caderno "a vida que passa", do jornal expresso popular famecos

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popular Jornal Popular do VI Semestre do Curso de Jornalismo da Famecos / 2015-1 Caderno Especial A vida que passa

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Caderno especial "Vida que Passa", do jornal Expresso Popular, da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. O jornal foi elaborado no ano de 2015 e distribuído a partir de 2016, com reportagens dos alunos. Nesta edição, pela primeira vez, um caderno especial focado no registro fotográfico foi anexado à publicação. Autores: Alexandre A. Kupac Camila Netto Carol Lewis Vicente Carcuchinski

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Page 1: Caderno "A vida que passa", do jornal Expresso Popular Famecos

popular Jornal Popular do VI Semestre do Curso de Jornalismo da Famecos / 2015-1

Caderno Especial

A vida que passa

Page 2: Caderno "A vida que passa", do jornal Expresso Popular Famecos

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Projetado para reconstruir a passagem da Rua Duque

de Caxias sobre via elevada, o Viaduto Otávio Rocha tornou-

se um símbolo de Porto Alegre. Concluído em 1932, suas belas

colunas arquitetônicas ganharam o mundo e, hoje, o viaduto é reconhecido

como patrimônio hitórico da Capital. As lojas do seu entorno contribuem

para o intenso movimento em suas calçadas

e escadarias por onde cruzam mais de 30 mil pessoas diariamente.

Para revelar o dia a dia deste espaço, o Expresso Popular destaca algumas personagens que, há 83 anos, constroem esta história. Monumento que aproxima o Centro Histórico das zonas Leste e Sul da cidade, o Viaduto da Borges, como é mais conhecido, representou Porto Alegre nas imagens da Copa do Mundo de 2014 que percorreram os continentes.

TextoCamila Neto e Carolina Lewis

FotosAlexandre A. Kupac eVicente Carcuchinski

CADERNO ESPECIAL 3

Relojoeiro é parte da história

Uma visão privilegiada

Q uando o tic-tac do re-lógio bate sete horas, José Ademar Fernan-

des, 75 anos, já está pronto para começar mais um dia de traba-lho. Embora sua relojoaria só abra às 9h, ele prefere aproveitar momentos antes para agilizar o serviço. Aliás, há 42 anos, a hora certa de relógios dos porto -alegrenses passa pelas mãos do relojoeiro.

Na loja 15 – uma das 36 existentes no Viaduto da Borges de Medeiros - o conserto de joias e óculos também é tarefa deste cidadão que não consegue sepa-rar sua história de vida da histó-ria do local. “Eu não conheço a

história, sou parte dela”, afirma.Depois de exercer a profis-

são por dez anos em uma loja em um prédio na Praça XV, o relojo-eiro e seu companheiro na época tiveram que deixar o espaço. Em busca de outro local para conti-nuar o ofício que desempenha desde os 17 anos, seu José perce-beu nas lojas que estavam sendo abertas embaixo da escadaria da Borges um bom local para con-tinuar. “A prefeitura disse que relógio não ia ter, mas nós entre-gamos os documentos de apre-sentação como se fosse uma loja de decoração”, conta aos risos o dono de uma das lojas mais anti-gas do viaduto.

Em frente ao Hotel Everest está a Estética Núcleo, que há mais de 15 anos neste endereço da cida-de. Sérgio Freita, conhecido como Serginho Beauty, de 47 anos, é ca-beleireiro e maquiador há três anos no estabelecimento. Quando foi convidado a trabalhar na estética, a localização foi um dos principais fatores que o fizeram aceitar o novo emprego. “Esse lugar passa uma paz”, explicou o cabeleireiro.

A paz é refletida no humor. Serginho admite que quando não

está muito bem, vai até a sacada que fica no lado direito, de frente para o viaduto, onde é possível ver toda a zona Sul e o Centro da cidade. Ao se deparar com este horizonte, renova as energias.

As noivas que se produzem no salão usam a visão privilegiada e a beleza do lugar para fazer o book. Até a estética já aproveitou desta es-trutura. “Montamos uma plataforma para fazer um desfile mostrando os penteados que fazemos”, relembra Freita.

