brua molina visão tricotomica

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 DA VISÃO TRICOTÔMICA À VISÃO COMPLEXA DO DIREITO - UM NOVO PARADIGMA Bruna Molina Hernandes da Costa Defensora Pública do Estado. Especialista em Direito Processual Civil. Mestranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Direito das Relações Sociais, subárea direitos difusos e coletivos. INTRODUÇÃO  A dicoto mia Direito Público versus Direito Privado, ainda ministrada nas facul- dades de Direito, encontra-s e mais do que superada. Com o surgimento da sociedade moderna, massicada, consumerista, desenvolveu-se a visão tricotômica do Direito, que alia a estes dois conceitos a categoria dos direitos Difusos, categoria esta que abrange princípios tanto do Direito Privado quanto do Direito Público. O que se buscará no presente artigo é superar também a visão tricotômica do Direito, por meio da demonstração de um novo paradigma. Apresenta-se, assim, como base teórica desta nova visão, chamada visão complexa do Direito, a teoria da complexidade, desenvolvid a pelo lósofo francês Edgar Morin. Importante frisar que não iremos discutir a teoria da complexidade, não tendo esta sido pesquisada na visão de outros estudiosos. Baseamos nossas divagações apenas nos ensinamentos de Morin, visando utilizá-los para melhor entender as divi- sões do direito e sua necessidade de superação. SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA DIREITO PÚBLICO VERSUS  DIREITO PRIVADO O Direito Romano, base de toda nossa estrutura jurídica, se baseava em uma tutela de interesses estritamente individuais, posto que eram os interesses individuais que estavam no centro das atenções da sociedade antiga. Após a revolução france- sa, se acentua a ideia do direito individual como fundamento da tutela jurisdiciona l. Foi no Corpus Iuris Civilis Justinianeu, em denição de Ulpiano 1 , que se diferen- ciou o Direito Público e o Direito Privado como aquele referente ao Estad o e à pessoa, 1 Reale (2002, p. 339).

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visao tricotomica

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  • DA VISO TRICOTMICA VISO COMPLEXA DO DIREITO - UM NOVO PARADIGMA

    Bruna Molina Hernandes da CostaDefensora Pblica do Estado. Especialista em Direito Processual Civil. Mestranda na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo em Direito das Relaes Sociais, subrea direitos difusos e coletivos.

    INTRODUO

    A dicotomia Direito Pblico versus Direito Privado, ainda ministrada nas facul-dades de Direito, encontra-se mais do que superada. Com o surgimento da sociedade moderna, massificada, consumerista, desenvolveu-se a viso tricotmica do Direito, que alia a estes dois conceitos a categoria dos direitos Difusos, categoria esta que abrange princpios tanto do Direito Privado quanto do Direito Pblico.

    O que se buscar no presente artigo superar tambm a viso tricotmica do Direito, por meio da demonstrao de um novo paradigma. Apresenta-se, assim, como base terica desta nova viso, chamada viso complexa do Direito, a teoria da complexidade, desenvolvida pelo filsofo francs Edgar Morin.

    Importante frisar que no iremos discutir a teoria da complexidade, no tendo esta sido pesquisada na viso de outros estudiosos. Baseamos nossas divagaes apenas nos ensinamentos de Morin, visando utiliz-los para melhor entender as divi-ses do direito e sua necessidade de superao.

    SUPERAO DA DICOTOMIA DIREITO PBLICO VERSUS DIREITO PRIVADO

    O Direito Romano, base de toda nossa estrutura jurdica, se baseava em uma tutela de interesses estritamente individuais, posto que eram os interesses individuais que estavam no centro das atenes da sociedade antiga. Aps a revoluo france-sa, se acentua a ideia do direito individual como fundamento da tutela jurisdicional.

    Foi no Corpus Iuris Civilis Justinianeu, em definio de Ulpiano1, que se diferen-ciou o Direito Pblico e o Direito Privado como aquele referente ao Estado e pessoa,

    1 Reale (2002, p. 339).

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    respectivamente. Todo pensamento jurdico antigo e contemporneo estruturaram-se pautados neste conceito.

    Assim, tradicionalmente, a classificao do direito dividida entre pblico e privado.

    Na lio da professora Rosa Nery, as situaes jurdicas privadas pautam--se pela igualdade e pela liberdade, enquanto as situaes jurdicas pblicas tm embasamento em princpios diferentes, dos quais os da autoridade e da competncia so os mais marcantes2. Ainda no dizer da citada jurista, tal diferenciao entre as situaes privadas e pblicas acabou por resultar na diferenciao e diviso das disciplinas, jurisdies e ramos de atividade profissional em segmentos do Direito Pblico e do Direito Privado.3

    Tal diferenciao baseia-se em diversos critrios, a saber, o tipo de interesse jurdico que se busca resguardar, a natureza jurdica do sujeito de direito sob anlise ou a qualidade da posio jurdica de tal sujeito.4

    Muitos defendem que a finalidade da criao deste dualismo foi a necessidade de se resguardar o indivduo dentro da sociedade e face ao Estado. As regras de Direito Pblico diriam respeito s estruturas de poder, enquanto s regras de Direito Privado buscariam a mantena da liberdade, intimidade e dignidade do homem, sem a ingerncia das sobreditas estruturas de poder.

