas de proteção social na área de saúde (ações curativas), educa-ção (ensino fundamental) e assistência (programas de transferência de renda), que se articulam de forma cada vez mais íntima com as ações e estratégias de controle e administração dos denomi-nados territórios de risco (como as fave-las), conformando assim um amálgama conservador que contribui com os pro-cessos de criminalização da pobreza.8

Todas essas transformações impli-cam em uma reconfiguração da relação entre o público e privado que tem por base a contrarreforma do Estado brasi-leiro que define novas formas de regu-lação e intervenção do poder público. No atual contexto em que, por um lado, se evidencia a intensificação e aguça-mento das desigualdades sociais, por outro, percebem-se mudanças signifi-cativas na intervenção do Estado para atender as manifestações da questão

social centrada, cada vez mais, no con-junto de programas sociais e políticas públicas assentadas na íntima relação entre as ações assistenciais e as coerci-tivas. Esses traços predominantes nas intervenções do Estado evidenciam o reforço de uma ideia criminalizadora da pobreza e das organizações sociais e políticas que questionam e lutam con-tra estas estratégias.

Também, pelo suposto perigo e inse-gurança que estes grupos produziriam à sociedade – leia-se aqueles que moram fora desses territórios e que os perce-bem como uma ameaça a seus negócios,

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PRÁTICAS punitivas e repressivas assumem uma intensidade muito forte no atual contexto democrático

SAMUEL TOSTA

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patrimônio e interesses –, desenvol-vem-se ações e políticas públicas que consolidam as estratégias de controle e ocupação dos territórios definidos como “de risco”, assim como práticas e ações repressivas, violentas e arbitrárias.

Importa destacar que a “cultura do medo” (fabricada pelos meios de comu-nicação e redes de aparelhos privados) e o conjunto de valores e ideias a esta associada servem como justificativa para intensificar as ações e práticas de “segurança pública”, como, por exemplo, as estratégias de militarização nas cida-des e a guerra contra o terrorismo. Estas

Notas

Referências Bibliográficas

BADARÓ M. e COSTA MATTOS R. Fabricando o consenso e sustentando a coerção: Estado e favelas no Rio de Janeiro contemporâneo. História & Lutas de Classes – Revista On-line. Ano 7, n.11, maio de 2011. Disponível em: http://www.projetoham.com.br.

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MOTA A.E. et al. O novo desenvolvimentismo e as po-líticas sociais na América Latina. In. MOTA, A.E. (org.) As ideologias da contrarreforma e o Serviço Social. Re-cife: Editora Universitária UFPE, 2010.

1 A Constituição Federal de 1988 define no artigo 194 que a seguridade social no Brasil compreende um conjunto integrado de ações destinado a asse-gurar os direitos relativos à saúde, previdência e as-sistência social; também estabelece, no artigo 195, a forma como a seguridade social deve ser financiada por toda a sociedade. Por sua vez, os artigos 203 e 204 serão dedicados de forma exclusiva à assistên-cia social (definição, objetivos, organização e dire-trizes).

2 A Carta Magna e a LOAS, buscando definir os destinatários da assistência social, expressam que esta política social não contributiva tem por obje-tivo: a proteção e amparo às crianças, adolescentes, idosos, maternidade etc.; a habilitação, reabilitação e integração da pessoa com deficiência; a promoção da integração ao mercado de trabalho dos benefici-ários, para além da garantia de um salário mínimo para pessoas com deficiência e idosos (BPC).

3 Mota et al. (2010) indicam que os primeiros pro-gramas de transferência de renda na América Lati-na datam de final dos anos 1980, programas que se alargaram ao longo dos 90; entretanto, foi a partir

ações na área de segurança pública são fundamentais para alimentar a indús-tria bélica, as empresas de seguros e de vigilância privadas, que se transformam em espaços essenciais para o processo de acumulação e valorização do capi-tal, seja como nicho de investimento do excedente do capital, seja como estra-tégia fundamental de controle e admi-nistração da superpopulação relativa. Todas estas transformações vão dando lugar a um novo desenho da interven-ção do Estado, que reforça seu caráter coercitivo.

Tal como mencionamos acima, essas

dos anos 2000 que essas experiências se ampliaram de forma significativa na região.

4 Vale lembrar que nesse momento presenciamos uma mudança em termos políticos em vários países da região latino-americana, que se expressa no fato de alguns candidatos que representavam partidos ou coalizões à “esquerda” no cenário político assu-mirem os governos nacionais pela via eleitoral, dan-do lugar aos denominados “governos progressistas”.

5 A proteção social brasileira, desde a década de 1930, possui como característica a dualidade da atenção: uma parte da população acessa no mercado o conjunto de bens e serviços para satisfazer suas necessidades e outra conta com a proteção do Esta-do (principalmente os trabalhadores com vínculos formais de emprego).

6 Iamamoto (2007, p.107), quando se refere à finan-ceirização do capital, indica que “a efetiva mundia-lização da ‘sociedade global’ é acionada pelos gran-des grupos industriais transnacionais articulados ao mundo das finanças. Este tem como suporte as instituições financeiras, que passam a operar com o capital que rende juros (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão, fundos mútuos e socie-dades financeiras de investimento), apoiadas na dí-vida pública e no mercado acionário das empresas”.

7 Com a aprovação do Decreto n° 6.096, de 24 abril de 2007, que institui o REUNI, se produz um espraiamento das Universidades Federais no país, ampliando o acesso na educação superior; entretan-to, essa ampliação não veio acompanhada da criação de condições que permitam a permanência e con-clusão dos cursos com qualidade. Um dos fatores que limita esse processo é a falta de uma Política de Assistência Estudantil sintonizada com as reais ne-cessidades dos estudantes das IFES, entre as quais destacamos: moradia, alimentação, transporte, cre-ches, acesso a saúde, bolsas (auxílio e pesquisa).

8 Como indicam Badaró e Costa Mattos (2011), esse processo, que se apoia na violência seletiva do Estado, contribui com a dominação de classe e se combina com a estratégia de construção de consen-sos através do aparato articulado na sociedade civil pela classe dominante.

mudanças não constituem uma comple-ta novidade nas sociedades latino-ame-ricanas, porém essas práticas punitivas e repressivas assumem uma intensidade muito forte no atual contexto democrá-tico, mesmo nos países, como o Brasil, que se encontram governados, desde o início do século XXI, pelos chamados “governos progressistas”. Essas ações passam a ser importantes estratégias para que os governos obtenham legiti-mação, garantia da governança e contro-le das expressões de descontentamento, organização e luta da sociedade em geral e da classe trabalhadora em particular.

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A “Ebserh” que ameaça o magistério federal

ARTIGO

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A “Ebserh” que ameaça o magistério federal Depois da privatização encaminhada em al-

guns HUs, via Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, agora existe uma proposta da Capes para contratar professores federais por meio de organizações sociais

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ARTIGO

QUANDO O PASSADO SE TRAVESTE DE FUTURO:

Organizações sociais na administração pública brasileira

▼ MARIA DE FÁTIMA SILIANSKY DE ANDREAZZI*

* Professora da

Faculdade de

Medicina e do IESC

da UFRJ

Como forma de atrair estrangeiros e jovens pesquisadores para institui-ções de ensino superior, o governo federal estuda a contratação deles

por meio de organizações sociais (OS). A proposta tem o aval do Ministério da Edu-cação e foi apresentada hoje (22) pelo presi-dente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Almeida Guimarães, no simpósio interna-cional Excelência no Ensino Superior.... No modelo proposto pela Capes, os professores e pesquisadores seriam contratados de forma autônoma pelas instituições de ensino, e não passariam mais por concursos públicos, como

é feito atualmente. Seriam regidos ainda pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). (Vieira, 2014)

Com esta notícia, datada de final de setembro deste ano, a comunida-de acadêmica se surpreendeu. Para o presidente da Capes, o problema a ser resolvido com as Organizações Sociais/OSs são os concursos públicos para professores universitários, que são marcados pelo corporativismo, o que dificulta a contratação dos melho-res quadros (Vieira, 2014). As razões pelas quais o presidente da Capes vis-lumbrou vantagens na contratação

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

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BRESSER-PEREIRA (à esq.) iniciou a contrarreforma do Estado no governo FHC. Jorge Guimarães, da Capes, quer levar o modelo para as universidades federais

desses professores não seriam, entre-tanto, totalmente as mesmas que são alegadas por aqueles que têm expan-dido as OSs administrando programas e serviços públicos de saúde.

Três são os principais motivos ale-gados pelos defensores de OSs na saú-de. O primeiro são os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Comple-mentar n° 101, de 4/5/2001), ou seja, um teto de 56% da receita corrente líquida com despesas de pessoal, que caberia mais a estados e municípios. O segun-do seria a dificuldade de administrar recursos humanos que possuem esta-

bilidade com eficiência. E, por fim, os supostos entraves burocráticos da Lei n° 8.666/1993, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, referentes à falta de agilidade nos processos licitatórios para a aqui-sição de equipamentos e insumos de necessidade urgente (Nogueira, 2010).

Esse artigo tem como objetivo apre-sentar um quadro da evolução das OSs na saúde no Brasil e, com base nessa experiência, que vem da aprovação da Lei das OSs em 1998 (Lei n° 9.637) como consequência direta da contrar-reforma do Estado de Bresser Pereira,

VALTER CAMPANATO/ABRFABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

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iniciada em 1995, extrair elementos que permitam analisar a proposta de sua extensão ao ensino superior. Especificamente abordar a questão apresentada pelo presidente da Capes sobre políticas de pessoal.

É importante, além disso, assinalar que não tem sido consensual a acei-tação pelo Judiciário das OSs, encon-trando-se no Supremo Tribunal Fede-ral uma ação ajuizada arguindo a cons-titucionalidade da Lei (Adin 1.923/98). Há resistências da sociedade civil e dos trabalhadores do setor saúde à sua implementação, em que se desta-ca a Frente Nacional contra a Privati-zação da Saúde. Frente que divulgou um documento com uma série de fatos reveladores de um modus operandi ilegí-timo e ilegal (Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, 2012).

As Organizações Sociais e a SaúdeO que são Organizações Sociais?

São pessoas jurídicas de direito pri-vado sem fins lucrativos, do tipo associativo ou fundacional, que são qualificadas pelo Poder Público como tais de acordo com determinados requisitos. A relação entre o Poder Público e as OSs se dá através de um contrato de gestão, que é um instru-mento firmado entre o Poder Públi-co e a entidade qualificada como OS com vistas à formação de uma par-ceria entre as partes para fomento e execução de atividades. O contrato de gestão deve conter especificação do programa de trabalho propos-to pela OS, estipulação das metas a serem atingidas e respectivos pra-zos de execução, bem como previ-são expressa dos critérios objetivos

de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade.

A Lei n° 8.666/93 foi alterada em 1998 no artigo que se refere à dispen-sa de licitação, facilitando a contrata-ção de OSs na administração pública.

