cada vez mais jovens

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Cada vez mais jovens Em dez anos, o consumo de maconha cresceu quatro vezes entre os adolescentes de 16 a 18 anos. E a tolerância aumentou. Polícia, Justiça e escola têm punido menos o usuário Monica Gailewitch Selmy Yassuda A atriz Maria Mariana começou a fumar aos 14 anos. Logo na primeira experiência seu pai, Domingos de Oliveira, percebeu que ela havia fumado: ele não achou nenhuma tragédia e deu o aval para que ela usasse a droga em casa A maconha é a droga ilícita mais tolerada pelos brasileiros. Embora o consumo tenha aumentado regularmente nos últimos anos, a polícia prende menos usuários, a Justiça condena pouco e a escola aceita mais. Dados da Secretaria de Segurança Estadual do Rio de Janeiro mostram que o número de pessoas flagradas com maconha vem diminuindo consideravelmente. Em apenas um ano, houve uma redução de 60%. No Estado de São Paulo, foi de 30%. Em Porto Alegre, os casos caíram

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Cada vez mais jovensEm dez anos, o consumo de maconha cresceuquatro vezes entre os adolescentes de 16 a 18 anos. E a tolerncia aumentou. Polcia, Justia e escola tm punido menos o usurio Monica Gailewitch Selmy Yassuda

A atriz Maria Mariana comeou a fumar aos 14 anos. Logo na primeira experincia seu pai, Domingos de Oliveira, percebeu que ela havia fumado: ele no achou nenhuma tragdia e deu o aval para que ela usasse a droga em casa

A maconha a droga ilcita mais tolerada pelos brasileiros. Embora o consumo tenha aumentado regularmente nos ltimos anos, a polcia prende menos usurios, a Justia condena pouco e a escola aceita mais. Dados da Secretaria de Segurana Estadual do Rio de Janeiro mostram que o nmero de pessoas flagradas com maconha vem diminuindo consideravelmente. Em apenas um ano, houve uma reduo de 60%. No Estado de So Paulo, foi de 30%. Em Porto Alegre, os casos caram pela metade. A situao semelhante em outras capitais brasileiras. A anlise dos ltimos censos penitencirios no deixa margem a dvidas: o volume de condenaes por uso de drogas caiu mais de 20% nos ltimos anos. Entre as maiores escolas particulares do pas, o nmero de expulses relacionadas com o uso de maconha tambm baixou. Hoje, em apenas um de cada dez casos, o estudante convidado a se desligar do estabelecimento. Geralmente, quando fuma dentro das dependncias do colgio.

