cabral e paiva

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Revista Teias v. 14 • n. 28 • 135-151 • maio/ago. 2012 135 NOÇÕES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: MODESTA FLOREM COLEÇÃO PARA PROFESSORES Márcia Cabral Silva (*) Tamires Faria de Paiva (**) Tudo está conforme se são apenas noções. O tratado virá, de outrem, na sua oportunidade. Esta contribuição representa apenas a modesta flor, que prevê o fruto optimo. Assim seja. Afrânio Peixoto RESUMO Neste artigo, busca-se investigar o manual Noções de História da Educação, de autoria de Afrânio Peixoto, de modo a evidenciar a importância dos discursos dirigidos à formação de professores nos anos de 1930 a par da inserção da obra na coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira, conformando a série “Atualidades Pedagógicas”. Noções de História da Educação foi publicado para atender à demanda da disciplina de História da Educação, recém-instituída na formação das normalistas àquele momento no Brasil. Com a chancela do movimento renovador educacional, este manual serviu ao mercado livreiro escolar com três edições (1933, 1936 e 1942) e se tornou caso expressivo para a investigação tanto de um processo de consolidação da disciplina de História da Educação como dos próprios mecanismos de produção de uma cultura pedagógica pautada em supostos preceitos modernos de educação. Palavras-chave: História da Educação; manual; formação de professores. No âmbito da historiografia da educação, o manual, o livro, o tratado têm comparecido como promissoras fontes de investigação. Por um lado, permitem aproximações em relação à ordem do discurso formulada por agentes em exercício no campo educacional. Por outro, favorecem interpretações que dizem respeito aos dispositivos materiais nas múltiplas configurações pelas quais são agenciados. Dentre as possibilidades de investigação já mapeadas na área, elementos relativos à produção assim como à circulação desse tipo de impresso podem indicar outros vestígios, de modo que os pesquisadores considerem de forma ampliada as coordenadas da categoria de análise designada na historiografia por cultura escolar 1 . Neste artigo, busca-se examinar em Noções de História da Educação esses múltiplos agenciamentos, com vistas a contribuir com análises na perspectiva acima indicada. Na primeira (*) Professora do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). (**) Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Uerj. 1 Dentre uma vasta produção bibliográfica na área da História da Educação que trata do conceito, ver, em particular, as definições postuladas por Chervel (1990), Julia (2001), Viñao Frago (1998), Forquin (1993). Em que pese a distinção das abordagens, é possível reconhecer nesses estudos a especificidade do campo escolar como campo frutífero de investigação (FARIA FILHO et al., 2004).

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A 'MOdesta Flor" - sobre a Imprensa e o LIvro Noções de Hist[ópria da Educação de Afranio Peixoto

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  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 135

    NOES DE HISTRIA DA EDUCAO:

    MODESTA FLOR EM COLEO PARA PROFESSORES

    Mrcia Cabral Silva(*)

    Tamires Faria de Paiva(**)

    Tudo est conforme se so apenas noes. O tratado vir, de outrem, na sua oportunidade.

    Esta contribuio representa apenas a modesta flor, que prev o fruto optimo.

    Assim seja.

    Afrnio Peixoto

    RESUMO

    Neste artigo, busca-se investigar o manual Noes de Histria da Educao, de autoria de Afrnio Peixoto, de

    modo a evidenciar a importncia dos discursos dirigidos formao de professores nos anos de 1930 a par da

    insero da obra na coleo Biblioteca Pedaggica Brasileira, conformando a srie Atualidades Pedaggicas.

    Noes de Histria da Educao foi publicado para atender demanda da disciplina de Histria da Educao,

    recm-instituda na formao das normalistas quele momento no Brasil. Com a chancela do movimento

    renovador educacional, este manual serviu ao mercado livreiro escolar com trs edies (1933, 1936 e 1942)

    e se tornou caso expressivo para a investigao tanto de um processo de consolidao da disciplina de

    Histria da Educao como dos prprios mecanismos de produo de uma cultura pedaggica pautada em

    supostos preceitos modernos de educao.

    Palavras-chave: Histria da Educao; manual; formao de professores.

    No mbito da historiografia da educao, o manual, o livro, o tratado tm comparecido

    como promissoras fontes de investigao. Por um lado, permitem aproximaes em relao ordem

    do discurso formulada por agentes em exerccio no campo educacional. Por outro, favorecem

    interpretaes que dizem respeito aos dispositivos materiais nas mltiplas configuraes pelas quais

    so agenciados. Dentre as possibilidades de investigao j mapeadas na rea, elementos relativos

    produo assim como circulao desse tipo de impresso podem indicar outros vestgios, de modo

    que os pesquisadores considerem de forma ampliada as coordenadas da categoria de anlise

    designada na historiografia por cultura escolar1.

    Neste artigo, busca-se examinar em Noes de Histria da Educao esses mltiplos

    agenciamentos, com vistas a contribuir com anlises na perspectiva acima indicada. Na primeira

    (*)

    Professora do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino na Faculdade de Educao da Universidade do Estado

    do Rio de Janeiro (Uerj).

    (**)Mestranda do Programa de Ps-graduao em Educao da Uerj.

    1 Dentre uma vasta produo bibliogrfica na rea da Histria da Educao que trata do conceito, ver, em particular, as

    definies postuladas por Chervel (1990), Julia (2001), Viao Frago (1998), Forquin (1993). Em que pese a distino

    das abordagens, possvel reconhecer nesses estudos a especificidade do campo escolar como campo frutfero de

    investigao (FARIA FILHO et al., 2004).