Ressalta-se, ainda, que esse modelo de gestão não contempla os controles próprios do regular funcionamento da Administração Pública e não pre-vê o Controle Social, o que na saúde é um direito regulamentado por Lei.

A saúde foi uma das áreas entre aquelas especificadas na Lei n° 9.637/1998, a saber, ensino, pesqui-sa científica, desenvolvimento tec-nológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, onde mais se avançou. De acordo com Sano e Abrucio (2008), em 2007, de seten-

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ta OSs criadas no país, a saúde era o maior setor contemplado, com 25 organizações, sendo que 17 em São Paulo, uma no Espírito Santo, três na Bahia, três no Pará e uma em Goiás. Para Andreazzi e Bravo (2014), esse processo tem se acelerado nos últi-mos anos, com surgimento de orga-nizações sociais em Santa Catarina, novas OSs no Pará e, recentemente, em Mato Grosso, Rio Grande do Nor-te, Goiás e Distrito Federal e, a par-tir de 2009, no município do Rio de Janeiro e, de 2011, no estado do Rio de Janeiro.

O documento da Frente (2012) será a principal fonte de dados empíricos que servirão para questionar a pro-blemática visão do presidente da Capes sobre os “virtuosos” mecanis-mos de contratação de pessoal atra-

vés das OSs. Tal fonte será acrescida de dados de processos abertos por Ministérios Públicos para investigar as OSs.Corporativismo e a “modernização da Administração Pública com as OSs

A questão dos recursos humanos tem sido um dos principais gargalos na atuação das OSs na saúde.

Quanto à contratação, destaca-se a discricionaridade do Poder Público: não há um mecanismo de seleção que garanta o mérito na admissão de pes-soal. Processo aberto pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte mos-tra uma íntima relação entre os diri-gentes de OSs e os políticos no bloco do poder no município de Natal, em que estes utilizam os contratos de ges-tão para indicação de correligionários

para os serviços públicos (Ministério Público do RN, 2012).

O processo de trabalho nas OSs é autoritário e desrespeitoso com os trabalhadores que não possuem a estabilidade. Não há garantia de iso-nomia salarial de acordo com nível de escolaridade, cargos assemelhados e complexidade da função. As metas são desenhadas de modo a garantir a produtividade, a avaliação de quali-dade é precária. Para garantir o flu-xo regular de recursos, os gerentes dão um ritmo ao trabalho que reper-cute de forma negativa sobre o usu-ário. Em São Paulo, de acordo com o documento da Frente (2012, p. 16-17): os trabalhadores da saúde relatam instabi-lidade e assédio moral: “[...] Acho que sumiu a qualidade”, avalia uma enfermeira que já passou por diversas OSs na cidade de São

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ARTIGOARTIGOARTIGOARTIGO

A introdução das OSs na Universidade para comba-ter um pretenso corporati-vismo, quase relações de compadrio na contratação de docentes, será um retorno aos velhos feudos, pois quem controlar a OS controlará a contratação dos docentes segundo critérios que não serão impessoais nem meritocráticos.

Paulo e prefere não se identificar. “Você tem que atingir a meta, além de fazer o trabalho administrativo e ainda fazer os projetos que a OS quer para ter mais visibilidade, como de reciclagem. Tudo isso em um tempo recorde e muito centrado em patologia. Por exemplo, a população num local pode ter o maior risco para sua saúde por uso de drogas e isso não vai importar, as metas são focadas em hiper-tensão, diabetes, gestantes, crianças e ido-sos. E se você questiona, pode ser demitido, tenho vários amigos que perderam o empre-go... A gestão por cumprimento de metas, por processos e por produtividade utilizados nas Organizações Sociais gera uma situa-ção de instabilidade para os trabalhado-res por elas contratados, ocasionando uma superexploração”.

No município do Rio de Janeiro, já se constatou uma grande rotatividade de trabalhadores de OS, especialmente de médicos, que se tornou um recurso não disponível em muitos casos, a despeito do salário muito mais elevado do que o mesmo cargo na administração direta (Mattos, 2012). Essa alta rotatividade de pessoal também foi constatada em São Paulo (São Paulo, ALESP, 2008).

Defende-se que a administra-ção pública através da terceirização para Organizações, longe de ser uma modernidade, como os apoiadores da Nova Administração Pública Geren-cial preconizam, como combate ao patrimonialismo como apropriação do estado por interesses particulares (Paim e Teixeira, 2007), é um retorno ao passado.

De fato, um dos traços marcantes do Estado brasileiro, que remonta à pró-pria colonização, é o patrimonialismo. Para Faoro (1958), ele reflete uma rela-ção entre o Estado centralizador e as possibilidades concretas de coloniza-ção, descentralizadas. Nela, se estabe-lece e cristaliza uma simbiose caracte-

rizada pelo pinçamento das riquezas produzidas pelo país por parte de uma camada dirigente do aparelho do Esta-do, em troca do tráfico de influências necessárias para desembargar proce-dimentos necessários ao andamento dos negócios dos correspondentes locais do poder (coronelismo), fato que nem o Império nem a República Velha reverteram no seu conteúdo. A modernização impulsionada pela industrialização não foi contrária às tradicionais relações de produção, mantendo elementos da superestru-tura jurídica e política (Sodré, 1962), em particular essas características do Estado, mesmo tendo-se criado, no governo federal especialmente, novos modos de administrá-lo que incorpo-raram princípios racionalizadores, que privilegiavam o mérito e a impessoa-lidade. Ilha racionalizadora no meio de administrações estaduais e muni-cipais onde persistiam o clientelismo e o coronelismo, agora transmutado em mandonismo local, associado à grande propriedade da terra.

A Constituição de 1988 intentou universalizar os princípios racionali-zadores da administração burocráti-ca no aparelho de Estado. O ingresso e promoção por mérito, a autonomia técnica e a estabilidade permitiram um novo estatuto do funcionário públi-co, agora servidor de Estado e não de governo. Democratização, enfim, do Estado, introduzindo o princípio da participação da sociedade na defini-ção das políticas públicas.

Democratização, entretanto, que esbarra num capitalismo limitado, engendrado pelo imperialismo, a par-tir da sua necessidade de exportação de capitais e que mantém relações de produção não totalmente libertas de amarras extraeconômicas que se

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Referências Ribliográficas

refletem na hegemonia dessas classes no aparelho de Estado. Esta questão não seria apenas brasileira, mas per-sistente em países de formação econô-mico-social semicolonial (Mariátegui {1929} 2008).

A contrarreforma do Estado se apoia em vários argumentos, como o des-compromisso com resultados, o que a introdução de princípios de mercado viria combater. A nova administração gerencial permitiu mais discriciona-ridade e menos controles para o diri-gente do Estado. Ao contrário de mais mercado liberal, mais competição, o que se vê é o retorno, via Organizações Sociais, das velhas práticas clientelis-tas que a Constituição de 1988 tentou abolir. Os resultados que temos visto até então com as OSs na saúde confir-mam a utilização da OS como forma de manter currais eleitorais.

De acordo com de Baptista (2010, p. 8495):...no Brasil, a lógica da Administração gerencial tem efetivado sutilmente o resgate de importantes traços sociais que outrora

influenciaram a sociedade brasileira, como o patrimonialismo e o coronelismo. Hoje, é fla-grante que a iniciativa privada dita os rumos a serem cumpridos pelo administrador públi-co, numa total apoderação do espaço público em prol dos interesses meramente privados de um setor da economia. Quer-se demonstrar que o atual contexto do Estado gerencial está intimamente interligado com os intentos típicos de uma sociedade pós-moderna que se propõe a realizar os interesses de grupos eco-nômicos hegemônicos.

Diante desse cenário, será evidenciada a existência de verdadeiro “neopatrimonialis-mo” e “neocoronelismo”, através da utiliza-ção de práticas sutis de controle e domina-ção do espaço público, voltando-o não para a defesa dos interesses públicos, mas tão somente de interesses privados. É o privado apoderando-se do meio público, num processo reconhecidamente de “neopatrimonialismo”.

A introdução das OSs na Univer-sidade para combater um pretenso corporativismo, quase relações de compadrio na contratação de docen-tes, será um retorno aos velhos feudos, pois quem controlar a OS controlará a

contratação dos docentes segundo cri-térios que não serão impessoais nem meritocráticos. A OS, sendo uma ins-tituição privada, não obedece a princí-pios democráticos, pois responde aos interesses de grupo de quem a ins-tituiu. O docente não terá sua auto-nomia de ensino e pesquisa preser-vada, pois, com vínculos de trabalho desprotegidos, obedecerá a orienta-ções dos controladores das OSs. Na lógica produtivista que impera nos contratos de gestão, a educação será entendida como uma mercadoria que é comercializada com o fim específico de gerar lucros, o que é agravado pela possibilidade de a OS prestar serviços ao mercado. Mesmo sendo esta a ten-dência atual dentro da Universidade, a estabilidade cria possibilidades de resistência que não existirão nas OSs. As demandas do mercado de trabalho capitalista acabam comprometendo a própria formação dos alunos, que pos-sa estar afinada com as necessidades da população e a autonomia universi-tária enquanto um todo.

ANDREAZZI, Maria de Fátima Siliansky de; BRAVO, Maria Inês Souza. Privatização da Gestão e organi-zações sociais na atenção à saúde. Trabalho, Educação, Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n 3, p. 499-512, 2014.

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ARTIGO

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Notícias e editoriais como esse, mais recente, do jornal O Globo, divulgam uma falsa ideia da seguridade social do Brasil. Na verdade, o sistema acumula volumosos saldos positivos. E o governo ainda desvia parte de seus recursos para outros gastos

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▼ MARIA LUCIA TEIXEIRA WERNECK VIANNA*

* Professora aposen-

tada da UFRJ. Cola-

boradora do Progra-

ma de Pós-Graduação

em Políticas Públicas

e Desenvolvimento do

IE/UFRJ

Os arautos do catastrofismo, sempre a serviço de conhe-cidos (ainda pouco, talvez) interesses privados, têm na

Previdência Social um de seus alvos prediletos. “Rombo da Previdência” é a frase que, vai e volta, retoma pro-tagonismo no noticiário, anunciando uma suposta situação alarmante que requereria a reforma, vale dizer, uma reforma ao gosto do mercado, esta mí-tica entidade que paira acima de tudo e de todos. Rombo é um termo carregado de simbolismo negativo. Sugere que al-guém arrombou o cofre, dando sumiço aos recursos que ali se encontravam. E os recursos que ali se encontravam eram da Previdência. Logo da Previ-dência, instituição destinada a garan-tir a renda daqueles que por anos a fio a ela confiaram (compulsoriamente, na grande maioria dos casos) seu parco di-nheirinho. Nada mais assustador. Men-tes e corações desavisados, temendo a ameaça, passam a avalizar o discurso da reforma. Mas, se o uso do termo rom-bo faz parte do marketing reformador, o que a ele segue, previdência, dedica-se propositalmente a manter mentes

ARTIGO

PREVIDÊNCIA SOCIAL: A viável provedora de direitos de cidadania

e corações no desaviso, na ignorância do que constitui, por lei e por direito, a Previdência Social.