    J o professor Miguel Reale entende que toda cincia, para ser bem estudada, precisa ser dividida, ter suas partes claramente discriminadas5. Assim, ele defende a distino entre Direito Pblico e Direito Privado, distinguindo tais categorias de acordo com o contedo ou objeto da relao jurdica e quanto forma da relao existente6.

    Ocorre que, com a Revoluo Industrial, iniciada na Inglaterra na segunda me-tade do sculo XVIII e difundida para outros pases, deu-se o ponto de partida para o fenmeno da massificao social, caracterizado por grandiosas transformaes que culminaram na edificao da chamada sociedade de massa.

    2 Nery (2002, p. 91-92).3 Nery (2002, p. 92).4 Na lio da professora Rosa Nery, quem opta pelo primeiro critrio de distino parte do pressuposto de que o sistema de Direito pblico visa proteo de interesses pblicos, enquanto o sistema de Direito privado corresponderia proteo de interesses privados. Na seqncia, o segundo critrio busca distin-guir o Direito pblico do privado a partir da natureza do sujeito de Direito, o que implica dividir as normas jurdicas a partir dos sujeitos aos quais elas so endereadas. Se dirigidas ao Estado, so normas de Direito Pblico; se endereadas aos particulares, normas de Direito privado. Num terceiro momento, con-sidera-se de Direito pblico a situao jurdica vivenciada pelo sujeito que atua com poderes de autoridade (ius imperii), e de Direito privado a situao de quem atua sem a invocao desses poderes (NERY, 2002, p. 93).5 Reale (2002, p. 339). 6 Na lio do professor, Quando visado imediata e prevalecentemente o interesse geral, o Direito pblico. Quando imediato e prevalecente o interesse particular, o Direito privado. Se a relao de co-ordenao, trata-se, geralmente, de Direito Privado. Se a relao de subordinao, trata-se, geralmente, de Direito Pblico (REALE, 2002, p. 340).

  • 105Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    A estrutura social dos pases que adotaram a industrializao foi alterada radi-calmente, resultado da agregao do trabalho de mquinas ao humano e transforma-o da fbrica no centro da vida social e econmica. Em consequncia, acelerou-se a urbanizao, bem como os problemas prprios de cidades sem a organizao e gesto adequadas para proporcionar uma vida digna aos seus habitantes. Dessa massificao, evidenciaram-se interesses e conflitos de massa, os quais, respectiva-mente, exigiram do Direito o reconhecimento e a criao de instrumentos adequados de tutela.

    Em decorrncia desta massificao social, intensificada aps a Segunda Guer-ra Mundial, os conflitos, principalmente ligados s relaes de trabalho, ao consumo, ao meio ambiente, sade, educao, ao transporte, tributao, moradia e segurana, ganharam dimenso ampliada, de massa, no mais se limitando di-menso meramente individual. Assim, verificou-se que tais conflitos evidenciavam a existncia de uma nova espcie de interesses os metaindividuais -, cujo trao mais caracterstico a plurissubjetividade, tendo peculiaridades que no permitiam o enquadramento conceitual em nenhuma das duas categorias de direitos at ento reconhecidas pelo Estado, isto , os direitos pblicos e privados.

    Os ditos interesses metaindividuais, compreendem aqueles que extrapolam a rbita individual, para se inserirem num contexto global, na ordem coletiva

    Dessa forma, a lei desloca a ateno do indivduo para o fato, concentrando--se em regular os fatos sociais, fazendo com que os acontecimentos da vida em sociedade se submetam ao regramento legal, sem com isso estabelecer previamente a frmula de sua soluo, mas oferecendo caminhos diversos.

    A prpria essncia do conceito de interesses difusos nos leva a uma nova caracterizao dos direitos.

    A dicotomia pblico/privado destoa dessa moderna concepo de direito, pois leva em conta a qualidade jurdica da pessoa sem se preocupar em atentar para a leso por ela sofrida, sua abrangncia, e, por via de consequncia, sem atentar para a reparao do dano em si mesmo, globalmente.

    A antiga classificao entre direito pblico/privado no leva em conta a leso nem sua forma de reparao, mas apenas as pessoas envolvidas no litgio, estrei-tando o espectro jurdico, deixando de contemplar aqueles direitos que no esto na esfera pblica ou privada, mas que dizem respeito a todos indistintamente.

    Isso ocorre em razo da forma tradicional de enfrentar as questes jurdicas a partir do individualismo encravado na sociedade que se reflete na lei, na medida em que o ordenamento jurdico espelho de seu tempo.

    A classificao que emerge com o novo ordenamento jurdico resultado da sociedade de massa que surge no sculo XX e se aprimora no sculo XXI, na qual as relaes jurdicas no se projetam em indivduos determinados, mas em fenme-nos coletivos, cujos danos so de uma nova espcie, cuja extenso e a forma de reparao no podem mais ser determinadas individualmente. A complexidade cada vez maior da sociedade moderna e ps-moderna d lugar a atividades que podem trazer prejuzos aos interesses de um grande nmero de pessoas, fazendo surgir

  • 106 Revista da Defensoria Pblica - Ano 5 - n.1 - 2012

    problemas ignorados s demandas individuais. E tais leses tm-se tornado cada vez mais frequentes em nossa sociedade de consumo e de massa.

    Assim, com o surgimento dos direitos metaindividuais, transindividuais ou di-reitos difusos lato sensu, percebeu-se o verdadeiro abismo existente entre Direito Pblico e Direito Privado.

