burocracia e política no brasil - desafios para o estado democrático no século xxi

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BUROCRACIA E POLÍTICA NO BRASIL: DESAFIOS PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO NO SÉCULO XXI Fernando Luiz Abrucio Maria Rita Loureiro Regina Silvia Pacheco Introdução Os textos reunidos neste volume tratam da temática da burocracia sob dois ângulos. De um lado, analisam os seus vínculos com o sistema político e suas conseqüências para a democracia. De outro, lançam luz sobre o próprio aparato burocrático, seja do ponto vista teórico seja da sua organização efetiva. Em ambas as perspectivas, ênfase especial é dada à experiência brasileira, reconstruindo a trajetória histórica e as questões contemporâneas. Um dos objetivos enfrentados coletivamente pelos autores é desmontar o mito da separação estanque entre política e burocracia, ou seja, a idéia de que os políticos tomam todas as decisões e os burocratas apenas executam ou administram tais decisões. Assim, a orientação geral aqui adotada questiona a visão que se origina em Woodrow Wilson, no final do século XIX nos Estados Unidos, de que “a administração está fora da esfera política e as questões administrativas não são questões políticas”. Esta mesma perspectiva reducionista da relação entre políticos e burocratas também aparece em certas interpretações mais 1

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Page 1: Burocracia e Política no Brasil - desafios para o Estado Democrático no Século XXI

BUROCRACIA E POLÍTICA NO BRASIL: DESAFIOS PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO NO SÉCULO XXI

Fernando Luiz Abrucio Maria Rita LoureiroRegina Silvia Pacheco

Introdução

Os textos reunidos neste volume tratam da temática da burocracia sob dois

ângulos. De um lado, analisam os seus vínculos com o sistema político e suas

conseqüências para a democracia. De outro, lançam luz sobre o próprio aparato

burocrático, seja do ponto vista teórico seja da sua organização efetiva. Em ambas as

perspectivas, ênfase especial é dada à experiência brasileira, reconstruindo a trajetória

histórica e as questões contemporâneas.

Um dos objetivos enfrentados coletivamente pelos autores é desmontar o mito da

separação estanque entre política e burocracia, ou seja, a idéia de que os políticos

tomam todas as decisões e os burocratas apenas executam ou administram tais decisões.

Assim, a orientação geral aqui adotada questiona a visão que se origina em Woodrow

Wilson, no final do século XIX nos Estados Unidos, de que “a administração está fora

da esfera política e as questões administrativas não são questões políticas”. Esta mesma

perspectiva reducionista da relação entre políticos e burocratas também aparece em

certas interpretações mais apressadas da obra de Max Weber, as quais transformam a

distinção feita por ele acerca dos papéis desses atores em uma separação absoluta.

Wilson foi o primeiro autor a refletir sobre a relação entre políticos e burocratas,

no texto seminal intitulado The Study of Administration (1887). Sua visão seria a de

que a política e a administração deveriam ser claramente separadas1. Esta separação

baseia-se na idéia de que ao mundo político caberia a definição das prioridades da ação

governamental, ao passo que a esfera administrativa ficaria com a implementação das

políticas, a partir da transformação das diretrizes gerais em atos burocráticos. Conforme

aponta Behn (1998:9), esta concepção perpassa várias passagens da obra de Wilson,

entre as quais pode se destacar a seguinte: “os planos da ação governamental não são

1 O argumento a seguir baseia-se não só do trabalho de Wilson (1887), como nas análises de Robert Behn (1988) e Rafael Oliva (2006).

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administrativos, [ao passo que] que a execução de tais planos é que é administrativa”

(WILSON, 1887:18-9).

Um trabalho recente sobre o tema resume bem a concepção wilsoniana:

“É importante notar que a separação proposta por Wilson não se reduz a uma mera diferenciação entre etapas do processo de produção de políticas. De fato, o ponto central do raciocínio wilsoniano reside na compreensão de que decisões políticas e administrativas possuem natureza distinta – sendo que a especificidade das últimas estaria na possibilidade de que fossem submetidas a tratamento “científico”, o que lhes conferiria um status de neutralidade frente aos objetivos de política propostos. Nesse aspecto, Wilson é enfático ao afirmar que qualquer objetivo de política poderia ser reduzido a uma dimensão “técnica”, indicando, assim, que o núcleo da atividade administrativa corresponderia a identificar a resposta “correta” para os problemas ou desafios definidos no nível da política” (OLIVA, 2006: 31).