De acordo com um clculo aproximado, quase 700 toneladas de maconha so consumidas todos os anos no pas. quantidade suficiente para a confeco de 700 milhes de cigarros e para deixar satisfeitos algo como 5 milhes de usurios um stimo do nmero de fumantes de tabaco. No ranking do consumo das drogas, ela vem quilmetros frente de crack, cocana, herona ou ecstasy (veja quadro). Um levantamento de uso de drogas entre estudantes em dez capitas brasileiras, realizado pelo Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas Psicotrpicas (Cebrid), da Universidade Federal de So Paulo (Unifesp), revelou que o consumo freqente da maconha quadruplicou em apenas dez anos. O dado mais impressionante, no entanto, outro. Conforme uma tendncia tambm observada em outros pases, esse aumento maior entre adolescentes e jovens na faixa que vai dos 16 aos 18 anos. Nessa comunidade muito jovem, 13% das pessoas fazem uso da maconha no Brasil. Outro fato surpreendente: algumas estimativas extra-oficiais informam que at 50% dos jovens brasileiros experimentaram a Cannabis sativa, nome cientfico da erva, pelo menos uma vez na vida. Isso significa que se chegou perto de uma situao em que a dvida no mais saber se uma pessoa vai experimentar um cigarro de maconha. Agora, a pergunta mais realista quando ela far isso. O problema desse avano da maconha a banalizao do vcio. A tolerncia com o lcool e o cigarro produziu o fenmeno do "cigarrinho" e da "cervejinha". Hoje, j h quem use a expresso "baseadinho" para tratar de uma droga que, como o cigarro e o lcool, tem efeitos colaterais ruinosos. Segundo os especialistas, a maconha produziria uma perda da capacidade cognitiva. Ao fumar um baseado duas a trs vezes por semana, o consumo mdio de um usurio, a pessoa passa a apresentar alguma dificuldade para reter conhecimentos. Muitos usurios relatam uma perda da capacidade de memorizao e tambm de aprendizado. Mesmo depois da interrupo do uso, o efeito pode persistir. A segunda caracterstica a perda da motivao. As pessoas, em geral, desistem de projetos a longo prazo e alegam cansao para tarefas simples. "Quando voc fuma, no segue uma seqncia lgica. A ateno fica flutuante. Depois de um tempo, essa postura acaba prevalecendo", diz F.P., estudante paulista de 23 anos e usurio. Tanto no Brasil quanto em outros pases, a maconha conquistou uma legio de usurios na dcada de 70, durante a fase "paz e amor", que se esticou por anos, sob a influncia do movimento hippie dos Estados Unidos. A juventude que usava cabelos enormes, roupas desalinhadas e muito coloridas, numa manifestao de repdio cultura bem-comportada das geraes anteriores, tambm tomou a maconha como um de seus apetrechos na aventura de, como pensava, criar um mundo melhor. O sonho um dia acabou, como se sabe, e a religio do protesto pelas atitudes s sobreviveu em ncleos minsculos e inexpressivos. Assim, de perguntar o que faz a maconha conquistar velozmente uma gerao de garotos e garotas to novos nos dias de hoje. Existem vrias razes apontadas pelos usurios, jovens ou no, para fumar maconha. Em primeiro lugar, obviamente, os consumidores usam a erva porque sentem que ela lhes proporciona sensaes compensadoras. O publicitrio paulista R.L., 25 anos, diz que ao fumar maconha sente que "trocou um chip". De repente, passa a ficar despreocupado, sente-se mais divertido e v as coisas de outra maneira, conta ele. R.L. adora fumar maconha e andar de patins. Em sua opinio, o vento bate em seu corpo de outra maneira, e ele passa a respirar de forma mais satisfatria. Tudo fica mais colorido. "Vou continuar usando enquanto me fizer bem", afirma o publicitrio, que fuma trs baseados por semana. A mesma seduo a erva exerce sobre o mdico D.J., 45 anos, morador de Braslia. Todas as semanas, ele fuma pelo menos uma vez, geralmente com os amigos. O mdico diz que passa a reparar em coisas que no perceberia se estivesse sbrio. Gosta de tocar msicas e fala que seu desempenho ao violo melhora muito quando fuma a erva. "Pareo sentir a msica. Para mim, funciona como um drinque depois do expediente", conta o mdico.

Orlando Brito

Gabeira: "Os consumidores de maconha de hoje no se enquadram em nenhum esteretipo. No d para desconfiar"

A maconha tem ainda sobre as concorrentes a vantagem de j ser considerada uma droga relativamente leve, diante da devastao fsica e psicolgica provocada pelas mais pesadas. Por fim, ela mais barata. Por 1 real, consegue-se um cigarro. A erva consumida no Brasil vem de dois lugares, do Nordeste e do Paraguai, transportada para os grandes centros em caminhes ou pequenos avies. Ao chegar s cidades grandes, dividida em blocos de 10 quilos para traficantes mdios, que repartem esses sacos em volumes de 1 quilo cada um para vender aos pequenos traficantes. O preo da maconha vai crescendo conforme o ponto da rota em que se est. O quilo fica entre 30 e 60 reais no serto de Pernambuco, onde produzida. Em Ponta Por (MS), na rota que vem do Paraguai, custa entre 50 e 100 reais. Em Santa Catarina, j se pagam 250 reais por 1 quilo, que bate nos 500 em So Paulo e em 1.000 reais no Rio. Apesar da diferena de rotas entre maconha e cocana, a rede de traficantes a mesma. A Polcia Federal diz que o trfico da erva foi uma etapa anterior da distribuio da cocana. Quando passaram a ter contato com os cartis colombianos de p, os traficantes j tinham a experincia de distribuir a maconha pelo pas e precisaram s fazer a adaptao do sistema mercadoria mais lucrativa que vinha dos cartis. Encontrar a droga est longe de ser um problema para algum que decida usar maconha. Numa pesquisa recente feita pela Unifesp, cerca de 70% dos usurios consideraram muito fcil achar quem lhes venda. Em geral, o usurio obtm a maconha com um amigo prximo. Alguma pessoa ligada a um pequeno traficante consegue uma quantidade maior e repassa aos outros do grupo. Aquela histria de que preciso subir morro para conseguir um baseado apenas parte da verdade. A universitria carioca T.L., 20 anos, diz que para comprar a droga s precisa apertar o boto do elevador e sair da portaria de seu prdio. Uma vez por semana, o fornecedor da vizinhana, um jovem de 21 anos que luta jiu-jtsu, passa regularmente com a mercadoria. O encontro s 18 horas de sexta-feira. Ele pra em frente do prdio dela num bairro de classe mdia do Rio e faz o sinal: um assovio. A jovem desce do prdio e pega o pacotinho. A trouxinha, com capacidade para dois baseados, custa 2 reais. Muitas vezes, h mais de uma pessoa para comprar a droga e uma delas toma a iniciativa de acender um cigarro ali mesmo na rua. Quando isso acontece, geralmente se passa o cigarro tambm s pessoas em volta para um "tapinha". Ao contrrio da cocana, a maconha uma droga mais democrtica no sentido distributivo. Cadu Pilotto