Entre as 30 mil pessoas que passam diariamente pelo Viaduto da Borges, algumas ficam. É o caso de Gabriel Santana de Abreu que, há 15 anos, vive nas ruas de Porto Alegre e, há 10, tornou a parte in-ferior das escadarias da Borges de Medeiros seu lar. “É meu teto e o melhor lugar da cidade”, sintetiza o sem-teto. Mas, o local está longe de ser um abrigo nas noites de in-verno. Abreu já foi alvo, inclusive,

da urina de alguns pedestres.Estabelecido com mais cinco

pessoas de sua família, ele gostaria de ter casa própria. Mesmo sendo uma referência da Capital para se orientar, o endereço não é reco-nhecido quando Abreu o apresenta para procurar emprego. Para quem não tem endereço reconhecido, o gasto com a reforma do espaço é desnecessário. “Não existe refor-ma, é só mais um gasto”, alega.

Família usa como teto

CADERNO ESPECIAL

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r Quando o viaduto foi construído, era possível visualizar o lago Guaíba da rua Duque de Caxias. Hoje, a paisagem foi tomada sobretudo por prédios comerciais.

r Obras de infraestrutura, como troca de cabos telefônicos e reparos na rede elétrica e hídrica, são rotina no área. Além do barulho do trânsito, máquinas contribuem para a poluição sonora.

r Moradores do entorno do viaduto usam as escadarias em seus passeios pelo Centro Histórico, alguns na companhia dos seus animais de estimação.

r Para os comerciantes, o local é ponto de encontro da comunidade. Frequentemente, quem está dentro dos estabelecimentos cumprimenta o conhecido que passa.

r Sob os arcos do viaduto, estão fixados pontos de 11 linhas de ônibus que partem do Centro levando a população para diversos bairros das zonas Sul e Leste.

r A pista da Avenida Borges de Medeiros, que corta o viaduto por baixo, já foi palco de muitos movimentos sociais. É um dos caminhos por onde tradicionalmente passam as manifestações

políticas. Em 2013, milhares de porto-alegrenses marcharam por causa do preço do transporte público e protestando devido ao sistema político brasileiro. Em 2014, por outro lado, este foi

um dos trechos mais fotografados do “Caminho do Gol”, trajeto em direção ao Estádio Beira Rio, nos jogos da Copa do Mundo realizados em Porto Alegre.

r Atividade já rotineira no viaduto são os books fotográficos. Quase diariamente o espaço é cenário para fotos de casais, debutantes e formandos.

r “Utopia e Luta” é a ocupação de um prédio, realizada no Fórum Social Mundial de 2005. Desde então, serve de moradia e sede de várias atividades autogestionadas.

r Armazém Porto Alegre, inaugurado em dezembro de 2012, é tradicional ponto de encontro da boemia. Antes, reunia cartunistas e artistas da Capital.

r Hotel Everest, há 51 anos, na rua Duque de Caxias onde essa se encontra com as escadarias da Avenida Borges de Medeiros

CADERNO ESPECIAL CADERNO ESPECIAL

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Há 26 anos, treino e levantamento de peso são aqui

Elas gostam de produtos alternativos

Q uem desce as escadarias do lado direito do Viaduto em direção à Zona Sul da ci-

dade se depara com uma estreita fa-chada coberta por fotos de homens e mulheres com músculos e abdomens definidos e bonecos de cera no mes-mo estilo. No interior da Academia Physical, o dono do estabelecimento, Carlos Rubens de Souza, 60 anos, exibe a tatuagem de um tubarão no antebraço esquerdo. O desenho re-mete ao apelido “Tubarão” - ou Tuba para os mais próximos - que recebeu pelo seu espírito competitivo aos 20

anos, quando começou a malhar. Há 26 anos, na parte superior

do Viaduto, a academia é famosa por preparar competidores para disputas estaduais, nacionais e internacionais de fisiculturismo e levantamento de peso. Localização privilegiada, quase em frente ao Hotel Everest, a academia já recebeu visitas de ce-lebridades “de peso”, como Popó, que procuram o local para dar conti-nuidade aos treinos. De acordo com Tuba, outro ponto forte do estabele-cimento são os aparelhos. “As aca-demias são todas modernas, não têm

peso, só querem ganhar dinheiro”, critica.

