c. lefort - sobre a lógica da força

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  • 7/23/2019 C. Lefort - Sobre a Lgica Da Fora

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    SOBRE A LGICA DA FORA

    Claude Lefort

    Todos os Estados, todas as senhorias que tiveram ou tm mando (imprio) sobre os

    homens foram e so ou repblicas ou principados: esta proposio abre o primeiro

    captulo de O Prncipe, o mais breve de todos, como observamos, no qual so

    enumeradas em algumas linhas as hipteses de uma pesquisa. Se nos espanta o jeito

    abrupto desse comeo, sem dvida os contemporneos se espantaram muito mais, pois,

    instrudos pela tradio clssica e crist, estavam acostumados a encontrar no incio de

    uma obra poltica consideraes filosficas, morais ou religiosas. Ademais, o autor no

    diz por que as afasta de seu texto. Negligenciando falar sobre a origem e a finalidade do

    Estado, dos mritos comparados dos diversos regimes, da funo do prncipe na

    sociedade, da legitimidade e ilegitimidade de certas formas de poder, simplesmente por

    seu silncio leva a pensar que tais ideias deixaram de ser pertinentes ou, pelo menos,

    convida o leitor a perguntar se permanecem vlidas e em que sentido. Tudo se passa

    como se doravante uma nica questo comandasse a reflexo poltica, questo que o

    autor se apressa em formular logo depois de haver distinguido vrios tipos de

    principado: discutir quais maneiras pelas quais se pode governar e conservar. Na

    verdade, tomada em seu sentido literal, a questo no nova, vamos encontra-la

    especialmente noDe regimine principiumde Egido Colonna, publicado em 1473, que,

    inspirado no Tratado de Toms de Aquino, esforou-se para conciliar os princpios

    cristos com as exigncias prticas do governo dos homens. Porm, ela surgia, ento,

    num contexto que permitia delimitar exatamente seu alcance. O leitor era inicialmente

    convidado a buscar em que consiste a mais alta forma de felicidade (felicitas), a que fim

    tendem as aes do prncipe, que virtudes requerem, que paixes podem ser postas a seu

    servio; devia meditar sobre a conduta dos homens nas diferentes idades da vida, depoisconsiderar sob seus vrios aspectos o governo familiar do prncipe, suas relaes com a

    esposa, os filhos, ministros, servidores e prximos; antes de chegar, enfim, ao exame da

    poltica do prncipe em tempos de guerra e em tempo de paz, precisava perguntar com

    que fim a comunidade da famlia, da cidade e do Estado tinha sido criada por Deus

    (propter quod bonun inventa fuit communitas domus, civitatis et regni). verdade que a

    Poltica de Aristteles, no livro quinto, examinava os meios de que dispe um Poder,

    seja qual for sua natureza, para afastar revolues que o ameacem, mas o estudo sefundava numa definio do Estado que no permitia dvidas quanto inteno do autor.

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    Ensinava, em primeiro lugar, que a organizao do Estado estava subordinada ao

    princpio de justia; que o bom regime assegurava uma harmonia entre os diversos

    elementos da comunidade e, consequentemente, que um regime seria tanto mais

    defeituoso e vulnervel quanto mais privilegiasse abusivamente um desses elementos, e

    tanto mais ordenado e resistente quanto mais pusesse freio na desmedida. Destarte, a

    anlise da tirania, por mais audaciosa que fosse ao tentar fixar regras para sua

    conservao, inscrevia-se sem equvoco na procura do bem. Se o interesse do prncipe

    pudesse servir-lhe de suporte seria porque a essncia do Estado fazia-se reconhecer at

    em suas formas viciosas e porque o bem do tirano e o bem comum no poderiam

    desligar-se completamente sem provocar a runa do poder. Em contrapartida, a questo

    maquiaveliana, assim que reduzida aos seus prprios termos, adquire um estatuto

    inteiramente novo. uma questo que no surge do interior de um discurso e de um

    mundo ordenados nos quais aquele que a formula e aquele que est encarregado de

    assumi-la teriam apenas que reconhecer o lugar que lhes atribudo, mas antes vai

    procura de conhecimentos e operaes destinados a se articularem, por si mesmos, uns

    com os outros no nvel da particularidade que lhes prpria e a instalar o pensador e o

    agente na funo de umsujeitoconvertido em garantia para si mesmo de sua prpria

    atividade.

    Sem dvida, no por acaso que Maquiavel anuncia que discutir a maneira pela qual

    os principados podem ser governados e mantidos (come questi principati se possino

    governare e mantenere). A construo da frase eloquente. J havamos observado que

    as primeiras hipteses ordenavam-se em funo da perspectiva de um prncipe, mas sem

    que fosse desvendada. A linguagem atesta aqui uma ambiguidade decorrente da matria

    da poltica tal como comeamos a entrev-la. Sem dvida, governar e manter o Estado

    so operaes cuja origem est no prncipe, e para determina-las convm a ele esposar

    sua posio, interrogar o lugar que ocupa no momento em que toma o Estado nas mos,as condies que lhe impe a histria do povo do qual ele se torna senhor e os meios de

    ao que ele pode usar; mas, reciprocamente, pelo simples fato de que o Estado existe, o

    prncipe est posto numa das situaes particulares que podemos observar e necessita

    efetuar as operaes prescritas por seu estatuto. Assim, no primeiro captulo, nem o

    prncipe nem o Estado podem fornecer a referncia da origem, e o escritor se empenha

    para nos situar nesse entre-dois, no espao que se institui com movimento de um polo a

    outroespao sob certos aspectos indeterminado e que, no entanto, anuncia-se como olugar do real. Maquiavel classifica todos os Estados, antigos e modernos, em duas

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    categorias, depois distingue vrios tipos de principados e o faz apenas adotando a

    perspectiva do prncipe, mas se arranja para no mencionar o caso da fundao do

    Estado, sobre a qual, no entanto, insistir a seguir, de tal modo que o Estado parece

    preexistir ao do sujeito poltico. De um lado, o objeto, o principado apreendido

    numa definio que o constitui como resultado das operaes do sujeito

    diferentemente de Aristteles, Maquiavel no se contenta em procurar na Histria ou no

    espao emprico amostras tpicas. De outro lado, o sujeito, o prncipe s est

    determinado no tocante ao lugar que ocupa com respeito ao objeto. Ora, sujeito e objeto,

    juntos, ao mesmo tempo no so o Poder, o imprio, cujo conceito foi justamente

    introduzido na primeira frase do discurso e que Maquiavel leva a pensar? Pois este

    imprio, se o nome dado ao poder que tal homem ou tal grupo de homens exerce sobre

    outros, se muda de forma segundo as circunstncias, tambm aquilo que se estabelece

    acima dos homens, tomados em sua generalidade, aquilo em virtude do que suas

    relaes se ordenam no quadro de um Estadodimenso mais do que figura da

    Sociedade e cuja causa talvez se busque em vo tanto num mvel humano quanto num

    princpio religioso ou metafsico.