A referência à Previdência, solta no espaço, mais confunde do que escla-rece. Do que se trata? Da previdência dos trabalhadores em geral – o cha-mado Regime Geral da Previdência Social (RGPS) –, apenas, ou também da previdência dos servidores públi-cos federais, do regime dos militares,

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ou dos regimes próprios dos servidores estaduais e municipais? A referência à Previdência, na citada expressão, omite a distinção fundamental estabelecida pela Constituição entre esses regimes. Não custa registrá-la.

O Regime Geral da Previdência Social (RGPS), nomenclatura adota-da pela Emenda Constitucional 20, em 1998, é a Previdência Social pro-priamente dita que, na Constituição Federal de 1988, integra, junto com a Saúde e a Assistência Social, o Sistema de Seguridade Social (Título VIII, capí-tulo II, artigo 194, não derrogado até agora por nenhuma emenda constitu-cional). A Seguridade Social – “um con-junto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos rela-tivos à Saúde, à Previdência e à Assis-tência Social” (art. 194) – funda-se em

princípios igualmente explicitados na Carta, entre os quais a “universalidade da cobertura e do atendimento”. Assim como o Sistema de Saúde, o SUS, é uni-versal, ou seja, todos os cidadãos têm direito ao atendimento médico e hos-pitalar quando dele precisam, também a Previdência Social provê benefícios a todos aqueles que nela se inscrevem. As várias categorias de inscrição na Previdência Social configuram a uni-versalidade do acesso. Qualquer cida-dão pode se filiar à Previdência Social.

Diversos são os regimes próprios dos servidores civis – os RPPS, na nomen-clatura adotada com a reforma de 1998 – da União, dos estados e dos municí-pios. Os benefícios previdenciários dos servidores federais estão previstos no capítulo VII do Título III da Constitui-ção Federal (Da Administração Públi-ca), seção II (Dos Servidores Públicos

AS VÁRIAS categorias de inscrição na Previdência Social configuram a universalidade do acesso

FABIO GONÇALVES / O DIA

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ARTIGOARTIGO

Civis), art. 40. Estados e municípios, como entes da Federação, têm com-petência para instituir esquemas para seus servidores. Quanto aos militares, as especificidades são evidentes, como se verá adiante. Por enquanto, bas-ta constatar a diferença crucial entre esses regimes e o RGPS: eles, os RPPS, não são universais; o acesso a eles não está aberto a qualquer cidadão; são “próprios” (e nesse aspecto a nomen-clatura se justifica) de categorias par-ticulares de cidadãos dos quais a lei exige requisitos especiais, como por exemplo concurso público, para que existam como servidores públicos.

A Constituição Federal de 1988, ao designar o Sistema de Seguridade Social como assegurador dos direitos sociais da cidadania brasileira, estabe-leceu as fontes para seu financiamento. Inovando em relação à situação vigente anteriormente, em que um conjunto já ampliado de benefícios era financiado apenas com contribuições compulsó-rias de empregados e empregadores, a Lei Maior diversificou as receitas vin-culadas à Seguridade Social. Contribui-ções sobre o faturamento das empresas (COFINS), contribuições sobre o lucro líquido da pessoa jurídica (CSLL), par-te das receitas de concursos de prog-nósticos e, naturalmente, recursos do Tesouro, foram as principais receitas adicionadas às que decorrem das con-tribuições de empregadores e emprega-dos. Com relação a estas, cabe mencio-nar que, incidindo sobre o salário dos trabalhadores que têm carteira assina-da, variam de 8% a 11% do salário decla-rado até o teto de 10 salários de referên-cia, atualmente R$ 4.390,24. Há esque-mas contributivos diferenciados para trabalhadores domésticos, autônomos, contribuintes individuais e segurados especiais (pequenos produtores rurais

que exercem atividades em regime de economia familiar).

Mais uma vez, impõe-se a distinção entre o RGPS e os RPPS, distinção que as reformas de 1998 e 2003 (que resul-taram nas emendas constitucionais 20 e 41) obliteraram ao colocá-los no mesmo patamar, como partes da Previ-dência Social Brasileira. Os servidores civis da União contribuem com 11% de seus rendimentos integrais, uma cota bem diferente da que é requerida dos segurados do RGPS. Não há teto para a contribuição e o limite do valor da apo-sentadoria é o teto fixado por lei para os recebimentos de todo o funciona-lismo público. Mas as emendas ainda aumentaram a confusão ao reunir sob a mesma sigla os regimes dos servi-dores federais civis e dos militares. O equívoco parece intencional, porque os militares não são considerados servi-

dores desde a Emenda Constitucional 18, de 1998. Ademais, o regime dos ser-vidores civis é um regime contributivo, enquanto o dos militares é não contri-butivo. Os militares não contribuem para um regime de aposentadorias, pois não se aposentam; passam para a reserva. Contribuem apenas para seus sistemas de saúde, que são “próprios” de cada uma das três forças, e para as pensões de viúvas e dependentes.

Um parêntese que ajuda a perceber a manipulação dos números merece ser introduzido. Segundo estudos da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, que através da Fundação ANFIP publi-ca regularmente a Análise da Seguridade Social (a última, de 2013, encontra-se no portal da ANFIP), todas as publicações do MPOG e da Fazenda sobre execu-ção orçamentária (divulgadas para o

NÚMEROS DA SEGURIDADE SOCIAL (R$)

em 2010

DESPESAS RECEITAS

404.266 bi 458.094 bi

Fonte: Anfip - Análise da Seguridade Social em 2013

60 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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público externo) apresentam as contas misturadas. Em certos casos chegam a desconsiderar a contribuição patronal (no caso dos servidores civis), que é uma imposição legal em todo regime previdenciário. A intencionalidade se evidencia na medida em que os relató-rios que acompanham a proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (para uso interno), pesquisados pela equipe da ANFIP, apresentam avaliações atu-ariais distintas do Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores Civis e do Regime Próprio dos Servidores Militares da União, como, aliás, deter-mina a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Em 2013 – as informações estão na excelente publicação acima citada –, o RPPS pagou R$ 54,5 bilhões em bene-fícios aos servidores federais aposen-tados e pensionistas, o que represen-tou 1,13% do PIB. As receitas somaram

R$ 25,2 bilhões, incluída a contribui-ção patronal (que a publicação entende como o dobro da contribuição dos ati-vos, como manda a lei). Contudo, entre 2005 e 2013 a necessidade de cobertu-ra, ou seja, o déficit a ser coberto variou de 0,65% a 0,61% do PIB, o que, como sublinha o estudo da ANFIP, não cor-robora o argumento, alardeado pelos catastrofistas, de que os gastos com aposentados do serviço público cres-cem vertiginosamente.

Desde 1998, a legislação vem restrin-gindo direitos e expandindo exigências para a aposentadoria dos servidores, o que não aconteceu, nessas proporções, com o RGPS. Para os servidores que ingressaram no setor público depois de 1998, há determinação de tempos míni-mos de exercício no serviço público, na carreira e no cargo, além da idade míni-ma. Foi regulamentada a aposentadoria

complementar e instituída a contribui-ção de inativos e pensionistas, na mes-ma porcentagem da contribuição dos ativos. Um servidor contratado poste-riormente a 2004 não tem direito nem à integralidade nem à paridade. Seu benefício passou a ser calculado pela média contributiva e corrigido pelos índices aplicáveis ao RGPS. Tudo a título de reduzir um déficit que não tende a aumentar.

Pois o efetivo problema do regime de aposentadorias dos servidores civis reside nas mudanças ocorridas na estrutura do Estado, o que é escamo-teado no discurso do rombo. Alguns órgãos federais apresentam forte des-proporção entre ativos e inativos como decorrência de privatizações, terceiri-zação e descentralização. Conforme demonstra outro estudo da ANFIP – Análise da Seguridade Social em 2010 –, havia nesse ano de 2010, no Ministé-rio das Comunicações, por exemplo, pouco mais de 2 mil servidores ativos e 31 mil inativos, porque entre estes estavam os servidores dos Correios aposentados antes da transformação do órgão em empresa pública. Tra-ta-se, portanto, de um estoque que a médio prazo tende a se reduzir. Hoje os trabalhadores da ECT são filiados ao RGPS, da mesma forma que cente-nas de outros anteriormente lotados em órgãos ministeriais privatizados. No caso da Saúde, além da terceiriza-ção do recrutamento de pessoal, mui-tos serviços foram municipalizados. Os estudos da ANFIP revelam que os gastos com aposentadorias e pensões dos servidores civis apresentam com-portamento decrescente (os dados sobre o regime dos militares não foram disponibilizados) e que as receitas têm crescido mais do que as despesas.

Como se vê, são informações distor-

NÚMEROS DA SEGURIDADE SOCIAL (R$)

em 2013

DESPESAS RECEITAS

574.754 bi 650.555 bi

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 61

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ARTIGOARTIGOARTIGOARTIGO

cidas sobre o regime de aposentado-ria dos servidores públicos federais as que vêm à tona, chegam à sociedade e provavelmente também ao Congresso. Não distinguir o regime dos servidores civis do que é prerrogativa somente dos militares confunde. Omitir as diferen-ças fundamentais que existem entre o RGPS e os chamados regimes próprios dos servidores públicos confunde mais ainda. Não fica, porém, por aí. Quando “especialistas” aparecem na mídia para discorrer sobre o que nomeiam efeitos perversos dos gastos previdenciários, reforçando a retórica do “rombo da previdência”, incluem no pacote um terceiro vetor de distorção e confusão. Jamais é dito que a Previdência Social integra o sistema de Seguridade Social estatuído pela Constituição de 1988.

A Seguridade Social foi descons-truída, na prática, pela legislação que deveria regulamentá-la. Deferentes leis orgânicas – a da Saúde em 1990, a da Previdência em 1991 e a da Assis-tência Social em 1993 – estabelece-ram diretrizes para seus respectivos setores. Cada uma das três áreas pre-vistas para compor o sistema ganhou um ministério para chamar de seu. E as receitas, pensadas para financiar em bloco todas as ações – contribu-tivas e não contributivas – de segu-ridade (o que traduz a essência do conceito), foram fatiadas. Das recei-tas constitucionalmente vinculadas à Seguridade Social, somente as que incidem sobre salário (contribuições dos empregados) e folha de salário (contribuições dos empregadores) – chamadas contribuições previden-ciárias – são arrecadadas pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social, criado em 1990 e cujo nome contra-diz a concepção de seguridade inscri-ta na Carta). As demais, acima cita-

das, são arrecadadas pela Secretaria de Receita e, obviamente, vão para o Tesouro Nacional. Isso significa que é o Tesouro que repassa, para dife-rentes ações de seguridade, e como se fossem seus, recursos originados de fontes existentes para financiar a Seguridade Social. Como ironiza o dito popular, reverência com o cha-péu alheio.

