breve anÁlise da obra “auto da Índia” de gil vicente...

13

Click here to load reader

Upload: trannhu

Post on 07-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

0

GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

CURSO: LETRAS – LICENCIATURA PLENA EM LINGUA PORTUGUESA

MANOELLA GONÇALVES BAZZO

BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE COM

ENFOQUE NO ADULTÉRIO DE CONSTANÇA

REDENÇÃO

2010

Page 2: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

1

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................04

2 ABORDAGEM DO CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL .................................... 05

3 ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” ............................................................... 06

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 13

5 REFERENCILA BIBLIOGRÁFICO ....................................................................... 14

Page 3: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

2

1 INTRODUÇÃO

No contexto cultural da Literatura Portuguesa é possível desfrutar e

apreciar com satisfação grandes obras que marcaram época e continuam deixando

sua marca no acervo das grandes obras universais.

Destaca-se, portanto a grande obra “Os Lusíadas” de Camões,

considerado o maior poema épico lusitano e por isso mesmo muito importante não

apenas na Literatura Portuguesa, mas em todo o mundo.

A partir destas considerações, destaca-se também outro forte nome da

Literatura Portuguesa, Gil Vicente que soube como poucos acompanhar as

manifestações culturais de seu tempo e ainda dar-lhes novo sopro de atualidade

com influências de uma época de transição e de fortes transformações que vinham

acontecendo em Portugal.

Através de seus teatros, Gil Vicente conseguiu alcançar não apenas o

gosto da corte e da alta nobreza, mas também marcou a história da literatura.

Utilizando-se da sátira, das alegorias, das farsas e outros aspectos em seus teatros

criticava e denunciava várias realidades que só poderiam ser atingidas através do

caminho que a arte proporciona.

Portanto, este trabalho procurou adentrar, mesmo que timidamente, neste

período social do final do século XV para início do século XVI que Gil Vicente

transportou para sua peças. Para isso, dentro de suas inúmeras obras foi escolhido

o “Auto da Índia”, uma farsa que representa a história de uma mulher que estando

sozinha, pois seu marido estava viajando para a Índia, mantêm casos extraconjugais

com outros dois amantes. A análise procurou contemplar os aspectos histórico-

sociais e estéticos da obra e ainda, enfocou uma parte no adultério constrói a trama

dentro da peça escolhida.

Convêm ressaltar que devido a dificuldades locais presentes o acesso a

obra somente foi possível por mídia virtual disponível pelo sistema mundial de rede -

“internet”. Portanto, desde já, se esclarece que as citações – somente as ligadas a

obra “Auto da Índia” e utilizadas neste trabalho - foram todas feitas a partir do

arquivo encontrado e não serão destacadas seu nome de origem, mas terão suas

devidas referências no referencial bibliográfico.

Page 4: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

3

2 ABORDAGEM DO CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL

As obras vicentinas carregam em sua construção a realidade de um

momento marcado pela transição de valores e ideologias presentes em Portugal no

final do século XV a início do século XVI. É a transição entre o final da Idade Média

para uma era renascentista, a denominar-se Idade Moderna.

Neste período as grandes navegações advindas do comércio marítimo

trazem a expansão ultramarina. Essa nova realidade mercantil favorece a ascensão

da burguesia, responsável pelo desenvolvimento do comércio. O poder material

torna-se mais importante do que os títulos de nobreza.

Os pensadores da época, principalmente os letrados, percebem-se como

agentes de transformação capazes de mudar e agir sobre a realidade. É o

crescimento do racionalismo humanista colocando em crise o sistema feudal. Dessa

forma o teocentrismo entra em choque com a presença do antropocentrismo. Assim,

o homem começa a se valorizar sem, contudo, abandonar por completo o temor a

Deus.

Gil Vicente, como homem do seu tempo, sofre influências dessas

condições sociais entre traços do humanismo e aspectos renascentistas.

É graças às Grandes Navegações que florescem, em Portugal, o Renascimento e o Humanismo, e o nosso dramaturgo capta todas estas transformações, transmutando-as em uma obra de excepcional riqueza, marcando para sempre o teatro português. (PITILLO, p.33, 2002)

Conforme Pitillo (p.33, 2002), as obras de Gil Vicente eram apresentadas

na corte para a alta nobreza e os convivas do paço, trazendo representações destes

tipos sociais, mas também dos tipos característicos das classes menos privilegiadas

de Portugal. Suas peças teatrais se destacam por sua capacidade de inovação e

utilização de novas formas antes, até então, não utilizadas em Portugal.