    Que, desde o incio de O Prncipe, Maquiavel se empenha em apartar o leitor de uma

    imagem tradicional do Estado, logo nos conformado pela anlise do principado

    hereditrio. Se menciona em primeiro lugar esse caso e submete-o inicialmente

    discusso , a se crer nele, porque este coloca um problema menos difcil de resolver. A

    brevidade de suas palavras, de outro lado, parece testemunhar o pouco interesse que lhe

    atribui. Mas j sabemos que a introduo no fornece propriamente um plano, que

    preciso procurar uma indicao de mtodo, que a pesquisa, ademais, no progride

    regularmente do menos ao mas difcil, pois o caso mas rduo, o da fundao do Estado,

    focalizado no meio da primeira parte. Alm disso, como no observar que a distino

    entre principados antigos e novos no carrega em si nenhuma evidncia, no maispertinente do que a da fundao e a da conquista do Estado? Comear pelo estudo dos

    principados hereditrios procede, pois, de um outro motivo. Por esse ngulo, o leitor

    confrontado de incio com um exemplo que os pensadores polticos privilegiaram

    durante a Idade Mdia: a seus olhos, o prncipe hereditrio , com efeito, aquele cuja

    autoridade considerada legtima e que sobe ao poder por meios pacficos. Colocando

    tal exemplo sob uma nova luz, Maquiavel abala a opinio comum que inicialmente

    parecia tambm ser sua; por outro lado, articulando-o com o exemplo do conquistador,

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    no caso, Lus XII, prncipe hereditrio que decide aumentar seu Estado, vincula logo o

    problema da paz ao da guerra.

    primeira vista, a anlise permanece fiel conveno. Aquele que detm o poder por

    t-lo recebido de seus ancestrais, observa o escritor, nada melhor tem a fazer seno

    manter em vigor os antigos princpios do governo (lordine de sui antenati) e

    contemporizar diante dos acontecimentos; basta-lhe demonstrar uma habilidade

    ordinria para permanecer no poder e, se um adversrio conseguir excepcionalmente

    desaloj-lo, retornar ao seu lugar na primeira dificuldade encontrada pelo ocupante;

    seus sditos esto habituados sua dinastia e no tm repugnncia obedec-lo.

    Maquiavel designa-o, de acordo com um uso estabelecido, prncipe natural. Ora, no

    h dvida de que este termo correspondia, originalmente, a uma concepo precisa da

    Monarquia. Natural, com efeito, ela o desde que esteja inscrita no costume, pois o

    costume, na concepo tomista, uma segunda natureza; e aquilo que encontra uma

    forma estvel no tempo corresponde ao advento de um habituscujo lugar e funo

    inscrevem-se na hierarquia dos seresideia sempre presente na obra de Colonna e

    qual Savonarola tambm fizera eco, pondo-a, verdade, a servio da causa republicana,

    quando afirmou que os hbitos do povo florentino constituam agora sua natureza a

    ponto de lhe interditar a sujeio a um governo monrquico. At na observao de que

    expulso por uma fora extraordinria e excessiva o prncipe est destinado a recuperar

    o poder, percebe-se uma imagem da dinmica poltica anloga da dinmica da fsica

    de Aristteles, pois, nos termos desta ltima, pode-se dizer que todo corpo concebido

    como possuindo uma tendncia para se encontrar em seu lugar natural e, portanto, a ele

    retornar desde que dele tenha se afastado por violncia. Mas essas indicaes servem

    apenas para melhor preparar a reviravolta de perspectiva De fato, os argumentos do

    autor arrunam a tese que parecem sustentar. Se o prncipe natural goza de segurana,

    nos diz ele, porque, com efeito, no tem causas nem necessidade de ofender sussditos (offendere). E ainda porque a antiguidade e a longa continuao do poder

    hereditrio, ao abolirem a lembrana de sua origem, abolem as razes de uma

    mudana. Deve-se reconhecer que mais amado do que um prncipe novo, mas no se

    deve procurar a causa deste fato em um regime que seria conforme natureza e no qual

    florescia a bondade do prncipe, pois suficiente, ficamos sabendo, que ele no se faa

    odiar por vcios extraordinrios para que mantenha o consensusdos sditos. A

    verdade , pois, que seu poder se beneficia de um acostumar-se opresso: a

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    permanncia do dominante enfraquece a resistncia dos dominados de tal modo que a

    submisso obtida com menos gastos.

    , portanto, na considerao da oposio entre o prncipe e os sditos que se esclarece

    a imagem do regime, o mais estvel, e no por referncia, e no por referncia a um

    acordo fundado na disposio ntima do corpo social. O leitor contentava-se em ver na

    estabilidade o efeito de uma boa forma cuja instaurao corresponderia a um desgnio

    da Providncia ou a uma finalidade natural e dava crdito ao prncipe como algum

    capaz de saber fazer-se instrumento dela, ao contrrio do tirano, sempre ocupado com a

    violncia; mas descobre que a estabilidade tem que ser pensada em funo de uma

    instabilidade e de uma violncia primeiras e que o prncipe antigo apenas tem o

    privilgio de explorar o sucesso outrora obtido na luta por um prncipe novo. Entre o

    regime de um e de outro no h uma diferena substancial, mas uma diferena de grau

    decorrente de sua posio respectiva com relao aos adversrios que devem submeter.

    conquista do poder corresponde um movimento rpido e violento que deve triunfar

    contra diversas formas de resistncia; mas, por pouco que seja bem-sucedida, chega o

    momento em que se converte num movimento lento que tende a se conservar a si

    mesmo. Esta passagem de um regime a outro que pode ser considerada natural, isto ,

    necessriaem certas condiescomo o , diramos, usando uma metfora anacrnica,

    a mudana de regime de um motore no esta ou aquela forma de organizao poltica

    tomada a si. Se bem compreendemos a proposio que fecha o captulo sobre os

    principados hereditrios, no h, aos olhos do autor, dois tempos especificamente

    distintos, um em que se divisaria a durao prpria do corpo social e outro no qual se

    veria sua corrupo. As mesmas causas explicam a permanncia do poder e a repetio

    dos acidentes: igualmente verdadeiro que a antiguidade e a longa continuao do

    poder hereditrio, ao abolirem a lembrana de sua origem, abolem as razes de uma

    mudana e que uma nova mutao sempre deixa pontos de apoio para uma mutao

    nova.

    Mas talvez tenhamos acolhido muito depressa a ideia de que a antiguidade do poder

    basta sozinha para garantir ao prncipe a adeso dos sditos. Talvez no seja por acaso

    que, evocando a figura de um prncipe hereditrio, Maquiavel no escolhe um exemplo

    que se impe ao pensamento de todos, o do rei da Frana, senhor de um Estado

    poderoso e solidamente estabelecido, mas fale dos duques de Ferrara, personagens de

    segundo plano, dos quais ele sabia, como, alis, era sabido de todos, que recuperaramseu Estado como haviam perdido: apenas em decorrncia das vicissitudes da poltica

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    internacional. De fato, aprendemos pouco depois que a estabilidade do regime na Frana

    decorre no de sua origem, mas da estrutura de um poder dividido entre o prncipe e os

    bares, e no final da obra, numa passagem a que j nos referimos, aprendemos que um

    prncipe novo pode ser estabelecido mais firmemente e com mais segurana do que o

    herdeiro de uma velha dinastia. preciso, pois, supor que o prncipe hereditrio fornece

    apenas uma baliza, servindo somente para que se possa medir a distncia a ser tomada

    perante a opinio comum.

