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BUSCANDO UM CAMINHO PARA PROJETAR EM TERREIROS TENDA DOS MILAGRES - PROPOSTA DE ARQUITETURA DE PANO DA COSTA OLIVEIRA, Josane S. ¹ 1. RESUMO Os templos de matrizes africanas² são espaços que se originaram do amalgama de cultos trazidos de África para o Brasil e aqui foram mimetizados e reelaborados a partir das necessidades e limites locais estabelecidos. Na Bahia tais práticas estabeleceram-se em terreiros³, e são elaborados em sua maioria com base na dinâmica dos nagô, negros advindos da África Ocidental. Em tais espaços o fazer da comunidade está impregnada de Axé, este compreendido como principio e poder de realização, rege todas as atividades litúrgicas e laborais dos terreiros. Sobre esses espaços, temos a seguinte descrição: Vê-se então que o candomblé é uma África em miniatura, em que os templos se tornaram casinholas dispersas entre as moitas quando as divindades pertencerem ao ar livre, ou então em cômodos distintos da casa principal, e são divindades adoradas nas cidades. Quando o terreiro é muito pequeno, todas as divindades urbanas podem encontrar-se num peji único, mas as outras ficam de fora. De qualquer modo, o lugar do culto na Bahia aparece sempre como um verdadeiro microcosmo da terra ancestral; (Bastide, 1958 (2001) - pág. 58) Projetar em ambientes de terreiro é um desafio para os arquitetos e engenheiros, pois são espaços de segredos litúrgicos que precisam ser respeitados. Também é preciso pontuar a negação de tais espaços para os campos dessas disciplinas, além de não ocorrer um aprendizado sobre os mesmos dentro da academia, a existência de referencias técnicas e/ou compartilhamento de experiência daqueles que enfrentaram tal atuação é ínfima. A contribuição do arquiteto nesse espaço, em que há limites para a sua atuação, e possui poucos exemplos práticos, fica prejudicada, impedida.

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BUSCANDO UM CAMINHO PARA PROJETAR EM TERREIROS

TENDA DOS MILAGRES - PROPOSTA DE ARQUITETURA DE PANO DA COSTA

OLIVEIRA, Josane S. ¹

1. RESUMO

Os templos de matrizes africanas² são espaços que se originaram do

amalgama de cultos trazidos de África para o Brasil e aqui foram mimetizados e

reelaborados a partir das necessidades e limites locais estabelecidos. Na Bahia tais

práticas estabeleceram-se em terreiros³, e são elaborados em sua maioria com base

na dinâmica dos nagô, negros advindos da África Ocidental. Em tais espaços o fazer

da comunidade está impregnada de Axé, este compreendido como principio e poder

de realização, rege todas as atividades litúrgicas e laborais dos terreiros. Sobre esses

espaços, temos a seguinte descrição:

Vê-se então que o candomblé é uma África em miniatura, em que os templos se tornaram casinholas dispersas entre as moitas quando as divindades pertencerem ao ar livre, ou então em cômodos distintos da casa principal, e são divindades adoradas nas cidades. Quando o terreiro é muito pequeno, todas as divindades urbanas podem encontrar-se num peji único, mas as outras ficam de fora. De qualquer modo, o lugar do culto na Bahia aparece sempre como um verdadeiro microcosmo da terra ancestral; (Bastide, 1958 (2001) - pág. 58)

Projetar em ambientes de terreiro é um desafio para os arquitetos e

engenheiros, pois são espaços de segredos litúrgicos que precisam ser respeitados.

Também é preciso pontuar a negação de tais espaços para os campos dessas

disciplinas, além de não ocorrer um aprendizado sobre os mesmos dentro da

academia, a existência de referencias técnicas e/ou compartilhamento de experiência

daqueles que enfrentaram tal atuação é ínfima. A contribuição do arquiteto nesse

espaço, em que há limites para a sua atuação, e possui poucos exemplos práticos,

fica prejudicada, impedida.