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 136

    parte, evidenciam-se dispositivos discursivos assim como protocolos materiais, cuja nfase recai na

    organizao dos livros em sries e colees. As marcas dessa tradio em recortes temporais de

    longa e de curta durao parecem indicar configuraes relevantes na perspectiva da histria da

    edio nas fronteiras que mantm com a histria do livro. Na segunda parte, coloca-se em cena o

    manual Noes de Histria da Educao, escrito pelo mdico, educador, Afrnio Peixoto,

    adotando-se a hiptese de que pode ter sido um best-seller naquele presente, a par das marcas de

    constituio relativas ao campo pedaggico que nos permitiram interrog-lo.

    EDIES EM COLEES

    A primeira dcada do sculo XX repudiou o excesso de formatos e imagens que

    caracterizou os ltimos anos modernistas do sculo XIX, e preparou uma etapa

    racionalista limpa de ornamentos e essencialista. Claro que o Modernismo trouxera

    uma contribuio editorial decisiva, primeiro com o florescimento das chamadas Artes

    Grficas e depois com a experimentao de novas tcnicas; isso enriquecera

    notavelmente o aspecto visual dos livros, tanto por fora como por dentro. Mas a

    clebre coleo de bolso de capa dura da Nelson (curiosa editora com vocao

    internacional precoce e com sedes em Paris, Londres, Edimburgo e Nova York) j

    assinalou um estilo de transio, com decorao ondulada minimalista nas capas; seu

    coroamento se deu esplendidamente com a coleo rstica Nouvelle Revue Franaise,

    editada pelo jovem Gaston Gallimard em 1911, com um projeto afortunadamente

    mantido at nossos dias, sem mudanas considerveis. (SATU, 2004, p. 191-192).

    A ideia de editar livros em sries, bibliotecas ou colees percorre tanto a histria do livro

    quanto a trajetria das edies. Na Frana, este modelo estabelece rupturas entre um tipo de edio

    em grandes formatos, luxuosa, mais cara e de restrita circulao e outro em propores menores,

    mais econmica e de maior disseminao entre os leitores. O estudo em torno da histria da edio

    realizado por Olivero (1999) acentua de modo interessante essas transformaes no impresso. Tal

    processo envolveu editores, impressores, livreiros e, em maior medida, os leitores emergentes, no

    efervescente perodo ps-revoluo industrial, assim como em grande parte do oitocentos na

    Frana. Nesse contexto, leitores das camadas mdias passavam a ter acesso s novas brochuras, o

    que contribua para inseri-los na cultura letrada do perodo2.

    2 Segundo Olivero (1999), pode-se considerar ter havido uma revoluo na produo do livro francs nos anos de 1830,

    cujos elementos dizem respeito de incio a uma revoluo de natureza material. Nesse cenrio, desponta Gervais

    Charpentier, que se estabelece como editor em Paris no ano de 1833. Em 1837, lana, graas s novas possibilidades

    tcnicas de impresso, um novo formato de livro: in-18 grand-Jsus vlin, mais gracioso e cmodo do que o in-8

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 137

    Percepo semelhante traz Mollier (2008; 2010), ao rememorar os primrdios do acesso

    leitura na Frana pelos jornais, por meio dos folhetins costurados em cadernos, procedimento

    artesanal largamente utilizado pelas camadas populares, a par do protagonismo exercido pelas

    enciclopdias e dicionrios, como os principais meios de difuso dos saberes de natureza

    pragmtica entre os leitores. No se pode esquecer que a grande enciclopdia permitiria ao

    homem alcanar em volumes formatados in-folio, in-oitavo, in-quarto pelas mos dos editores-

    livreiros a universalidade do conhecimento disponvel. Esse fora, sem dvida, o grande projeto de

    LEncyclopdie, no horizonte dos iluministas, que passava, graas s transformaes no processo de

    impresso, a ser consumida em volumes separados, portteis e organizados em sries. Logo,

    facilmente identificadas e ao alcance de um nmero mais amplo de leitores.

    O caso francs atesta a relevncia do revolucionrio empreendimento editorial: pelo formato

    menor, baixo custo de impresso, livros mais baratos e maiores possibilidades de sua disseminao.

    A frmula bem-sucedida estender-se-ia a outros pases, nos quais imprimir, editar e fazer circular o

    impresso respondia a novas demandas relacionadas ao circuito da palavra impressa. De tal forma,

    observa-se a emergncia de colees baratas, em pequenos formatos na Blgica, Gr-Bretanha e na

    Alemanha ao longo do sculo XIX, em processos que no descartavam a contrafao e cuja lgica

    introduzia competies nos modos de produzir e fazer circular o livro impresso como mercadoria

    rentvel.

    No Brasil, desde o oitocentos, acompanham-se algumas experincias editoriais de destaque,

    ora seguindo medidas restritivas, ora em propores ampliadas, conforme as ondulaes dos fatores

    sociais, polticos e econmicos. Todavia, os anos de 1900 dariam maior projeo ao livro impresso,

    com o incremento da urbanizao, a partir dos deslocamentos sociais relativos ao processo de

    industrializao, assim como as medidas que visavam ampliao das camadas alfabetizadas3. No

    obstante as rupturas, as mudanas provocariam conflitos, o que evidencia as mltiplas faces do

    idealizado progresso social.

    No que diz respeito sociedade urbana brasileira, os anos de 1930 trazem marcas

    emblemticas desses conflitos. O cenrio da belle poque, que antecedera a revoluo de 1930 e a

    tradicional, pois conjugava beleza, qualidade e praticidade. Em razo do ineditismo introduzido poca pelo editor, as

    edies por ele lanadas foram divulgadas como colees compactas, formato Charpentier (p.49-53). 3 Hallewell (1985) apresenta um mapeamento interessante de diversas firmas que conjugaram a venda e a impresso de

    livros, notadamente a partir da segunda metade do sculo XIX no Rio de Janeiro e em So Paulo. Destaca a influncia

    de Francisco Alves na produo de livros didticos, como consequncia da expanso do sistema educacional, muito

    embora assinale o domnio das livrarias Garnier e Laemmert no domnio editorial dos primeiros anos do sculo XX. (p.