    Esta hiptese se confirma to logo prossigamos nossa leitura. Maquiavel, de incio,

    havia julgado que um prncipe antigo mais amado do que um prncipe novo. Desde

    o comeo do captulo seguinte percebe-se que este ltimo no poderia conquistar um

    Estado sem ser, a curto prazo, odiado por todos, no somente por seus inimigos da

    vspera, cujos interesses lesa, mas tambm por seus prprios partidrios, cujos apetites

    no pode satisfazer; assim, temos o direito de desconfiar do sentido disso que, no incio,

    o escritor chamava de amor, e perguntar se ele no pensa em menos odiadoquando

    escrevia: mais amado. Desconfiana tanto mais legtima porquanto ele sublinha que em

    todos os principados novos encontra-se a mesma dificuldadedificuldade natural,

    observa elepelo fato de que os homens de bom grado mudam sempre de senhor na

    esperana de melhorar a condio. Considerando-se essa disposio de esprito, j no

    poderamos crer que o tempo trabalha necessariamente para a conservao do prncipe

    hereditrio. Alm disto, um momento antes, o prncipe natural parecia to solidamente

    estabelecido no Estado que no podia deixar de retomar a posse dele caso viesse a ser

    expulso por uma fora extraordinria; agora, a histria da conquista de Milo revela que

    o retorno do prncipe ao poder no imputvel natureza do regime, mas uma

    consequncia das dificuldades em que esbarra o ocupante. Com efeito, o Mouro, de

    quem j nos foi falado, no um prncipe natural, mas filho de um usurpador, e no se

    poderia dizer que a antiguidade da Casa Sforza tenha abolido a lembrana de suaorigem. A verdade que o fracasso de Lus XII tem uma causa universal: decorre do

    fato de que o conquistador no pode deixar de suscitar a hostilidade de seus novos

    sditos no dia seguinte ao do sucesso.

    Certamente, permanece vlida a distino entre prncipe antigo e prncipe novo, entre a

    ordem do costume e a ordem da inovao, mas ela no pode ser compreendida por

    referncia ideia clssica de natureza, nem traduzir-se em termos ticos. Antes, induz a

    imaginar o campo da poltica como um campo de foras em que o poder deve encontrarcontradies para um equilbrio. O caso da conquista privilegiado sob esta

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    perspectiva, pois torna sensvel o problema que o prncipe precisa solucionar se quiser

    se manter no Estado: trata-se, para ele, de resistir aos adversrios criados por seu

    empreendimento, de inscrever-se o mais rapidamente possvel no sistema de foras

    modificado por sua prpria ao e cujas perturbaes tendem a se prolongar s suas

    expensas. Assim, sua aes so determinadas pelo estado de guerra em que se encontra,

    ao mesmo tempo, perante outros prncipes e perante seus sditos, e sua poltica no

    pode ser seno uma estratgia anloga de um capito que, tendo ocupado sobre o

    campo a posio cobiada, aplica-se em desmanchar as iniciativas de inimigos

    decididos a tir-la dele.

    Maquiavel traa, pois, um esquema muito geral da situao em que os protagonistas

    Estados ou grupos sociaisesto reduzidos funo de agentes abstratos, aliados ou

    adversrios possveis do prncipe. Mas este esquema j nos inicia complexidade do

    jogo poltico, pois no suficiente que aquele que agarrou o poder domine seus

    adversrios pela violncia; esta pode voltar-se contra ele na medida em que, excitando a

    resistncia deles no lhe permitir encontrar apoioscomo ocorre na primeira fase de

    uma conquista quando o dio engendrado por um exrcito de ocupaes e a inevitvel

    decepo provocada pela poltica do prncipe novo so uma das causas de sua perda.

    Ainda preciso que faa de modo que as novas relaes de fora lhes sejam favorveis

    tanto no interior do Estado quanto no exterior. A poltica uma forma da guerra e, sem

    dvida, no por acaso que, para nos fazer compreend-lo, Maquiavel tenha escolhido

    raciocinar inicialmente sobre o caso de tomada do poder pelas armas; mas devemos

    tambm reconhecer que essa guerra obedece a imperativos particulares: no depende da

    violncia pura, e o prncipe no triunfa pelo simples fato de ser o mais forte, visto que

    precisa manter-se, durar, coexistir com aqueles que domina, impor-lhes dia aps dia sua

    autoridade, conter dia aps dia desordens nascentes. Da anlise da situao em que se

    acha o prncipe novo no dia seguinte ao da conquista, sobressai o carter duplo de suaao: vai no sentido da maior e da menor violncia. Se o povo que deve governar

    possuir a mesma lngua e costume que seus prprios sditos, nos diz Maquiavel, a regra

    para o conquistador fazer com que desapaream o prncipe novo e toda a sua famlia, a

    fim de prevenir o retorno da dinastia, ao mesmo tempo em que deve evitar toda

    inovao nas leis e impostos, isto , limitar tanto quanto possvel os efeitos de sua

    agresso. Se o povo for diferente do seu, deve vir em pessoa habitar o pas para que seus

    ministros no se ponham a pilhar e para que os descontentes possam encontrar socorronele; ou, ento, deve instalar colnias, pois com este meio so lesados somente aqueles,

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    em pequeno nmero, cujas terras e bens so tomados ficando sem condies para

    prejudicar, enquanto os outros, satisfeitos por no serem perturbados ou por no

    sofrerem os estragos feitos por um exrcito de ocupao, no tero motivo para se

    revoltar. Num caso como em outro, duas exigncias so conciliadas: a de vencer pela

    fora, extinguindo logo os focos de resistncia mais perigosos, e a de fazer com que

    essa fora seja reconhecida, garantindo sua segurana ao garantir a dos outros. O autor

    d a frmula dessa poltica quando nota que os homens devem acariciar-se ou trucidar-

    se; mas devemos entender que os dois termos da alternativa so igualmente aplicveis

    conforme o caso: na realidade, preciso trucidar uns e acariciar outros, e isto pela

    mesma razo que sustenta a lgica das relaes de fora. Que seja assim, Maquiavel

    encontra um outro meio para nos convencer: rene na mesma anlise os problemas de

    poltica interna e de poltica estrangeira, raciocinando como se as relaes do prncipe

    com seus sditos fossem da mesma natureza que aquelas estabelecidas entre Estados,

    isto , entre agentes independentes cujo interesse comanda sozinho a conduta. De fato,

    neste ltimo caso, igualmente, a fora do prncipe no se determina seno no seio do

    campo em que se inscreve. necessrio, de uma s vez, impor-se e compor, para

    instituir um equilbrio que coloque ao abrigo de uma agresso estrangeira. Precisa,

    sublinha o autor, fazer-se chefe e protetor dos vizinhos menos poderosos do que ele.

    Estratgia que vemos claramente no ser inspirada por nenhuma outra considerao

    afora a preocupao de conservao e crescimento da potncia (puissance).