Várias pesquisas, realizadas ao longo dos últimos quinze ou vinte anos, se dedicaram a reconstituir o que seria o orçamento da Seguridade Social, se fossem consideradas todas as receitas constitucionalmente esta-belecidas para o financiamento das ações de previdência, saúde e assis-

tência e todas as despesas decorren-tes de tais ações. Os resultados sem-pre indicaram a condição superavitá-ria do sistema.

O documento Análise da Segurida-de Social em 2013, da ANFIP, atualiza as informações. Em 2010, as recei-tas da Seguridade Social totalizaram R$ 458,094 bilhões em 2013, esse valor subiu para R$ 650,995 bilhões. Por seu turno, as despesas (todas as despesas previdenciárias, de saúde e de assis-tência social, incluindo despesas com pessoal ativo e todas as demais relati-vas a custeio e investimento) somaram respectivamente R$ 404,266 bilhões e R$ 574.754 bilhões. Saldos positivos – e volumosos – nesses anos, assim

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

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denciárias, entendidas como contribui-ções de empregados e empregadores, financiam benefícios previdenciários e outras receitas – ou partes delas – são vinculadas a outras ações previamente determinadas. Ora, ainda que as recei-tas previdenciárias cresçam – e crescem mais do que as despesas, segundo valo-res divulgados pelo próprio Ministério da Previdência e registrados no estudo da ANFIP –, não são suficientes para dar conta dos benefícios que foram estendidos como direitos, pela Cons-tituição, a segmentos populacionais antes excluídos. Em 2013, as receitas do RGPS totalizaram R$ 307,147 bilhões e as despesas, R$ 355, 007 bilhões.

Mesmo assim, a alardeada tendên-cia catastrofista não se verifica. Como % do PIB, o déficit do RGPS que era de 1,8 em 2004, passou a ser de 1,2 em 2010 e 1,0 em 2013. A percentagem de benefícios cobertos por outros recur-sos da Seguridade (o chapéu usado pelo Tesouro) vem se reduzindo: 27,2 em 2004, 17,3 em 2010 e 14,0 em 2013. A estratégia de separar a Previdência Social do sistema de seguridade, cujo objetivo é fundamentar empiricamente a necessidade de reformá-la conforme demandado pelo FMI desde a formula-ção do Consenso de Washington, não tem, portanto, se revelado consistente.

A Análise da Seguridade Social em 2013, da ANFIP, chama ainda a atenção para dois outros aspectos que nunca são explicitados no discurso do rombo e que, no entanto, repercutem sobre a Seguridade e a Previdência Social. Um é a DRU (Desvinculação das Recei-tas da União), estratagema criado em 1994 com o nome fantasia de Fundo Social de Emergência e que, renovado por sucessivas emendas constitucio-nais, acabou assumindo, em 2000, sua verdadeira identidade que se mantém

até hoje (também por obra de periódi-cas emendas à Constituição). Por esse estratagema, um valor corresponden-te a 20% de todas as contribuições sociais, excetuadas as contribuições previdenciárias, é desvinculado de seu destino legal, passando a compor o Orçamento Fiscal. Em 2013, foram retirados do Orçamento da Segurida-de Social, via DRU, R$ 63,415 bilhões esvaziando o superávit do sistema, que foi de R$ 76,241 bilhões.

O segundo aspecto destacado pelo estudo da ANFIP consiste na perda de recursos originada pelo processo de desoneração da folha de pagamentos que o governo vem implementando desde 2011 no intuito de incentivar o crescimento econômico. Legalmente, o governo está obrigado a compensar o RGPS com recursos do Orçamento Fis-cal. Entretanto, os valores repassados a título de compensação têm sido infe-riores às perdas que impactam a Previ-dência Social. Esse tema, na verdade, mereceria um outro artigo. Aqui o que importa salientar é que a narrativa do déficit alarmante sequer o menciona.

“As despesas não param de subir”, “Rombo da Previdência” e outras manchetes catastrofistas frequentam a mídia desde os anos 90. Os especia-listas expõem números e estatísticas aterrorizantes na mesma intensidade com que omitem aqueles que exibem um sistema robusto (os especialis-tas adoram esta palavra) e altamente redistributivo. A indústria da previ-dência privada agradece, mas o deba-te esclarecedor das intenções dos marqueteiros também avança, recons-truindo, diante da opinião pública, a imagem de um sistema de proteção social que é fundamental para a con-solidação da cidadania plena de todos os brasileiros.

como em 2011, 2012 e, retrocedendo, em todos os anteriores. A Seguridade Social é superavitária.

Onde se encontram, então, os núme-ros que fundamentam empiricamente o discurso do rombo? Pois os que o for-mulam são especialistas, e especialis-tas gostam de números. Além do mais, números não mentem. Mas também não falam. Os especialistas, que têm o dom da palavra, é que escolhem e apre-sentam os números que querem.

Consequente à desconstrução (sem extinção) da Seguridade, a legislação que sucedeu à Constituição não só segmentou as áreas que, no texto da Carta, a integravam, como redirecionou as receitas instituídas. Receitas previ-

SERIA CÔMICO, SE NÃO FOSSE TRÁGICO. Em 8 de dezembro de 2011, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), subiu à tribuna para defender a aprovação da Desvinculação dos Recursos da União (DRU). Segundo ele, nesse momento de crise, a presidenta Dilma não poderia ficar sem esse instrumento. “A DRU é vacina que foi usada pelo Fernando Henrique Cardoso, foi usada pelo Lula e não podemos tirar das mãos da presidenta Dilma”, disse Sarney

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Nas regulamentações e em emendas à própria Constituição de 1988, praticamente todas foram na direção da retirada de direitos dos trabalhadores e ampliação dos direitos do capital: neste sentido, a previdência social tornou-se um dos alvos preferenciais das mudanças

Constituição ferida

ARTIGOARTIGO

OBRA DO ARTISTA ITALIANO FEDERICO BAROCCI (1528-1612) dramatiza a queda de Tróia e mostra o guerreiro troiano Enéias carregando sua família para fora da cidade. Uma síntese do pacto entre gerações.

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A Constituição Federal de 1988 (CF 88) consolidou regras e conceitos diferen-tes, a partir de disposições

já existentes, para as aposentadorias dos trabalhadores do setor privado e dos servidores públicos. A aposenta-doria dos trabalhadores do setor pri-vado foi definida como um benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), no âmbito da organização da seguridade social, enquanto a aposen-tadoria dos servidores públicos civis foi tratada na organização da adminis-tração pública. As regras para os mili-tares foram remetidas à lei ordinária.1

Tanto o regime geral quanto o dos servidores civis concediam aposenta-doria aos homens com 65 anos de ida-

de ou 35 anos de trabalho e às mulhe-res com 60 anos de idade ou 30 anos de trabalho. Professores e professo-ras, de qualquer nível, aposentavam-se com menos 5 anos de trabalho. O valor da aposentadoria, contudo, não era o mesmo nos dois regimes. Os ser-vidores mantinham a remuneração do cargo que ocupavam na atividade (integralidade), inclusive acompanhan-do os reajustes e reclassificações pos-teriores dos servidores ativos (pari-

Breve história da previdência social brasileira após a Constituição Federal de 1988

▼ JOSE MIGUEL BENDRAO SALDANHA*

* Professor da Escola

Politécnica da UFRJ

ARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGOARTIGO

A CONSTITUIÇÃO foi produzida numa fase de

relativa ascensão dos movimentos

sociais e consolidou

importantes direitos dos

trabalhadores

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dade), enquanto os trabalhadores do setor privado recebiam a média dos 36 últimos salários de contribuição, que depois era reajustada de acordo com a inflação. As formas de cálculo das duas regras não resultavam em valores semelhantes, porque no regi-me geral havia, e ainda há, um limite máximo para o salário de contribuição e para as aposentadorias, hoje valendo R$ 4.390,24, enquanto para os servi-dores o único limite era o de um servi-

dor na ativa, hoje igual a R$ 29.462,25. Outra diferença era e é a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade no serviço público.

A principal diferença conceitual entre os dois regimes estava, no entan-to, na origem dos recursos para o paga-mento das aposentadorias, ou seja, nos seus regimes de financiamento.2

Pelo RGPS, o direito aos benefí-cios tinha como condição explícita a contribuição dos segurados, mas esta

não seria a única fonte de recursos do regime, uma vez que as aposentado-rias, bem como as demais despesas da seguridade social, deveriam ser pagas pelos governos, pelos trabalhadores e pelos empregadores, as destes calcu-ladas sobre a folha de salários, o fatu-ramento e o lucro, tudo com base na “diversidade da base de financiamen-to” e outros critérios. Logo, embo-ra operando de forma muito pareci-da com o de um regime de repartição, o

AGÊNCIA BRASIL

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RGPS não o faria de forma “pura”, e sim integrada ao financiamento geral da seguridade social.

Por outro lado, as aposentadorias dos servidores foram definidas sim-plesmente como uma obrigação do Estado. Nenhuma contribuição se exi-gia dos servidores para terem direito à aposentadoria, nem havia fonte de recursos específica para o pagamen-to das aposentadorias,3 que deveriam então ser mantidas da mesma forma que os vencimentos dos servidores ati-vos e todos os demais gastos governa-mentais, ou seja, pelas receitas gerais de impostos, contribuições etc. do Estado. As aposentadorias dos servi-dores financiavam-se integralmente, por um regime administrativo, de forma coerente com a ideia, materializada no capítulo da administração pública da CF 88, de definir um corpo estável de funcionários públicos dotados de um conjunto de direitos e deveres com-patíveis com as necessidades de um estado social.

A CF 88 freada pelo avanço neoliberal

A CF 88 foi produzida na esteira do fim da ditadura empresarial-mili-tar brasileira (1964-1985), numa fase de relativa ascensão dos movimentos sociais, e caracterizou-se pela conso-lidação de alguns importantes direitos sociais, de forma, contudo, contradi-tória à ascensão do neoliberalismo já em curso naquela época em escala mundial. Os constituintes represen-tantes das forças conservadoras orga-nizaram-se no chamado “centrão” e conseguiram impedir avanços mais expressivos e condicionar a vigên-cia de muitos daqueles direitos à sua regulamentação posterior por meio de leis ordinárias ou complementa-

res. Os retrocessos nas conquistas da classe trabalhadora brasileira não demoraram a acontecer, nas regula-mentações e em emendas à própria CF 88, praticamente todas na direção da retirada de direitos dos trabalhado-res e ampliação dos direitos do capi-tal, alinhando-se assim às transfor-mações semelhantes que ocorriam no resto do mundo. Dentre as principais mudanças, destacam-se as referentes à administração pública e à previdência social, as chamadas “reforma adminis-trativa” e “reforma da previdência”.4 A contrarreforma da previdência inspi-rou-se claramente nas recomendações do Banco Mundial expressas no seu relatório Evitando a Crise da Velhice, de 1994,5 aplicadas apenas parcialmente. De uma forma geral, podem identifi-car-se duas fases da contrarreforma da previdência brasileira pós-CF 88, conceitualmente relacionadas e poli-ticamente articuladas.