    197-220).

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 138

    ascenso de Getlio Vargas ao poder, revelara-se extremamente contraditrio. Se, de um lado,

    celebravam-se as transformaes arquitetnicas na capital da Repblica nos moldes europeus e o

    surgimento de camadas mdias que se distinguiam em pequenos cargos no comrcio e na

    administrao pblica; de outro, utilizavam-se dispositivos repressivos para regular as camadas

    pobres, analfabetas, em meio a condies insalubres de vida, misria reinante, o que, na viso

    cientfica dos dirigentes, mostrava-se absolutamente inadequado. As medidas, a um s tempo

    profilticas e excludentes, garantiriam o prottipo de sociedade civilizada a ser alcanado em um

    pas em vias de construo. Higienizar a populao pobre, controlar as endemias, os vcios,

    pavimentar e alargar as ruas, remover os cortios foram as medidas adotadas por mdicos-

    higienistas e engenheiros com base em pressupostos regeneradores, visando ao progresso social a

    qualquer custo. As campanhas sanitrias pelo interior do pas, dirigidas por Oswaldo Cruz e que

    contaram com a participao de mdicos como Belisrio Pena e Artur Neiva, so ilustrativas para

    pensarmos os ares de incio do sculo XX e os modos como a mxima do saneamento do Brasil se

    efetivou tanto nos domnios da cidade como na pacatez da vida rural. Afinal, o quadro descrito por

    ltimo no combinava com uma sociedade que se pretendia moderna e civilizada. (SEVCENKO,

    1995).

    A modernidade pretendida, alm da moda, da arquitetura art nouveau, reinventada nos

    trpicos, acenava para mudanas no campo da cultura. Essas mudanas apareciam pouco a pouco

    na emergncia da fotografia, do cinema, da imprensa, das revistas ilustradas, que passavam a

    circular com mais frequncia entre as camadas emergentes. Uma nao civilizada, conforme a viso

    das elites, exigia, da mesma forma, cidados alfabetizados, a circulao de livros, a abertura de

    bibliotecas e de livrarias. No de se estranhar, portanto, a movimentao em torno de tradues e

    de publicaes (SILVA, 2011). No que diz respeito expanso editorial, assiste-se a um cenrio em

    movimento ascendente. Segundo estudo realizado por Miceli (2001), pode-se considerar, inclusive,

    ter havido um incremento no mercado de livros nos anos de 1930:

    Monteiro Lobato foi o maior best-seller de 1937, com 1,2 milho de exemplares de

    livros e tradues sob a sua responsabilidade, ou seja, mais de metade dos 2,3 milhes

    de exemplares impressos pela Companhia Editora Nacional e sua sucursal, a Editora

    Civilizao Brasileira. Outros autores contriburam para o sucesso comercial das

    principais editoras Humberto de Campos (Jos Olympio), Machado de Assis

    (Jackson), Afrnio Peixoto (Guanabara), Joaquim Nabuco (Civilizao Brasileira),

    Aluzio Azevedo e Graa Aranha (Briguiet-Garnier), Agripino Grieco (Companhia

    Brasil Editora), ou seja, algumas das figuras de maior prestgio intelectual da gerao

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 139

    de 1870 ao lado dos polgrafos anatolianos em evidncia na Repblica Velha.

    (MICELI, 2001, p. 146-147)(grifos nossos).

    Se recuarmos para as primeiras dcadas do perodo republicano, observamos um cenrio

    favorvel para fazer florescer o empreendimento editorial da Monteiro Lobato & Companhia em

    So Paulo, cuja longevidade cobriu o perodo de 1918 a 1925. Um primeiro movimento do escritor-

    editor no campo ganha visibilidade ao adquirir o direito de propriedade da Revista do Brasil,

    importante veculo de ideias do perodo (DE LUCA, 1999). Como derivao do arrojado

    empreendimento editorial, emergem as condies necessrias para a abertura da editora4.De um

    lado, a importncia do empreendimento editorial pode ser percebida pelas inovaes no projeto

    grfico, ilustraes bem acabadas. De outro, a iniciativa de se investir em maquinrio moderno,

    quando os demais editores de perodos precedentes haviam sido bastante cautelosos a esse respeito.

    H de se destacar, da mesma forma, os modos de fazer circular os livros: enviados pelo correio aos

    comerciantes de todos os ramos de negcio em regime de consignao.

    O seu sucesso como editor forou-o a entrar no ramo grfico, uma vez que as sees

    de obras dos grandes jornais, que normalmente imprimiam os livros, no estavam

    aparelhadas para produzir a quantidade exigida pelo editor e nem tampouco a

    qualidade esttica desejada. Em maio de 1922, com sua empresa j organizada sob a

    forma de sociedade annima, Lobato anuncia Rangel a instalao das to sonhadas

    oficinas, que tomariam propores cada vez maiores [...]. Em 1924, surgia a

    Companhia Grfica Editora Monteiro Lobato, cujas oficinas prprias estavam

    instaladas no Brs. (DE LUCA, 1999, p. 70).

    Em que pese o investimento de monta, o projeto da casa editorial resultou em falncia

    devido a uma conjugao de fatores: de natureza econmica, de ordem poltica5. Lobato associa-se,

    em seguida, a Octalles Marcondes, inaugurando a Companhia Editora Nacional. O projeto tem

    incio em 1925 e alcana significado particular para a circulao do livro no sistema escolar.