Tal como Wilson, Weber identificou na burocracia um ator importante para o

Estado moderno. Ela teria o papel, primeiramente, de evitar que o governo fosse tomado

pela ocupação patrimonial dos cargos públicos, processo que seria substituído pela

seleção pública e universal de um corpo profissional, meritocrático e impessoal. Além

disso, caberia aos burocratas a racionalização da administração pública, por meio de

procedimentos padronizados, substituindo o diletantismo por ações orientadas por

especialistas.

Mas enquanto Wilson propunha uma complementaridade harmoniosa entre

política e burocracia, Weber definia esta relação como um convívio necessário, porém,

marcado por tensões. A principal delas está no campo do controle das decisões

burocráticas, nas quais Weber já percebera um espaço de grande autonomia para os

funcionários públicos, sem que necessariamente os políticos – e, em última instância, os

cidadãos – conseguissem controlar tais ações. Neste sentido, o modelo weberiano

analisa a burocracia não só como um fenômeno funcional ao desenvolvimento do

Estado moderno e do capitalismo – como fez crer a leitura parsoniana de Weber,

hegemônica no século XX –, mas também como um dos grupos de poder mais

estratégicos do mundo contemporâneo2.

É o tema do controle o principal divisor de águas da obra dos dois autores. O

modelo wilsoniano resolvia o dilema do controle de duas formas. A primeira seria

2 A vertente weberiana mais voltada ao estudo da burocracia como ator político foi desenvolvida por vários autores e escolas de diferentes matizes na segunda metade do século XX, como Michel Crouzier, Robert Dahl, Anthony Downs, os autores do Public Choice, a visão do neo-institucionalismo histórico, entre outros.

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meramente técnica, pela seleção dos melhores e o desenvolvimento da ciência da

administração. A segunda seria por meio das eleições, nas quais os cidadãos

referendariam ou não as ações governamentais, com impactos sobre a forma como a

burocracia implementa as políticas. Nesta concepção, haveria controles ex-ante

(qualidade do recrutamento) e ex-post (processo eleitoral), mas não ao longo do

mandato.

Embora Weber concordasse com estes instrumentos propostos por Wilson, a eles

acrescentava mais um, que é central em sua concepção. Tratava-se da criação de

mecanismos de controles parlamentares da burocracia, instituindo aí formas de

fiscalização ao longo do mandato. Esta proposta continha uma perspectiva segundo a

qual a burocracia nunca será completamente neutra e que seus objetivos podem ganhar

autonomia perante as decisões políticas. É neste ponto que podemos diferenciar mais

precisamente os argumentos weberianos da visão wilsoniana. Mesmo assim, Weber

deixou uma pergunta sem resposta: como controlar os aspectos técnicos utilizados pela

burocracia para os quais os políticos não têm informação ou formação para melhor

orientar a fiscalização?3

A esta pergunta foram dadas três respostas nas últimas décadas. A primeira foi a

multiplicação dos mecanismos de controle democrático, particularmente no momento

do mandato. A chamada accountability horizontal, entre instâncias de poder, cresceu

muito, o que no caso brasileiro pode ser notado nas ações do Ministério Público, dos

Tribunais de Contas e do Judiciário, além do próprio parlamento. O controle vertical do

poder político também foi alterado, com a instauração de controles sociais e de

resultados sobre as políticas púbicas, exercidos de forma ininterrupta (ABRUCIO &

LOUREIRO, 2004).