    Os direitos difusos no se inserem em nenhuma dessas categorias, vez que possuem caracteres tpicos de ambos os conceitos doutrinrios, mostrando que, atu-almente, tais conceitos so amplamente coligados.

    Atentamos para a publicizao do Direito Privado e para a privatizao do Di-reito Pbico. Evidncias deste fenmeno esto no Direito do consumidor e no Direito ambiental, que visam proteger um bem difuso e coletivo, o direito a um produto que no cause danos sade e segurana, a uma biosfera saudvel, por meio de dispo-sitivos do Direito Pblico. Tambm, este novo fenmeno explicitado pela entrada da empresa na atividade pblica, notoriamente pelas parcerias pblico-privadas (PPPs). Isso traz ao Direito Pblico institutos caracteristicamente privados.

    Com a superao da citada dicotomia, muitos autores apontam para o surgi-mento da diviso tricotmica no direito moderno que, ao lado dos direitos pblicos e privados, passa a dar tratamento autnomo e diferenciado aos interesses transindi-viduais, os quais, para os defensores desta corrente, no se confundem nem com os direitos privados, tampouco com os direitos ditos pblicos.

    Diferencia-se do direito privado por abranger situaes em que interesses de mais de uma pessoa esto sob proteo, e no apenas interesses de um indivduo. Ainda, protegem-se, nestes casos, interesses gerais, de toda a sociedade, que per-tencem a todos e a ningum ao mesmo tempo.

    Diferencia-se do direito pblico, pois, quando se fala em pblico, pensa-se em algo que no do indivduo, mas que do governo, que do Estado, e no da sociedade enquanto tal, por vezes at mesmo contraposta ao Estado. E este no o caso dos direitos difusos, que pertencem sociedade, por vezes possuindo o Estado como parceiro, e no se opondo a ele.

    Porm, ao mesmo, tempo, h diversas zonas de interseco dos direitos ditos difusos tanto com o direito pblico quanto com o direito privado, vez que at entre estes mesmos existem tais coincidncias.

    Atualmente, na vida prtica, tais diferenciaes tm perdido o sentido, vez que, cada vez mais, o direito deve ser entendido como um todo. Est ocorrendo uma mudana de paradigma.

    BREVE OLHAR SOBRE A TEORIA DA COMPLEXIDADE, DE EDGAR MORIN

    Edgar Morin um filsofo francs da atualidade, nascido em Paris, em 1921, e formado em Histria, Geografia e Direito, tendo migrado para a Filosofia, Sociologia e Epistemologia aps ter participado da resistncia ao nazismo durante a segunda Guerra Mundial.

    Em seu livro O Mtodo, composto de seis volumes, o autor desenvolve a cha-mada teoria da complexidade. Entretanto, o prprio filsofo redigiu um resumo de sua

  • 107Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    teoria no livro intitulado Introduo ao Pensamento Complexo, livro utilizado para o desenvolvimento do presente trabalho e para a exposio sucinta da citada teoria.

    A Teoria da Complexidade surge com a percepo pelo citado filsofo de que, embora adquiramos conhecimentos cada vez maiores sobre o mundo fsico, biol-gico, psicolgico, sociolgico, no entanto, por todo lado, erro, ignorncia e cegueira progridem ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos.

    O conhecimento cientfico (incluindo aqui as cincias sociais) tem como misso dissipar a complexidade apresentada pelos fenmenos, tornando simples e inteligvel o que antes era obscuro. Buscamos sempre a clareza do real, sendo que a palavra complexidade s pode exprimir nosso incmodo, nossa confuso, nossa incapacida-de para definir de modo simples, para nomear de modo claro, para ordenar nossas idias.7

    Entretanto, estes cortes, mutilaes do real e do conhecimento, na verdade, no exprimem as realidades, pelo contrrio, apenas produzem mais cegueira, erros e ignorncia.

    Para Edgar Morin, precisamos tomar conscincia, entre outras, de que a causa profunda do erro no est no erro de fato (falsa percepo) ou no erro lgico (incoerncia), mas no modo de organizao do nosso saber num sistema de ideias (teorias, ideologias)8.

    Descartes, sua poca, formulou o que o autor estudado chama de paradigma da simplificao, paradigma essencial do Ocidente, onde imperam os princpios da disjuno, reduo e abstrao, operando por seleo de dados significativos e rejei-o de dados no significativos.

    Assim, chegou-se a uma outra simplificao do pensamento, qual seja, a hipe-respecializao, que fragmenta ainda mais o tecido complexo das realidades.

    Porm, os adeptos no se ativeram ideia de que

    o pensamento simplificador incapaz de conceber a conjuno do uno e do mltiplo. Ou ele unifica abstrata-mente ao anular a diversidade, ou, ao contrario, justape a diversidade sem conceber a unidade. Assim, chega-se inteligncia cega, que destri os conjuntos e as totalidades, isola todos os seus objetos do seu meio ambiente (...) As realidades-chaves so desintegradas. Elas passam por entre as fendas e separam as disciplinas. As disciplinas das cincias humanas no tm mais necessidade da noo de homem.9

    A simplicidade v o uno, ou o mltiplo, mas no consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo mltiplo. Ou o principio da simplicidade separa o que est ligado

    7 Morin (2007, p. 5).8 Morin (2007, p. 9).9 Morin (2007, p. 12).

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    (disjuno) ou unifica o que diverso (reduo).