DIRETORES E MILITANTES DA ADUFRJ-SSIND participam de uma das muitas manifestações contra a reforma da previdência, em 2003

ARTIGOARTIGO

ARQUIVO ADUFRJ-SSIND

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A contrarreforma da previdência – 1ª fase – governos Collor, Franco e Cardoso

A Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/1998 (EC 20), conduzida pelo governo Fernando Henrique Cardo-so, constitui o núcleo da 1ª fase. Nela, o conceito de “tempo de serviço”, do regime dos servidores, e o de “tempo de trabalho”, do regime geral, foram substituídos pelo de “tempo de con-tribuição”. O trabalhador deixou de ter direito à aposentadoria por ter trabalhado (ou servido ao público), pas-sando a tê-lo por ter contribuído finan-ceiramente. De um direito do trabalho, a aposentadoria transformou-se num direito financeiro. Entre outras conse-quências, isto ajudou a nutrir a ilusão de que cada trabalhador é responsável pela sua própria aposentadoria e que é possível prescindir da solidariedade entre as gerações que necessariamente sustenta todo o sistema.

A EC 20 também obrigou ambos os regimes ao “caráter contributivo” e ao “equilíbrio financeiro e atuarial”.6 A participação dos servidores ativos no custeio do regime de previdência já havia sido instituída pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/3/1993 (EC 3), durante o governo Itamar Franco, mas não o “equilíbrio financeiro e atu-arial”. Tentativas anteriores de criar essa contribuição haviam sido anu-ladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), justamente por não terem base constitucional, empecilho removido pela aprovação da EC 3.

Por meios diferentes, como veremos, isto ajudou a consolidar na opinião pública a ideia de que ambos os regimes da previdência social tinham “rombos orçamentários”, resultantes de contri-buições insuficientes, aposentadorias precoces e excessivamente generosas, especialmente no serviço público, que consumiam os recursos públicos que

deveriam ser destinados à saúde, à edu-cação, à infraestrutura etc.

No caso do regime geral, esta mudança ajudou a justificar que as suas contas passassem a ser apresen-tadas oficialmente de forma desvincu-lada do resto do orçamento da segu-ridade social, forjando assim o surgi-mento dos déficits do regime geral, calculados levando-se em conta, do lado das receitas, apenas as contribui-ções sobre as folhas de salários, e, do lado das despesas, todos os benefícios do INSS, inclusive aqueles que não são condicionados a contribuições, como é o caso das aposentadorias rurais. Pode ver-se como o uso de diferentes crité-rios faz aparecer e desaparecer os défi-cits do regime geral analisando-se as contas gerais da seguridade nos últi-mos anos, no quadro A, e um resumo das receitas e despesas da previdência em 2013, nos setores urbano e rural, no quadro B. Contrariando o discurso

De um direito do trabalho, a aposentadoria transformou-se num direito financeiro

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QUADRO A

capcioso do déficit, vê-se claramente que sobram recursos, tanto se consi-derarmos a seguridade social como um todo quanto se olharmos apenas para as contas da previdência propriamente dita, isto é, aliviando-a das despesas rurais de caráter assistencial. A sobra da seguridade, aliás, ajuda a compor o superávit primário das contas da União, usado para o pagamento dos juros da dívida pública federal, esta sim uma enorme sangria de recursos públicos sem contrapartida de qualquer espécie a favor da nação.

No caso dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPSs), como pas-saram a ser chamados os regimes dos servidores civis, a consequência ime-diata da aplicação dos critérios contri-butivo e de equilíbrio, aparentemente repletos da mais pura sensatez, foi a transformação do seu regime de finan-ciamento, que deixou de ser adminis-trativo e passou abruptamente a ser de repartição. Assim o Estado “transferiu” instantaneamente para os servidores ativos parte da responsabilidade, até então totalmente sua, de sustentar os servidores aposentados. Na prática, o sistema continuou a ser mantido pelo

Estado, pois os recursos economizados com a redução das remunerações líqui-das dos servidores ativos jamais foram suficientes para pagar as despesas com os aposentados, mesmo considerando a “autocontribuição” fictícia do gover-no, como pode ser visto no quadro C, que mostra um resumo das contas do RPPS da União nos últimos anos. Uma das razões óbvias deste “desequilíbrio” é a existência de uma grande quanti-dade de servidores aposentados e de pensionistas em relação à quantidade de servidores ativos.7 Esta operação legislativa, contudo, fez os RPPSs (da União, dos estados e dos municípios) exibirem déficits orçamentários gigan-tescos, que passaram a ser sistemati-camente usados pelos defensores do aprofundamento da contrarreforma como argumento a favor de mais cor-tes de direitos dos servidores.

Em suma: antes das emendas à CF 88, os servidores não pagavam pelas suas aposentadorias e os regimes próprios não tinham déficits; após as emendas, os servidores tiveram as suas remunerações líquidas reduzidas, quer dizer, houve economia para os cofres públicos, mas os regimes passaram a

apresentar déficits! É óbvia a incoerên-cia deste conceito de “déficit”.

A EC 20 criou ainda a exigência de 10 anos de serviço público e 5 no car-go para a aposentadoria do servidor, e acabou com a aposentadoria ape-nas por tempo de serviço (sem idade mínima) para servidores. Este tempo passou a servir apenas para reduzir a idade mínima para aposentar-se por idade, em princípio mantida em 65 anos para homens e 60 para mulheres. O homem com 35 anos de serviço e a mulher com 30 tiveram essas idades mínimas reduzidas para 60 e 55 anos, respectivamente.

A proposta original que resultaria na EC 20 previa o fim da aposentado-ria apenas por tempo de contribuição no regime geral e a cobrança de con-tribuição aos servidores inativos e pensionistas, mas o governo Cardoso não conseguiu manter estes pontos no texto da EC 20. A contribuição dos inativos viria a ser aprovada em 2003, no governo Lula, pela EC 41, e a aposentadoria por tempo de con-tribuição sem necessidade de idade mínima permanece em vigor até hoje no regime geral. O governo Cardoso

Setores

Urbano Rural Total

Receita 311,0 6,2 317,2

Despesa 274,7 80,4 355,0

Saldo 36,3 -74,2 -37,8

Regime Geral de Previdência Social (RGPS) em 2013 [R$ bilhões]

[Fonte: ANFIP, “Resultado da seguridade social em 2013”]

ARTIGOARTIGO

70 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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QUADRO B

conseguiu, entretanto, “compensar” este revés com a aprovação da Lei nº 9.876, de 26/11/1999, por meio da qual as aposentadorias do regime geral pas-saram a ser obtidas pela média dos 80% maiores salários de toda a vida do trabalhador (em vez dos últimos 36 meses), multiplicada pelo fator pre-videnciário. Este fator é uma função da idade, do tempo de contribuição e da expectativa de sobrevida no momento

da aposentadoria, estimada pelo IBGE, que na prática reduz a aposentadoria do trabalhador que decide aposentar-se logo que atinge o tempo mínimo de contribuição.8 Para perder menos, o trabalhador é induzido a adiar a sua aposentadoria, o que era, afinal, o obje-tivo de estabelecer uma idade mínima.

A mudança de caráter mais estrutu-ral introduzida pela EC 20 foi permi-tir que os governos, de qualquer nível,

limitassem as aposentadorias dos ser-vidores ao teto do RGPS, desde que instituíssem um regime de previdên-cia complementar (fundo de pensão) para os servidores, abrindo-se assim o caminho para a privatização de parte considerável da previdência dos ser-vidores. A regulamentação deste dis-positivo, porém, ficou pendente da tramitação do Projeto de Lei Comple-mentar nº 9, de 1999 (PLP 9/99), impe-

2011 2012 2013

Receitas

Receita previdenciária 245,9 283,4 317,2

Cofins 159,6 181,6 199,4

CSLL 57,6 57,3 62,5

PIS / PASEP 41,6 47,7 51,1

Outras 22,4 25,7 20,8

Total 527,1 595,7 651,0

Despesas

Previdência 290,5 325,5 366,2

Saúde 72,3 80,1 85,4

Assistência 45,9 56,5 64,1

Outras 42,6 50,9 59,0

Total 451,3 513,0 574,7

Saldo da seguridade social 75,8 82,7 76,3

PIB 4.143 4.392 4.838

Saldo em relação ao PIB 1,8% 1,9% 1,6%

Seguridade social de 2011 a 2013 [R$ bilhões]

[Fonte: ANFIP, “Resultado da seguri-dade social em 2013”]

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ARTIGOARTIGO

dida até o fim do governo Cardoso pela mobilização dos movimentos de servi-dores, naquela ocasião ainda apoiados no Congresso pelo Partido dos Traba-lhadores (PT).

A contrarreforma da previdência – 2ª fase – governos Lula e Dilma

Este quadro mudou radicalmente após Lula da Silva, do PT, ser eleito presidente da República em 2002. Antes mesmo da sua posse, lideranças do PT e seus aliados no futuro gover-no anunciaram a intenção de apro-var o PLP 9/99, aderindo assim à tese da existência do “rombo” do regime próprio. Alegavam os defensores da proposta que limitar as aposentado-rias dos servidores ao teto do RGPS, transferindo para fundos capitalizados a parte acima do teto, aproximaria os regimes dos servidores e dos traba-lhadores em geral, além de proporcio-nar uma grande economia aos cofres

públicos. Contudo, tal economia exis-tiria apenas num futuro distante, pois a curto e médio prazo a despesa do governo aumentaria, porque ele dei-xaria de arrecadar a contribuição do servidor relativa à parte da remune-ração acima do teto e ainda teria de pagar a sua parte, como empregador, para o novo fundo de pensão. A ordem de grandeza deste custo de transição foi estimada naquela ocasião pelo próprio governo em cerca de R$ 1 bilhão por ano durante os 20 anos seguintes.

Após a posse, o novo governo aban-donou a intenção de aprovar o PLP 9/99 e submeteu ao Congresso, em 30/04/2003, a Proposta de Emenda à Constituição nº 40/2003 (PEC 40), que eliminava a necessidade de lei complementar para instituir o fundo de pensão dos servidores. Apesar da forte mobilização contrária, empre-endida principalmente pelos sindica-tos de servidores públicos, a PEC 40

foi aprovada com pequenas modifica-ções, tornando-se a Emenda Constitu-cional nº 41 (EC 41), em 19/12/2003. A EC 41 impôs ainda outras perdas aos servidores: criou a contribuição de aposentados e pensionistas, tornou a aposentadoria por invalidez propor-cional ao tempo de serviço, acabou com a paridade e reduziu os valores das pensões por morte. A economia obtida por estas medidas foi estimada na mesma ordem de grandeza do custo de transição para a previdência com-plementar já mencionado. Em síntese, o governo transferiu para os aposenta-dos e pensionistas o custo da institui-ção da previdência complementar dos servidores.