    Necessrio notar que os debates educacionais em torno do movimento da Escola Nova

    estavam na ordem do dia. O perodo favorecia, pois, a produo de dispositivos impressos livros

    didticos, manuais escolares, peridicos educativos que assegurassem os ideais renovados

    veiculados na vida social e postos em evidncia no interior da rede escolar. Como bem divulgado, a

    4 Segundo o estudo de De Luca (1999), a aquisio da Revista do Brasil, que desfrutava de grande prestgio nos meios

    intelectuais, criou condies para a abertura da editora, fundada sob a chancela desse prestgio. Posteriormente, com o

    crescimento do investimento grfico-editorial, o gerenciamento da revista foi delegado a outros (Paulo Prado e Srgio

    Milliet, em 1924), tornando-se meio de propaganda para as edies.

    5 Conferir a esse respeito, alm do j citado estudo de De Luca (1999), Cavalheiro (1955), Hallewell (1986) e Bignotto

    (2007).

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 140

    escola das primeiras dcadas republicanas fora imaginada como espao privilegiado para

    impulsionar as principais mudanas necessrias construo de uma sociedade supostamente de

    bases modernas. A modernidade idealizada virava as costas para o atraso social do perodo

    imperial, elegendo o povo e a criana como massa a ser civilizada e instruda. Contudo, este ideal

    do projeto redentor de uma nao ainda no acontecera, pelo menos do ponto de vista das elites

    sociais.

    Alguns relatos registrados no perodo permitem uma aproximao quase microscpica da

    ordem de governar pela palavra (FOUCAULT, 2009), como bem ilustra o discurso de Olavo Bilac

    para estudantes na universidade de Curitiba:

    Quando me vejo entre os moos de minha terra, sinto-me precipitado, como por

    milagre, fora de mim mesmo e do tempo em que vivo, deslocado do tempo em que

    vivo, deslocado de minha idade, arrojado para uma poca vindoura; j no me vejo no

    Brasil de hoje, ainda em formao confusa, mas no futuro em que ele viver glorioso.

    (Revista do Brasil, v. 3, n. 11, p. 304-305, nov. 1916. Discurso na Universidade de

    Curitiba, apud DE LUCA, 1999, p. 90).

    J a Revista para Todos, em novembro de 1931, celebrava a inaugurao da Avenida Graa

    Aranha no centro do Rio com discurso de Felipe dOliveira e um canto para o revolucionrio

    homem moderno escrito pelo prprio Graa Aranha no ano anterior:

    Canto do Revolucionrio

    A tua revoluo, homem moderno, foi um dom da primavera. As flores arrebentavam

    nos teus caminhos, tu marchaste, pisando as hervas tenras e promissoras. Foi um

    germinal de foras novas, de energias criadoras, na sublime unidade da vida universal

    contigo. Sahiste dos teus pagos, dos teus pampas, desceste das tuas montanhas, dos

    teus cerros, atravessaste os teus sertes e as suas caatingas cantando. O teu canto no

    tinha a melancolia da saudade, era o grito da esperana. O teu olhar no mirava o que

    deixavas para traz. Fitava para a frente e ia criando o mundo novo, que o teu corao

    j criara. H! H! Para a frente! H! H! Contra tudo o que nos oprime, nos aniquila,

    nos esmorece. Destruio, morte, vitria, renovao. Para a frente irmos. [...].

    (ARANHA, 1931, p. 9).

    Nesse contexto, em cuja circulao das ideias elevava-se o progresso ao primeiro plano,

    criada em 1931 a Biblioteca Pedaggica Brasileira. Tratava-se de destacado projeto enciclopdico

    no interior da Companhia Editora Nacional, como mostram estudos no campo da histria da edio,

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 141

    da Histria da Educao6. Uma das iniciativas da editora consistiu no ordenamento cuidadoso desta

    coleo. De modo a conjugar o projeto editorial com o iderio pedaggico do movimento

    escolanovista em voga, Octalles Marcondes convida Fernando de Azevedo para coordenar a

    coleo. Fernando de Azevedo participara ativamente das reformas empreendidas nos anos de

    1920-1930, conduzindo, na condio de diretor da Instruo Pblica, a reforma educacional de

    1927-1930 na capital do Distrito Federal. Distinguiu-se tambm como um dos idealizadores do

    Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, lanado em 1932. Alm disso, vinculara-se criao da

    ABE, clula que reunia a um s tempo a intelligentzia7 e o circuito das ideias pedaggicas do

    perodo, presidindo a associao em 1938. De tal modo, o intelectual reunia atributos e distino

    suficientes nas malhas do projeto de educar pelo impresso, fosse no interior da escola, fosse em um

    escopo mais amplo da vida em sociedade.

    A Biblioteca Pedaggica Brasileira representava, nesta malha cultural de natureza educativa,

    um notvel projeto editorial, visto que seguia uma composio segundo escalas muito bem

    desenhadas, em cinco sries: (1) Literatura Infantil, composta por vrios volumes escritos por

    Monteiro Lobato, por obras de Viriato Correia, como Cazuza; (2) Livros Didticos, com expressivo

    nmero de livros sobre a lngua portuguesa, com a colaborao de Almeida Jnior, Venncio Filho;

    (3) Atualidades Pedaggicas, inclui-se, por exemplo, o livro de Fernando de Azevedo, Novos

    Caminhos e Novos Fins. A Nova Poltica de Educao, que veiculava os princpios da Escola Nova,

    alm de Almeida Jnior, Venncio Filho, Afrnio Peixoto, com Noes de Histria da Educao;

    Sociologia Educacional, de Delgado de Carvalho; (4) Iniciao Cientfica, com publicaes sobre

    sociologia, psicologia, higiene, dentre outros temas considerados cientficos; (5) Brasiliana,

    dedicava-se a publicaes de Histria do Brasil, colaboravam Fernando de Azevedo, Oliveira

    Viana, Alberto Torres, dentre outros.