A atriz Cladia Ohana j experimentou, mas no quer que sua filha Dandara use a droga

A mudana em relao dcada de 70 espantosa. Naquele tempo, havia um preconceito explcito contra quem fazia uso de maconha. O deputado federal Fernando Gabeira, do Rio, lembra que existiam apenas dois caminhos para o jovem rebelde: a luta armada ou o fumo. Gabeira, que percorreu os dois, diz que fumar era uma maneira de protestar contra o sistema e aderir aos ideais pacifistas daqueles conturbados anos. Entre os universitrios e intelectuais de esquerda, consumir a erva tinha um significado difuso que poderia traduzir-se em oposio a vrias coisas praticadas pelas outras pessoas. Significava, por exemplo, opor-se s guerras, como a do Vietn, destruio da natureza e, no caso do Brasil, ditadura militar que governava o pas. Diferentemente de Gabeira, a maioria dos brasileiros jovens e rebeldes aderiu apenas droga. No incio, o grupo de maconheiros era pequeno e facilmente identificvel. Alm dos cabelos compridos, da cala boca-de-sino, das batas e outros adornos no estilo indiano, muitos deles adoravam pendurar uma foto "rebelde" na parede do quarto, como a do lder guerrilheiro Che Guevara ou do cantor jamaicano Bob Marley. Na Jamaica, maconha uma religio. "Era uma curtio", lembra o arquiteto mineiro A.N., 57 anos. Ele usou a droga pela primeira vez em uma viagem Bahia. Estava com os amigos e doido para saber o que era aquilo de que as pessoas tanto falavam. Da curiosidade, passou ao vcio. Fumou todos os dias durante cinco anos. Hoje, "aperta um" raramente. Clientes e colegas nem sequer desconfiam que A.N., um senhor serissimo, seja um maconheiro com mais de trinta anos de estrada. Para essa gerao, a maconha passou a ser cultuada como uma droga que permitia a reflexo e a divagao, observa o deputado Gabeira. O passo seguinte foi a adeso de outras turmas, como surfistas e universitrios. No h uma figura que sintetize o maconheiro de hoje em dia. Existem cabeludos, carecas, atletas, sedentrios, descolados, pobres, ricos, jovens e velhos fumando maconha. E a droga consumida livremente em lugares como praias, universidades e shows de rock. "Os consumidores de hoje no se enquadram em nenhum esteretipo. So pessoas das quais ningum desconfiaria", diz Gabeira, que lana um livro sobre o tema no prximo ms. A maconha resistiu ao avano de vrias outras drogas. Na dcada de 80, a cocana se tornou uma coqueluche. Em certos meios, como o mercado financeiro, com seu ritmo alucinante, o p prosperou muito nesse perodo. Mais tarde, veio o crack, um tipo de pasta de cocana para as camadas mais pobres da populao e, recentemente, o ecstasy, droga bastante utilizada pelos que gostam de passar a noite inteira sacolejando em danceterias. Comparados aos efeitos dessas drogas, os da maconha so muito mais brandos. Ningum, por exemplo, vai morrer de overdose de maconha. Seu poder viciante tambm no to alto. De cada dez pessoas que experimentam a erva, s uma desenvolver dependncia. Em usurios de cocana, esse nmero cinco vezes maior. Os males mais freqentes da Cannabis so comparveis aos do cigarro e do lcool. Com a vantagem de no deixar a pessoa mais agressiva ou propensa a algum tipo de ato violento, como no caso do lcool. O cantor Lobo, 42 anos, que fez a transio da maconha para a cocana, v uma diferena fundamental entre a erva e o p. "A maconha um poderoso relaxante mental e muscular. Voc fica mais introspectivo. A cocana como uma bateria extra. A pessoa ganha uma energia que no tinha. Passa a pensar rpido e se acha brilhante", diz.