    Esse termo, potncia, que Maquiavel usa repetidamente na passagem que evocamos,

    tomado por ele, pelo menos nessa etapa do texto, numa acepo puramente positiva.

    Assim, conveniente notar que, se foi afastada a imagem do prncipe legtimo

    governando para o bem dos seus sditos em conformidade com o plano divino ou a

    ordem natural, no porque Maquiavel tenha cedido diante de uma apologia da

    potncia. Assim, como so ignorados os argumentos dos filsofos clssicos queprocuram fundar a ideia do bom governo, tambm so ignorados aqueles argumentos

    que a tradio atribui a seus adversrios, os sofistas. Num nico lugar, ali onde escreve

    Certamente, coisa muito ordinria e conforme a natureza o desejo de conquistar e

    todas e quantas vezes puderem os homens que o faro sero louvados ou, pelo menos,

    no sero censurados, o escritor parece querer justificar o apetite de potncia. Porm,

    essa proposio s adquire seu verdadeiro sentido quando colocada sob o signo da pura

    observao. Que conquistas sejam empreendias e que, vitoriosas, no sejam censuradas,eis somente o que deve ser considerado, assim como, um momento antes, precisvamos

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    constatar que os homens mudam instantaneamente de senhor ou que um prncipe antigo

    tem menos motivos para ofender seus sditos do que um prncipe novo. Trata-se de

    fatos perceptveis em toda a extenso da Histria, que caem sob os olhos e so

    inteligveis porque se articulam com os outros fatos de que so causa ou consequncia

    ou as duas coisas ao mesmo tempo. essa articulao que Maquiavel sublinha, de tal

    modo que estamos sempre postos na presena de vrios termos simultneos e

    constrangidos a pensa-los em funo de suas relaes, isto , das aes e reaes que

    exercem uns sobre os outros. Por exemplo, a ideia de que os homens nunca esto

    satisfeitos com sua condio no tem um valor em si, preciso entender,

    simultaneamente, que um prncipe antigo no cessa completamente de ofender seus

    sditos, mesmo quando se acostumaram com seu poder, que toda mudana cria

    condies para uma outra mudana, que um prncipe estrangeiro no impe sua

    autoridade seno por violncia e suscita necessariamente o dio, que certas medidas,

    enfim, so susceptveis de desarmar as oposies. Em suma, somente a constelao dos

    fatos significativa: no podemos considerar o comportamento dos sditos seno com

    relao ao do prncipe e visse e versa, o fatode suas relaes que constitui o objeto do

    conhecimento. Da mesma maneira no poderamos estacionar nesta ltima ideia

    segundo a qual o desejo de conquistar uma coisa natural, como se ela encerrasse um

    juzo autossuficiente sobre o homem. Pois natural esse desejo , como o dos dominados

    de mudar de dominao, como o dos Estados fracos de se subtrair tutela de um Estado

    forte graas interveno de um prncipe estrangeiro: a conquista no se esclarece pela

    referncia a mveis que numa outra profundidade do ser marcariam sua origem, mas se

    mostra determinada como uma modalidade de experincia poltica implicada pelas

    outras e implicando-as por seu turno e, consequentemente, conduzida por uma

    necessidade em que se imprime seu sucesso ou seu fracasso. Tambm significativo

    que a frmula que retm nossa ateno seja enunciada apenas ao trmino de uma anliseda poltica romana e da poltica do rei da Frana em que essa necessidade posta em

    evidncia e onde fornecida a prova de que a conduta do conquistador se inscreve

    numa ordem das coisas (lordine delle cose).

    A questo: o que a potncia? no importa. O que Maquiavel leva a pensar, em

    primeiro lugar, somente o conflito ou os conflitos que ope os atores dotados de uma

    potncia maior ou menor, o que ele julga naturalou ordinrioso as relaes que se

    estabelecem entre eles em decorrncia de suas potncias respectivas nas condiesparticulares em que esto colocados. Eis por que, ao se colocar como puro observador,

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    coloca-se imediatamente como puro calculador e seu discurso estabelece pouco a pouco

    uma equivalncia entre o que natural, necessrio e conforme razo. Observar e

    calcular so uma e s mesma coisa, pois os dados empricos, por exemplo o fenmeno

    da conquista de Milo, s se deixam delimitar e circunscrever na medida em que

    reconhecemos neles uma combinao de termos e de relaes de que a Histria fornece-

    nos outras ilustraes. Descrever as aventuras de Lus XII fazer a conta de seus erros,

    como descrever o desenvolvimento da potncia romana mostrar mostrar as

    operaes que conduziram soluo de um problema. Nestes dois casos, como no

    exemplo turco, o autor discerne o que nomevamos, depois dele, uma ordem das coisas,

    isto , no uma ordem transcendente experincia, mas uma experincia ordenada nela

    mesma e cuja matria, embora sempre cambiante, pois as situaes no se repetem,

    distribui-se segundo linhas de foras constantes. O prncipe aparece, ento, como um

    ator cuja conduta determinada pelas exigncias da situao e, consequentemente, cuja

    potncia prpria indissocivel da inteligncia que adquire quanto relao de

    potncia: ou no capaz de reconhecer essa ordem e se o conseguir ser sob a condio

    de dominar a confuso dos acontecimentos, de resistir tentao de utilizar meios que,

    por serem eficazes a curto prazo, esto destinados a se voltar contra ele ( por exemplo,

    aliar-se a uma potncia estrangeira que no deixar de se transformar em inimiga assim

    que tiver ocupado um lugar no pas em que ele opera), isto , enfim, se for capaz de se

    livrar da contingncia dos fatos presentes e dos prprios mveis que o fazem agir.

    Colocando o leitor nessa perspectiva, Maquiavel o faz descobrir que a posio do

    terico e a do ator coincidem. Certamente, essa coincidncia apenas parcial; devemos

    admitir tambm que cada um deles se estabelece num nvel diferente de racionalidade e

    que, nesse nvel, est em condies de reivindicar a verdade da experincia. De fato, de

    um primeiro ponto de vista, o terico parece abarcar a Histria em toda sua extenso;

    em seu campo de representao caem todas as conjunturas, todas as combinaes derepresentao de fora, todos os estatutos possveis do ator; assim ele se eleva ideia de

    um clculo universal, enquanto o prncipe, mesmo quando resolveu com sucesso as

    dificuldades enfrentadas em seu empreendimento, evolui nos horizontes finitos de uma

    situao particular, permanecendo na dependncia imediata tanto das condies que lhe

    so impostas de fora quanto dos objetivos que fixou. Porm, de um outro ponto de vista,

    vemos o terico condenado a raciocinar sobre o passado; se tem o poder de indicar a

    soluo porque os termos j esto escritos no real; em contrapartida, o prncipe tem omrito de pensar o universal no particular, decifrar no presente os signos do que ser a