    Ento, o que seria a complexidade? O prprio autor elabora um conceito para sua teoria onde, em resumo, explica que a complexidade a teoria que aceita o acaso, a impreciso, a ambiguidade, a contradio, a incerteza, a fim de melhor es-tudar os fenmenos sociais, sem cortes, sem mutilaes, de modo a no provocar cegueira e no retirar o aspecto complexo do real10.

    A incerteza, o acaso, as contradies so nsitas aos limites de nosso conheci-mento e aos fenmenos naturais. preciso aceitar certa impreciso e uma impreci-so certa, no apenas nos fenmenos, mas tambm nos conceitos.11

    Observe que o pensamento complexo no recusa de modo algum a clareza, a ordem, o determinado. Ele apenas os considera insuficientes, sabendo que no se pode programar a descoberta, o conhecimento, nem mesmo a ao.

    Importante, neste momento, no confundir complexidade com completude. verdade que a complexidade no isola os objetos, pois entende que tudo solidrio, possuindo um carter multidimensional da realidade. Porm, a prpria conscincia da complexidade nos faz compreender que jamais poderemos escapar da incerteza e que jamais poderemos ter um saber total, completo.

    Edgar Morin, em sua teoria, prope substituir paradigmas; substituir um para-digma de disjuno/reduo, por outro que permita distinguir sem disjungir, de asso-ciar sem identificar ou reduzir, tendo sempre em vista que um pensamento mutilador conduz necessariamente a aes mutilantes.

    A patologia moderna est na hipersimplificao do conhecimento, na racionali-zao, que encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que no sabe que uma parte do real irracionalizvel12.

    Assim, Morin prope uma ideia de sistema aberto, onde entende que as leis de organizao da vida no so de equilbrio, mas de desequilbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado13, e mais, que

    a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, no pe-nas no prprio sistema, mas tambm na sua relao com o meio ambiente, e que esta relao no uma simples

    10 A um primeiro olhar, a complexidade um tecido (complexus: o que tecido junto) de constituies heterogneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do mltiplo. Num segundo momento, a complexidade efetivamente o tecido de acontecimentos, aes, interaes, retroaes, de-terminaes, acasos, que constituem nosso mundo fenomnico. Mas ento a complexidade se apresenta com os traos inquietantes do emaranhado, da desordem, da ambigidade, da incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenmenos rechaando a desordem, afastar o incerto, isto , selecio-nar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... mas tais operaes, necessrias inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus (MORIN, 2007, p. 13-14).11 Morin (2007, p. 14).12 Morin (2007), p. 15.13 Ibidem, p. 22.

  • 109Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    dependncia, ela constitutiva do sistema, posto que conceber todo objeto e entidade como fechado implica em uma viso de mundo classificadora, analtica, reducionista, numa causalidade unilinear14.

    Essa viso se instaurou na fsica do sculo XVII ao XIX.

    Homem e objeto no so entidades que se anulam, pelo contrrio, se comple-mentam, so constitutivos um do outro.

    Essa a viso do sistema aberto, onde o sujeito deve per-manecer aberto, desprovido de um principio de decidibilida-de nele prprio; o objeto deve permanecer aberto, de um lado sobre o sujeito, de outro lado sobre seu meio ambien-te, que, por sua vez, se abre necessariamente e continua a abrir-se para alm dos limites de nosso entendimento.15

    Assim, homem e objeto devem ser concebidos em seu ecossistema e, mais amplamente, nem mundo aberto, que o conhecimento no pode preencher.

    O discurso torna-se multidimensional, e no fechado em uma doutrina, teoria autossuficiente e, portanto, insuficiente, aberto para a incerteza e a superao; no ideal/idealista, sabendo que a coisa jamais ser totalmente fechada no conceito, o mundo jamais aprisionado no discurso16.

    A cincia deve ser capaz de apreender, ao mesmo tempo, unidade e diversida-de, continuidade e rupturas, e no estar fechada em doutrinas prontas, simplificadas, especializadas, que evitam o real complexo, mutilando o conhecimento e o prprio real.

    Para isso, necessria uma viso indisciplinar, que vai alm da transdisciplina-riedade, vez que escapa ao campo das cincias fechadas, atravessando as discipli-nas. Necessrio que a cincia possa integrar, articular, refletir sobre seus prprios conhecimentos, sem deixar de lado outras cincias que proporcionam outros conhe-cimentos sobre a mesma realidade, vista de forma diferente.

    No desenvolvimento desta teoria, Morin estabelece trs princpios que ajudam a pensar a complexidade.

    O primeiro o principio dialgico. Tal princpio nos permite manter a dualidade no seio da unidade. Ele associa dois termos ao mesmo tempo complementares e antagnicos. Morin d como exemplo a ordem e a desordem que, num primeiro olhar, so termos antagnicos, que se suprimem, porm, que em certos casos, tambm se colaboram e produzem organizao e complexidade.

    O segundo princpio o da recurso organizacional. Um processo recursivo um processo onde os produtos e os efeitos so ao mesmo tempo causas e produtores

    14 Ibidem, p. 23.15 Ibidem, p. 44.16 Ibidem, p. 49-50.

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    do que os produz.17 Para melhor explanar este segundo principio, Morin d como exemplo o homem e a sociedade. Explica que o indivduo produz a sociedade que produz o indivduo. Somos ao mesmo tempo produtos e produtores. Rompe-se com a ideia linear de causa/efeito, produto/produtor, j que tudo o que produzido volta--se sobre o que produz num ciclo ele mesmo autoconstrutivo, auto-organizador e autoprodutor18.