Uma segunda resposta veio de idéias oriundas de autores da Nova Gestão

Pública. Por esta linha foram feitas propostas para controlar os resultados das ações

burocráticas, aumentar a transparência governamental e incrementar a possibilidade de a

sociedade fiscalizar a administração pública, a fim de evitar que a burocracia torne-se

ensimesmada. Daí que esta corrente preconiza a instauração de uma administração

pública voltada aos cidadãos e não aos desígnios internos da estrutura burocrática.

3 Como uma forma de resolver esta questão, o argumento weberiano aventou a possibilidade de que o controle da técnica burocrática poderia sair de uma competição interburocrática, particularmente entre organizações públicas e privadas. Weber não desenvolveu muito este ponto, só exposto em sua última obra (Parlamento e Governo numa Alemanha reordenada – Weber, 1993). Esta idéia foi recuperada recentemente pela Nova Gestão Pública, por meio de conceitos como o pluralismo institucional na provisão de serviços públicos e formas de competição administrada (cf. Abrucio, 2006).

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Como último remédio ao dilema do controle proposto por Weber, os políticos

cada vez mais procuram obter conhecimento e assessoria técnica para controlar os

burocratas. Na verdade, constata-se no mundo contemporâneo aquilo que Aberbach,

Rockman e Putnam (1981) denominaram de “burocratização da política e politização da

burocracia”. Ou seja, estes autores mostraram que prevalecem hoje nas democracias

ocidentais formas híbridas de relacionamento entre política e administração. Nelas, os

políticos estão cada vez mais fundamentando tecnicamente suas decisões e os

burocratas reforçando seu papel nas decisões políticas, orientando-se pelos sinais

emitidos pelos políticos ou mesmo intermediando interesses de clientelas específicas. E

essa nova realidade obriga os estudiosos a analisar criticamente os efeitos dessa

intersecção dos papéis dos políticos e dos burocratas para o funcionamento do governo

e para a manutenção da ordem democrática.

Do ponto vista mais geral, a concepção weberiana da relação entre política e

burocracia e as três respostas ao dilema do controle proposto por Weber constituem o

fio condutor teórico deste livro, cujo foco empírico é o Brasil. A organização da obra

procurou apresentar textos que articulam a discussão da relação entre política e

burocracia com dois eixos. O primeiro diz respeito à análise do sistema político-

administrativo brasileiro, sendo dois artigos com ênfase na dimensão histórica e outros

dois mais voltados para o período da redemocratização. O segundo eixo refere-se às

reformas recentes da gestão pública, enfatizando questões como transparência,

responsabilização e controle dos governantes, profissionalização e carreiras públicas,

eficiência da ação estatal.

É importante frisar que a temática da gestão pública é estudada aqui não só do

ponto de vista administrativo, mas também, e com grande ênfase, da perspectiva

democrática, na medida em que a melhoria da gestão das políticas públicas e o

aperfeiçoamento dos mecanismos de controle sobre os governantes são dimensões

cruciais do aprofundamento da democracia representativa. Entendida em termos mais

amplos do que a dimensão exclusivamente eleitoral, a democracia representativa supõe

que o controle da probidade, do desempenho e dos resultados das ações governamentais

constitui um momento político central de um ciclo mais amplo da representação

democrática.

Essa noção significa que não se deve perder de vista que o momento eleitoral é

apenas o começo de um processo que continua durante o mandato. Para assegurar que

os representantes, uma vez à frente dos seus cargos, pautem sua conduta pelo “melhor

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interesse de seus representados” é necessário haver instrumentos efetivos e continuados

de controle (URBINATI, 2006). Portanto, o ciclo da representação se completa apenas

quando o povo, a partir dos atos de controle, é capaz de avaliar se os governantes

agiram ou não como seus representantes de fato, decidindo-se por sua recondução ou

destituição do cargo (PRZEWORSKI, STOKES E MANIN, 2004).