Segundo Saraiva & Lopes (p.191, 2000), antes de Gil Vicente, as peças

teatrais se restringiam a pequenas apresentações de “sermões burlescos” que

serviam para a distração da corte de D. João II e D. Manuel. Todavia, Gil Vicente

não parece ligado a esta tradição:

Page 5: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

4

(...) Vai integrando, por outro lado, novas formas teatrais criadas fora de Portugal, como a fantasia alegórica de Torres Naharro (...); as moralidades e os mistérios franceses e ingleses (...) E vai principalmente aprendendo a estilizar a própria realidade nacional (...) (SARAIVA & LOPES, p.192, 2000)

Assim, nasce sua primeira criação o “Auto da Visitação” (ou monólogo do

Vaqueiro) de 1502, que pretendia comemorar o nascimento do príncipe João, futuro

rei D. João III. Sendo que seu último trabalho, “Floresta de Enganos”, foi escrito em

1536, ano que se presume seja o da sua morte.

Convém ressaltar que em sua peças, Gil Vicente não se preocupa com

conflitos psicológicos, como ocorre nos teatros clássicos, mas antes é:

(...) um teatro de sátira social ou um teatro de ideias. No palco vicentino não perpassam caracteres individualizados, mas tipos sociais agindo segundo a lógica de sua condição, fixada de uma vez para sempre (...) (SARAIVA & LOPES, p.198, 2000)

Portanto, segundo Saraiva & Lopes (p. 197, 2000) é possível encontrar nos

teatros vicentinos, três formas de estrutura cênica: a farsa, o auto de enredo e o auto

alegórico, sendo este último o que melhor represente a visão vicentina de teatro.

2 ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA”

O Auto da Índia é uma peça que abarca ideias feitas da corrente e da

ideologia oficial da época. Segundo Pitillo (p.87, 2002) sua crítica recai sobre os

homens mercantilistas e sua busca pelo enriquecimento fácil, satirizando o

casamento e os valores da sociedade mercantil.

Gil Vicente censura a realidade sem com isso causar escândalos. Para

conseguir isto ele utiliza-se da farsa, gênero que consiste num drama com o

propósito de provocar riso, utilizando-se de caricaturas, absurdos, situações

ridículas.

A farsa situa-se fora da ordem e da harmonia. É a imagem do mundo às avessas [...] O „mundo às avessas‟ da tradição popular estava ainda vivo em Portugal do primeiro terço do século XVI. Era tolerado pelo rei e pela Igreja. Foi essa tolerância que permitiu a Gil Vicente, fiel servidor do monarca na sua qualidade de poeta de corte, passar além da ordem estabelecida sem provocar escândalo...” (TEYSSIER apud PITILLO, p. 88, 2002).

Page 6: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

5

Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o Auto da

Índia como uma das “farsas mais desenvolvidas” de Gil Vicente por desenvolver

uma história completa com início, meio e fim. Nela é apresentado o caso de uma

mulher casada que após a ida de seu marido à Índia mantêm relacionamento

adúltero com outros dois amantes.

Percebe-se que na construção da peça, o autor utiliza-se do texto em verso

fazendo uso da linguagem híbrida, ou seja, Gil Vicente reproduz a linguagem dos

diversos falares dos diferentes estratos sociais, além do português antigo ele utiliza

o castelhano local. Isso se deve principalmente, ao fato da interação do autor na

corte bilíngüe de Portugal. As esposas dos reis portugueses, no século XVI eram

castelhanas. Esse aspecto encontra-se destacado na voz do personagem

Castelhano: “CASTELHANO Paz sea n' esta posada. / AMA Vós sois? Cuidei que

era alguém. / CASTELHANO A según esso, soy yo nada.”

Também, nas falas do Castelhano se observa a influência advinda da

esfera renascentista a qual Gil Vicente estava inserido. Destacam-se referências aos

clássicos da literatura greco-romana como a “Ilíada” de Homero.

CASTELHANO Assossiega, coraçón, adormiéntate, león, no eches la casa en tierra ni hagas tan cruda guerra, que mueras como Sansón. Esta burla es de verdad, por los ossos de Medea, si no que arrastrado sea mañana por la ciudad; por la sangre soverana se la batalla troyana, y juro a la casa sancta...