    Por fim, o terceiro princpio o hologramtico.

    Explica o autor que

    num holograma fsico, o menor ponto da imagem do holo-grama contm a quase totalidade da informao do objeto representado. No apenas a parte est no todo, mas o todo est na parte. O principio hologramtico est presente no mundo biolgico e no mundo sociolgico. No mundo biol-gico, cada clula de nosso organismo contm a totalidade da informao gentica deste organismo. A ideia pois do holograma vai alem do reducionismo que s v as partes e do holismo que s v o todo. um pouco da ideia formulada por Pascal: No posso conceber o todo sem as partes e no posso conceber as partes sem o todo.19

    O todo est na parte que est no todo.

    No Direito, podemos verificar tal principio na mxima a ningum permitido ig-norar a lei, a qual impe a presena forte do todo social sobre cada indivduo, mesmo se a diviso do trabalho e a fragmentao de nossas vidas fazem com que ningum possua a totalidade do saber social.

    Por fim, Edgar Morin entende que essa mudana de paradigma, de um pa-radigma reducionista, simplificador, para um paradigma complexo, no ocorre da noite para o dia. Necessrio todo um desenvolvimento cultural, histrico, civilizatrio para que o pensamento, as cincias, a viso unidimensional se alterem. Necessrio todo um conjunto de novas concepes, de novas vises, de novas descobertas, de novas reflexes que vo se acordar e se reunir20. Para ele, a complexidade no a resposta, a soluo, e sim o desafio, desafio de pensar atravs da complicao, atravs das incertezas e das contradies.

    Importante ressaltar que o autor entende necessria a simplificao, a fim de aprofundarmos o conhecimento especializado. Porm, tal simplificao deve ser re-lativa, no sentido de que essa reduo seja consciente de que ela uma reduo, e no uma reduo arrogante que acredita possuir a verdade simples, atrs da aparen-te multiplicidade e complexidade das coisas21.

    17 Morin (2007, p. 74).18 Ibidem, p. 74.19 Ibidem, p. 74-75.20 Ibidem, p. 77.21 A complexidade a unio da simplicidade e com a da complexidade; a unio dos processos de simplificao que so seleo, hierarquizao, separao, reduo, com os outros contraprocessos que

  • 111Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    Para encerrar, Edgar Morin leciona:

    para mim, a ideia fundamental da complexidade no a de que a essncia do mundo seja complexa e no simples. que esta essncia seja inconcebvel. A complexidade a dialgica ordem/desordem/organizao. Mas, por trs da complexidade, a ordem e a desordem se dissolvem, as distines se diluem. O mrito da complexidade o de denunciar a metafsica da ordem.22

    UM NOVO PARADIGMA: DA VISO TRICOTMICA VISO COMPLEXA DO DIREITO

    A viso tricotmica do direito, como j dito acima, surgiu com a necessidade de desenvolvimento de novas reas do direito, como o Direito do Consumidor, o Di-reito Ambiental e o Direito da Criana e do Adolescente. Tais reas do conhecimento jurdico encerram, em si mesmas, microssistemas que aglutinam vrias disciplinas jurdicas23.

    Devido a esta juno de disciplinas e a criao de microssistemas, os ditos direitos podem ser classificados ora como submetidos aos princpios de Direito Pri-vado, ora como submetidos aos princpios de Direito Pblico. Logo, por aglutinar a dicotomia antes existente, por meio da juno de conceitos de Direito Pblico e de Direito Privado, que surgiu uma terceira categoria nesta classificao: os Direitos Difusos, que no se enquadram nem na categoria de Direito Privado, nem na cate-goria de Direito Pblico, formando uma categoria autnoma e instituindo, ao invs da antiga viso dicotmica, a viso tricotmica do direito.

    Entretanto, ser que estas categorias, estas distines tericas, constituem-se em sistemas fechados de conhecimento? Ser que as disciplinas nelas embutidas re-almente respeitam seus conceitos (interesse pblico versus interesse privado/Estado versus indivduo/subordinao versus coordenao)?

    Atualmente, com a complexidade da sociedade moderna, os interesses indivi-duais, sociais e estatais assumem contornos de difcil separao.

    Mesmo se didaticamente tratados em separado, no h como negar que o pblico e o privado se complementam. No se deve perder de vista, outrossim, que o pblico no se esgota no estatal.

    certo que a distino entre privado e pblico est em profunda crise, pois em uma sociedade como a atual tarefa bastante difcil localizar um interesse privado que seja completamente autnomo, independente, isolado do interesse pblico. Essa dificuldade aumenta ainda mais diante das categorias de interesses difusos, coletivos

    so a comunicao, que so a articulao do que foi dissociado e distinguido; a maneira de escapar alternao entre o pensamento redutor que s v os elementos e o pensamento globalizado que s v o todo (MORIN, 2007, p. 102-103).22 Morin (2007, p. 104).23 Nery (2002, p. 94).

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    e individuais homogneos.