    6 Ver a esse respeito pesquisas desenvolvidas por Carvalho (2003; 2005), Carvalho e Toledo (2007) e Toledo (2010).

    7 Para um matiz da composio dos intelectuais que passaram pela Associao Brasileira de Educao convm

    observarmos a elaborao do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova. Dos 25 signatrios deste documento, mais da

    metade era composta por mdicos (Afrnio Peixoto, J.P. Fontenelle, Roquete Pinto, Raul Briquet, Antnio F. de

    Almeida Junior, J.G. Frota Pessoa), advogados (Sampaio Doria, Mrio Casassanta, Roldo Lopes de Barros, Hermes

    Lima, Attilio Vivacqua) e jornalistas (Jlio de Mesquita Filho, Ceclia Meirelles e Nbrega da Cunha).

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    PARA O APERFEIOAMENTO CULTURAL E PROFISSIONAL DO

    PROFESSORADO BRASILEIRO: O CASO DE NOES DE HISTRIA DA

    EDUCAO

    Aps o breve quadro da produo livreira no Brasil do incio do sculo XX, e,

    consubstancialmente, das estratgias de organizao de colees para atender a pblicos

    determinados, procuramos problematizar a ideia de editar colees na experincia educacional,

    mormente nos anos 1930. Para isto, trazemos aquela pensada por representantes alinhados ao

    movimento da Escola Nova: a coleo Atualidades Pedaggicas. Dando luzes, especialmente, ao

    manual Noes de Histria da Educao, da autoria de Afrnio Peixoto, partimos desta experincia

    de edio escolar para pensarmos o cultivo de um pblico-leitor em expanso: o professorado

    brasileiro.

    Intimamente articulado ao projeto de aperfeioamento cultural e profissional mobilizado no

    mbito da Biblioteca Pedaggica Brasileira, o manual Noes de Histria da Educao foi

    resultado da contingncia das aulas lecionadas por Afrnio Peixoto8, no Instituto de Educao do

    Distrito Federal. Assumindo este manual como um investimento editorial de dianteira, o mdico e

    professor Afrnio Peixoto sistematizou nele um conjunto de conhecimentos, reunindo um pouco

    de tudo e at de Histria da Educao, como o prprio autor afirma no prefcio da primeira edio.

    Com sua primeira edio publicada em 1933, Noes de Histria da Educao, comps o

    extenso conjunto de obras da coleo Atualidades Pedaggicas e esteve ao lado de publicaes de

    autores como Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo. Associado a um projeto editorial cujo iderio

    vigente era o da renovao educacional, no fora estranho que o textbook da autoria de Afrnio

    Peixoto constitusse instrumento de propaganda dos princpios escolanovistas. Com um captulo

    destinado s indicaes histricas deste movimento, o autor de Noes de Histria da Educao

    apresenta os ensaios precursores da Escola Nova desde as experincias alems at a chegada ao

    Brasil, tendo como seus representantes Armanda lvaro Alberto, Loureno Filho, Fernando de

    Azevedo e Ansio Teixeira.

    O primeiro manual de Histria da Educao um ostensivo exemplo para verificarmos,

    por um lado, a expanso de um pblico-leitor (composto pelo professorado) e, por outro, pensarmos

    os modos como representantes educacionais mobilizaram estratgias de interveno na formao

    8 Afrnio Peixoto foi um dos primeiros professores convidados a lecionar a nova disciplina e, em 1932, assumiu a

    cadeira de Histria da Educao, no Instituto de Educao do Distrito Federal, antiga Escola Normal. Naquele

    momento, o Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova j eclodia na imprensa educacional do pas e a Biblioteca

    Pedaggica Brasileira, associada ao iderio da Escola Nova, tinha suas publicaes em circulao no mercado editorial.

    Foi neste solo de acontecimentos que o livro Noes de Histria da Educao tornou-se uma das referncias para o

    aperfeioamento cultural e profissional docente e divulgado como um investimento pioneiro neste campo.

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 143

    deste mesmo pblico. Os resultados das reformas educacionais, j experimentados desde os anos

    1920, conjugavam-se s estratgias editoriais de conformar o imaginrio de uma educao

    moderna. O projeto da Biblioteca Pedaggica Brasileira fora ousado no apenas por reunir notveis

    do campo educacional, mas, do mesmo modo, por lanar as bases da educao nacional ancorado

    fora que ganhava o movimento da Escola Nova no Brasil e que desejava mobilizar o Estado, a

    imprensa e o povo pelo discurso entusiasta de reconstruo da educao do pas.

    Se o fato de estar inserido em uma coleo pode ser pensado como um elemento favorvel

    difuso do manual Noes de Histria da Educao, tambm no deve ser desconsiderada a fora

    que ganha sua circulao quando o livro adotado no programa da disciplina no Instituto de

    Educao, em 1935. E quais movimentos de reflexo esta circulao provocaria? Primeiro, ganha

    relevo a condio do livro escolar inserido em uma lgica de mercado e, desta maneira, tambm se

    valida o destaque aos modos como esta condio interfere nos projetos grficos que o conformam e

    se adaptam ao pblico desejado. Segundo, podemos assinalar a prtica de escrita de manuais pelos

    professores. Como j mencionado, Afrnio Peixoto fora um dos primeiros professores convidados a

    lecionar a disciplina de Histria da Educao e, como outros9, encontrou no exerccio do magistrio

    um meio de tambm se legitimar enquanto autor de manuais escolares. Uma carta da Companhia

    Editora Nacional de 6 de abril de 1936, endereada a Afrnio Peixoto, atesta a finalidade didtica

    de Noes de Histria da Educao10

    :

    9 O mesmo caso pode ser verificado atravs de Jos Paranhos Fontenelle que, ao se tornar professor de Higiene na

    antiga Escola Normal do Distrito Federal, publicou o Compendio de Hygiene com o interesse de servir ao ensino da

    disciplina.

