brilho na multiplicidade

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48 CARTACAPITAL.COM.BR Plural Brilho na multiplicidade MÚSICA Lívia Nestrovski, Juliana Perdigão e Iara Rennó trilham a experimentação estética POR ANA FERRAZ Lívia Nestrovski, de Claude Debussy a Arrigo Barnabé •CCPlural907ok.indd 48 6/23/16 10:23 PM

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Brilho na multiplicidadeMÚSICA Lívia Nestrovski, Juliana Perdigão e Iara Rennó trilham a experimentação estéticaP O R A N A FERR A Z

Lívia Nestrovski, de Claude Debussy a Arrigo Barnabé

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Com talento e elegância, Nestrovski coloca a criatividade vocal a serviço da canção

O intérprete caminha sobre uma linha tê-nue entre estar a ser-viço da canção e ca-nalizar sua criativi-

dade vocal. Lívia Nestrovski prati-ca com maestria esse equilíbrio que julga tão delicado quanto es-sencial. A voz naturalmente privi-legiada e disciplinadamente trei-nada permite-lhe tanto a reverên-cia a ícones inspiradores, entre eles Milton Nascimento, Tom Jo-bim, Luiz Tatit e Kurt Weill, quanto a ir-reverência necessária a quem desde 2008 é solista do mais reptiliano expoente da Vanguarda Paulista, Arrigo Barnabé, o pai de Clara Crocodilo. “O que mais me satisfaz é estar em movimento. Gosto do processo de pesquisa, de descobrir reper-tório, inventar formas de diálogo entre as composições e buscar o que fazer vocal-mente com cada uma delas.”

Nestrovski, formação erudita e talento plural, faz parte de uma geração de can-toras e compositoras de preparo sólido e ampla abertura à experimentação esté-tica, que transitam com desenvoltura e grande expressividade por cenas musi-cais diversas. Ao lado de Juliana Perdi-gão e Iara Rennó, Nestrovski é também de certa forma herdeira da referencial Ná Ozzetti, que desde os anos 1970 percorre os caminhos da multiplicidade.

Formada em canto popular pela Uni-camp, Nestrovski cresceu em ambiente de grande apetite musical. A mãe, Silva-na Scarinci, ensaiava música barroca em casa, enquanto o pai, Arthur Nestrovski, compunha ao violão. Na sala, discos de João Gilberto a Claude Debussy, de Chi-co Buarque a Frédéric Chopin, sem hie-rarquização. Entre as muitas preferên-cias, Elis Regina, Dolores Duran, João Bosco, Xangai, Renato Braz, César Ca-margo Mariano, June Christy, James

Bale, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald.Intérprete para quem desde cedo a mú-

sica foi e continua a ser “algo maravilhoso, leve e profundo”, ela desdobra-se em per-sonas diferentes a cada projeto. “No CD Duo, com Fred Ferreira, sou a cantora ex-perimental, técnica e densa. Em De Nada Mais a Algo Além, com Arrigo Barnabé e Luiz Tatit, tenho a responsabilidade enor-me num projeto autoral de vanguarda de dois artistas consagrados e em Pós Você e Eu, com meu pai Arthur Nestrovski, sou mais clássica e intimista. Este é meu cami-nho, longe da convencional carreira-solo.”

Numa semana típica, canta Claude De-bussy num dia e no outro Joni Mitchell com acompanhamento de instrumen-tos ibéricos. A parceria musical com Fred Ferreira (duoliviafred.com) é de pleno en-tendimento. Estão casados há 11 anos e nos palcos buscam novas linguagens. A aparente simplicidade de guitarra e voz produz momentos sublimes, como a in-terpretação de Youkali, uma das raras composições de Kurt Weill em francês.

No espetáculo Cartas e Can-ções, de 2011, a dupla convocou Silvana Scarinci e o contrate-nor Paulo Mestre. A teorba, ins-trumento barroco de cordas, a guitarra e as vozes passearam por repertório que percorreu de canções medievais a Noel Rosa e alinhavou com graça e encanto o erudito e o popular. “Cantei Mon-teverdi, Mestre cantou Lupicínio, minha mãe tocou choro na teor-ba e Fred transformou uma toada

caipira em ciaccona ( forma musical típi-ca do barroco). Foi uma das experimenta-ções mais lindas de que participei.”

Nascida em Minas Gerais, “Belo Ho-rizonte, minério de ferro, sou eu. São Paulo já é casa. Saio daqui e, quando vol-to, é casa”, Juliana Perdigão vai do choro ao rock, do samba ao ska a bordo do cla-rinete, do clarone e da flauta. A música de câmara e o coral na universidade, além de aulas com o bisavô cantor de ópera, ajudaram a modular a voz que tanto ser-ve às dores de Ataulfo Alves quanto às es-tripulias verborrágicas de Makely Ka e ao repertório carnavalesco do Bloco da Alcova Libertina, fundado por artistas e amigos de Belo Horizonte. O hino a con-gregar a folia, “a festa surgiu em respos-ta à política opressora e autoritária pra-ticada pela prefeitura”, interpretado com o devido deboche exigido pela letra, tor-nou-se hit do carnaval de rua. “O Hino da Alcova fala da resistência da festa, da ale-gria, do amor e da liberdade. ‘Chutar, en-golir a família mineira’, essa alegoria do conservadorismo e da caretice, é uma ati-tude importante e necessária.”