    Veja como exemplo: a disciplina Direito Constitucional, tida como afeta ao Direito Pblico, no pode mais assim ser exclusivamente tratada, ante as diversas normas que afetam diretamente o indivduo, isoladamente, protegendo sua honra, intimidade, dentre outros. Do mesmo modo, o Direito Civil, tido como disciplina afeta ao Direito Privado, no mais assim pode ser considerado, visto que, p. ex., os con-tratos, considerados a expresso mxima da volio da pessoa, so hoje totalmente atrelados sua funo social, fato geralmente atribudo ao Direito Pblico.

    V-se, a todo momento, a inter-relao existente cada vez mais entre as reas do Direito, o que demonstra que as classificaes, as redues, as especializaes tradicionalmente feitas e estudadas no mais tem guarida (se que um dia a teve por completo).

    Tome-se o Direito Ambiental que, nas palavras do jurista Edis Milar

    um ramo novo e diferente, destinado a embasar novo tipo de relacionamento das pessoas individuais, das organiza-es e, enfim, de toda a sociedade com o mundo natural. O Direito Ambiental ajuda-nos a explicitar o fato de que, se a Terra um imenso organismo vivo, ns somos a sua conscincia.24

    Ainda na lio do citado doutrinador, o Direito do Ambiente multidisciplinar, estando em contato direito com a Ecologia (estudo de caracterizao dos ecossiste-mas, p.ex.), a Economia (avaliao econmica do dano ambiental, por exemplo), a Antropologia (levantamento de populaes indgenas, por exemplo), dentre outros. Tambm, dentro do estudo jurdico, mantm estreitas relaes com o Direito Consti-tucional, que disciplina regras de competncia, dispe o ambiente como direito funda-mental, etc.; com o Direito Penal, que prev a existncias de crimes ambientais; com o Direito Administrativo, que dispe sobre licenas, alvars relacionados matria ambiental25.

    Assim, como se v, as reas do Direito, tomando-se como exemplo a disciplina do Direito Ambiental, so muito mais amplas, abrangentes do que os cortes nela realizados, saindo, at mesmo, fora do Direito, buscando guarida em outras reas do conhecimento.

    Com isso, temos a conscincia de um novo paradigma26.

    Deixamos o paradigma simplificador:

    o paradigma simplificador um paradigma que pe ordem no universo, expulsa dele a desordem. A ordem se reduz

    24 Milar (2004, p. 132).25 Milar (2004, p. 155).26 Na lio de Edgar Morin, a palavra paradigma constituda por certo tipo de relao lgica extrema-mente forte entre noes mestras, noes-chaves, princpios-chaves. Estas relaes e estes princpios vo comandar todo os propsitos que obedecem inconscientemente a seu imprio (MORIN, 2007, p. 59).

  • 113Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    a uma lei, a um princpio. A simplicidade v o uno, ou o mltiplo, mas no consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo mltiplo. Ou o principio da simplicidade se-para o que est ligado (disjuno) ou unifica o que diverso (reduo)27.

    E partimos para uma viso complexa do Direito.

    Devemos, primeiramente, abandonar a razo, a racionalidade e a racionaliza-o absolutas do nosso pensamento.

    Para Edgar Morin, a razo corresponde a uma vontade de ter uma viso coe-rente dos fenmenos, das coisas e do universo28.

    A racionalidade o jogo, o dilogo incessante entre nossa mente, que cria estruturas lgicas, que as aplica ao mundo e que dialoga com este mundo real. Quando este mundo no est de acordo com nosso sistema lgico, preciso admitir que nosso sistema lgico insuficiente, que s en-contra uma parte do real. A racionalidade, de todo modo, jamais tem a pretenso de esgotar num sistema lgico a totalidade do real, mas tem a vontade de dialogar com o que lhe resiste.29

    J a palavra racionalizao consiste em querer prender a realidade num siste-ma coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz este sistema coerente, afastado, esquecido, posto de lado, visto como iluso ou aparncia.30

    Temos uma tendncia inconsciente de afastar de nossa mente o que possa contradiz-la, conturb-la, ir contra o que temos por correto, racional. Tendemos a mi-nimizar ou rejeitar os argumentos contrrios. Exercemos uma ateno seletiva sobre o que favorece nossa ideia e uma desateno seletiva sobre o que a desfavorece.

    Por isso, criamos teorias, doutrinas, ideologias. Partimos para a especializa-o, para a hipersimplificao do real. Esquecemo-nos das incertezas, dos acasos, das contradies existentes na sociedade, base estrutural do Direito.

    Se a sociedade complexa, como pode o Direito querer deixar de s-lo?

    Nas palavras de Edgar Morin, o que o pensamento complexo pode fazer dar, a cada um, um lembrete, avisando: No esquea de que a realidade mutante, no esquea que o novo pode surgir e, de todo modo, vai surgir31.

    27 Morin (2007, p. 59).28 Ibidem, p. 70.29 Ibidem, p. 70.30 Ibidem. p. 70.31 Ibidem. p. 83.

  • 114 Revista da Defensoria Pblica - Ano 5 - n.1 - 2012

    O Direito, a todo tempo, est em desenvolvimento. Modifica-se juntamente com a sociedade, com seus anseios. E a teoria da complexidade nos mostra exatamente isto, que no podemos nos fechar no contemporanesmo, isto , na crena de que o que acontece hoje vai continuar indefinidamente. E o Direito fruto desta contnua mudana. Mudana esta, atualmente, despertada pelo desenvolvimento dos chama-dos Direitos Difusos.