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Para superar tais limites, foi elaborada uma metodologia que visa um conhecimento

dos princípios que regem a dinâmica do candomblé, além de propiciar o envolvimento

de todos do terreiro, incluindo a iyalorixá (mãe de santo) com o objetivo de possibilitar

a atuação dos técnicos de maneira satisfatória, de modo que nem a técnica nem a

liturgia sejam prejudicados.

O presente artigo tem por objetivo apresentar e compartilhar esta experiência

de projetar em um sitio sacralizado (um terreiro de candomblé), as pesquisas iniciais

que levaram à decisão dos materiais a serem utilizados e o programa, que se

desdobraram em duas cartilhas (Construção de Terra e Arquitetura de Tecido) e a

pratica de duas oficinas respectivamente cujo intento fora alimentar e embasar a

proposta arquitetônica a ser elaborada para o Trabalho Final de Graduação (TFG) da

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, intitulado

como Tenda dos Milagres - Proposta de Arquitetura de Pano da Costa e tinha

como produto um projeto de edifício(s) para um centro de produção de artefatos e

ferramentas utilizados nos rituais e festejos de candomblé, situado no terreiro em que

ambas foram ministradas. Assim, este artigo vai apresentar todo o processo, desde a

pesquisa em literatura, as visitas que antecedeu e embasou as oficinas e sua

aplicação, a metodologia adotada, os princípios pedagógicos que nortearam, bem

como o resultado final dessa experiência, o programa e projeto arquitetônico para o

referido centro.

Palavras-chave: Terreiro, Metodologia de Projeto, Construção de Terra, Arquitetura

Têxtil.

1 Arquiteta Urbanista, Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia

2 Denomino templos de matrizes africanas, aos espaços nos quais ocorrem manifestações religiosas no Brasil, cuja referencia seja (ou origem como nos aponta alguns autores).

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1. INTRODUÇÃO

Durante o período de aprendizado na faculdade de arquitetura são

ensinados diversos processos para a elaboração de projeto arquitetônico,

abrangendo edifícios em sítios religiosos, mas nunca incluem a possibilidade

de atuação nas comunidades de matrizes africanas.

Sabe-se que além da sacralização de todo o elemento contido no sítio e

também da própria liturgia estabelecer barreiras e limitação para aqueles que

não tem ligação com, e ou não são iniciados em tais comunidades. Se faz

necessário, portanto, antes de tudo reconhecer tais limites, e trabalhar

envolvendo a comunidade, pois ela será a intermediária entre o projetista

(desenhista) e aqueles para quem projetamos (ou desenhamos) de fato, os

voduns, nas comunidades geges, os orixás, nas comunidades nagôs e os

inquices, nas comunidades angola (bantu).

Tendo como desafio para o TFG a elaboração de um projeto para um

sítio sacralizado de matriz africana, foi elaborada uma metodologia, que teve

varas etapas,e que envolvia a comunidade desde o principio, incluindo também

a mameto (cargo similar a mão de santo nos terreiros bantu), com o objetivo de

que ela fosse apontando os limites de atuação, além da busca por conhecer os

princípios que regiam/regem as relações dentro da comunidade.

2. PANO DA COSTA

O Pano da Costa é um dos elementos que compõem a vestimenta das

mulheres nos terreiros no Brasil. Original da costa africana, feito através de tear

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manual, sua importância ultrapassa a questão religiosa, se tornando elemento

estético, histórico (foi moeda de toca no resgate de negros escravizados),

funcional e ritual a partir do processo diaspórico. Ao ligar-se ao candomblé e

seus aos rituais, teve seus significados re-elaborados e adaptados (figuras 01 a

04).