O disco de estreia, Álbum Desconheci-do (2012), foi gravado sem produtor musi-cal. Perdigão conduziu a pesquisa e esco-lha de repertório e os arranjos de base fo-ram criados pela banda. “Me seduz mui-to a possibilidade de se desdobrar, de se

JONATHAN FRANZEN(Em Pureza, Editora Companhia das Letras)

“A característica de uma legítima revolução é que ela não faz bravatas de sua condição

revolucionária. Simplesmente acontece. Só os fracos e temerosos, os ilegítimos, recorrem à bravata.”

Com talento

çõesSilvana Scarinci e o contrate-nor Paulo Mestre. A teorba, ins-trumento barroco de cordas, a guitarra e as vozes passearam por repertório que percorreu de canções medievais a Noel Rosa e alinhavou com graça e encanto o erudito e o popular. “Cantei Mon-teverdi, Mestre cantou Lupicínio, minha mãe tocou choro na teor-ba e Fred transformou uma toada

Ná Ozzetti, referência

nas sendas da diversidade

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tornar várias, que o ofício de intérpre-te propicia. A cada canção busco can-tar ‘aquela canção’, incorporar o texto e trazer o que tem de meu, deixar a mú-sica passar por mim. Ultimamente, mi-nha principal motivação é dizer o texto através da voz, do gesto, do corpo.” Nos próximos dias lança Ó (ybmusic), “con-cebido na adorável companhia de João Antunes, Chicão, Moita e Pedro Gon-gom, os quais apelidei de Os Kurva”. Rô-mulo Fróes faz a direção artística.

Com mais tempo de estrada, Iara Rennó mescla canto, dança, teatro e poesia. Começou a cantar com a famí-lia (é filha de Carlos Rennó e Alzira Es-píndola e sobrinha de Tetê Espíndola), depois com Itamar Assumpção, partiu para a banda Dona Zica e empreendeu um mergulho “nas raízes ancestrais da cultura brasileira” por meio do Projeto Macunaíma.

Após participar de diversos coletivos, desponta agora com o duo de discos Arco & Flecha (ybmusic). “Começo a conectar todas as peças, alinhavar, deixar mais claro para o público ‘o que vim fazer aqui’, parafraseando o nome do mais recente disco de minha mãe.” Entre solos e cole-tivos, “todos tendo minhas mãos com to-dos os dedos na produção”, contabiliza oi-to discos. Vive a dualidade de se conside-

rar artista madura e ao mesmo tempo ainda a ser descoberta por grande parte do público. Inquieta e inquietante, apos-ta na capacidade do novo projeto de amal-gamar iniciativas anteriores e apresentá--la de forma mais completa. “Os discos mostram de uma só vez duas linguagens musicais, dois discursos, estilos, frequên-cias. O projeto tem uma dialética oposta--complementar noite-dia, yin-yang.”

Juliana Perdigão: “Busco deixar a música passar por mim”

Autoproclamada herdeira da cultura da antropofagia, Rennó inclui em ampla lista de influências Guimarães Rosa, John Ca-ge, Pina Bausch, Dona Ivone Lara, Tom Zé, Billie Holiday, Mário de Andrade, Zé Celso e outros tantos. Estudiosa do escritor mo-dernista e admiradora do diretor teatral, serviu-se do espaço do Teatro Oficina para encenar em 2010 Macunaíma Ópera Baile, espetáculo multimídia em que se pôs em penas coloridas para incorporar o herói sem nenhum caráter. Em busca de sem-pre “soar diferente” a ponto de se surpre-ender, engendra Macunaíma Ópera Tupi – Projeto 90. “Uma das minhas missões é ‘macunar’ o Brasil, o mundo e arredo-res”, anuncia, apoteótica.

Dona de belo timbre, amplo alcan-ce e técnica apurada, Ná Ozzetti cresceu ouvindo cantores populares, estudou canto lírico e integrou nos anos 1970 o grupo Rumo, de canções pautadas no canto falado. Ganhou prêmios de melhor intérprete e revelação, lançou composições próprias em Ná (1994), gravou homenagem à roqueira ove-lha-negra-da-família em Love Lee Ri-ta (1996), interpretou sucessos de Car-men Miranda (Balangandãs, 2009). No ano passado lançou Ná e Zé, com

Zé Miguel Wisnik, e emprestou a voz do-ce às letras às vezes duras e amargas do grupo Passo Torto no CD Thiago França.

A longa e produtiva trilha de Ozzetti teve os inevitáveis percalços da carreira. “O caminho do artista independente nun-ca foi fácil. Mas não conheço outro para saber como é. Gosto de dirigir minha pró-pria carreira, de lidar com isso. Hoje vejo a produção independente com mais ferra-mentas e profissionalismo. Mas o artista tem de ter foco.” Diante das novas vozes de Nestrovski, Perdigão e Rennó, Ozzetti reconhece a similaridade de propósitos, ressalta a diversidade de estilos e cede às evidências. “Elas têm personalidades e trabalhos bem distintos. Aliás, persona-lidade é o que não lhes falta.” •

Com Arco & Flecha, Rennó alinhava todas as peças da carreira

Iara Rennó, empenhada em “macunar o Brasil, o mundo e arredores”

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