O livro procura, assim, conectar análises da ciência política com questões da

gestão pública, que geralmente são feitas, na literatura, de forma isolada. Esse esforço

visa articular temas eminentemente político-institucionais – como democracia,

representação, federalismo e relação entre os Poderes – a aspectos mais específicos da

organização e funcionamento do Estado, tais como perfil da força de trabalho,

organização das carreiras públicas, critérios de nomeação de dirigentes, novos formatos

organizacionais e técnicas gerenciais inovadoras. Estes últimos têm sido tratados pelos

pesquisadores da área de administração pública, muitas vezes de forma normativa ou

apenas descritiva e, portanto, empobrecedora. Por outro lado, muitos cientistas sociais

ignoram aspectos fundamentais do funcionamento do Estado e do governo, como se os

arranjos administrativos fossem meras questões instrumentais. Procura-se aqui submeter

tais objetos empíricos ao diálogo com os conceitos e preocupações da ciência política e,

ao mesmo tempo, atrair a atenção dos analistas políticos para tópicos importantes da

transformação do Estado contemporâneo, particularmente aqueles abordados pela

chamada “Nova Gestão Pública”.

Aqui é necessário realçar dois aspectos. O primeiro refere-se ao ineditismo da

empreitada, ao buscar articular analiticamente essas duas perspectivas científicas. Para

os autores deste livro, gestão pública não é um ramo da administração de empresas

(apesar de assim ser tratada institucionalmente no Brasil), mas antes dialoga

prioritariamente com a ciência política. O segundo aspecto é decorrente daí: há

possíveis complementaridades, mas há também tensões nesta junção, que se expressam

em termos de linguagem, abordagem e recorte temático.

Um exemplo desta tentativa de articulação e de suas tensões é a diversidade do

uso do(s) conceito(s) de burocracia que aparece(m) neste volume. Nos diferentes

capítulos do livro, o conceito de burocracia varia conforme o ponto de vista a partir do

qual é construído. Quando o foco é a organização do Estado, a burocracia tem um

sentido, como corpo permanente do Estado (de carreira ou não); quando o foco é o

sistema representativo, a burocracia pode ser compreendida como os atores não-eleitos

do Estado. Essa pluralidade conceitual pode instigar o leitor a entender a diversidade de

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abordagens e refletir sobre as especificidades e a importância destas duas visões. Neste

sentido, o objetivo não é criar um referencial único para entender a burocracia, mas

explorar as diferentes possibilidades de análise que o tema suscita.

Assim procedendo, este livro preenche uma lacuna da literatura brasileira,

marcada, por um lado, pela ausência de estudos da burocracia nos períodos

democráticos e, por outro, pela centralidade do ponto de vista organizacional em

detrimento de análises mais “politizadas”, ou seja, preocupadas com o papel da

burocracia no jogo democrático.

Cabe mencionar ainda que este livro tem também objetivo didático, pretendendo

ser bibliografia de referência básica, uma vez que praticamente não há publicações no

Brasil que reúnam em um mesmo volume textos que articulem análises da formação

histórica e do funcionamento da burocracia brasileira com as características do sistema

político e seus impactos para a ordem democrática.

Os estudos no Brasil sobre a burocracia, além de serem relativamente escassos

se comparados a outros países – como os Estados Unidos –, referem-se, sobretudo, aos

períodos autoritários, quando o fechamento das vias democráticas de participação, em

partidos ou no legislativo, redireciona a atividade política para dentro do aparato estatal,

obrigando o analista a buscar a compreensão das decisões políticas dentro da burocracia

do Poder Executivo.

Por outro lado, a literatura brasileira se constitui majoritariamente de estudos de

casos de agências governamentais, privilegiando a análise da relação entre Estado e a

sociedade, diferentemente dos estudos produzidos mais recentemente na Europa,

prioritariamente centrados nos problemas de desempenho dos burocratas, e nos EUA,

cujo foco principal está na eficácia ou não dos controles democráticos sobre a

burocracia. A referência à literatura internacional nos permite, portanto, perceber a

prevalência, no Brasil, de uma reflexão sobre a burocracia marcada muito mais pela

preocupação com o papel central do Estado na sociedade do que propriamente em

entender suas “entranhas” ou sua relação com o sistema político. Ao contrário destas

formas de abordagem do tema, neste volume a burocracia é o objeto central de análise,

desdobrando-se em dimensões que se conectam com a questão democrática e a

efetividade das ações do Estado.