O Pano da Costa, tradicionalmente, faz parte do vestuário das africanas, que é usado enrolado ao corpo, sendo um costume em diversas regiões africanas como: Costa do Marfim, Gana, Nigéria, Congo, Benin e Senegal. (Cadernos do IPAC - Pano da Costa, pág. 18, 2009)

O pano-da-costa, de significado religioso e social, é peça fundamental na composição das roupas dos rituais de candomblé; envolve, assim um importante segmento da população da Bahia: o povo de santo ou comunidades de terreiro. introduzido no Brasil pelos africanos, ficou conhecido como pano-da-costa porque vinha da Costa do Marfim. Os primeiros foram importados da África, onde são denominados Alaká ou Pano de Alaká. Mais tarde passaram a ser tecidos no Brasil por escravos ou por seus descendentes, cujo último artesão foi Abdias do Sacramento Nobre, mais conhecido como Mestre Abdias, falecido em 1994. (Folder da Kula Tecelagem)

Verifica-se na Guiné o mesmo processo usado pelos tecelões aqui no Brasil, ou seja, as faixas são costuradas lado a lado fazendo a combinação dos padrões e largura das tiras" (Cadernos do IPAC - Pano da Costa, pág. 26, 2009)

No candomblé, a importância do vestir-se está ligada a simbolismos que

em primeiro plano é incompreensível, mas que se relaciona basicamente com a

ocasião ou evento, com a hierarquia estabelecida pelo tempo de iniciação e

também para referenciar o orixá (voduns ou inquices) da pessoa

(diferenciações de cores e elementos decorativos). É dentro dessa lógica que o

Pano da Costa é apropriado no seio das comunidades de terreiro.

FIGURAS 01 - Africana usado pano da costa; 03 Modos diferentes de uso; Yalorixa Mãe Stella de Oxóssi do Opô Afonjá,

usando pano da costa; 04 - Panos da costa.FONTES: Acervo do IGBA, , Blog do Rio Vermelho, idem e Caderno do IPAC-

Pano da Costa

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"Pano da costa no cintura ou no peito é demonstração de trabalho: usa-se desta maneira nas festas no Barracão (...)Nós usamos o pano da costa no ombro, fora do trabalho, para visitas, passeis e atos civis no Terreiro" (SANTOS, pág. 60, 2010)

"(...)Em cerimônias de Axexê, as Olorixá usam o pano da costa feito uma estola, com uma das pontas cobrindo o pescoço.(...)" (SANTOS, pág. 61, 2010)

" Pano da Costa branco – Oxalá, Oxalufã ou Oxaguiã. - Pano da Costa vermelho – Xangô ou Iansã - Pano da Costa azul e branco - Oxóssi - Pano da Costa vermelho e amarelo – Ogum - Pano da Costa roxo e branco – Omolu e Nanã" (cadernos do IPAC, pág. 25, 2009)

3. METODOLOGIA

A metodologia elaborada pretendia respeitar as peculiaridades do sitio

de atuação, sendo dividida em 3 Etapas, que se dividiam e relacionavam-se

em diversas fases, conforme é possível observar no gráfico abaixo:

A Etapa A abrangeu o entendimento do universo da cosmogônico e dos

elementos simbólicos do candomblé, bem como, os princípios de aprendizado

e transferência de conhecimento dessas comunidades e a ritualística que

envolvia as atividades ali laboradas. Para tanto foram experienciadas vivência

de aprendizado em comunidades de terreiro, acompanhamento de aprendizado

de atividades laborais em instituições de terreiros, pesquisa em literatura

ligadas a dinâmicas de terreiros, reconhecimento do universo simbólico ligado

GRÁFICO DAS ETAPAS

FONTE: Elaborado pela autora.

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ao candomblé, pesquisa de técnicas que propiciem a autoconstrução e

manutenção dos espaços gerados pela própria comunidade. Visita ao sitio

sagrado de projeto para entender as singularidades e características

específicas do terreiro e confirmar as vantagens deste sitio para o projeto, e a

busca por conhecimento teórico das técnicas de construção de terra e de

arquitetura têxtil.

A Etapa B abrangeu a elaboração de cartilhas de construção de terra e

de arquitetura têxtil, bem como a elaboração e mediação das oficinas

referente a estas e por fim a avaliação dos resultados dessas oficinas. Já a

Etapa C compreendeu a elaboração do programa do edifício, bem como

projeto arquitetônico, que se deu a partir da acumulação de conhecimentos

obtidos nas etapas anteriores.