  • 7/23/2019 C. Lefort - Sobre a Lgica Da Fora

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    figura dos conflitos por vir e, assim, na prtica da antecipao, capaz de passar pela

    experincia do clculo infinito, pois no s o acontecimento constantemente pe em

    causa os resultados adquiridos, como ainda precisa contar com os efeitos de suas

    prprias aes. Semelhante ao mdico cuja virtude est em formular o diagnstico

    quando a doena ainda est no comeo, leva a melhor, nos diz Maquiavel, diante

    daquele que dispe de todos os elementos de certeza por que a doena se desenvolveu,

    mas se mostra incapaz de modificar-lhe o curso. Entretanto, a teoria que nos ensina

    que a teoria e a prtica no se confundem. Afirmando a permanncia do conflito,

    rejeitando a ideia de uma forma poltica que carregue em si a estabilidade, o pensador

    reconhece a permanncia dos acidentes e, consequentemente, designa a funo do

    prncipe como a de um sujeito que adquire a verdade num movimento contnuo de

    racionalizao da experincia. Ao mesmo tempo, arroga-se o direito de conceber as

    relaes de fora em sua generalidade, e ensina que estas sempre se instituem pelas

    operaes empricas dos agentes postos em condies contingentes. Ao mesmo tempo

    que extrai de toda situao os termos de um problema e torna sensvel a exigncia de

    um mtodo, mostra que os dados desse problema no cessam de mudar e que a soluo

    nunca fornecida de antemo. Assim, o sujeito de pensamento e o sujeito agente no se

    anulam um ao outro ou no se afastam um do outro a ponto de tornar sua relao

    ininteligvel, de sorte que parece ultrapassada a antinomia com que se deparava a teoria

    poltica dos Antigos. Com efeito, podia-se justamente opor ao filsofo que pretendia

    fundar em direito a Potncia que, pelo simples fato de usar a linguagem, visava ao

    universal e, portanto, exatamente no momento em que pretendia reunir-se quele que a

    reivindicao da potncia encerrava na particularidade e incomunicabilidade do desejo,

    tornava-se estranho a ele. Inversamente, to logo se quisesse dar figura ao universal, era

    preciso recorrer fico de um regime conforme natureza e renunciar a encontrar sua

    inscrio na realidade emprica. Agora, porm, o pensamento liberou-se da distinoentre essncia e existncia e no nos achamos mais diante da alternativa entre um saber

    que se afirma no esquecimento do que e um fazer que torna irrisria a tentativa de

    nome-lo. Na Histria no h nada alm daquilo que aparece, isto , as aes dos

    homens e os acontecimentos em torno dos quais se entrelaam; e, por exemplo, a

    conquista natural desde que seja ordinria, pertena experincia poltica presente e

    passada. Mas o que aparece carrega um sentido, de um s golpe matria de uma

    linguagem, pois nele sempre aprendemos relaes, de sorte que o existente deixa de sero fato bruto e opaco que desafia o pensamentoseja porque para manter-se como

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    pensamento deve desviar-se dele, seja porque para fund-lo no Ser abandona suas

    prprias normas e abisma-se na contingncia. Doravante no temos qualquer

    necessidade de transfigurar o prncipe para tentar atribuir-lhe uma funo no seio de um

    sistema racional do mundo; ns o aprendemos na sua realidade histrica: Lus XII na

    Itlia, ou ento o Turco, ou ento - e essa referncia nos adverte de que nele devemos

    visar ao puro agente polticoa repblica romana: pouco importa a identidade que lhe

    emprestamos, to logo nos demos sua imagem aparece situado no centro de uma rede de

    relaes, portador de uma necessidade que se estabelece em seu benefcio ou a suas

    expensas, conforme se mostre capaz de determinar as aes dos seus adversrios ou se

    deixe determinar por elas. Por seu intermdio o seu real se desvenda como um lugar de

    operaes: as fronteiras do real so as do racional.

    Se uma vez mais retornarmos s primeiras consideraes suscitadas pelo exemplo do

    prncipe hereditrio, mediremos o caminho percorrido. Para conservar o Estado parecia,

    inicialmente, que bastava dar provas de uma habilidade ordinria, permanecer fiel aos

    antigos princpios (lordine desui antenati) e contemporizar com os acontecimentos

    (accidenti). Agora so severamente criticados os pseudo-sbios de Florenaos quais,

    necessrio sublinhar , no so prncipes hereditrios nem prncipes novosporque

    no cessam de recomendar gozar as vantagens do tempo (godere il benefizio del

    tempo); o tempo, ficamos sabendo, enxota tudo sua frente e podetrazer consigo tanto

    o bem quanto o mal, tanto o mal quanto o bem. E medida que se apaga seu poder de

    instituir uma forma que valha em si e se conserve por si mesmo, afirma-se o do sujeito

    confiando somente na virte naprudencocapaz de divisar uma ordem nos acidentes

    e governar-lhes o curso. A imagem dos duques de Ferrara, cuja magra potncia est

    fundada no passado de sua dinastia, substituda pela dos romanos que construram e

    mantiveram um intenso imprio porque souberam apoiar-se no futuro.

    Nos momento em que o leitor toma conscincia do problema poltico nos termos quese pe para o prncipe, uma digresso convida-o a conceber melhor os limites da ao

    individual. Simples preciso, parece, visto que o escritor j tinha tido o cuidado de notar

    que o fracasso de um conquistador, na primeira fase da ocupao de um territrio,

    decorria de causas universais. Mas, talvez, essa observao pudesse passar despercebida

    e a minuciosa crtica dos erros de Lus XII sugerir que a conservao do poder dependia

    apenas da inteligncia do prncipe. Assim, parece bom meditar um momento sobre a

    boa sorte das conquistas de Alexandre para se persuadir de que as condies objetivastanto quanto a estratgia do ator determinam o desfecho de um empreendimento.

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    Considerando-se a natureza dos povos submetidos sua dominao, conviremos que, se

    Alexandre pde impor sua autoridade muito mais facilmente que Pirro ou outros

    conquistadores, no porque teria uma virtsuperior, mas pela simples razo de que

    seus novos sditos desde muito haviam sofrido a opresso de um dspota e

    encontravam-se naturalmente dispostos obedincia. Todavia, os argumentos

    empregados nesta ocasio so de tal importncia que, sozinhos, compe uma tese que

    devemos compreender tanto pela significao que adquire nessa etapa do discurso

    quanto pelo fato de ser introduzido por uma via indireta. De fato, no momento em que

    se prepara para responder questo de um eventual contraditor que se espantasse com a

    facilidade com que Alexandre conquistou uma parte da sia e transmitia essa herana a

    seus descendentes, Maquiavel coloca, subitamente, todos os principados de que se tem

    memria em duas categorias: uma que compreende os Estados de regime desptico,

    outra, aqueles em que o poder dividido entre um monarca e os bares. Essa

    classificao, surpreendentemente, cujo efeito o escritor evita enfraquecer com alguma

    justificativa, entretanto fornece-lhe a matria para a anlise, de tal modo que a

    referncia a Alexandre parece ter somente servido de pretexto para a comparao entre

    os dois tipos de Poder. Desta, o leitor retm que a solidez respectiva de cada um deles se

    aprecia por sua capacidade de opor resistncia a uma agresso estrangeira . O regime

    desptico mostra-se, inicialmente, como o mais forte, visto que nele a autoridade una,

    os ministros, diversamente dos senhores estabelecidos de h muitos em uma provncia e

    ligados a seus sditos, no tm crdito suficiente para fomentar uma rebelio e abrir

    caminho para um eventual conquistador: para destruir o poder estabelecido no se deve,