A revista High Times, especializada em todos os assuntos ligados maconha: a droga vem ganhando espao. Na Holanda e em Portugal, maconha no d cadeia

Muitos dos que se viciam em maconha passam depois para drogas mais pesadas, como foi o caso de Lobo. Os especialistas afirmam que essa passagem bastante comum. A erva seria, segundo eles, uma porta de entrada para outras drogas. Isso no significa que toda pessoa que fuma maconha vai passar a cheirar cocana no ms seguinte e a fumar crack at o final do ano. No entanto, mais de 90% dos usurios dessas drogas fizeram primeiro um estgio na maconha. Estatsticas do Departamento de Sade e Servios Humanos do governo americano mostram que um em cada quatro consumidores de maconha j experimentou cocana. O motivo simples. As mesmas razes que induzem ao baseado podem arrastar a pessoa para o p. Entre os vrios motivos que levam o jovem a fumar maconha, h alguns mais freqentes: desequilbrio familiar, necessidade de auto-afirmao perante um grupo de amigos e tambm a curiosidade. Como essas situaes so mais comumente encontradas entre adolescentes e jovens, explicvel por que razo a faixa com maior nmero de consumidores a que vai dos 16 aos 18 anos de idade. "Antes, o encontro com a droga acontecia na faculdade. Hoje, a primeira experincia se d no colgio", diz o psiquiatra Ronaldo Larangeira, professor do departamento de psiquiatria da Unifesp. Todos os adultos sabem o que a busca de auto-afirmao das pessoas mais novas. Para elas, a necessidade de se sentirem aceitas por seu grupo social muito maior. Aos olhos inexperientes de alguns jovens, o fumante de maconha revela certa autoconfiana, determinado tipo de coragem, porque faz algo que proibido. Essa combinao pode tornar-se incontornvel para pessoas mais frgeis. Um caso tpico o da estudante paulista Kamila Romero, 19 anos. Kamila sempre via os amigos do bairro usando a droga. O desejo de fazer parte da turma levou a menina a experimentar a erva. Passou a fumar todos os finais de semana e em pouco tempo havia trocado as velhas amizades por novos amigos. Hoje freqenta uma clnica para dependentes de maconha. Comentrio de sua me, Lourdes Romero, 47 anos: "Acho que acabei me tornando uma me ausente por causa do trabalho. Mas estou apostando tudo no tratamento. J sinto minha filha mais prxima de mim".

Joo Passos

O cantor Lobo, hoje afastado das drogas, fez a transio da maconha para a cocana: "Toda droga um risco"