O volume está organizado da seguinte forma. A Parte I trata da relação da

burocracia com o sistema político. Seu primeiro capítulo tem como objetivo reconstituir

a formação e a trajetória da burocracia brasileira por meio da análise dos momentos

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mais importantes de reforma da administração pública e da compreensão de suas

principais efeitos para a modernização do aparelho de Estado. Privilegia-se o estudo das

principais mudanças institucionais – principalmente o DASP e o Decreto Lei-200 –,

ressaltando seus aspectos positivos, mas também seus problemas, particularmente o

paradigma comum do modelo reformista brasileiro: centralizador, autoritário e insulado

em relação ao sistema político. Busca-se, assim, problematizar esta proposta de

“modernização conservadora” que foi hegemônica no século XX.

Somente com a redemocratização do país, o paradigma reformista foi mudado,

incluindo um modelo mais democrático, com maior equilíbrio do ponto de vista

intergovernamental e que evitou criar apenas uma elite burocrática protegida dos

políticos. Dessa nova visão resultaram conquistas que, de fato, melhoraram a gestão

pública brasileira. Porém, misturam-se hoje antigos e novos desafios, tanto em termos

de conteúdo como no que tange às estratégias reformistas. O final do capítulo lista quais

seriam as principais prioridades no campo da reforma administrativa no país.

O capítulo 2 analisa os vínculos estabelecidos historicamente entre a burocracia

governamental, os partidos políticos e os grupos de interesse. A partir dos estudos sobre

a emergência e consolidação do Estado e de suas relações com a sociedade, o texto

indica que se, de um lado, há consenso sobre o papel crucial desempenhado pela

burocracia nos processos decisórios de políticas públicas, de outro lado, há divergência

com relação à fonte de seu poder: ora o poder da burocracia advém dos interesses

socioeconômicos que ela própria representa dentro do aparelho de Estado, ora deriva da

decisão estratégica dos chefes do Poder Executivo de tentar garantir, por meio dos

"burocratas de confiança", que sua direção e controle sobre a máquina estejam

assegurados.

Todavia, o capítulo enfatiza que o importante é compreender a natureza e o

alcance do poder dos burocratas na estrutura geral do Estado e na forma em que

funciona o sistema político Em outras palavras, entender a burocracia no Brasil como

policymaker é indissociável dos debates acerca da hipertrofia do Executivo em relação

ao Legislativo e da fraqueza da função governativa dos partidos políticos, não só nos

momentos autoritários, mas igualmente na democracia. São, assim, retomados temas

como clientelismo, insulamento burocrático, corporativismo e meritocracia e os desafios

que impõem para a ordem democrática.

O tema do capítulo 3 refere-se ao controle sobre a administração pública,

dimensão crucial de uma ordem democrática, pois se espera que nos regimes

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democráticos a conduta dos agentes públicos e os resultados de suas políticas sejam

passíveis de verificação e sanção permanentes. Em outras palavras, discute-se aqui o

que a literatura chama de accountability horizontal. O balanço do exame dos controles

democráticos sobre a burocracia no Brasil revela um quadro ainda bastante negativo,

caso se tenha como expectativa uma efetividade sistêmica dos diversos instrumentos de

controle. Isto ocorre porque, embora haja um grande número de mecanismos e formas

de accountability horizontal, eles não operam de forma coordenada ou ao menos

articulada. É bem verdade que os exemplos mencionados demonstram que as

possibilidades proporcionadas por nosso marco constitucional e legal não são poucas,

precisando, contudo, ser efetivadas enquanto instrumentos de responsabilização e

aprimoramento das políticas públicas.

O arcabouço institucional faculta ao Poder Legislativo, ao Tribunal de Contas da

União e ao Ministério Público agirem como instâncias de controle da administração

pública, mas a atuação de todos esses órgãos se dá muito mais no combate à corrupção

do que no controle da qualidade das políticas implementadas pela Administração

Pública. No caso do TCU e do MP, o controle da probidade é mesmo uma função

precípua dos órgãos; já no caso do Legislativo, a passividade no controle político da

administração aparece como mais uma faceta do predomínio do Executivo nas relações

entre os Poderes no Brasil.