    pois, contar seno com a potncia das armas. Porm, a perspectiva se inverte to logo

    interroguemos quanto s oportunidades de um prncipe novo. De fato, no h obstculos

    sua dominao, uma vez obtida a vitria e a famlia real exterminada; alimentados na

    escravido por seu antigo senhor, os sditos so fceis de governar, enquanto num pasdividido as rivalidades logo poro seu poder em perigo, as faces que o sustentam se

    voltaro contra ele, os grupos que se deve oprimir se rebelaro e buscaro auxlio no

    estrangeiro. Nesta hiptese, j no basta extinguir o sangue real (spengere il sangue

    del prncipe), pois restam sempre senhores que se fazem chefes de novas mudanas, e

    como no possvel contentar a todos nem extinguir todos eles, na primeira

    oportunidade que se oferea todos os Estados estaro perdidos. preciso, pois, admitir

    que o regime aparentemente mais vulnervel se revela, ao passar prova do tempo, comoo mais resistente e a autoridade que compe surge como mais forte que uma dominao

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    sem freios. Assim, encontra-se retomada para novos fins a ideia, cujo alcance j

    entrevimos, de que a medida da potncia dada pela relao em que se inscreve com

    outras potncias. Os motivos que temos agora para apreciar a solidez da monarquia de

    Frana, modelo de um regime em que o poder soberano limitado, so os mesmos que

    comandavam a anlise das relaes entre Estados ou da poltica de Lus XII em Milo.

    Mas passamos insensivelmente de um ponto de vista particular a um ponto de vista

    geral: Maquiavel no descreve apenas a lgica das operaes do prncipe, daqui por

    diante raciocina acerca dos sistemas de fora encarnados pelos regimes polticos e abre

    caminho para o estudo das estruturas sociais.

    Todavia, o importante que esta passagem permanece na sombra, que a linguagem do

    escritor no d lugar para uma apreciao moral, que a questo da natureza do Estado

    est sempre mantida distncia. Sob essa condio torna-se possvel at mesmo evocar

    a fora do regime republicano. Evocando duplamente prudente, verdade, visto que,

    por um lado Maquiavel no abandonou a hiptese da conquista, interrogando somente

    acerca das dificuldades encontradas por um prncipe novo numa cidade outrora livre,

    pra responder que o meio mais seguro arruin-la e dispensar seus habitantes, e que,

    por outro, confunde numa primeira parte da anlise o caso dos principados acostumados

    a viver sob sua prpria lei e o das repblicas, como se esse ltimo nada tivesse de

    especfico. Mas a ideia nova avanada entre outras que a dissimulamcomo num

    campo de batalha a conquista de uma posio acompanhada de vrias operaes

    diversionistassurge na concluso do quinto captulo: as repblicas so os regimes

    mais slidos, os mais resistentes aos empreendimentos de um agressor porque os

    cidados esto apegados liberdade. dar a entender que, visto que a autoridade no

    tem somente limites, como na monarquia do tipo feudal, mas se encontra largamente

    partilhada entre os cidados, a lgica das relaes de fora joga a favor de uma

    distribuio do poder e de um sistema que asseguraria a troca entre governantes egovernados.

    Nesta etapa da leitura o percurso do escritor j se tornou sensvel para ns.

    Aparentemente, ele se detm no exame de casos particulares em que so divisadas as

    operaes necessrias para a tomada do poder e para a sua conservao; mas, por esse

    vis, introduz as primeiras consideraes gerais sobre a oposio entre o prncipe e seus

    sditos, as relaes entre Estados, a fora relativa dos diferentes regimes. Consideraes

    que constituem balizas para um pensamento ao qual parece indispensvel permaneceraqum da expressocomo oferecer-se sob a forma de um saber explcito implicasse

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    degradar-se ou chocar-se com a incompreenso de outrem -, ou melhor, descreve um

    percurso sinuosocomo se no entrasse na posse da verdade seno por uma dupla e

    constante denegao. De fato, ideia de estabilidade, evocada por um momento no

    tocante monarquia hereditria, ope-se a do movimento, concebido como constitutivo

    de toda experincia poltica: ideia do tempo que conserva, ope-se a do tempo que

    enxota tudo sua frente; ideia da natureza social definida como uma ordem regida por

    fins imanentes ou transcendentes, ope-se a dos acidentes cujo encadeamento de causa

    e efeito; ideia de um vnculo de amor entre o prncipe e seus sditos, ope-se a da

    opresso em diversos graus. Mas, simultaneamente, da imagem de uma violncia que se

    exerce sem fim e de uma fora que s tiraria vantagem de sua superioridade imediata

    sobre outra, o pensamento nos conduz de uma economia da potncia: diante da

    condio do sdito-escravo recupera o sentido da afeio natural que um povo

    apegado s leis tem por seu senhor; um regime parece tanto mais slido quanto mais

    nele o poder estiver mais bem repartido, enfim, a pura diversidade dos acidentes deixa

    que apaream constelaes relativamente estveis cujo sentido inscreve-se nas situaes

    histricas tpicas, nas estruturas polticas.

    Aonde nos conduz esse movimento de pensamento? Devemos nos assenhorar de

    verdades positivas que o discurso deixa entrever para reuni-las a ttulo de primeiros

    elementos de uma cincia poltica? Ou procurar signos de um novo estatuto da

    experincia e do saber na crtica das imagens com que a opinio comum se alimenta?

    Essas questes se colocam no limiar do sexto captulo, consagrado fundao do

    Estado. Ora, tudo indica que com esta hiptese entramos numa nova fase da anlise.

    No se trata mais de apenas definir as operaes que permitem ao prncipe governar e

    conservar um domnio conquistado, nem de apenas apreciar a incidncia das condies

    sociais e histricas sobre seus empreendimentos. A ao pela qual o sujeito toma o

    poder se distingue agora de todas as outras do mesmo gnero na medida em que ela oinstitui como prncipe e d unidade poltica a um povo. Podemos, portanto, supor que o

    exame da conduta do fundadorpara o qual, lembremos, o autor no nos havia

    preparadoser ocasio de uma reflexo sobre a origem do Estado. Ademais,

    Maquiavel d a entender que sua inteno no somente a de permanecer nos limites de

    um caso particular, por mais privilegiado que seja. Assim, quando anuncia que falar de

    principados inteiramente novos, aqueles em que o Prncipe e o Estado so novos, e

    quando trata disto efetivamente na maior parte do captulo, o ttulo evoca um outrotema, o dos principados adquiridos por virte por armas prprias; na sequncia, recorda

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    o fracasso de Savonarola, reformador que no cessou de proclamar o seu apoio ao

    regime republicano, e conclui com o exemplo de Hieron de Siracusa, simples capito

    que chega testa do governo por um golpe de Estado. Assim, a hiptese da fundao do

    Estado parece destinada a nos esclarecer tanto sobre a natureza do Estado quanto sobre

    a do Poder em geral. verdade que, numa primeira leitura, o sexto captulo decepciona

    nossa expectativa. Nenhuma resposta parece ser dada s questes que colocvamos:

    Maquiavel invoca exemplos ilustres como os de Moiss, Ciro, Rmulo e Teseu, mas

    no os analisa, e no poderamos nos impedir de pensar que a poltica desses gloriosos

    fundadores, cuja memria decorre mais da lenda do que da Histria, escapa ao

    conhecimento exato. No que tange virte sua relao com a Fortuna, no tocante

    dificuldade para introduzir as ordini nuovi, no que concerne autoridade adquirida pelo

    prncipe uma vez vencidos os primeiros obstculos, e quanto felicidade que retira

    dessa vitria e que d sua ptria, precisamos nos satisfazer com consideraes rpidas

    e muito gerais das quais o mnimo que podemos dizer que no esto sustentadas por

    uma descrio dos fatos e que nos deixam famintos. A nica concluso positiva que

    podemos reter que o fundador deve preferir a fora prece, que os profetas armados

    triunfam ali onde fracassam os profetas desarmados; mas essa ideia parece curta se

    comparada com o que aprendemos, pois j sabemos que a inteligncia da fora mais do

    que a prpria fora est no corao da poltica. Em suma, o captulo que nos ocupa

    bem diferente dos primeiros, mas no no sentido que prevamos. Enquanto o exame

    minucioso da poltica de Lus XII e dos Romanos induzia a uma verdade de alcance

    universal, agora os propsitos do autor parecem flutuar numa zona indecisa em que no

    contam nem o peso dos fatos nem o das ideias. Todavia, essa decepo ocorre de que

    queremos mais uma vez nos fixar na letra do enunciado quando talvez devssemos,

    moda do prncipe a quem o passado oferece mais um objeto de inspirao do que de

    imitao, apoiar-nos sobre o texto apenas para nos elevarmos ao plano daquilo que nosd a pensar. As primeiras leituras do captulo, com efeito, do um aviso que parece

    possuir mais de um sentido. Maquiavel pede ao leitor que no se espante ao v-lo alegar

    grandes exemplos: estes, diz ele em substncia, oferecem o modelo da mais alta ao

    poltica, mas no necessrio nem, sem dvida, possvel que o prncipe novo se

    identifique com os heris fundadores; basta que queira assemelhar-se a eles, isto , no

    tornar-se igual a eles, mas sim avanar no caminho traado por eles. A prudncia manda

    que guarde na memria a virtdesses gloriosos predecessores, no na esperana de seapropriar dela, mas sim para que a prpria conserve algum cheiro dela. Assemelha-se,

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    aprendemos ainda, a um arqueiro prudente que para atingir um alvo longnquo ajusta o

    tiro em funo de um ponto de mira situado a uma altura muito maior do que a de seu

    objetivo. Ora, temos razo para desconfiar que um arqueiro nunca tenha podido furtar-

    se a essa necessidade e que um fundador, seja l qual for seu mrito, nunca tenha agido

    sem modelos e ainda devemos observar que, impondo flecha um desvio, o atirador

    atinge perfeitamente o alvo. Assim, somos inclinados a julgar que a figura do heri

    puramente simblica, ou, melhor dizendo, que a funo realista dos maiores exemplos

    uma funo simblica. Ao descobri-la, estamos prontos para olhar o texto com outros

    olhos. Vem ao nosso esprito que o prprio Maquiavel procede como o arqueiro, que

    seu discurso segue o trao indireto da flecha e que as consideraes gerais, cujo sentido

    procurvamos em vo, talvez sejam apenas o ponto de mira do qual preciso regressar

    at o lugar do alvo.

    Ento, o movimento do discurso torna-se muito mais decisivo que a apologia da fora,

    pois novamente parece propor a imagem tradicional da ao poltica apenas para melhor

    apartar-se dela. Doravante, o que chama ateno a distncia entre a ideia de onde o

    autor parte e aquela a que chega; o sentido no est na significao encerrada em cada

    proposio, mas na discordncia manifesta entre os princpios que o fundam a primeira

    e a segunda parte do argumento. De fato, a criao do Estado apresentada de incio

    como obra da virt. Certamente essa virtcomo anttese da Fortuna; o poder de

    subtrair-se desordem dos acontecimentos, elevar-se acima do tempo que, como

    aprendemos, enxota tudo sua frente, agarrar a Ocasio e, portanto, conhec-la, ,

    enfim, segundo a palavra do autor, introduziruma forma numa matria. Mas, pela

    primeira vez, ela se revela virtude moral: os fundadores so homens excelentes:

    Moiss, de quem no mais se deveria falar, visto que foi apenas um verdadeiro

    executante das coisas ordenadas por Deus, considerado admirvel pela graa que o

    tornava digno de falar com Deus; os outros no o so menos, visto que sua conduta no

    foi diferente da dele; sua glria est em ter dado unidade e liberdade a um povo disperso

    e oprimido; seu sucesso pessoal harmoniza-se com o enobrecimento e a felicidade de

    sua ptria. Entretanto, apenas essa imagem esboada, j preciso abandon-la.

    Evocando as dificuldades com que o prncipe se choca no incio de seu

    empreendimento, subitamente Maquiavel usa uma outra linguagem. Torna-se patente

    que os fundadores so forados (forzati) a introduzir novas instituies (nuovi ordini e

    modi) para estabelecer o Estado e, acrescenta o autor, a assegurar sua segurana, comose as duas exigncias se confundissem. Dessas instituies, ficamos sabendo que no h

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    coisa mais perigosa do que tratar delas, mais duvidosa do que ter xito, nem mais

    perigosa de lidar porque no contam com o benefcio de qualquer suporte na sociedade.

    Um momento antes, a poltica do prncipe aparecia como expresso das aspiraes

    coletivas: agora devemos entender que ningum esta a seu lado: tem como inimigos

    todos aqueles que tiravam proveito da ordem antiga e s encontra mornos defensores

    naqueles que se beneficiaro com a nova, to forte a incredulidade dos homens nas

    coisas novas enquanto uma experincia segura no lhes tiver demonstrado a solidez do

    regime estabelecido e enquanto a mobilidade de seus espritos impedi-los de ser fiis

    causa que por um breve momento excitou sua paixo. Novamente parece no haver

    outro problema para o prncipe seno o de impor obedincia aos sditos, de tal sorte que

    a posio do glorioso fundador se aproxima da do conquistador que, de acordo com a

    anlise do terceiro captulo, devia defender-se simultaneamente contra adversrios e

    partidrios. Assim, no por acaso que Maquiavel usa uma mesma expresso para

    designar a ao de ambos: acquistare lo Stato.