O espaço que fica aberto de segunda à sexta das 8h às 21h30 e, aos sábados, das 9h às 12h, é onde Tuba passa a maior parte do seu dia seja trabalhando ou treinando. “Se não desse dinheiro, eu dava um jeito de continuar aqui”, revela o proprie-tário que, de cara fechada, inicia a conversa com jeito “pouco amigo”. Depois, à medida que fala da sua academia, desvenda um sorriso e diz que “quando alguém ganha título é uma alegria só”.

A loja 18 do Viaduto Otávio Rocha é a mais verde de todas - e também uma das

mais antigas. Lá, se vende desde plantas medicinais até flores no dia das mães e mudas de manjericão, poejo, hortelã e sálvia. Tudo graças à

Maria Eunice de Brum, 67 anos, que inaugurou a loja em 1974 e hoje toca o negócio com seu filho Rafael de Brum Urruth, 37 anos. Nas redon-dezas não há concorrência no ramo de orgânicos e o movimento forte durante a semana também ajuda. As

mudas e ervas são plantadas no sítio da família, em Gravataí, e trazidas de camionete para a venda. “Gosto da quantidade de pessoas que pas-sam aqui de dia. Falam até demais da loja. Elas gostam de produtos al-ternativos”, conclui Rafael.

L uiz Fernando Sabulewsky, 55 anos, vem todos os dias do Morro Santa Tereza para fazer

barba e cabelo dos seus clientes na Barbearia São Jorge. Há 30 anos na profissão e quase cinco no Viaduto da Borges, hoje ele trabalha sozinho no salão que foi deixado em suas mãos. A proprietária, que foi para a região do litoral em busca de melhores con-

dições, deixou o salão sob sua res-ponsabilidade. Fernando, o “barbeiro”, como é conhecido, não está muito satisfeito com o movimento. Ele reclama do estado de conservação do monumen-to, “largado pela Prefeitura”, e dos poucos clientes. “Não tá fácil não, há dias que eu pego um cliente por tur-no”, conta enquanto espera aparecer

alguma barba mal feita para aparar. Em pé ou sentado na frente do salão, ele conversa com os outros comer-ciantes durante os momentos de folga enquanto observa o que acontece no entorno. Daí, tira a conclusão: “passa muita gente, mas o bacana com di-nheiro não vem, não passa pelo Via-duto. É preciso cuidar melhor disso, para ele fazer a barba aqui”.

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Vinil segue em cena

Barbeiro reclama falta de cuidados

O s discos de vinil estão na moda de novo. Para An-tônio Neto, 57 anos, eles

nunca saíram de cena. Neto traba-lhou 30 anos de radialista. Quando perdeu o emprego, teve que achar uma saída e foi ser vendedor em uma loja de vinil e CDs, a “Época Som”, na parte de baixo da escadaria do viaduto da Otávio Rocha. Com a voz grave de locutor de AM, ele já aten-

deu celebridades, como por exem-plo, o cantor Paulinho da Viola.

Entre discos de vinil e CDs está a imagem do Santo Expedito, o mi-lagreiro que, conforme a crença, re-solve causas impossíveis. A imagem está bem em cima da porta, talvez para não permitir o fechamento do estabelecimento. Mas, essa é apenas uma hipótese, não para o vendedor que “não acredita em Santo”.

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Mais serviços no viadutopopular Jornal Popular do VI Semestre do Curso de Jornalismo da Famecos / 2015-1

Caderno Especial

Livros, discos, CD’s, revistas e rarida-des da literatura e da música. Mais do que tudo isso, no Espaço Cultural Qorpo Santo, a primeira loja à direita de quem segue do Centro em direção ao viaduto, é possível en-contrar uma parte da história da cidade e do monumento. Há 30 anos proprietário do es-paço, Adacir José Flores relata muitos fatos presenciados de perto por ele.

A paixão do comerciante pelo espaço é antiga. Ainda na adolescência, Flores fre-quentava o espaço que anteriormente abriga-va um dos principais pontos de encontros da militância: o Bar Azulzinho.