    No Brasil, a tutela de tais interesses comea a ser tratada j na dcada de 1960 pela Lei n. 4.717/65 lei da Ao Popular, pois a defesa do errio constitua, j na-quela poca, um interesse metaindividual, na medida em que se trata de bem pblico.

    Mais tarde, na dcada de 1980, editada a Lei n. 7.347/85 lei que disciplina a Ao Civil Pblica, instrumento importante no combate leso ao meio ambiente, consumidor, alm de outros direitos de interesse difuso.

    Em 1988, a Constituio Federal, marco histrico da redemocratizao do pas, revela enorme preocupao com interesses que dizem respeito a todas as pessoas indistintamente. Mais especificamente, o artigo 5 da nova Constituio Federal esta-belece os Direitos Individuais e Coletivos, cuja abrangncia se mostra metaindividual, rompendo com o modelo estatal inflexvel experimentado at ento.

    no inciso XXXII do artigo 5 da Constituio Federal que encontramos a ordem para que o Estado promova, na forma da lei, a defesa do consumidor, o que se deu por meio da edio do Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que se constitui em mais uma demonstrao inequvoca da vocao difusa embutida na Carta Magna.

    Ainda na Constituio Federal, se verifica no artigo 225 a fixao das bases institucionais para o desenvolvimento dos direitos difusos ao determinar que Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder publico e cole-tividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

    Temos vrias outras normas que assumem claramente a caracterstica ou natu-reza de direitos transindividuais, de natureza indivisvel de que so titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncia de fato. Assim, o princpio de que todos so iguais perante a lei; o uso da propriedade, a higiene e segurana do trabalho; a educao, incentivo pesquisa e ao ensino cientfico e amparo cultura; a sade; o meio ambiente; o consumidor; a proteo ao patrimnio histrico, cultural, artstico e paisagstico; famlia, criana, adolescente e idoso e mesmo algumas regras vincula-das comunicao social demonstram a existncia e preocupao do legislador na tutela constitucional destes direitos transindividuais em sua tica material.

    Frutos das novas disposies constitucionais surgem o Cdigo de Defesa do Consumidor sobredito, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso, leis ambientais esparsas, leis de amparo s pessoas portadoras de deficincia, dentre outros.

    Tais inovaes legislativas demonstram, ainda mais, a complexidade da socie-dade moderna e a necessidade da criao de sistemas abertos, o que hoje chama-mos de microssistemas.

    As leis que amparam os direitos ditos difusos no se esgotam em si mesmas, necessitando de complementao legislativa para sua correta e possvel aplicao.

  • 115Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    Assim, a lei de Ao Civil Pblica imiscuiu-se na lei de Ao Popular, no Cdigo de Defesa do Consumidor, no Cdigo de Processo Civil, na Constituio Federal, por bvio, e tambm em conceitos estranhos ao Direito, como exemplificamos ao tratar do Direito Ambiental acima. Somente com essa complementao legislativa nos possvel aplicar a citada lei em sua inteireza e atingir os objetivos visados.

    Esta a viso de Edgar Morin sobre sistema aberto:

    Duas conseqncias capitais decorrem da ideia de siste-ma aberto: a primeira que as leis de organizao da vida no so de equilbrio, mas de desequilbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado. A segunda consequncia que a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, no penas no prprio sistema, mas tambm na sua relao com o meio ambiente, e que esta relao no uma simples dependncia, ela constitutiva do sistema.32

    A noo de microssistemas torna ainda mais fcil o entendimento dos sistemas abertos.

    Os sistemas abertos devem ser estudados como estruturas inter-relacionveis, nunca como entidades radicalmente isolveis. Trata-se da superao do sistema por um metassistema.

    Enquanto isso, as demais disciplinas do Direito encontram-se em sistemas fechados, implicando uma viso classificadora, analtica, reducionista, numa causa-lidade unilinear33.

    V-se, claramente, que os Direitos Difusos em muito se aproximam da viso complexa do Direito, sendo vistos como a vertente mais moderna do ordenamento jurdico.

    A cincia jurdica deve ser tida como nica, apreendendo ao mesmo tempo unidade e diversidade, continuidade e rupturas, lacunas, antinomias.

    Devemos superar a ideia de Norberto Bobbio que diz que um ordenamento jurdico constitui um sistema porque no podem coexistir nele normas incompatveis. Aqui, sistema equivale validade do principio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vm a existir normas incompatveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas34.

    Numa viso complexa de sistema, o entendimento externado por Bobbio, data mxima venia, necessita ser revisto.

    Um sistema complexo admite sim as contradies, as incertezas, tendo em vista que o real, a sociedade que embasa todo o ordenamento jurdico, possui tais caractersticas.35

    32 Morin (2007, p. 22).33 Morin (2007, p. 23).34 Bobbio (1995, p. 80).35 Na lio de Edgar Morin, Infelizmente - ou felizmente o universo inteiro um coquetel de ordem,

  • 116 Revista da Defensoria Pblica - Ano 5 - n.1 - 2012

    A irregularidade, a desordem, a imprevisibilidade so necessrias para a evo-luo do conhecimento.