3.1. ETAPA A - BUSCANDO ÁGUA NA FONTE

A primeira etapa se desdobrava em várias frentes(ou fontes) de busca

de conhecimento, que abarcava inicialmente a busca por um conhecimento

teórico, as quais denominei Fontes Literárias, para o qual tive o apoio de

literatura especifica e consagrada. Posteriormente a busca por conhecimento

local, as quais denominei Fonte In Loci, através da qual eu era guiada pelo o

caminho da observação e da audição d aqueles que há muito conviviam e

laboravam no interior de comunidades de matrizes africanas.

3.1.1. Fontes Literárias Sobre o Universo Cosmogônico

Buscou-se autores e obras que se tornaram referencia para a

compreensão de elementos da dinâmica dos terreiros de candomblé, sendo

eles portanto, a fonte para descobrir os conceitos de axé, da família de santo,

do laborar, e do aprender/fazer.

Sobre Axé, o elemento que rege a sacralidade dos terreiros, por vezes

ouve-se a iyalorixá e os membros do terreiros indicar que "a casa tinha axé",

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que determinada folha "estava carregada de axé", que era preciso "reestabeler

o axé". Para compreensão dessa energia teve-se como manancial a Juana

Elbein, que descreveu o seguinte:

"Este termo designa, em Nagô, a força invisível a força mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa." (Santos,J., pág.40,2012)

"Sendo o asé uma força que permite serem as coisas, terem ela existência e devir, podemos concluir que tudo o que existe, para poder realizar-se, deve receber asé." (Santos,J., pág.43, 2012)

Ela observa que, tal força deve ser transmitida, assim todo o elemento e

individuo só pode ser adjetivado como sagrado na medida que "receber axé"

inclusive para que o terreiro possa cumprir suas atividades e rituais deve ser

"plantado o axé". A partir disso se concluiu que é na ação de transmitir essa

energia que se dá a sacralização, e que toda ação executada dentro do terreiro

precisa estar permeada pelo axé para que aquele cumpra a sua função. Ao

pensar na ação de dar e receber o axé, sendo a mão o receptáculo desses

verbos, é possível afirmar que ela, a mão, é guia transmissora dessa energia.

Sobre a Família de Santo e a Ancestralidade que a atravessa é

preciso destacar a dinâmica das relações interpessoais dentro das

comunidades de terreiro, uma vez que se percebe um vínculo, no tratamento

entre os membros da comunidade, de "parentesco" (irmão, irmã, pai e mãe).

Para o entendimento de como se dá essas relações, a fonte fora Júlio Braga,

que desvela o papel da figura ancestral, sobretudo a que se manifesta no

campo objetivo, no reconhecimento de como se dá essas vinculações ao nos

dizer que:

"Na discussão da ancestralidade manifestada pela herança reconhecida e culturalmente processada no interior dos candomblés, a noção de parentesco permite a reconstrução da trama genealógica ancestral até a matriz referencial de origem, sendo redimensionada no campo simbólico do parentesco religioso." (Braga, pág. 96, 1995)

Para o entendimento e a importância do labor nas comunidades é

também com o caderno do IPAC sobre o Pano da Costa, que se apreendeu

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sobre a o processo de trabalho no seio dessas, a partir da dinâmica

estabelecida em África, para a qual:

Através da arte, estabelece-se uma relação com o mundo. Vínculos, alianças, simbologias, são transmitidas por gerações, constituindo uma conexão de caráter universal. A arte é o veículo da comunicação, que possibilita verdadeiros elos, que manterão o equilíbrio e a união entre grupos. (Cadernos do IPAC - Pano da Costa, pág. 19 e 20, 2009)

Os objetos produzidos pelo fazer africano incorporam um poder mítico e simbólico que não representa apenas o seu uso, mas que está enraizado de significados que traduzem o sentimento de pertencimento a uma cultura que transcendeu obstáculos e que se preservou na sua essência. O saber e fazer o Pano da Costa teve, aqui na Bahia, tecelões e artesãos que, com muita sabedoria, conseguiram preservar esta arte. (Cadernos do IPAC - Pano da Costa, pág. 21, 2009)