O auto pode ser dividido em três momentos: a expectativa da partida do

marido, o adultério e o retorno do marido, desenvolvido no espaço da casa da Ama,

onde se destacam o exterior da casa com escada de acesso a porta (“AMA Quem

sobre por essa escada?”) e próximo à essa porta há uma janela (“LEMOS Quem tira

àquela janela?”). No interior da casa, aponta-se uma cozinha (“AMA Metei-vos nessa

cozinha, / que me estão ali chamando.”) e um quarto com uma cama (“MOÇA Falo

cá co‟esta cama.”), a parte mais íntima da casa.

Page 7: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

6

É dentro deste ambiente que irão transcorrer os três anos do tempo da

ação do Auto. Para dar essa noção de passagem do tempo Gil Vicente utiliza-se

somente do diálogo entre as personagens. Como nota-se a seguir na passagem de

três dias a partir da partida do marido: “CASTELHANO (...) Supe que vuesso marido/

era ido. / AMA Ant' ontem se foi.”

Depois, na voz da Moça percebe-se que a viagem já tem uma demora de

dois anos: “AMA Que falas? Que t' arreganhas? / MOÇA Ando dizendo entre mi /

que agora vai em dous anos / que eu fui lavar os panos / além do chão d' Alcami; / e

logo partiu a armada, / domingo de madrugada. (...)”

E logo, os anos já são três: “MOÇA Três anos há / que partiu Tristão da

Cunha”. E, em seguida, o marido já está de volta ao lar: “MOÇA Ai, senhora! Venho

morta! / Noss' amo é hoje aqui”.

Este recurso utilizado pelo autor é muito importante e faz parte integrante

da estrutura e da forma desta obra, pois com a passagem dos dias e com o suporte

do diálogo, o público é transportado do dia da partida, primeira noite do marido fora,

para o dia da chegada, passados mais de três anos.

O Auto da Índia foi particularmente datado pelo autor: “Era de 1509 anos”.

Conforme Nora (2008), seria a primeira vez que Gil Vicente utilizou-se de

personagens femininas em suas obras.

(...) Em todos os textos que Gil Vicente produziu indubitavelmente antes da referida farsa (Visitação – 1502, São Martinho – 1504 e Sermão de Abrantes – 1506), não se utilizou de personagens do sexo feminino. Constança, principal personagem do Auto da Índia, desse modo, antecipa as grandes figuras criadas pelo autor (...) (NORA, p. 44, 2008)

A partir, do contexto marítimo comercial e da rota para à Índia, a

personagem feminina é tecida envolta pela ambição do marido que correndo atrás

de fama e riqueza parte à uma aventura em alto mar, deixando sua mulher sozinha

no lar. Esta se aproveita das condições para manter o adultério.

Gil Vicente coloca em questão um dos aspectos negativos das grandes

navegações, onde o desejo feminino assume liberdade com a ruptura de certos

costumes, ganhando espaço em campos antes privilegiados aos homens. Esta

imagem feminina também é contemplada em outras personagens como Inês da

“Farsa de Inês Pereira”. São tipos femininos que:

Page 8: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

7

subvertendo determinadamente a ordem normal das coisas, investem o terreno exclusivo do varão, com a complacência deste, reivindicam com força o direito ao espaço que lhes é negado, espaço público, espaço de poder, espaço da palavra, espaço da sexualidade livremente assumida (KLEIMAN apud NORA, p. 46, 2008)

Num primeiro momento, a apresentação da figura feminina, identifica-a nos

moldes da esposa ideal e virtuosa que chora desolada pela partida do marido. Mas,

segundo Nora (p. 46, 2008), esse modelo é quebrado, pois o choro não é o da

esposa infeliz retratada anteriormente, mas o da mulher que teme que a partida do

esposo não se concretize.

MOÇA Jesu! Jesu! que é ora isso? É porque se parte a armada? AMA Olhade a mal estreada! Eu hei-de chorar por isso? MOÇA Por minh' alma que cuidei e que sempre imaginei, que choráveis por noss' amo. AMA Por qual demo ou por qual gamo, ali, má hora, chorarei?

Após a presente cena, a Ama faz uma oração à Santo Antônio pedindo

para que o marido não regresse: “AMA A Santo António rogo eu / que nunca mo cá

depare: / não sinto quem não s'enfare / de um Diabo Zebedeu. (...)”.