    10 No ltimo pargrafo da carta assinalada a dinmica da produo e venda do manual escolar pela Companhia Editora

    Nacional: Quanto ao livro Histria da Educao ainda no foi comeado, simplesmente pelo fato de que ainda no

    esgotou a edio. O stock que tnhamos e ainda temos parte, apesar de pequeno deu para atender aos pedidos de incio

    das aulas. [...] Ainda temos uns 100 exemplares. Creio que esses 100 exemplares daro para todo este ms. Por isso s

    tenho necessidade de comear uma nova edio no prximo ms. Fique certo de que nenhum estudante deixou ainda de

    comprar Histria da Educao porque o livro estivesse faltando.

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 144

    Fonte: Arquivo de Correspondncia Passiva da Casa Afrnio Peixoto, Lenis (BA).

    Para atender a diferentes bolsos, as edies da Companhia Editora Nacional, pelo que pode

    ser verificado na contracapa da segunda edio de Noes de Histria da Educao, poderiam ser

    adquiridas em brochuras ou encadernadas. Ao optar pela maior ou menor durabilidade da

    encadernao, o leitor poderia satisfazer seu desejo de aquisio, sem prejuzo do contedo textual,

    por uma diferena de valor que correspondia geralmente a um acrscimo de 3$000 (trs mil-ris).

    Os volumes mais caros consistiam nas tradues11

    . A oferta de livros em dois tipos de encadernao

    revela no apenas um tipo de investimento editorial que visava a atender a demandas distintas de

    procura como, do mesmo modo, oferece indcios de como a Biblioteca Pedaggica Brasileira

    buscava movimentar a venda dos livros que publicava. O que tornava uma obra mais ou menos cara

    do que a outra? Se o valor mais elevado das tradues pode ser justificado por questes autorais,

    possivelmente em trnsito, e pelo prprio trabalho de transcrever a obra para a lngua portuguesa, as

    diferenas de valores entre as obras nacionais tambm podem ser matizadas.

    Os manuais ou livros escolares so objetos de mltiplas fisionomias e a ampliao dos

    horizontes de anlise dos mesmos requer esforos que integrem tanto as questes pedaggicas,

    como aquelas de ordem material, cultural, social e escolar, como sugere Justino Magalhes (2006).

    Se levadas em conta, tambm, as marcas que os autores destes manuais imprimem s suas

    11

    Na coleo Atualidades Pedaggicas a diferena, por exemplo, entre a segunda edio de Noes de Histria da

    Educao (8$ em brochura e 11$ encadernada) e a traduo de Democracia e Educao, de John Dewey, era de 10$

    para ambos os tipos de encadernao.

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 145

    publicaes, o exame deste tipo de produo oferece um conjunto de elementos, para se pensar uma

    sociedade e seus projetos de formao. Noes de Histria da Educao, ao lado de outros

    manuais, inscreve-se como experincia resultante de relaes de poder, de desejo de grupos,

    projetos e polticas de uma sociedade que no devem ser desconsiderados. Deste modo, para

    pensarmos a insero de Noes no mbito da coleo Atualidades Pedaggicas, proveitoso o

    esforo de recuperar algumas marcas da trajetria intelectual do autor e o seu protagonismo uma

    dessas marcas que devem ser problematizadas.

    Jlio Afrnio Peixoto foi um intelectual que teve seu nome associado a aes pioneiras,

    como, a ttulo de exemplo, a criao do servio de inspeo mdico-escolar no Distrito Federal, em

    191612

    . No entanto, se recuamos alguns anos, observamos que este servio j era realizado desde

    1910, pela direo do pediatra Moncorvo Filho (1926). Outro exemplo a publicao do manual

    Noes de Higiene, em coautoria com Graa Couto, em 1914, em cujo prefcio assinalado o

    pioneirismo deste investimento editorial no Brasil. Ainda em 1902, porm, Balthazar Vieira de

    Mello j publicara um manual de higiene que objetivava colocar a contribuio da higiene ao

    alcance dos professores e demais interessados na causa educacional (ROCHA; GONDRA, 2002).

    Estes emblemas, dentre outras formas como o nome de Afrnio Peixoto foi erigido, ajudam a pensar

    os modos como certos discursos sobre o autor de Noes de Histria da Educao ao lado de seu

    engajamento na condio de intelectual envolvido com os problemas de seu tempo foram

    construdos e divulgados em proveito da desejada produo de um lugar histrico.

    Por ter sido divulgado como um investimento pioneiro na produo nacional, possvel que

    a publicao de Noes de Histria da Educao tenha mobilizado uma parcela de vidos leitores e

    sido posta como um referencial de leitura naquele perodo. Contando, tambm, com a propaganda

    que a Companhia Editora Nacional realizava dos volumes publicados no mbito da Biblioteca

    Pedaggica Brasileira, inclusive daqueles no prelo, a publicao de Noes e sua apario na

    galeria dos best-sellers dos programas de ensino da Escola de Educao do Rio de Janeiro (VIDAL,

    2001), enunciam os ecos de uma combinao de elementos que, afinal, pareceram surtir resultados

    positivos: a projeo de um movimento, a ousadia de um projeto editorial e a legitimidade de um

    autor.

    12

    Esta afirmao pode ser constatada no discurso pronunciado pela professora do Instituto de Educao, Maria dos Reis

    Campos, em sesso promovida pela Associao Brasileira de Educao, em 1942. Por ocasio da jubilao de Afrnio

    Peixoto na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, este discurso diz respeito a uma homenagem ao mdico e

    a ntegra do texto pode ser encontrada na Revista Educao, da ABE, n. 13 a 16, p. 30-34, jan./dez. 1942..