    Ora, nessa etapa do discurso so rudemente opostas f e fora e ilustrada a crtica aos

    profetas desarmados como o exemplo de Savonarolaargumento que termina por

    abalar nossa primeira opinio. Nos prprios termos da questo colocada: preciso

    considerar se aqueles que buscam coisa nova (questi innovatori) podem alguma coisa

    por si mesmos (stanno per loro medesimi) ou se dependem de outrem, isto , se para

    bem conduzir seu empreendimento contam com a prece ou com a fora, pode-se

    entrever a interveno que sustenta toda a discusso. A oposio entre virte Fortuna

    transforma-se em oposio entre poder de depender apenas de si e sujeio aos desejos

    de Outro e esta, por sua vez, transforma-se em oposio entre autonomia do homem e

    dependncia de Deus. Certamente, Maquiavel parece deter-se na apologia da fora,

    porm a funo desse tema desvenda-se subitamente: est encarregada de nos livrar do

    mito de uma histria regulada pela Providncia. Por seu intermdio acha-se brutalmenteanulado nosso respeito pelo executante das coisas ordenadas por Deus. E, enquanto a

    figura de Savonarola se superpe de Moiss, a realidade da poltica do prncipe dos

    judeus restituda. H pouco, imaginvamos encontrar nela o testemunho de uma graa

    divina com que, sua revelia, nutriam-se os outros fundadores de Estado. Doravante,

    preciso concluir em sentido inverso, isto , que a submisso aos decretos de Deus era

    pura aparncia e que a virtde Moiss se inscreve no registro que Rmulo, Ciro e Teseu

    tornam legvel.

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    bem verdade que, sob certos aspectos, a incerteza permanece. s questes: que a

    virt, que so as ordini nuovi, a que o Estado deve sua origem?, nenhuma resposta

    segura, dissemos, pode ser dada, mas essa incerteza est carregada de um peso estranho.

    E pelo menos de uma coisa no podemos duvidar: Maquiavel convida o leitor para uma

    interrogao acerca dos fundamentos da poltica e comea a lhe proibir que se apoie

    sobre as verdades estabelecidas pela tradio humanista ou crist. Ora, essa interrogao

    to radical que possvel julgar que o caso tratado tinha exclusivamente a funo de

    dar-lhe forma. Era preciso, parece, evocar a fundao do Estado, o sagrado que se apega

    mais alta empresa poltica, a virtdos heris venerados, para que se pudesse, quando

    essas imagens se desfazem, apanhar a verdadeira cartada do discurso. Como conceber o

    Estado , em que solo finca-lo se o fundador est s, se no h um arranjo na natureza

    garantindo o empreendimento, se os homens no esto predispostos a concordar mas a

    resistir ao advento da comunidade e se, por outro lado, a ideia de um ordenamento

    providencial da sociedade um logro? Eis a questo ltima a brilhar no horizonte

    empalidecendo todas as outras. Maquiavel no a formula, apenas indica-a, encaminha-

    nos para ela. E fornece essa indicao sua maneira, atravs de uma palavra breve e

    leve, despojada da nfase do filsofo ou do pregador, mas sobre a qual j no podemos

    nos enganar porquanto o nome de Savonarola, lanado de propsito, repe em nossa

    memria um outro apelo renovao do pensamento e da ao poltica.

    No uso desse nome h mais do que uma simples referncia ao fracasso de um profeta

    desarmado, mais do que um artifcio para modificar a imagem da prudncia de Moiss e

    mesmo mais do que um convite para ultrapassar o quadro fixado pela hiptese da

    fundao do Estado, Savonarola se dirigira aos mesmos interlocutores que Maquiavel e

    pretendia trazer as ordini nuovi. Portanto, no somente o fracasso de sua poltica que

    devemos medir, mas os de seus princpios; no convm voltar-se somente rumo a uma

    prtica nova, mas tambm rumo a um pensamento novo para encontrar a via de umamudana radicalpensamento do terico traando o justo retrato do prncipe e

    substituindo o ensino do profeta vencido pelo seu prprio. Esta substituio assinalada

    de maneira muito precisa numa parfrase irnica. Savonarola denunciava os insensatos

    e malvados que negavam ser possvel governar com opater noster e pretendia tirar do

    Antigo e do Novo Testamento a prova de que as cidades sempre tinham sido salvas pela

    prece; segundo Maquiavel, insensato aquele que se fia na prece e se esquece de que

    Moiss estabeleceu seu reino pela fora; para um, a incredulidadedos homens estava naorigem dos males da Itlia, o outro retoma o termo para lhe dar contedo novo: a falta

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    de f nas coisas novas e no na velha imagem do Deus protetor que se ope a uma

    reforma poltica; e sua ironia adquire fora dupla quando d a entender que Savonarola

    fracassou por ter sido incapaz de constranger os homens a manter a f no em Deus,

    mas nele prprio. Um distinguia os verdadeiros prncipes (veri principi), cujo nico fim

    o bem comum, e os tiranos, que s querem reinar pela fora: o outro insinua que os

    melhores prncipes, os que asseguram a felicidade de sua ptria, triunfaram por ter

    sabido impor seu poder contra a vontade de todos. A crtica maquiaveliana manifesta-se

    at na imagem das oposies e das resistncias que o fundador deve vencer. Pois,

    semelhana do profeta que entrava em guerra contra os tiepidi, aos quais faltava

    coragem para lutar por sua f, no menos culpados a seus olhos do que os ostinati,

    encarniados em se preservar na cegueira, o escritor modula trs vezes o mesmo termo

    tiepidi, terpidezza, terpidamentepara designar aquele que parece sustentar a ao do

    prncipe e tirar proveito das novas instituies, mas que o abandonam por falta de um

    constrangimento fidelidade.

    Todavia, Maquiavel no ope uma outra verdade verdade proclamada por

    Savonarola: seu discurso nasce somente do imperativo de pensar a poltica em um certo

    nvel. A esse respeito, o sexto captulo marca um momento privilegiado; no,

    certamente, porque permitiria ganhar novos conhecimentos sobre a natureza do poltico,

    mas, ao contrrio, porque o saber est agora enraizado em um no-saber. Tal , com

    efeito, o paradoxo que esclarece plenamente a anlise da fundao que, no entanto, se

    apresentava como a de um caso emprico entre outros: no incio de O Prncipe,

    Maquiavel parecia ter afastado do seu propsito as questes julgadas essenciais por

    aqueles que haviam escrito sobre a poltica antes dele; dava investigao o jeito de

    uma pesquisa puramente tcnica, como se esta dispensasse toda justificao e como se

    bastasse consultar a experincia para saber por quais meios o Estado pode ser

    governado; mas medida que assinala em alguns exemplos a necessidade quecomandaria as aes do prncipe em cada ao particular, na verdade, elabora o prprio

    princpio dessa necessidade, o estatuto do social como campo de foras, o do

    governante como agente puro, a relao entre sujeito de pensamento e objeto,

    elaborao com vistas a uma crtica cada vez mais precisa das imagens a que aderem a

    filosofia clssica e a crist, de tal modo que a exigncia de uma certeza cientfica e de

    uma determinao do real impe-se simultaneamente como aquilo que d sentido ao

    discurso e se revela suspenso verdade de um movimento puramente crtico, ligado em

  • 7/23/2019 C. Lefort - Sobre a Lgica Da Fora

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    profundidade experincia de uma incerteza no tocante ao fundamento do saber ou de

    uma indeterminao concernente ao prprio Ser do poltico.

    Assim, o apelo reiterado ao conhecimento exato e a uma prtica rigorosamente

    submetida a ele ressoa estranhamente num certo vazioum vazio que o escritor arranja

    deliberadamente em torno dos novos conceitos de uma teoria da ao, no lugar onde

    outrora o pensamento se assegurava com a presena de uma ordem divina ou natural.