Nessa parte, também se pode perceber a influência do contexto religioso

presente na obra, visto que, como já fora destacado, Gil Vicente vivia num momento

de transição entre a cultura medieval teocêntrica para uma cultura renascentista

antropocêntrica. Assim, em ele consegue misturar a temática religiosa com a

profana.

Com a partida do marido, a mulher é livre para viver sua aventura amorosa

com seus dois amantes, o castelhano e Lemos. Para manter a situação controlada a

Ama mantêm uma obrigada cumplicidade com a Moça. Em diversos diálogos esta

toma, portanto a voz ainda de repressão em defesa da moral de seu senhor.

O espaço da narrativa é sempre dentro da casa. O marido confia a

fidelidade e a castidade da esposa nos limites do espaço doméstico. Todavia,

Constança, a Ama, consegue subverter a ordem sem ultrapassar tais limites. Sua

única ligação com o exterior se dá pela porta e pela janela da casa.

Page 9: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

8

Conforme Nora (p. 48, 2008) “para os homens, as janelas e portas, quando

fechadas, exercem a função de vigilância da mulher”. Mas, neste caso são por estas

aberturas que a Ama consume seu adultério. Com seu primeiro amante, o

Castelhano (Juan de Zamora), a “janela” facilita a relação amorosa ao invés de

impedi-la.

AMA Vós queríeis ficar cá? Agora é cedo ainda; tornareis vós outra vinda, e tudo se bem fará. CASTELHANO A qué hora me mandáis? AMA Às nove horas e nô mais. E tirai üa pedrinha, pedra muito pequenina, à janela dos quintais.

A janela também é um recurso utilizado por Constança para conseguir

manter a duas relações extraconjugais. No momento em que um de seus amantes,

Lemos, então dentro do recinto percebe as pedrinhas nas janelas, jogadas pelo

outro, Castelhano, a Ama prepara-se para despistar tanto o de fora como o de

dentro.

AMA Digo que venhais embora. LEMOS Quem tira àquela janela? AMA Meninos que andam brincando, e tiram de quando em quando. LEMOS Que dizeis, Senhora minha? AMA Metei-vos nessa cozinha, que me estão ali chamando.

E depois:

CASTELHANO Ábrame, vuessa merced, que estoy aquí a la verguença! Esto úsasse en Siguença: pues prometéis, mantened. AMA Calai-vos, muitieramá até que meu irmão se vá!

Nota-se, portanto, a esperteza da mulher que consegue violar a fidelidade

imposta pelo casamento sem, contudo ultrapassar os limites dessa extensão que

está na casa.

Page 10: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

9

No espaço que deveria funcionar como modelador da virtude feminina – espaço de recato, pudor, fidelidade e de culto à honra do marido – a protagonista tem uma atitude de gozo diante da vida: afugenta o tédio, diverte-se com seus dois amantes, entrega-se ao desejo de ser e estar alegre. (NORA, p.52, 2008)

Já conhecendo os perigos das viagens marítimas, a Ama conta com a

certeza da morte de seu marido. Exprime alegria e jubilo perante a esperança do

não regresso do mesmo.

AMA Mas que graça, que seria, se este negro meu marido, tornasse a Lisboa vivo pera a minha companhia! Mas isto não pode ser, que ele havia de morrer somente de ver o mar. Quero fiar e cantar, segura de o nunca ver.

Todavia, a notícia que lhe vem é o contrário, e após três anos passados o

regresso do marido é certo. Assim, a alegria de Constança se vai e a raiva, que lhe

toma de conta, é descontada na Moça através do pedido de inúmeros serviços.

AMA Pois, casa, se t' eu caiar, mate-me quem me partiu! Quebra-me aquelas tigelas e três ou quatro panelas, que não ache em que comer. Que chegada e que prazer! Fecha-me aquelas janelas, deita essa carne a esses gatos; desfaze toda essa cama.

No trecho anterior, nota-se também o pedido de Constança à Moça para

fechar a janela. Com a volta do marido, a Ama precisa confiar-lhe a sua atitude de

recato e fidelidade que a casa a mantêm.

(...) Assim, a fim de manter a aparência de esposa recatada e fiel, sabe que é preciso cerrar as brechas que a colocam em contato com tudo aquilo que os homens consideram ser para suas esposas os perigos do mundo exterior. (...) (NORA, p. 51, 2008)

Neste ponto, Constança volta a seguir a recomendações sociais e se

mostra uma esposa atenciosa e saudosa do marido. Descreve seu sofrimento pela

Page 11: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

10

viagem do mesmo, e destaca sua decência de mulher casada que viveu “encerrada”

por todos esses anos a esperar pelo esposo. Neste caso, como aponta Nora (p. 52,

2008) Constança não mentiu visto que suas relações extraconjugais aconteceram

sempre dentro da casa.