É num contexto cultural sócio-religioso que será situado o Pano da Costa, ressaltando a sua importância simbólica, além de pontuar o saber e o fazer do Pano da Costa, sob a perspectiva de uma arte africana introduzida no Brasil, arte esta considerada pelos africanos como sendo a personificação de uma inteligência especial, através da qual o homem aprimora seu ambiente, ou seja, o africano transforma materiais comuns em coisas de valor, utilizando-se do poder criativo e imaginário. (Cadernos do IPAC - Pano da Costa, pág. 19, 2009)

Sendo assim, o saber e o fazer, compreendem o entendimento que os

processos de produção, dentro dos terreiros, perpassam também o processo

de ligação com a própria comunidade, bem como os valores que se

estabelecem na ação que estão diretamente ligados à está, além de acessar

também as divindades. A arte tem como fim a própria comunidade e seus

rituais.

3.1.2 Fontes In Locus - Sobre O Aprendizado e a Produção Artesanal em

Comunidades de Terreiro

Para a compreensão dá a prática do ensino e do aprendizado nas

comunidades de terreiro busquei instituições que possuíssem cursos ou

núcleos de produção ligadas (ou mesmo dentro) a centros de cultos afro

baianos. O objetivo era entender os princípios que regem a educação em tais

instituições, o processo laboral e de produção nos terreiros (a própria dinâmica

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de trabalho) e também estabelecer o programa do conjunto a ser projetado. Fiz

cursos de aprendizado de técnicas, visitas a centros de produção de diversos

artefatos, acompanhando inclusive a produção.

Curso de Tecelagem na Casa do Alaká (figura 05), no terreiro Ilê Axé

Opo Afonjá, localizado em Salvador, no qual o Mestre Abdias deu início ao seu

trabalho de preservação da técnica de tecelagem do Pano da Costa. Neste

encontrei as artesãs/mestres, Iraildes Santos e Neide Costa, ambas discípulas

do grande mestre citado. O ponto de partida do curso foi o questionamento das

artesãs sobre o orixá (vodun ou Inquice) que cada aluno pertencia (era filho).

Assim lhe dava os novelos de linha conforme a resposta (cada um teceria um

pano ligado diretamente a energia que o acompanhava) e a aqueles que não

sabiam ela perguntava que cor gostava, de modo que todos se integrassem ao

processo. Isso ratificava que nenhum processo se dá de forma indiscriminada e

alheia as simbologias religiosas, os orixás são sempre os guias do saber e do

fazer, a medida que é a partir do orixá que é definida a estética (neste caso a

cor) que terá o Pano da Costa.

Visita ao Ateliê (Espaço Cultural Vovó Conceição) de Bordado e

Costura da Casa Branca (figuras 06 e 07), o Ilê Axé Iya Nassô Oká, um dos

mais tradicionais terreiros baianos e primeiro do Brasil tombado como

patrimônio. Neste tive o prazer de conversar com a Equede Sinha, responsável

pelo ateliê e quem ministra as aulas. Ela falou da importância da preservação

da produção de bordados e das roupas de candomblé dentro das comunidades

de terreiro, pois a roupa precisa ter axé. Assim ratificou-se a importância de um

centro de produção de artefatos no seio de uma comunidade de candomblé

cujos responsáveis são pessoas ligadas a liturgia.

FIGURAS 05, 06, 07

FONTE: Autora

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Visita ao Ateliê de Gilmar Tavares, este artifície, que é ogã, produz

ferramentas ligadas aos cultos afro brasileiros com metal. Teve seu trabalho

exposto em diversos museus e fez parte do projeto Casa dos Objetos Mágicos

do Programa Monumenta, em 2006, que visava repassar o conhecimento das

técnicas. Na cartilha (figura 08) desse projeto, foi possível observar o processo

de produção dos artefatos organizada a partir do croqui até a peça final (figura

09).