Todas estas alterações nas condi-ções exigidas para a aposentadoria e nos cálculos dos proventos, princi-palmente no regime dos servidores, foram acompanhadas de um grande e intrincado conjunto de regras de

EM AGOSTO DE 2003,

servidores realizam uma

grande marcha em Brasília contra

a reforma da previdência

72 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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transição, de acordo com as datas de ingresso no serviço público, que não há como detalhar neste texto, mas que atingem ainda um grande número de servidores. Tanto na EC 20 quanto na EC 41, estas regras tiveram o objetivo político de diminuir a resistência dos servidores em atividade, na medida em que as piores consequências das mudanças atingiriam apenas os futu-ros servidores.

Apesar da maior facilidade para a sua instituição trazida pela EC 41, o fundo de pensão dos servidores fede-rais só veio a ser de fato instalado pelo governo Dilma Rousseff em 4/2/2013, data da aprovação pelo governo fede-ral do Plano Executivo Federal da Fundação de Previdência Comple-

mentar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), entidade criada para administrar o fundo. Os servidores que tomaram posse a partir dessa data terão as suas aposentadorias limitadas ao teto do RGPS (R$ 4.390,24). Para os que ganham acima deste valor e querem que a União contribua adicionalmen-te para uma aposentadoria comple-mentar, a única alternativa disponí-vel é a adesão à Funpresp-Exe.9 Nesse caso, o servidor depositará mensal-mente 7,5%, 8% ou 8,5%, à sua esco-lha, da parte da sua remuneração que exceder o teto do RGPS, numa con-ta individual do fundo de pensão, na qual a União depositará igual valor. O fundo aplicará no mercado financeiro

12

2005 ... 2011 2012 2013

“Receitas”

Ativos 3,2 ... 6,9 7,0 7,5

Aposentados e pensionistas 1,0 ... 2,2 2,3 2,5

Outras ... 0,2 0,2 0,2

Total de “receitas” 4,2 ... 9,3 9,5 10,2

Total de despesas 25,7 ... 47,1 50,5 54,5

Déficit bruto 21,5 ... 37,9 41,0 44,4

% PIB 1,00% ... 0,91% 0,93% 0,92%

“Contribuição” patronal (inexistente) 6,4 ... 13,9 14,1 15,0

Déficit líquido 15,1 ... 24,0 26,9 29,3

% PIB 0,70% ... 0,58% 0,61% 0,61%

Regime Próprio de Previdência dos Servidores Federais [R$ bilhões]

QUADRO C

[Fonte: ANFIP, “Resultado da seguridade social em 2013”,

adaptado]

ROBERTO BARROSO/ABR

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 73

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os recursos arrecadados e, quando o servidor obtiver a sua aposentadoria do serviço público, pagar-lhe-á um benefício mensal cujo valor depen-derá completamente dos rendimentos que as aplicações acumularem.

Qualquer previsão relativa ao valor desse benefício carrega uma enorme incerteza. O plano da Funpresp-Exe operará obrigatoriamente no regime de capitalização, na modalidade de con-tribuição definida, ou seja, é sabido quanto o servidor e a União pagarão, mas desconhecido o valor do benefí-cio futuro. Este será influenciado pela qualidade da gestão dos recursos do fundo por parte dos seus administra-dores, e também pelas flutuações do mercado financeiro durante períodos muito longos, da ordem de decênios,

sobre as quais eles não terão nenhum controle.

Se não houvesse a contribuição da União para o fundo, não restaria dúvi-da, com base na conturbada história dos fundos de pensão no Brasil e no mundo, de que o novo servidor teria melhor destino para o seu dinheiro do que entregá-lo por prazos longos a uma instituição privada fora do seu controle, que nenhum compromisso tem de fato com o retorno financei-ro das aplicações, ou mesmo com a simples conservação do valor aplica-do. Investir em imóveis e outros bens duráveis e depósitos em cadernetas de poupança, por exemplo, seriam apli-cações mais seguras e possivelmente mais rentáveis do que os fundos.

O que pode deixar o novo servidor

em dúvida quanto à conveniência da adesão é, evidentemente, a existên-cia da contribuição da União para a sua conta, que na prática dobra de imediato o valor do seu depósito. Pode ser difícil acreditar que o mer-cado financeiro vá ficar tão ruim, ou que a gestão do fundo se revele tão incompetente ou fraudulenta que os depósitos em dobro no fundo ren-dam menos do que depósitos não dobrados em outros lugares. Con-tudo, a ausência de garantias legais relativas aos valores depositados e de controles reais sobre as ações dos seus administradores deve ser consi-derada seriamente pelos servidores ao decidirem sobre a sua eventual adesão à Funpresp-Exe.

ARTIGOARTIGO

74 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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Os principais regimes de financiamento da previdência consistem resumidamente no que segue

As contribuições dos traba-lhadores ativos num determi-nado mês formam as receitas que pagam as despesas com os benefícios dos trabalhado-res inativos no mesmo mês. Os eventuais déficits e superávits resultantes do excesso de des-pesas sobre receitas ou vice-ver-sa são absorvidos pelo orçamen-to do estado social. Uma vez que se retira o sustento dos idosos quase diretamente da produção dos adultos, este regime é o que expressa mais claramente o pac-to implícito intergeracional ineren-te à sociedade humana (os adul-tos trabalham para sustentar a si próprios, os idosos e os jovens, na expectativa de que, no futu-ro, quando se tornarem idosos, sejam sustentados pelo trabalho dos então adultos, hoje jovens,

que repetirão o processo). O equilíbrio orçamentário é obti-do por transferências de outras receitas estatais ou por meio de ajustes paramétricos (mudanças nas alíquotas de contribuição, nas condições necessárias para aposentar-se, no cálculo dos proventos de aposentadoria etc.), em função das mudanças na estrutura demográfica da sociedade, no grau de formali-zação das relações de trabalho, no nível de emprego e outras condições macroeconômicas. Em geral, não forma um fundo financeiro, ou forma um fundo pequeno, de caráter apenas ope-racional, de giro. O seu princí-pio básico é a solidariedade entre as gerações. É o regime mais usa-do pelos sistemas de previdên-cia social em todo o mundo. No Brasil, o Regime Geral da Previ-dência Social (RGPS), adminis-

trado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), funciona desta forma, e abrange os tra-balhadores cujos contratos de trabalho são regidos pela Con-solidação das Leis do Trabalho (CLT). Nunca é usado pela pre-vidência privada.

As contribuições dos traba-lhadores ativos são depositadas num fundo, em contas indivi-duais, que ganham (ou perdem) rendimentos financeiros, em fun-ção dos ganhos (ou perdas) dos investimentos feitos pelo fundo. O fundo formado torna-se uma massa de capital financeiro, em geral de grande vulto. O prin-cípio básico é a rentabilidade do capital. É o único regime usado pela previdência privada, com-plementar. O regime pode ser

Regime de repartição

Regime de capitalização

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 75

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1 O leque de benefícios da previdência social é mui-to amplo. Este texto trata apenas de aposentadorias e pensões.2 O termo “regime” tem sido usado, na legislação e na linguagem comum, com pelo menos dois significados diferentes: ora se refere a conjuntos articulados de di-reitos e deveres (RJU, RGPS etc.), ora nomeia formas de financiamento de sistemas de previdência (regime de repartição, regime de capitalização). Tentando evi-tar confusões, neste texto chamaremos estes de “regi-mes de financiamento”.3 A contribuição que os servidores ativos faziam até então se destinava ao custeio da saúde e das pensões.4 Melhor denominadas contrarreformas, por não ser possível atribuir-lhes a habitual conotação positiva dada pela palavra “reforma”.5 THE WORLD BANK. Averting the Old Age Crisis: Policies

Notas

fechado, isto é, restrito aos traba-lhadores de uma empresa ou gru-po de empresas (entidade fechada de previdência privada, ou fundo de pen-são), que atuam como patrocinado-res do fundo e também lhe fazem contribuições, ou aberto, caso em que é disponível a qualquer pes-soa e é quase equivalente a uma aplicação financeira comum (enti-dade aberta de previdência privada). O equilíbrio financeiro é automático na modalidade de contribuição defi-nida, na qual os valores das con-tribuições dos segurados são fixa-dos, mas os seus benefícios futu-ros dependem integralmente da rentabilidade das aplicações do fundo. Nesta modalidade, o fundo nunca se torna insolvente, pois, por definição, nunca é devedor de valores maiores do que o patrimô-nio que possui. Na modalidade de benefício definido, na qual os bene-fícios futuros são prefixados, mas

as contribuições podem variar, o equilíbrio depende de aportes extraordinários dos patrocina-dores, ou de ajustes paramétricos, como mudanças nas alíquotas de contribuição ou nas condições exigidas para a aposentado-ria, quando os rendimentos das aplicações não acompanham as projeções feitas por ocasião do seu estabelecimento. No caso da previdência complementar dos servidores, a Constituição Fede-ral obriga explicitamente todos os planos a serem de contribui-ção definida. Diferenciam-se de outras aplicações financeiras por gozarem geralmente de benefícios fiscais. São muito sensíveis às flu-tuações do me do financeiro.

O empregador, invariavel-mente o Estado, paga tanto os

salários dos ativos quanto os benefícios dos aposentados. Nada se arrecada dos ativos. Os trabalhadores cumprem carreiras de servidores públi-cos, em geral longas, exigidas para terem direito aos benefí-cios. Não faz sentido procurar o equilíbrio orçamentário, uma vez que só há despesas, total-mente cobertas pelo orçamen-to do Estado. O debate político relativo a este regime é parte da discussão sobre as carrei-ras do serviço público. O prin-cípio básico é a estabilidade do servidor. No Brasil, eram assim, até 1998, os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPSs) dos militares e dos servidores civis da União, dos estados, do Dis-trito Federal e dos municípios. Os militares permanecem nesse regime.

Regime administrativo

to Protect the Old and Promote Growth. New York: Oxford University Press, 1994.6 O “equilíbrio atuarial” obtém-se quando os valores dos fluxos previstos de receitas e despesas, desconta-dos por meio de uma taxa de juros de referência, são iguais. Depende, portanto, do valor arbitrado para essa taxa por quem faz as contas.7 De 1995 a 2002, a quantidade de servidores federais ativos diminuiu de 982 mil para 878 mil e a quanti-dade de aposentados e pensionistas aumentou de 803 mil para 944 mil. Daí em diante, a quantidade de ativos passou a aumentar, atingindo 1,106 milhâo em 2013, e a quantidade de aposentados e pensionistas continuou subindo, até 972 mil. Entre 2000 e 2006 a União teve mais aposentados e pensionistas do que ativos. (MPOG, Boletim Estatístico de Pessoal e In-formações Organizacionais, julho de 2014).