Entre os pais, os mais tolerantes so justamente aqueles que j fumaram. A atriz Maria Mariana tinha o aval do pai, o dramaturgo Domingos de Oliveira, para consumir maconha. Ela experimentou a erva aos 14 anos num condomnio onde morava. Assim que terminou de fumar, foi para casa. O pai, Oliveira, abriu a porta e, ao reparar que a menina estava com os olhos vermelhos, perguntou se ela tinha fumado. Sim, tinha. Para o dramaturgo, no foi nenhuma tragdia. Na sua viso, experimentar maconha era uma espcie de rito de passagem. Ele prprio chegou a provar a droga, mas no gostava de fazer uso dela porque se sentia um pouco abobado quando fumava. Com a concordncia dos pais, Mariana fumou muito durante trs anos dentro de casa mesmo. Hoje, no tem boas lembranas desse perodo e reprova o consumo da droga. A atriz diz que a maconha deixa as pessoas sem iniciativa e que ficava deprimida com o uso. A atriz Cludia Ohana fuma apenas em festas e em ocasies especiais. Ela no gostaria que sua filha Dandara, 16 anos, fumasse maconha. Mas as duas j conversaram sobre o tema e Cludia disse filha que, se for experimentar, faa tudo dentro de casa. Entre as razes que facilitam a adeso droga, cita-se com freqncia o ambiente familiar desajustado. Um estudo sobre a relao entre pais e filhos e o uso de maconha, conduzido pelo Hospital Mount Sinai, nos Estados Unidos, que teve incio em 1979 e ainda est em andamento, mostrou que crianas agressivas, que tm um relacionamento distante com os pais, esto mais predispostas a usar maconha na adolescncia. Os especialistas tambm citam como fator capaz de favorecer a inclinao pela droga o autoritarismo excessivo de alguns pais ou seu inverso, a incapacidade de impor autoridade aos filhos. O fato que, se algum fuma maconha, isso no significa que jamais deixar de faz-lo. Ao contrrio. Segundo levantamentos, uma em cada quatro pessoas que experimentam a droga o faz por duas ou trs oportunidades e pra. At os antigos viciados muitas vezes se livram da escravizao droga. "O trabalho de recuperao tem at 40% de chance de sucesso", diz Elisaldo Carlini, especialista no tema e professor da Universidade Federal de So Paulo.

Ricardo Benichio

Ambulatrio da maconha, ligado Unifesp: o trabalho de recuperao com os viciados tem 40% de chance de funcionar sem nenhum problema

No Brasil, consumir drogas crime. Os infratores esto sujeitos a uma pena que varia entre seis meses e dois anos e que est prevista no artigo 16 do Cdigo Penal. Como esse artigo vem sendo cada vez menos aplicado, VEJA ouviu vinte delegados das polcias Militar, Civil e Federal para saber quais os motivos que as esto levando a abrandar o tratamento aos usurios. As respostas foram parecidas. A droga continua sendo uma prioridade para a polcia. Tanto que as apreenses de maconha cresceram oito vezes de 1993 para c. O que mudou foi o foco. O policial no tem mais interesse em prender fumantes de maconha por trs razes bsicas. A primeira que outro o conceito que a polcia tem do usurio. Hoje, ele visto como uma pessoa que precisa de ajuda e no como um criminoso. "A polcia um reflexo da sociedade. Se a maconha tolerada largamente, o policial fica influenciado por isso", diz o ex-coronel da Polcia Militar Jos Vicente da Silva Filho, atualmente especialista em segurana pblica do Instituto Fernand Braudel, um centro de pesquisa de So Paulo. Nas instituies policiais, a explicao para a tolerncia com o usurio de maconha est num termo jurdico: adequao social. De acordo com juristas ouvidos por VEJA, a Justia condena aquilo que reprovado pela sociedade. Quando uma contraveno passa a ser tolerada pelas pessoas, as sentenas sofrem imediatamente esse reflexo. o mesmo princpio que leva complacncia com os apontadores do jogo do bicho, por exemplo. Os juzes passam a no condenar o usurio de maconha porque o consumo dessa droga especfica no mais to recriminado pelas pessoas. No mximo, punem com penas alternativas como trabalhos comunitrios e multas. No caso de menor de 18 anos, o tratamento tambm mudou. Hoje, ele conduzido s varas da infncia e juventude. L, avaliado por uma assistente social e por um mdico enquanto espera o julgamento, que em geral ocorre no mesmo dia. As detenes so raras. Os pais so convidados a participar de palestras de orientao sobre drogas e os adolescentes encaminhados para fazer um curso antidrogas e, se for o caso, um tratamento mdico. uma mudana significativa para quem sempre tratou essa questo a bordoadas. "Temos observado que orientar ajuda mais do que repreender de forma enrgica", diz Aglausio Novais Filho, delegado titular da Delegacia de Proteo Criana e ao Adolescente, no Rio de Janeiro.