De acordo com ele, o espaço recebia vereadores, prefeitos, poetas, advogados, sindicalistas e até ex-anistiados que, com a abertura política pós-ditadura militar, a par-tir de 1984, se reuniam para conversar. “Eu estava em um movimento sindical, frequen-tava como cliente na calada da noite, ‘be-bemorando’ e aprendi muito sobre questões políticas, culturais, sociais”, relembra.

Logo quando se tornou proprietário da loja, Flores abriu um concurso para escolher o novo nome do estabelecimento. Entre as sugestões, que precisavam ter relação com a cidade, estavam ‘Luzes da cidade’ e ‘Jaca-

randás’. Mas ‘Qorpo Santo’ acabou vencen-do, em homenagem ao teatrólogo, poeta e jornalista gaúcho.

Depois da reforma que o viaduto pas-sou em 2001, a equipe técnica responsável pela obra não liberou o banheiro que fica-va dentro do bar. Para não perder o ponto, o comerciante fez do local um sebo. “Não era simplesmente um bar, não respeitaram a identidade do espaço como histórico. En-tão, nós transformamos nesse amontoado de coisas, uma miscelânea”, diz. Ele completa: “Aqui a gente não vive cultura, a gente res-pira cultura”.

Espaço abriga história e cultura da cidade

N ão apenas de histó-ria se alimenta um monumento, mas também de cuidado, manutenção e ino-

vação. Sabendo disso, a Associação Representativa e Cultural dos Co-merciantes do Viaduto Otávio Rocha (Arccov), em parceria com o Movi-mento Amigos do Viaduto e outras entidades, luta para devolver à Capi-tal um viaduto mais moderno, limpo, funcional e seguro.

A intensa participação dos as-sociados junto ao Conselho Muni-cipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) do Plano Di-retor da cidade, originou um projeto de restauração do Viaduto Otávio Rocha que deve ser apresentado em breve. “O único projeto aprovado e executado em toda a história do Conselho”, comemora Adacir José Flores, presidente da Arccov que de-fende a restauração do viaduto. “Nós não queremos reavivar, porque vida

esse viaduto já tem”, argumenta.Orçado em R$ 33 milhões, o

projeto está pronto para ser avalia-do pelo prefeitura de Porto Alegre. “Parece ser muito, mas para um pa-trimônio como esse não é nada. Eles fizeram esses viadutos padrão Fifa que custaram em torno de R$ 28 e 30 milhões”, compara. De acordo com Flores, a associação ficará encarrega-da de buscar os recursos necessários para obra que prevê diversas inova-ções. “O viaduto vai ficar tão ilumi-nado quanto a Torre Eifel”, garante, contando os detalhes da iluminação que utilizará o sistema LED e permi-tirá a troca de cor de acordo com o tema. “Na Semana Farroupilha, por exemplo, o viaduto estará iluminado com as cores da bandeira do Estado, quando tiver Grenal as cores serão azul e vermelho”, detalha.

“Esse projeto vai devolver essa pérola, eu digo sempre que o via-duto é uma pérola que tem que ser devolvida à sociedade, porque ela

é única no mundo”, referindo-se ao fato de a obra possibilitar o trânsito pelos lados, por cima, por fora e, fu-turamente, de novo por dentro, com a reabertura das escadarias internas do monumento.

No entanto, Flores reivindica que as identidades material (arquite-tura original do patrimônio) e ima-terial (a história de cada um dos per-missionários) sejam mantidas com os ajustes. “Eu digo, se nós não somos o pulmão do viaduto, nós somos o coração, pois nós vivemos aqui dia-riamente”, declara orgulhoso.

O comerciante também co-menta que os associados querem va-lorizar o espaço para ser um pequeno centro de trabalho artesanal, como conserto de sapatos, violões, reló-gios - serviços que sempre estiveram presentes no local desde sua abertura. “Nós vamos trabalhar com o gover-no e seus órgãos para que o viaduto ofereça mais prestação de serviços”, assegura.

Localizado na parte superior do viaduto, hotel Everest cede espaço para reuniões Arccov é formada por lojistas e defensores do espaço

Flores é presidente da associação dos comerciantes

Coisas raras são encontradas na loja