Visita a Kula Tecelagem (figuras 10 e 11), da Associação São Jorge

Filho da Goméia (ASJFG), vinculada ao Terreiro São Jorge, sediado em Lauro

de Freitas, cidade da região metropolitana de Salvador, é um espaço de

exposição, produção, preservação e de comércio do Pano da Costa e de outros

artefato, não ligados ao culto afro, mas com identificação desses objetivando

dar maior fluidez as mercadorias ali produzidas.

3.1.3. Fonte In Loci - Visita ao Sitio Sagrado - Terreiro Tingongo Muende

Visita ao sítio escolhido para a elaboração do TFG de tipologia de roça,

sediado em Cajazeiras XI (figuras 12 e 13), desde 1984, com o intuito de

compreender as particularidades que o cercavam, não só litúrgica como de

localização e situação, além de estabelecer uma aproximação com Mãe Zil,

como era conhecida a Mameto Zil, e a comunidade.

O terreiro, de nação Keto-Angola, sagrada a Obaluayê e a Oxum,

possuía grande extensão de terra 29.000,00m², das quais apenas 897,67 m²

edificada ou com alguns assentamentos. Localizado na região do Miolo de

FIGURAS: 08 - Cartilha da Casa do Objeto Mágico; 09 - Trabalho de Gilmar Tavares; 10 - Tecelã e 11 -Tear da

Kula Tecelagem. FONTE: Acervo da autora.

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Salvador, que abriga a 2ª maior quantidade de terreiros e perde apenas para o

subúrbio ferroviário.

Em síntese o objetivo desta etapa foi conhecer e abarcar as

particularidades que regem a dinâmica dos terreiros de candomblé,

reconhecer singularidades do sitio onde seria efetuado o projeto para

elaboração da cartilha e na pratica das oficinas ministradas.

3.2. ETAPA 02 - ONDE VERTER A ÁGUA RECEBIDA - CARTILHAS E

OFICINAS

Nesta etapa se deram as primeiras decisões sobre o projeto, mas

precisamente sobre os materiais e elementos a serem aplicados e sobre o

programa a ser desenvolvido, com base nas informações obtidas na etapa

anterior.

3.2.1. Decisão sobre Materiais e Técnicas a serem utilizadas

A escolha dos materiais se deu a partir da compreensão do Axé, das

relações de parentescos nas comunidades de candomblé, do universo

simbólico, sobretudo, os orixás que regem a casa, seus elementos e

características, também a relação de comunidade estabelecida nos terreiros e

visando fortalecê-las que chegou-se à conclusão de estabelecer as técnicas de

construção de terra e o uso do panos da costa como elementos principais na

produção arquitetônica.

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A escolha da Arquitetura Têxtil sendo a principal na geração dos espaços

teve como referencia o Pano da Costa ou Alaká, elemento diaspórico de muita

importância na cultura afro baiana, como pode ser observado no tópico 2, e das

Técnicas de Construção de Terra baseada na existência de uma grande

extensão de terra no sitio do projeto, sendo matéria prima abundante e

facilmente extraída por qualquer individuo da comunidade, o uso de técnicas

sustentáveis é amparado nas relações de estreita afinidade dessas

comunidades com a natureza.

O uso de tais materiais, se deu também, pelo reconhecimento das

organizações de terreiro como famílias e a percepção de que ambas as

técnicas reforçam estes laços, uma vez que é necessário o empenho de cada

componente na execução do material; pelas características dos orixás que

regem a casa: Oxum, conhecida pela sua beleza e vaidade e Obaluayê, tem

como elemento fundamental a terra; pelas características do poder aquisitivo

do público alvo; e pela produção dos materiais por técnicas manuais que

elaborados pela comunidade, permite fluxo de axé;

A partir das decisões supracitadas, foi necessário elaborar a metodologia

de como tais materiais seriam empregados, para tanto foi pensado um método

em que possibilitasse a participação da comunidade, decidimos por um

trabalho de pesquisa que culminou com a elaboração de cartilhas e mediação

de oficinas respectivas intituladas como: Oficina da Construção com Terra e

Arquitetura Têxtil.