8 Por exemplo, um homem que se aposentou em 2013 após 35 anos de contribuição, com 60 anos de idade, teve um fator previdenciário igual a 0,874, isto é, uma redução de 12,6% na média dos salários sobre os quais contribuiu, e se só se aposentasse em 2014, com 36 anos de contribuição e 61 de idade, a redução seria de 8,1%.9 Esta regra atinge muitos servidores. 66,5% dos servidores civis ativos da União ganham acima de R$ 4.500 mensais. Esta proporção é igual a apenas 53,4% nos servidores aposentados, o que mostra não ser a passagem à aposentadoria que eleva os ga-nhos dos servidores públicos. As remunerações dos servidores são marcadamente maiores do que as dos trabalhadores do setor privado já entre os ativos, o que é coerente com a sua maior qualificação técni-co-profissional em geral.

76 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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Suplemento Cultural Cadernos Adufrj

Resgate do patrimônio cultural brasileiroO repertório vasto é uma das marcas da Orquestra Sinfônica da UFRJ, que se apresentou pela primeira vez em 25 de setembro de 1924

FOTO

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Surgida nos ecos da inquietação cultural trazida pela Semana de Arte Moderna nos anos 1920, a Orquestra Sinfônica da UFRJ completa a incrível marca de 90 anos de apresentações regulares

▼ ALINE DURÃES Especial para Cadernos Adufrj

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O Brasil vive um intenso momento d e efervescência

cultural, provocado, em parte, pela Semana de Arte Moderna de São Paulo. Dois anos antes, em 1922, o evento — patroci-nado por personagens como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Anita Malfatti — sacudiu os

mento básico. Paralelamente, a imprensa carioca conquistava novas liberdades e fervilhavam as produções de autores liga-dos ao Teatro e à Música.

Foi nesse cenário que surgiu a Orquestra Sinfônica da UFRJ (OSUFRJ), primeira orquestra estatal do Brasil que, em 2014, completa 90 anos de uma his-tória profundamente ligada à música e à universidade. Vin-

pilares das artes brasileiras convidando a intelectualidade a embarcar numa proposta de subversão do universo artístico.

O Rio de Janeiro, então capital federal, ensaiava os primeiros passos rumo à modernidade. A reforma Pereira Passos, iniciada em 1903, garantiu a reorgani-zação urbana da cidade com o alargamento de ruas e a cria-ção de um sistema de sanea-

MÚSICA

80 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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culada ao Instituto Nacional de Música, que, em 1937, se transformaria na Escola de Música da Universidade do Brasil (futura UFRJ), a sinfônica nasce do anseio positivista da Primeira República em utilizar a estrutura universitária para formar músicos que atuariam nas orquestras privadas e tea-tros da cidade.

Ao longo de nove décadas, a

OSUFRJ, com suas temporadas regulares de concertos e apre-sentações, ajudou a compor o cenário brasileiro de música erudita, atuando junto aos mais influentes músicos do gênero. “Há 90 anos, na Rua do Passeio nº 98, funciona uma orquestra sinfônica que registrou a passa-gem dos principais maestros do país, como, por exemplo, Elea-zar de Carvalho e Roberto Duar-

te. Desempenhamos aqui ativi-dades que ultrapassam a mera reprodução musical, mas resga-tam o patrimônio cultural bra-sileiro. A OSUFRJ se insere na vida musical do Rio de manei-ra muito diferenciada: evitamos reproduzir o que as orquestras profissionais fazem, não quere-mos competir com elas. Somos uma alternativa”, destaca André Cardoso, diretor da Escola de

Desempenhamos aqui ati-

vidades que ultrapassam a mera

reprodução musical, mas resgatam

o patrimônio cultural brasileiro. A

OSUFRJ se insere na vida musical

do Rio de maneira muito diferen-

ciada: evitamos reproduzir o que

as orquestras profissionais fazem

André CardosoRegente da orquestra

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 81

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Música (EM-UFRJ) e regente da OSUFRJ desde 1998.Mudanças no formato

A primeira apresentação do grupo, realizada em 25 de setembro de 1924, contou com a participação de 33 alunos. Ini-cialmente, a orquestra era com-posta apenas por estudantes da

disciplina de Conjunto Instru-mental do antigo Ins-

tituto Nacional de Música.

Outros redesenhos moldaram a sinfônica nos anos seguintes.

Já na década de 1930, a refor-ma educacional Francisco Cam-pos — primeira a ser efetuada em nível nacional, responsável pelo lançamento do Estatuto das Universidades Brasileiras e pela criação do Conselho Nacional de Educação, além de ter instituído o currículo seriado e a frequência obrigatória nos demais níveis de Ensino — alterou a configuração do grupo: ele passaria a ser for-mado apenas por músicos profis-sionais, contratados por tempo-rada mediante concurso público.

Em 1969, o entendimento de que uma orquestra mantida pela universidade deveria ter como finalidade principal a formação de seu corpo discente voltou a ganhar força. Os alunos reinte-

graram o conjunto, mas desta vez tocando ao lado de músicos pro-fissionais. Em 2005, o caráter ins-titucional da orquestra se amplia, já que ela deixa de pertencer ape-nas à Escola de Música e passa a ser oficialmente a Orquestra Sinfônica da UFRJ.

O modelo híbrido, mantido até os dias atuais, possibilita ao alu-no ensaiar ao lado de um músico experiente, que funciona como seu segundo professor. “Não basta entrar, sentar e tocar. Tem que haver uma sintonia, uma troca entre aluno e técnico. E é isso que procuramos fazer no dia a dia: passar nossa experiência para que os jovens saiam pre-parados para tocar em qualquer orquestra do Brasil”, conta Felipe Prazeres, músico com mais de 20 anos de experiência e que, desde

Não basta entrar, sentar e tocar. Tem

que haver uma sintonia, uma troca en-

tre aluno e técnico. E é isso que procura-

mos fazer no dia a dia: passar nossa ex-

periência para que os jovens saiam

preparados para tocar em qualquer

orquestra do Brasil

Felipe Prazeres Spalla da OSUFRJ

MÚSICA

Page 84: Cadernos Adufrj 3

2005, é o spalla (Primeiro Violino) da OSUFRJ.

Dentro da sinfônica, há ainda uma orquestra de sopro, na qual os instrumentos de corda não tocam, e uma de câmara, com menor número de integrantes. A possibilidade de montar mode-los diversos de conjunto é mais um benefício do sistema misto, pois amplia consideravelmente o repertório da orquestra.

Vasto repertórioO repertório vasto, com dife-

rentes referências musicais, aliás, é uma das marcas da Orquestra Sinfônica da UFRJ. De Beethoven e Vivaldi a com-positores ainda desconhecidos, o grupo passeia por estilos e épocas, dando ao público um

espetáculo sempre cadenciado pelo ritmo da excelência.

Ao ingressar na orquestra, os alunos têm a chance de conhe-cer o legado da música erudita mundial. Ensaiam e executam as grandes obras, os grandes compositores, as grandes sin-fonias. Mas não param por aí.

O ineditismo é outro critério que pesa na escolha do reper-tório da OSUFRJ. Regularmen-te, a orquestra universitária abre espaço para a execução de obras de novos composito-res. E, para fomentar as pro-duções inéditas, a Escola de Música realiza, todos os anos, um concurso de Composição que, rompendo os limites da universidade, oferece a candi-datos de todo o país a possibi-

ERNANI AGUIAR, que divide a regência da

orquestra com André Cardoso,

conduz um ensaio

lidade de dar vida a suas melo-dias nos acordes instrumentais da orquestra.

Esse papel de vanguarda se reveza com o caráter de memó-ria e de valorização da cultura nacional que o repertório da OSUFRJ adquire quando alunos e técnicos se unem para execu-tar a produção erudita brasilei-ra. São obras que, por serem desconhecidas de boa parte do público, costumam ficar de fora da programação mainstream das grandes orquestras priva-das. “Nossos concertos são gra-tuitos. Então não é por falta de oportunidade que os cariocas terão dificuldade em conhecer os repertórios sinfônicos mun-dial e brasileiro de todas as épo-cas”, afirma André Cardoso.

84 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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O momento é de dupla comemoração: o Ópera na UFRJ, uma das mais bem-sucedidas iniciativas de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade, completa 20 anos em 2014.

Criado por estudantes da disciplina Declamação Lírica, da Escola de Músi-ca, em 1994, o projeto reúne professores, alunos e funcionários técnico-adminis-trativos de diferentes unidades da insti-tuição para a montagem de espetáculos de ópera.

O grupo já contabiliza 17 montagens. Récitas que, além de contar com a parce-ria da OSUFRJ e dos alunos de Oficina de Ópera da EM, integram estudantes da Escola de Belas Artes (EBA), que apoiam cenografia e indumentária; da Escola de Comunicação (ECO), que atuam na direção do espetáculo; e da área de Dança da Escola de Educação Física e Despor-tos (EEFD), responsáveis pela coreogra-fia. Professores estão sempre à frente da supervisão, e a produção conta com a par-ticipação do corpo técnico da UFRJ.

Para comemorar as duas décadas de existência, foi montada a peça O Diletante,

adaptação de João Guilherme Ripper do clássico de Martins Pena, um dos maiores dramaturgos e compositores brasileiros do século XIX. Na peça original, Pena usa o bom humor para satirizar o universo dos amantes de ópera.

O sucesso das apresentações — gra-tuitas, com distribuição de senhas que se esgotaram horas antes do espetáculo e com filas na porta — prova que os cinco séculos de história não foram suficientes para apagar o brilho do gênero operístico. “A ópera é o teatro com música, o cine-ma do século XVII. O público gosta. Por isso é um gênero vivo. Tem muita gente escrevendo e consumindo espetáculos. Mas, infelizmente, hoje, no Rio de Janei-ro, produzem-se poucos concertos. Para se ter uma ideia, o Ópera na UFRJ, anu-almente, produz a mesma quantidade de obras do Teatro Municipal. Daí a impor-tância do nosso projeto. Atendemos a um público carente de espetáculos de ópera na cidade. Mas nosso objetivo não é sim-plesmente produzir um espetáculo e sim ajudar a formar talentos. Isso é o melhor do projeto”, finaliza André Cardoso.

Desafios dão o tom Manter-se em funcionamen-

to, com programação regular e produção de excelência, em um cenário de recursos escas-sos como o de uma universida-de pública federal, não é uma tarefa simples.

Ao longo de sua história, a OSUFRJ teve de lidar com a fal-ta de estrutura da instituição para abrigar seus concertos. O problema permanece até hoje. Não há nas unidades teatros ou salões adequados à formação de orquestra. Por um lado, isso força alunos e profissionais a montarem os espetáculos em espaços improvisados, como o auditório do Centro de Tecno-logia (CT), na Cidade Universitá-ria, e o Salão Pedro Calmon, na Praia Vermelha. Por outro, difi-culta o acesso de grande parte da comunidade universitária aos concertos, executados em sua maioria na sede da Escola de Música, na Lapa, berço cultu-ral do Rio de Janeiro, mas bair-ro distante dos demais campi da universidade.