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 146

    Quais os objetivos de uma coleo que rene autores nacionais e estrangeiros, a fim de

    dirigir uma larga ofensiva de renovao cultural? As colees organizadas pela Biblioteca

    Pedaggica Brasileira, especialmente a Atualidades Pedaggicas, supem o interesse em erigir

    um modelo de formao, sobretudo quando examinamos um corpo aparentemente harmonioso de

    textos que realiza a propaganda do movimento da Escola Nova atravs de um dilogo com

    diferentes campos do conhecimento, como a histria, psicologia e sociologia. O projeto de dianteira

    da Biblioteca Pedaggica Brasileira se encontrava muito bem alinhado s reformas educacionais do

    perodo, ao otimismo pedaggico vivenciado no perodo e aos interesses de um grupo de

    intelectuais que anunciavam novos horizontes para a educao nacional.

    Seu autor, Jlio Afrnio Peixoto, narra uma histria da educao considerando que o

    conhecimento das experincias anteriores do passado humano daria subsdios para a compreenso

    de sua ponta extrema, o presente. Nesta perspectiva de escrita, a Histria da Educao poderia ser

    compreendida se tomada analtica e intimamente com a histria da civilizao humana. Portanto,

    cruzar a histria dos homens com a histria de sua formao, seria

    um meio de deliberar sobre o futuro

    humano. O autor adota uma perspectiva

    panormica da Histria da Educao,

    secundarizando a enumerao de datas e nomes, para

    privilegiar a evoluo, no espao e

    no tempo, de algumas ideias

    pedaggicas. Como destaca Clarice

    Nunes (1995), esta adoo de

    perspectiva cria dois conjuntos de significados, demarcando lugares de conhecimento e, a partir

    deles, delimitando o lugar da Histria da Educao (p. 58). Para complementar a leitura, o autor

    insere pequenas ilustraes a bico de pena e algumas reprodues fotogrficas, materializando uma

    espcie de panteo pedaggico com personagens do Brasil e do mundo, como Ruy Barbosa,

    Benjamin Constant, Kant e Condorcet:

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 147

    As imagens 1, 2 e 3 so de alguns dos personagens que conformavam o panteo pedaggico de Noes de Histria da

    Educao, ano 1936, p. 247,164, 165.

    Ainda assim, a tentativa era de afastamento de uma exposio metdica de fatos e nomes:

    Reinscrito na ponta extrema daquele passado, naquele presente, o livro de Histria da

    Educao de Afrnio Peixoto parece adquirir outra fora, outro vigor, posto que o

    livro se afasta e j no mais uma simples enumerao de datas, fatos, batalhas e

    heris. Do mesmo modo, ainda no uma histria jurdica da educao. No front e no

    calor da batalha por uma pedagogia cientfica, por uma escola renovada, a narrativa do

    dr. Afrnio parece ter sido modulada pelo (e ajustada ao) movimento renovador em

    curso no Brasil e no exterior. (GONDRA, 2011, p. 30).

    A sistematizao da Histria da Educao, realizada por Afrnio Peixoto, constituiu-se,

    como o prprio autor enuncia no prefcio do livro, de apenas noes que pretendiam introduzir os

    conhecimentos essenciais formao de docentes. As finalidades do livro estavam situadas no

    ordenamento do conhecido e no preenchimento de lacunas com as novas contribuies que este

    tipo de escrita pretendia apresentar. O livro consistiu em registro do curso de Histria da Educao,

    para a recordao de professoras, com uma seleo de referncias histricas e educacionais

    consideradas essenciais para esta formao. Neste quadro, vale assinalar as revises realizadas nas

    edies de Noes de Histria da Educao, a fim de torn-las adequadas formao daquelas

    professoras. A ttulo de exemplo, Noes de Histria da Educao tinha em sua segunda edio, de

    1936, 285 pginas enquanto a ltima, de 1942, alcanava 350 pginas. Alm disso, para

    exemplificar o movimento das atualizaes realizadas, da primeira para a segunda edio so

    incorporadas referncias a acontecimentos de 1934, 1935 e 1936 (GONDRA; ASCOLANI, 2009).

    A reviso destas edies, com acrscimo de assuntos que acompanham o curso dos acontecimentos,

    pode ser justificada pelo prprio gnero da obra, com fim especialmente didtico. Para que este

    manual permanecesse supostamente cultivando leitores e servindo proposta educacional que o

    legitimava, era necessrio que estivesse harmonizado s questes postas quele momento.

    A cadeia narrativa de Noes de Histria da Educao iniciada pelo destaque educao

    dos selvagens e primitivos, realizando sucinta introduo sobre a educao de anormais e um

    prenncio da Escola Nova, que recebe ao fim do livro um captulo exclusivo. No primeiro captulo

    do manual para professoras em formao, o mdico e historiador Afrnio Peixoto doutrina acerca

    do que seria um sistema adequado de educao, cujos princpios da Escola Nova se constituem de

    base. No sem propsito que destaca os benefcios da escola ativa, nica e progressiva,

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 148

    sistematizando as principais finalidades que davam sentido nova educao: a educao para todos

    (de acordo com a capacidade de cada um e baseada em princpios de cidadania e democracia);

    preparo para a participao ativa na sociedade (proporcionada pela escola cvica e socializante);

    preparo para a atividade econmica (verifica-se, ento, o destaque educao e orientao

    vocacional do educando); observao e experimentao escolar (PEIXOTO, 1936, p. 14).

    No tratamento dos princpios da educao defendida por Afrnio Peixoto comparecem, do

    mesmo modo, a questo da popularizao do ensino, a formao cvica para a formao de

    cidados teis ptria, a formao para o trabalho e a cientfica. Esses princpios associados

    ajudam a compor a base da educao nova, sob medida, cara ao pragmatismo deweyano.