    Tomemos um exemplo. No Cdigo Civil de 1916 regiam os contratos o prin-cipio da liberdade contratual e o pacta sunt servanda, ou seja, o principio de que o contrato fazia lei entre as partes. Com o surgimento da sociedade de consumo, ante a completa submisso dos consumidores aos fornecedores, necessrio se fez a criao de um Cdigo de Defesa do Consumidor, onde se previa a possibilidade de alteraes nos contratos consumeristas ante a simples existncia de clusulas onerosas ao consumidor, abusivas, em completa mitigao ao principio do pacta sunt servanda, tudo devido ao principio da funo social do contrato. Ainda, o principio da boa f objetiva prev a existncia de deveres anexos aos contratos, embora neles no escritos, como a obrigao de se observar os deveres de lealdade, confiana e cuidado.

    Assim, devido evoluo da sociedade, s contradies antes existentes no sistema jurdico, que submetiam os consumidores a leis estagnadas e atentatrias a seus anseios, e desordem surgida deste cenrio, necessrio se fez a criao de novas regras, incompatveis, a princpio, com as normas anteriores, mas que propor-cionaram a evoluo do ordenamento jurdico.

    O prprio Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurdico, ao tratar do dever de coerncia das normas jurdicas, constata que, h casos em que tal dever inexiste. o caso das normas de mesmo nvel, contemporneas36.

    Assim, resta demonstrado que devemos superar a viso tricotmica do Direito, que hierarquiza, reduz, especializa e simplifica, rumo a uma viso complexa do orde-namento e da cincia jurdica.

    CONCLUSO

    Como j disse Morin, a complexidade o desafio, e no a resposta. A com-plexidade no busca estabelecer uma nova ordem, novas teorias, novas doutrinas; pelo contrrio, visa demonstrar a desordem, as contradies, a incoerncia existentes dentro de toda cincia, dentro de todo sistema.

    Ainda mais quando tratamos da cincia jurdica, cincia que surge da socieda-de, das mudanas, e que visa estabelecer regras para o convvio de uma sociedade ps-moderna repleta de novas ideias, de novos anseios; ideias e anseios estes que se alteram a todo tempo. O acaso, o imprevisvel, o incerto so nsitos sociedade ps-moderna, logo, partes do Direito.

    Atravs da complexidade, vamos enxergar a necessidade de uma perspectiva transdisciplinar, sendo que transdisciplinar significa hoje indisciplinar.

    desordem e organizao. Estamos num universo do qual no se pode eliminar o acaso, o incerto, a de-sordem. Ns devemos viver e lidar com a desordem. A ordem? tudo o que repetio, constncia, invarincia, tudo o que pode ser posto sob a gide de uma relao altamente provvel, enquadrado sob a dependncia de uma lei. A desordem? tudo o que irregularidade, desvios com relao a uma estrutura dada, acaso, imprevisibilidade. Num universo de pura ordem, no haveria inovao, criao, evoluo. No haveria existncia viva nem humana (MORIN, 2007, p. 89).36 Bobbio (1995, p. 112).

  • 117Da viso tricotmica viso complexa do direito - um novo paradigma

    Para Morin: como dizia Pascal: Considero impossvel conhecer as partes enquanto partes sem conhecer o todo, mas no considero menos impossvel a possi-bilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes37.

    Assim, a teoria da complexidade entende a necessidade da especializao, da simplificao, a fim de melhor se estudar e se compreender as partes, porm, sem nunca perder de vista que estamos tratando de uma reduo, um conhecimento parcial, que necessita se inserir no todo para melhor se compreender o real.

    As disciplinas jurdicas precisam umas das outras. Urgentes so as mudanas no modo de se ensinar e de se aprender o Direito. Os cortes, redues, especiali-zaes ensinados nas faculdades geram uma inteligncia cega nos bacharis, que fragmentam e despedaam o tecido complexo das realidades.

    Depois de formados, inseridos no mundo real, tais profissionais so incapa-zes de bem atuar, de modo abrangente, utilizando-se de tudo o que aprenderam, pois deixaram de aprender o mais importante: a viso do todo, de como unir as disciplinas jurdicas, de como aplic-las sem cortes, sem redues, visto que o dia-a-dia das pessoas, a vida real vai alm do Direito administrativo, do Direito penal, do Direito tributrio, do Direito processual. Os problemas do mundo real unem todos esses ramos em um s emaranhado. Entretanto, os atores do Direito no so preparados para atuar de modo completo, sem rupturas, e pior, um pensamento mutilador conduz necessariamente a aes mutilantes.

    A atuao, no s do profissional, mas do indivduo perante a sociedade em que se insere, tem que buscar o bem comum, sentimento e atitude de solidariedade.

    O individualismo, caracterstico da ps-modernidade, deve dar lugar ao ato de partilhar. Afinal, o indivduo reflete a sociedade que reflete o indivduo; um no todo e todo no um.

    A complexidade a unio da simplicidade e com a da com-plexidade; a unio dos processos de simplificao que so seleo, hierarquizao, separao, reduo, com os outros contraprocessos que so a comunicao, que so a articulao do que foi dissociado e distinguido; a maneira de escapar alternao entre o pensamento redutor que s v os elementos e o pensamento globalizado que s v o todo.38

    E por fim, temos que ter em mente que ainda estamos na pr-histria do espri-to humano. S o pensamento complexo nos permitir civilizar nosso conhecimento39. Talvez estejamos no fim de um certo tempo, e ns o esperamos, no comeo de novos tempos.40

    37 Morin (2007, p.103). 38 Morin (2007), p. 102-103.39 Morin (2007), p. 16.40 Morin (2007), p. 120.

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