O capítulo 4 conclui a Parte I do livro, analisando o surgimento de um novo

modelo de sistema de controle interno no Executivo federal, por meio do exame dos

processos político-institucionais que deram origem ao órgão central desse sistema, a

Secretaria Federal de Controle Interno (SFC). Criada em 1994, no bojo de um conjunto

de reformas legais e organizacionais, a SFC procurou, por um lado, superar o controle

interno meramente formal e legalista, predominante entre as décadas de 1960 e 1980, e,

por outro, buscou criar capacidade estatal de monitorar as políticas públicas e a atuação

da burocracia.

Este capítulo analisa, ainda, o significado da SFC em termos do aperfeiçoamento

das instituições de promoção da transparência e da accountability e como instrumento

potencial de controle político da burocracia. Embora a atividade de controle interno ou

monitoramento não seja política, pois é guiada por critérios técnicos e burocráticos

definidos a priori, ela pode ser usada pelos agentes políticos (como Presidente da

República, ministros e demais dirigentes) como um dos instrumentos para garantir o

alinhamento da burocracia às políticas e aos programas definidos politicamente.

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A parte II, com cinco capítulos, é dedicada à discussão da temática da gestão

pública no Brasil contemporâneo. O capítulo 5 sistematiza os temas emergentes da

chamada Nova Gestão Pública, tais como transparência das ações governamentais,

atuação voltada ao usuário, descentralização de atribuições, horizontalização das

estruturas e ações matriciais, controle e melhoria de processos, aumento das

competências de gestão dos funcionários e a construção de uma administração orientada

por e para resultados. Tomando distância de autores que vêem nesta abordagem uma

ameaça à democracia, o capítulo desenvolve a tese de que a Nova Gestão Pública tem

contribuído para o fortalecimento da ordem democrática, ao melhorar a qualidade da

ação governamental e tornar mais efetiva a ação do Estado, especialmente no que se

refere à prestação de serviços públicos.

O capítulo 6 apresenta uma ampla radiografia do emprego público no Brasil em

perspectiva comparada, tanto em termos internacionais quanto entre as esferas do

governo nacional e os setores da administração pública. A discussão em torno da

evolução do emprego público no país tem sido bastante centrada na magnitude do

contingente de servidores, e o texto mostra que o tema exige uma abordagem mais

complexa, que envolva outros elementos.

Em relação à composição da força de trabalho, demonstra-se que não há um

número excessivo de servidores públicos no país, mas uma distribuição inadequada

entre os diversos setores, com excesso de funcionários nas áreas de suporte

administrativo e operacional. Além dessa má distribuição, a multiplicidade de funções

que o Estado desempenha, e que se ampliou nas últimas décadas, requer distintas

formas de contratação que o arcabouço jurídico atual não contempla, levando os

governos a realizarem uma parcela de suas contratações de forma bastante precária.

Apesar desses graves desequilíbrios, os servidores são, em geral, melhor qualificados e

bem remunerados, se comparados ao setor privado. Essas constatações ajudam a

desconstruir dois estereótipos comuns no Brasil: que o Estado seria ineficiente porque

tem muitos funcionários, e que os funcionários públicos não podem ser eficientes

porque seriam mal pagos e desqualificados.

O texto recomenda que a política de recursos humanos deva estar orientada para

motivar os servidores a apresentar bons resultados, e que estes sejam compatíveis com

as metas da organização. Neste sentido, seriam desejáveis a adoção de instrumentos

orientados para a aquisição de competências e a avaliação de desempenho dos

servidores e das organizações. Ao analisar alguns governos estaduais brasileiros, o autor

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apresenta exemplos interessantes de políticas de desenvolvimento profissional, embora

a maior parte das administrações ainda não adote este modelo.