Ricardo Benichio

Kamila, 19 anos, experimentou a droga para fazer parte da turma do bairro. A me, Lourdes, no desconfiou

A viso da maconha dentro das escolas tambm mudou. VEJA ouviu vinte pessoas na rea da educao. Foram diretores de instituies particulares, associaes de pais e mestres e sindicatos de professores. Todos os entrevistados confirmaram que o tema tratado com muito mais flexibilidade hoje em dia. Alguns disseram que a maconha um problema cotidiano nas escolas e, se todos os alunos fossem expulsos, as salas ficariam reduzidas quase metade. A soluo de uma parte dos estabelecimentos foi criar programas de preveno, em que o assunto discutido, e introduzir o tema em diversas disciplinas do currculo escolar. Uma pesquisa realizada recentemente pelo Colgio So Vicente de Paulo, onde estudam filhos da elite carioca, revelou que 40% de seus alunos j usaram a maconha, 18% so consumidores espordicos e 6% so dependentes. O resultado levou a instituio a criar um projeto em que profissionais especializados e coordenadores promovem palestras, dinmicas de grupo, debates e filmes sobre drogas. O Colgio Objetivo, em So Paulo, tambm afrouxou o tratamento: no expulsa os alunos que fumam maconha desde 1998. "Houve um aumento considervel no nmero de casos e ns preferimos adotar uma poltica de preveno e orientao", diz Alfredo Antonio Fernandes, coordenador-geral do Colgio Objetivo Jnior. Uma prova de que a maconha atingiu um patamar que nunca havia alcanado: a aceitao. O que acontece depoisDepois da primeira tragada, a maconha no demora para fazer efeito. A ao da droga chega ao seu pico mximo em apenas vinte minutos. Quem fuma a erva sente um relaxamento geral, aumento da percepo dos sentidos, uma leve euforia e sensao de bem-estar. A noo de tempo e espao fica distorcida. Os batimentos cardacos se aceleram e a presso sangunea sobe. O fumante apresenta as pupilas dilatadas, certa secura na boca e tem o apetite aumentado. Em alguns casos, o usurio manifesta leve rinite e faringite. Depois de uma hora, o efeito mais forte comea a passar. A partir da, vai diminuindo gradativamente, mas pode demorar de cinco a doze horas para passar completamente. A maconha, cujo nome cientfico Cannabis sativa, compe-se de mais de sessenta substncias. Mas a ao da droga no organismo resultante de apenas uma delas: o delta-9-tetrahidrocanabinol, conhecido como THC. Ela a substncia ativa que proporciona os efeitos mentais desejados por quem consome a droga. Na dcada de 60, a maconha apresentava de 0,5% a 1% de THC. O que significa que a gerao hippie fumava cigarros de maconha bem mais fracos que os atuais. Hoje em dia, a concentrao dessa substncia na droga de 5%. O THC age no crebro por meio de receptores especficos e outros sistemas de neurotransmissores. Normalmente, uma pequena quantidade da substncia, algumas tragadas por exemplo, suficiente para desencadear o estado de bem-estar e euforia no usurio. A maconha tem sido o foco de um debate cientfico acirrado. Nos ltimos anos, os pesquisadores vm procurando dimensionar os malefcios da droga com afinco. Entre algumas dvidas, j se sabe, por exemplo, que seu uso crnico traz conseqncias danosas atividade cerebral e provoca cncer. Tambm descobriram que o THC modifica a forma como as informaes sensoriais so processadas pelo hipocampo, uma parte fundamental do crebro. Um estudo com alunos de 15 a 17 anos, realizado pelo Nida, o instituto americano de abuso de drogas, mostrou que as habilidades em que se exigem ateno, raciocnio e memria ficam prejudicadas entre os usurios pesados de maconha. Os pesquisadores compararam 65 deles, que fumaram maconha diariamente durante trinta dias, e 64 usurios leves, que usaram a droga moderadamente no mesmo perodo. Depois de 24 horas de abstinncia de maconha, foram aplicados vrios testes medindo aspectos como ateno, memria e aprendizado. Os usurios pesados cometeram muito mais erros do que os que fumavam pouco.