3.2.2. Cartilhas (Elaboração) e Oficinas (Elaboração e Mediação)

O momento inicial esteve pautado na elaboração das cartilhas como

resultado do trabalho de pesquisa que foram intituladas como Técnica da

Construção com Terra e Arquitetura Têxtil com o objetivo de promover um

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documento de fácil e rápido entendimento abordando os conceitos, as

orientações e divulgação das técnicas desses processos.

Na abordagem da cartilha de Construção com Terra tratamos sobre as

técnicas existentes e dos exemplos ilustrativos de arquitetura, as precauções

necessárias para execução e garantia de durabilidade da edificação. O objetivo

da elaboração desta cartilha e da oficina foi popularizar e propagar a tais

técnicas entre as comunidades de terreiro, tendo em vista que algumas dessas

comunidades já utilizam determinadas técnicas, desmitificar a ideia de que as

mesma produzem edificações de baixa qualidade.

Na abordagem da Arquitetura têxtil tratamos da literatura sobre o tema,

sua peculiaridade como arquitetura efêmera e exemplos de arquitetura têxtil. O

objetivo da elaboração desta cartilha e da oficina foi apresentar possibilidades

de usos de tecidos na criação de espaços. Busca-se perceber junto à

comunidade as possibilidades que a estética do tecido pode oferecer a

arquitetura.

As Cartilhas e Oficinas foram elaboradas com intuito de obter elementos

e ferramentas que embasassem as decisões técnicas e estéticas do projeto

arquitetônico a ser tendo em vista a ação participativa da comunidade em tais

decisões. As oficinas, por sua vez se apresentam como espaços de negociação

e interação do senso crítico.. A aprendizagem através deste dispositivo é um

exercício ético e político.

3.2.3. Mediação de Oficinas no Terreiro Tingongo Muende

A estrutura da oficina contou com o grupo de 8 pessoas pertencentes ao

terreiro escolhido, teve duração total de cinco horas divididas em três

momentos. No primeiro, pela manhã, com a exposição oral e a amostra de

imagens com recursos digitais no uso do computador, utilização de material

impresso, discursivo e ilustrativo sobre os temas do trabalho, Construção de

Terra e Arquitetura Têxtil.

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No segundo à tarde, com duração de três horas, os integrantes

escolheram dentre as técnicas apresentadas as quais utilizariam para a

construção das maquetes. Como recurso para a elaboração da proposta

apresentada tivemos a utilização da terra (argila), materiais recicláveis,

reaproveitamento de tecidos ou utensílios disponíveis nos terreiros para a

elaboração da proposta apresentada.

As oficinas (figuras 14 a 22) de Construção com Terra e Arquitetura Têxtil

visou que a comunidade se aproprie dos conhecimentos, buscando promover a

divulgação e o acesso as informações sua disponibilização na versão online.

O terceiro momento foi a avaliação das oficinas, baseada nas reflexões,

contribuições, questionamentos e sugestões sobre o processo, através da qual

se concluiu que há aceitação da comunidade de terreiro para as técnicas

apresentadas. Além dos resultados das maquetes serem apropriados para o

projeto arquitetônico a serem desenvolvidos.

3.3. ETAPA C - ONDE VERTER A ÁGUA RECEBIDA - ARQUITETURA

ELABORADA

O projeto (figuras 23 a 37) compreende um centro de produção de

artefatos ligados a liturgia do candomblé, para o qual estabeleceu o seguinte

programa: Casa de Costura (e bordados a máquina), Tecelagem, Bordados a

Mão, Área Produção de Ferramentas Metálicas, Área de Convivência

(Sanitário,Copa e Área de Mesas), Depósito;

FIGURAS: 14 a 16 - Oficinas (exposição da cartilha e elaboração) 17 a 22 - Maquetes (resultado

das oficinas. FONTE: Acervo da autora.

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O partido compreende o uso de tendas e/ou cortinas (figura 24 e 25)

com elemento separador de espaços no interior dos edifícios, estes executados

em técnicas de construção de terra (tijolo de adobe e/ou taipa de pilão), quanto

as coberturas, tanto a estrutura quanto o telhamento foi proposto em bambu

tratado.