O fato de a mulher não receber o castigo merecido pela infidelidade

conjugal assolaria o efeito engraçado que é característico da farsa. Gil Vicente,

portanto não crítica o adultério, mas deseja evitá-lo. Com isso, os risos e troças se

voltam para o marido que iludido pelo enriquecimento fácil das grandes navegações

e viagens marítimas volta pobre, pois a riqueza alcançada é recolhida pelo capitão

“MARIDO: Se não fora o capitão, / eu trouxera, a meu quinhão, / um milhão vos

certifico”, e ainda foi traído pela mulher que se entregou aos homens que a

procuravam.

Constança não carrega culpa de suas atitudes. Na conversa com a Moça

ela justifica tal comportamento colocando toda a culpa no marido que parte no auge

de sua mocidade: “AMA: Ha ah ah ah ah ah! / Est'era bem graciosa, /quem se vê

moça e fermosa / esperar pola irá má. (...) / Partem em Maio daqui, / quando o

sangue novo atiça: / parece-te que é justiça?” e por mulher acreditar que o marido

não retornaria para casa, visto as dificuldades enfrentadas em alto-mar. Conforme

Nora (p. 69, 2008) essa era uma constante na vida de muitas mulheres portuguesas

e esses fatos estão presentes na História, quando era constante a ida de muitos

portugueses que se aventuravam nas navegações, mas que não possuíam um

retorno certo.

Nota-se, portanto, que a condição de Constança como mulher casada não

a impede que quebre os rótulos a ela imposto pelo casamento. O adultério é uma

expressão que leva a refletir a posição da mulher frente às expectativas de uma

sociedade marcada pela imagem virtuosa e casta da mulher. Em Gil Vicente torna-

se uma oportunidade de reflexão sobre a realidade que o cerca.

Page 12: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

11

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O seguinte auto abre um leque para várias análises a partir de diferentes

focos. Mas aqui consideramos a construção do adultério de Constança. A esta parte

destaca-se sua motivação para tal atitude que demonstra uma quebra nos valores

destinados ao casamento.

Todavia, essa ruptura não acontece de forma a provocar escândalo, pois

ocorre sempre no interior da casa. Ou seja, o espaço doméstico que é visto como

fortaleza que protege a virtude da esposa aos olhos do marido torna-se palco das

quebras dos códigos sociais impostos pelo matrimônio. Para tanto, exige da Ama a

cumplicidade de sua criada, Moça, e a esperteza de encontrar as brechas (janela e

porta) necessárias para que tal ato aconteça.

Na farsa “Auto da Índia” é notável perceber a capacidade artística de Gil

Vicente em conceber e representar os tipos sociais que marcaram sua época. A

atitude da mulher adultera neste campo ressaltam casos da nova realidade mercantil

portuguesa.

Através da sátira e da farsa, o autor sabe como poucos denunciar essa

realidade sem, contudo entrar em divergências com as autoridades da época que

cresciam e enriqueciam com a exploração marítima. Isto porque sua intenção maior,

não era atingir instituições, mas os homens da sociedade. Sua crítica possuía um

teor moralizante que procurava a mudança de atitude.

Page 13: BREVE ANÁLISE DA OBRA “AUTO DA ÍNDIA” DE GIL VICENTE …static.recantodasletras.com.br/arquivos/2709495.pdf · 5 Conforme Saraiva & Lopes (p.195, 2000) pode-se considerar o

12

5 REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

NORA, Andreza Barboza. “Quanto em caso de amores”: a relação (extra)conjugal

em três autos de Gil Vicente. 2008. 118 f. Trabalho de conclusão de curso (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ cp064243.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2010.

PITILLO, Silvana Assis Freitas. A personagem vicentina: uma representação do

Portugal dos quinhentos. 2002. 190 f. Trabalho de conclusão de curso (Pós-Graduação em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, 2002. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do? select_action=&co_obra=18916>. Acesso em: 03 abr. 2010. SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17. ed. [S. l.]: Porto, 2000. VICENTE, GIL. Auto da Índia. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/ bv000109.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2010.