A maconha no mundoA maconha a droga ilcita mais consumida no mundo. A Organizao Mundial de Sade estima que existam mais de 140 milhes de usurios espalhados pelo planeta. Os Estados Unidos so o pas que mais consome. Ela utilizada com regularidade por 9% de sua populao, um contingente de 25 milhes de pessoas. Quase 36% dos americanos j experimentaram a droga pelo menos uma vez na vida. Na Europa, ela consumida, em mdia, por 5% da populao. Assim como no Brasil, alguns pases europeus tm uma tolerncia razovel com as pessoas que fazem uso da droga. Na Alemanha, na Itlia e na Espanha, o conceito de que o usurio um caso de sade pblica e no de polcia vem aumentando. Nesses pases, o consumo da maconha continua sendo um ilcito penal, mas a tolerncia social a esse hbito tem crescido. Entre os europeus, dois pases foram mais longe no caminho da liberalizao. Em Portugal, acaba de ser aprovada uma lei que descrimina o uso de drogas. Os consumidores pegos em flagrante no sero mais presos. Agora, quando algum for apanhado fumando um baseado, ser encaminhado para tratamento mdico. No mximo, ser obrigado a pagar multa, que pode variar de 40 a 250 reais. O outro pas que descriminou a droga a Holanda. L, os usurios podem carregar at 5 gramas de maconha sem ser perturbados pelas autoridades. H centenas de bares que dispem de cardpios com inmeras variaes da erva. Elas so consumidas sem a menor cerimnia pelos fregueses. Basta entrar no bar, escolher a procedncia da maconha preferida e pedir ao garom. Tem do Paquisto, da Colmbia, do Marrocos e de outros. No cardpio, igualzinho aos de um restaurante comum, existem avisos sobre qual a droga mais forte. Para os adeptos, uma festa.

"Guardava at as pontas"Divulgao/Paulo de Tarso

O apresentador de TV Thunderbird: "Houve perodos em que eu comprava meio quilo de baseado para fumar"

O apresentador de TV e msico Luiz Fernando Duarte, 38 anos, o Thunderbird, foi consumidor de maconha e de outras drogas. Hoje, est limpo. Sua experincia com a erva: Veja Quando voc conheceu a maconha? Thunderbird Na faculdade, aos 18 anos. Soube que um amigo estava fumando maconha e fui alert-lo sobre os perigos da droga. Minha educao pregava que as drogas eram um monstro. Acho que isso at favoreceu meu consumo. Quando descobri que a maconha no era um monstro, mas uma coisa simples, corriqueira, percebi que os caretas estavam errados. Os loucos estavam certos. Na primeira vez, imaginei que fosse ver ETs. S fiquei chapado. Fumei de novo no dia seguinte. Dessa vez foi uma "bomba" enorme e a sim parecia que tinha sido abduzido por extraterrestres. Veja Voc comprava? Thunderbird Comecei a usar todos os dias e vi que estava na hora de comprar. Era emocionante enfrentar todo aquele perigo de conseguir a droga. Eu me arriscava nas favelas. Naquela poca, no comeo dos anos 80, tudo era mais difcil. Muito mais do que hoje. Eu me lembro de que tudo isso me encantava. Mais ainda: a turma da maconha me recebeu muito bem. Veja Quantos baseados voc fumava por dia? Thunderbird Houve perodos em que eu comprava meio quilo de baseado para fumar. S para mim. Montei uma banda que se chamava Cannabis Sativa. A gente no tocava nada. S fumava maconha. E a vieram os primeiros pesadelos. A maconha muito desmotivante. D uma preguia.... Veja E os estudos? Thunderbird Acordava s 6 da manh para ir faculdade de odontologia e tinha de estudar tarde. Fumava todos e no conseguia acordar. Comeou a ficar muito difcil estudar. Veja Quando voc descobriu que no ficava sem a maconha? Thunderbird Quando acabava eu sempre queria mais. Existem perodos de estiagem em que some a maconha do Brasil. A batia o desespero. Guardava at as pontas no cinzeiro para no ficar sem. Veja Voc mudou seu comportamento com as pessoas? Thunderbird Completamente. Meu convvio com a famlia ficou muito difcil. Todos para mim eram caretas. Minha rebeldia nessa poca foi fermentando com a maconha e cresceu muito. Em 1980, fumar maconha era um ato de rebeldia. Hoje corriqueiro. Veja At quando durou seu namoro com a maconha? Thunderbird Isso durou at o final da faculdade. Em 1982 briguei com a maconha. Eu fumava e ficava paranico. Achava que estava todo mundo atrs de mim. Mas no conseguia largar. Aos 21 anos, quando me formei em odontologia, conheci a cocana.

Com reportagem de Angela Nunes, Anna Paula Buchalla,Maurcio Oliveira, Tatiana Chiari, Ronaldo Frana e Silvia Rogar