As dificuldades, no entanto, não diminuem a paixão e o comprometimento que, há 90 anos, move quem passa pela sinfônica. “É muito gratificante contribuir para a disseminação da música com um grupo tão bom quanto este, formado por excelentes músicos profissio-nais e por alunos sedentos de aprendizado musical”, destaca o regente André Cardoso.

Ópera na UFRJ

MÚSICA

O DILETANTE Uma das apresentações no auditório do Centro de Tecnologia

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 85

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CINEMASH

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Diretor de Jango, Os anos JK e Utopia e Barbárie, Silvio Tendler acaba de lançar o documentário A Distopia do Capital, média-metragem que põe a nu o projeto neoliberal e seus impactos na vida do país

Lente afiada

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fisioterapia tem obri-gado o cineasta Silvio Tendler a uma rotina de pequenos exercí-cios. Aperta bolinhas,

estica os ombros, ergue o coto-velo com ajuda profissional. É o tortuoso caminho para que ele recupere a potência do corpo. Aos poucos, reconquista o bási-co. Anda, toma café, faz pose. Uma imensidão para quem há dois anos saiu tetraplégico de uma cirurgia de descompres-são da medula. Na primeira vez que voltou a andar, Tendler, 64 anos, comemorou a ampliação das perspectivas: “Eu só via as pessoas no plano da bunda”.

A sala do apartamento em Copacabana tem ares de estúdio e dão um indicativo da movimen-tação que cerca o cineasta. São dezenas de cadeiras e poltronas. É natural que os 40 anos de car-reira que fazem de Silvio Tendler um pilar entre os documenta-

ristas brasileiros marquem nele essa fixação por planos e cur-vas. O cineasta é da geração que reconfigurou o mundo em 1968. Foi aluno de Jean Rouch – espécie de Adão do cinema documental –, trabalhou com Chris Marker, conviveu com Glauber Rocha. “Foi um momento muito mági-co, muito rico no mundo. A gente vivia uma espécie de festa liber-tária”, diz enquanto se lembra dos mestres e companheiros.

A doença que o derrubou foi o mote para que o documentaris-ta virasse documentário. Noilton Nunes conhece Tendler desde que se esbarraram pelos cine-clubes cariocas dos anos 1970. Quando o cineasta só conseguia ver as pessoas no plano da bun-da, Noilton viu a necessidade de registrar o amigo. O filme A Arte do Renascimento acompanha os passos de uma trajetória com mais de 40 filmes lançados e intensa movimentação política.

Arte engajada O mais recente deles, Priva-

tizações: a Distopia do Capital, o diretor define como “aquele fil-me que eu estava me devendo”. O filme dá sequência à análise do desmonte do país, linha-guia de filmes como Jango (até hoje, o documentário político mais vis-to no país), Encontro com Milton Santos e Marighella. Apesar de assumido como dívida pessoal, a ideia do filme veio do Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ).

Distopia, como o documen-tarista carinhosamente chama o novo trabalho, é uma média-metragem que desnuda o proje-to neoliberal iniciado no governo Collor. Um processo, segundo ele, surreal. “O Estado deixou de ser público, sem que os capita-listas investissem qualquer coisa. Foi uma situação em que os capi-talistas entraram com o sorriso, o BNDES com o financiamento

O olhar crítico de Tendler

CINEMA

A ▼ FILIPE GALVÃO

88 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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e os fundos de pensão com a grana”, diz.

Silvio Tendler aceitou o convi-te do sindicato na hora. Somaria assim mais um projeto dentre os vários que produz simultane-amente. É uma característica do diretor. “Eu nunca posso ter um projeto só porque cansa”, diz. À época em que foi procurado pelo Senge-RJ, estava envolvido com a campanha de Eduardo Campos (PSB) à presidência.

Quem ainda vive 1968 espera sempre novas vias. A ruptura, que não veio, fez com que ele perdesse um pouco da gana com os projetos da candida-tura PSB-Rede, mesmo depois do clima apaixonado surgido do desastre que matou o governa-dor de Pernambuco em Santos. Ainda assim, acompanhou Mari-na Silva. “Eu achava que o PSB era um partido socialista e que iria lutar contra esse processo de privatizações. Depois que o Eduardo morreu, eu continuei

Esse Estado é uma burrice muito

grande, é um erro. O que se fez

durante a Copa do Mundo foi um

erro. A privatização do Maracanã

foi um absurdo. O que fizeram com

o Célio de Barros, o Júlio Delama-

re, a Aldeia Maracanã, todos ab-

surdos. Belo Monte idem

LINHA DO TEMPO Silvio Tendler em momentos diferentes de sua trajetória. Na foto abaixo, ao lado de Nelson Pereira dos Santos

apoiando, mas na medida em que a Marina foi virando Aécio a coisa foi ficando complicada e eu terminei apoiando a Dilma”, explica.

O desencanto com a tucani-zação de Marina garantiu mais tempo à feitura de Distopia. No filme, vários entrevistados apon-tam os setores da economia do país sequestrados pelo capi-tal financeiro. Bancos, usinas, petroquímicas, portos, minera-doras, telecomunicações, side-rurgias, transportes. “O segundo maior processo de privatização dos anos 1990, só perdendo para a transição da antiga União Soviética para o regime capitalis-ta”, carimba o economista Már-cio Pochmann em uma passa-gem do documentário.

Quitada a dívida (“..filme que eu estava me devendo”..), pode-se dizer que a obra do cineasta tornou-se, por fim e completa-mente, um telecurso subversi-vo. “Sou um cara que é assisti-

DIV

ULG

AÇÃO

90 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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do na favela, nos cineclubes, nas escolas”, diz. Seus filmes são referências recorrentes na formação de um pensamento crítico sobre a realidade do país e do mundo. “Minha for-mação política foi toda com seus filmes, Silvio”, disse em agradecimento uma profes-sora da rede estadual do Rio de Janeiro durante a estreia de Distopia no Circo Voador em 21 de outubro.

Dos males, o menor Não se pode chamar o apoio

do cineasta à presidenta ree-leita de incondicional, mas os traços de condescendência são inegáveis. Quando questiona-do sobre o modelo de inclusão cidadã do PT através do consu-mo, Silvio diz que entende que um operário tenha sonhos de consumo. Quando confronta-do se tal política também não abrangeria a produção e for-mulação da cultura através de padrões de consumo, Silvio Tendler perde um pouco a paci-ência e diz que Lula nunca foi socialista e se enganou quem quis. São posições de quem cai e se levanta. De quem vive de utopia, apesar das barbáries.

Para defender o tema que consagrou o percentual favo-rável à candidatura petista, Silvio abusa da esperança. “Eu não tenho nada de informa-ção, nada de conhecimento, nenhum subsídio teórico do que eu vou falar. É pura intui-ção feminina, mas acho que esse Governo da Dilma vai ser muito diferente do que foi.

Acho que essa questão das pri-vatizações vai ser revista. Acho que ela percebeu o tempo que ela perdeu em coisas bobas, coisas inúteis. E ela vai querer deixar a marca dela na História. Não acredito que esse processo de privatizações continue”, diz.

Mesmo assim foi vítima do recrudescimento do Estado policial. Em 2012 foi intimado a depor na 5ª DP, acusado de inci-tar a desordem e atacar milita-res que comemoravam o golpe de 1964. “Eu não tenho essa capacidade de organização e mobilização que tentaram me atribuir. Adoraria ter, mas não tenho”, diz. Menos capacidade física tinha para atacar os incau-

AUDIÊNCIA Jango, realizado na década de 1980, é o documentário político de maior audiência do cinema brasileiro

COMEÇO O cineasta no início da carreira. Viria se tornar, ao lado de Eduardo Coutinho, um dos principais documentaristas do país

tos milicos: era um Silvio Tendler ainda tetraplégico.

Questionado sobre a evidente incapacidade de diálogo da ges-tão PT-PMDB, o cineasta pede um tempo. Cita Miguel Unamu-no. Rebate o “viva la muerte” franquista. “Esse Estado é uma burrice muito grande, é um erro. O que se fez durante a Copa do Mundo foi um erro. A privatiza-ção do Maracanã foi um absur-do. O que fizeram com o Célio de Barros, o Júlio Delamare, a Aldeia Maracanã, todos absurdos. Belo Monte idem. Não me faça cúm-plice da burrice”, rebate.

CINEMA

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ULG

AÇÃO

Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15 91

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Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacio-nal” é um dos lançamentos mais instigantes da Editora Boitempo. Organizado pelo professor ita-liano Marcello Musto, o livro foi divulgado durante evento nacio-nal que marcou os 150 anos da I Internacional. O encon-tro ocorreu em oito cida-des brasileiras, reunindo intelectuais nacionais e estrangeiros para deba-ter os impactos, efeitos e lições da Associação Internacional dos Tra-balhadores (AIT), cria-da em 1864. No Rio de Janeiro, o Insti-tuto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) sediou o encontro, que teve coorde-n a ç ã o d a Adufrj-SSind.

A AIT tornou-se símbolo da luta de classes e influenciou as ideias de milhões de trabalhadores ao redor do planeta. O aniversário de 150 anos de sua fundação oferece importante oportunida-de para reler suas resoluções e aprender com as experiências de

seus protagonistas. A obra contém textos

inéditos no Brasil e se configura um arquivo para a história e a teoria do movimento dos traba-lhadores, bem como para a crítica ao capitalismo.

Marcello Musto ensina teo-ria sociológica na York University (Toronto, Canadá). A coletânea que o professor organizou mere-ceu do linguista norte-america-noNoam Chomsky a classificação

de “extraordinária”. Ela traz textos de Marx, Engels, Bakunin,

entre outros. Tais escritos ajudam a

compreender como se organizaram a I

Internacional e os tra-balhadores europeus do

séc. XIX. Mais do que isso, o conteúdo, que registra

a experiência dos prota-gonistas da AIT, oferece

elementos para se repensar os problemas do presente.

INFORMAÇÕES:Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional336 páginasPreço de capa: R$ 52,00

LIVROS

Trabalhadores, Uni-vos

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AÇÃO

▼ SILVANA SÁ

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SEM FRONTEIRAS

Êxitos capitalistas

Segundo a ONU Um terço dos jovens (de 10 a 24 anos) do mundo vive em situação de vulnerabilidade social

Mais de 500 milhões de

CRIANÇAS e ADOLESCENTES vivem abaixo da linha de pobreza, com menos de

US$ 2 por dia

A maioria vive em países em desenvolvimento ou

pouco desenvolvidos

ZOR

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(CC

BY-

NC-

ND

2.0

)

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No Dia da Consciência Negra (20/11), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) realizou um ato na zona sul carioca. O local não foi escolhido à toa: muitos banharam-se na praia do Leblon, bairro onde as moradias possuem o metro quadrado mais caro do Brasil.

94 Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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FERN

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CIA

BRAS

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