    Sintetizada pelas palavras pensamento e ao, a educao que encontra lugar na narrativa de Noes

    de Histria da Educao, e que se pretendeu extensiva formao dos professores primrios quele

    momento, consistiu em emblema, que trazia em si as marcas de um movimento que se pretendia

    renovador. Sobre seus leitores, professores e professoras para os quais se destinava o manual,

    Afrnio Peixoto sustenta:

    Nessa escola o professor deixa de ser o Deus que premia ou castiga, o soberano que

    manda e desmanda, o pontfice que abenoa, anatematiza, retifica ou ratifica a

    doutrina: o mestre apenas um tcnico, consultado se preciso, que enderea e

    coordena as atividades para a obra comum. Ensina antes a adquirir, a procurar, a criar

    o conhecimento. (PEIXOTO, 1936, p. 213).

    O programa da educao nova situa o professor em um lugar diferente daquele que

    supostamente remeteria a uma concepo tradicional de ensino. Como tcnico, o professor

    convidado a ser responsvel pela criao do conhecimento, junto queles que ele teria sob sua

    guarda durante o perodo escolar, o que evidencia o princpio da escola ativa presente na assertiva

    do historiador Afrnio Peixoto. Instruir, segundo o autor de Noes de Histria da Educao, tinha

    o mesmo significado de experimentar. Portanto, os programas de ensino deveriam permitir que

    brotassem juntos o esforo e o interesse por parte dos alunos (PEIXOTO, 1936, p. 212). Neste

    sentido, passando o eixo da escola da autoridade imposta pelo mestre iniciativa do aluno, o

    dinamismo proposto pela escola ativa encontrava lugar nos princpios norteadores da prtica

    docente adequada nova realidade educacional. Tal direcionamento evidencia o desejado

    deslocamento da concepo de escola como lugar de transmisso do conhecimento, que parte do

    professor para o aluno, para a percepo deste espao como de construo do conhecimento,

    elevando a criana a ator principal.

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 149

    Na ponta extrema da histria narrada no manual para professores e professoras, a Escola

    Nova alcanou, portanto, lugar especial e serviu como propaganda do movimento no Brasil.

    Comparada transformao ocasionada por Nicolau Coprnico, esta educao doutrinada em

    Noes previa um deslocamento da concepo de ensino ultrapassada para aquela que se

    divulgou como renovada. Tudo estava conforme se o manual cumpria to somente, segundo seu

    prprio autor, o papel de divulgar noes de Histria da Educao para professores. Tambm

    propaganda do movimento pelo qual dava existncia iniciativa, Noes de Histria serviu ao

    aperfeioamento cultural e profissional do professor.

    CONSIDERAES FINAIS

    A srie Atualidades Pedaggicas coloca em cena novidades editoriais, cuja produo e

    circulao fazem emergir deslocamentos no plano econmico, poltico, cultural e pedaggico. Nos

    limites deste estudo, fez-se notar a dimenso pedaggica, poltica e cultural dessa srie no que diz

    respeito formao de professores. Por um lado, a edio de uma coleo ancorada em um projeto

    de renovao no campo da educao, dirigida por um dos seus ilustres representantes, permite-nos

    associ-la a estratgias de poder no campo da edio pedaggica. Por outro, a circulao de um

    modelo de escrita da Histria da Educao destinada a professores por um mdico e professor de

    prestgio aproxima a edio dos saberes do ofcio. Ademais, a srie, conforme a retrica veiculada

    no ttulo, almejava construir um tipo de saber especfico, de modo a atualiz-las.

    Por ltimo, o exame de Noes de Histria da Educao, inserido na srie Atualidades

    Pedaggicas, indicou perspectivas para um mapeamento da historiografia relativa formao de

    professores no Brasil, que no nos parece esgotada. Em uma palavra, o projeto registrado nas

    pginas do manual permitiu circular um modelo de formao renovado, pois afinado com as ltimas

    novidades pedaggicas em circulao no Brasil e no exterior quele momento. Sobretudo nas lies

    de pedagogia que este manual de Histria da Educao tambm enuncia, especialmente no ltimo

    captulo que o compe (sob o ttulo A educao contempornea), o papel do novo professor

    sutilmente delineado ao longo da cadeia discursiva que procura contrastar as marcas da pedagogia

    tradicional com a proposta moderna, afianada pelos princpios da Escola Nova. Se instruir, nas

    pginas de Noes de Histria da Educao, adquiria o significado de experimentar, h de se

    registrar o papel da educao e do professor: possibilitar um ambiente favorvel ao

    desenvolvimento natural da criana e ao estmulo da aprendizagem. O professor, antes de ser

    considerado o que transmite o saber, projetava-se como aquele que ensinaria a adquirir, procurar e

    criar o conhecimento. Modesta flor em coleo para professores, o manual Noes de Histria da

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 150

    Educao no apenas d indcios de um investimento editorial ousado poca, mas constitui

    registro de um movimento educacional, cujo projeto pretendia alcanar a escola e seus sujeitos por

    meio de lies de como ensinar e como aprender.

  • Revista Teias v. 14 n. 28 135-151 maio/ago. 2012 151

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    NOTIONS OF HISTORY OF EDUCATION : MODEST FLOWER DESIGNED IN COLLECTION FOR TEACHERS:

    ABSTRACT

    In this article, we aim at the exam of the manual Notions of History of Education, by Afrnio Peixoto, in order

    to show the importance of the speeches in teacher education, by the 1930s, parallel to the introduction of this

    book in the collection Brazilian Pedagogique Library, which conforms a series of schooltextbooks:

    Pedagogique Actuality. Notions of History of Education was published for the purpose of answering the

    exigencies related to the teacher education at that time in Brazil. As it got great respect from the educational

    renewal movement, this manual answered the educational publishing market in three editions (1933, 1936

    and 1942) and became an expressive case for the investigation both of the consolidation of the discipline

    History of Education and of the mechanisms which produce a pedagogique culture guided by educational

    modern learning.

    Keywords: History of Education; Manual; Teacher education.

    Recebido em: 30/06/2012.

    Aprovado em: 30/07/2012.