O capítulo 7 analisa de forma pormenorizada o tema da profissionalização da

burocracia, apontado como crucial para entender a administração pública. De início, o

texto aponta que o Brasil tem sido tomado como caso destacado de profissionalização

da função pública dentre os países latino-americanos, por meio da constituição de uma

burocracia permanente, processo iniciado na década de 1930. Mas o artigo também

realça as disfunções da burocracia brasileira, como a rigidez nas relações de trabalho, o

sistema privilegiado de pensões e aposentadorias, a estabilidade plena e desvinculada de

desempenho, além do conceito restrito de profissionalização baseado no ingresso por

concurso público e na promoção em carreiras estruturadas.

Analisando criticamente os princípios da isonomia e do direito adquirido, além

da politização e do uso clientelístico do emprego público, este capítulo apresenta o

corporativismo como um dos fatores responsáveis pela não consolidação de uma

burocracia profissional de Estado no Brasil, apesar das ações recentes, na esfera federal,

empreendidas pelos governos FHC e Lula. Uma das principais qualidades deste texto é

a separação clara entre as noções de mérito e profissionalização, de um lado, e de outro,

as práticas de proteção ao funcionário.

O capítulo 8 apresenta o debate sobre modelos de carreiras de Estado

considerando, em perspectiva comparada, seu processo de formação no século XIX e as

linhas de mudança ocorridas no final do século XX. A partir deste enfoque, é analisada

a carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG),

criada pelo governo federal brasileiro em 1989, com o objetivo de formular,

implementar e avaliar as políticas públicas, bem como para exercer atividades de

direção e assessoramento em escalões superiores da administração – processo que mais

recentemente foi “copiado” por alguns governos estaduais. A história dos EPPGG

ilustra como a constituição e fortalecimento de uma burocracia profissional relaciona-se

com o sistema político e administrativo, e permite a observação de como a estrutura

desta carreira mescla elementos dos diversos modelos analisados, demonstrando que

não há um único padrão de carreira burocrática.

Por fim, o capítulo 9 busca caracterizar a especificidade de um novo ator no

aparelho de Estado, o dirigente público, mostrando seus dilemas e desafios na interação

cotidiana com políticos, burocratas e demais atores sociais. Para isso, são discutidas

certas variáveis, como o ethos próprio do dirigente público, seus recursos de poder,

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formas de acesso à posição, discricionariedade, responsividade e politização da função,

sempre em comparação com as funções típicas dos burocratas e políticos profissionais,

conforme a definição weberiana. As diferenças entre os dirigentes públicos oriundos das

carreiras do funcionalismo e outsiders também são aprofundadas, destacando-se a

insuficiência do debate sobre o tema no Brasil, a situação atual dos dirigentes públicos

na administração pública federal e algumas experiências internacionais que visam ao

fortalecimento da função diretiva. Os autores concluem defendendo a

institucionalização de sua função como condição necessária para um melhor

funcionamento do Estado num regime democrático.

Cabe ressaltar, por fim, que o livro buscou caracterizar, por vários ângulos, o

que é mais específico na configuração contemporânea das relações entre política e

burocracia no Brasil. Determinados aspectos revelam legados históricos muito fortes,

como o predomínio do Executivo, o número exagerado dos cargos em comissão (cujo

preenchimento em boa parte não é justificada nem controlada publicamente) e a

diferença ainda relevante entre os níveis de governo no que tange às capacidades

estatais. Há também novidades, como o surgimento de novos atores burocráticos para

além do Poder Executivo (como membros do sistema de Justiça e do Tribunal de

Contas), a realização de alguns processos de modernização e profissionalização da

gestão pública – como a criação de carreiras, de sistemas de informação e de novos

desenhos organizacionais, entre os principais pontos – e a introdução de idéias e

medidas ligadas à Nova Gestão Pública.

De todo modo, pode-se concluir que os aspectos positivos e negativos da

administração pública brasileira atual só poderão ser mais bem compreendidos por uma

análise que alie as perspectivas da gestão pública e da ciência política. Afinal, o que se

deseja é um Estado que, no século XXI, seja mais efetivo e mais accountable em

relação à sociedade como um todo, e não apenas para a parcela que historicamente

recebeu mais recursos ou teve acesso privilegiado aos bens públicos.

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