Foi proposto um conjunto de 05 edificações com 02 tipologias. A

Tipologia 01 projetada para ser aberta, contendo duas paredes laterais com

vãos arcados, em tijolo de adobe (figuras 23 e 24). Com divisória internas com

tendas retrateis e ou cortinados, que podem ser removidas, ou içadas

possibilitando uma arquitetura dinâmica e efêmera (figuras 24 e 25).

A Tipologia 02 comporta edificações fechadas, parcial ou totalmente, em tijolo

de adobe (aparente e com revestimento), e abrigam a Área de Convivência

(figura 26) a Casa de Costura (figura 27) e o depósito (figura 28).

FIGURAS: 23 Plantas Baixas e Vistas - Tipologia 01; 24 - Planta e Vistas - Tipologia 01,

com tendas; 25 - Croqui da tenda. FONTE: Elaboradas pela autora

FIGURAS: 26 a 28 - Plantas Baixas e Vistas das edificações da Tipologia 02. FONTE: Elaboradas pela autora.

A

B

A

B

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E 05 estruturas projetadas pilares de eucalipto tratado, que ficam entre

as edificações, funcionam para atividades diversas, com tendas para

cerramento do espaço. Nos três casos a estrutura e as telhas da cobertura em

bambu tratado, o forro de elemento têxtil transpassando a estrutura o telhado. A

tipologia 01, que é aberta, e algumas das estruturas com pilares de bambu

forma um conjunto com fechamento em estrutura de bambu (figuras 36 e 37).

Na planta de situação (figura 29) a distribuição das edificações foi feita

de forma. Para o exterior foi proposto um caminho de estrutura de trave em

bambu transpassado por um elemento têxtil tanto nas suas laterais como no

topo (figuras 29 a 31). Tecidos (Pano da Costa) transpassando as árvores e

interceptando as edificações (figuras 29, 32 a 37).

FIGURA: 29 - Planta de Situação com legenda das edificações e dos elementos

arquitetônicos. FONTE: Elaborada pela autora.

FIGURAS: 30 Croqui;

31 - Esboço em Perspectiva das

Traves em bambu transpassada

com pano da costa. FONTE:

Elaboradas pela Autora

FIGURAS: 32 - Vistas do Conjunto Proposto; 33 - Vistas do Conjunto com o tecido traspassando as Proposto; 34 e 35 -

Tecido transpassando a arvore e as edificações. FONTE: Elaboradas pela autora.

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4. REFERÊNCIAS

ABRANTES, Samuel. Sobre os Signos de Omolu. Rio de Janeiro, Editora Ágora da Ilha, 1999;

Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Pano da Costa./ Bahia. Governo do

Estado. Secretaria de Cultura. IPAC.- Salvador : IPAC; Fundação Pedro Calmon, 2009.

BRAGA, Julio. Ancestralidade Afro-Brasileira: O culto de Babá Egum. 2.ed – Salvador:

EDUFBA/Ianamá, 1995.

LAWAL, Babatunde. A arte pela vida: a vida pela arte. Revista Afro-Ásia, Salvador, CEAO/UFBA,

n.14. 1983

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagò e a Morte - Pàde, Asèsè e o culto Ègun na Bahia; traduzido

pela Universidade Federal da Bahia. 14 ed. - Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

SANTOS, Juana Elbein dos. (Organizadora). Ancestralidade Africana no Brasil - Mestre Didi 80

anos. Salvador: SECNEB, 1997.

SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora; 2ª Edição, Salvador: Editora da

Assembléia Legislativa da Bahia, 2010.

OLIVEIRA, Josane dos Santos, Tenda dos Milagres - Proposta de Arquitetura de Pano da Costa.

Projeto para defesa de Título de Graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal da Bahia;

Cartilha da Casa dos Objetos Mágicos

http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Casa_dos_Objetos_magicos.pdf. Acessado em

abril de 2018

FIGURAS: 36 e 37 - 3 D de edificação com o tecido transpassando. FONTE: Elaboradas pela autora.