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Resumo O artigo analisa o papel de Brasília no desenvolvimento do Centro Oeste. Considerando que a cidade vem passando por uma crise urbana expressiva, propõe-se alternativas, concebidas para um plano de gestão capaz de enfrentar os desafios de um projeto de alterações profundas no espaço urbano. Em primeiro lugar o estabelecimento de um horizonte permanente de gestão do DF a fim de minimizar os efeitos do processo de exclusão sócio-espacial, um dos principais fatores da origem da crise urbana da capital. Em segundo lugar o abandono do modelo polinucleado de urbanização em favor de projetos que privilegiem as habitações coletivas. Dar prioridade à preservação ambiental com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população. Em suma um projeto de melhor distribuição democrática dos bens e serviços. Palavras-chave: metrópole, gestão urbana, Brasília. Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise 1 Aldo Paviani * EM HOMENAGEM A MILTON SANTOS: Brasília é, ao mesmo tempo, uma capital política e um canteiro de construção. Surgiu como um canteiro de construção e continuou sendo, após a instalação, ali, dos três poderes do governo brasileiro. Brasília é, tam- bém, uma cidade “artificial” e uma grande cidade, uma capital de país subdesenvolvido (Milton Santos, 1965). The paper deals with the role played by Brasilia in the development process of the central-western region of Brazil. Considering that the capital city is now experiencing a severe urban crisis, the author sets forth a series of solutions for dealing with it. First, it is proposed that management of urban development should be permanent in order to minimize the perverse effects of socio-spatial exclusion, one of the main causes of the present urban crisis. Second, it is suggested that the multi-nucleated model of urbanization followed so far should be abandoned and replaced by projects which favor multi-dwelling housing programs. There should also be more concern with the environment so as to improve quality of life. What is really needed is a better and more democratic project of distribution of goods and services. Keywords:metropolis,urban,management, Brazília. 1 Adaptado do artigo apresentado no seminário “Brasília: passado, presente e futuro”, Brasília, 19 a 21 de setembro de2001. 2 Professor Titular, aposentado, e Pesquisador Associado do Departamento de Geografia e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais/CEAM, da Universidade de Brasília. Brasilia in local and regional context: urbanization and crisis

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Resumo

O artigo analisa o papel de Brasília no desenvolvimento do Centro Oeste. Considerandoque a cidade vem passando por uma crise urbana expressiva, propõe-se alternativas, concebidaspara um plano de gestão capaz de enfrentar os desafios de um projeto de alterações profundasno espaço urbano. Em primeiro lugar o estabelecimento de um horizonte permanente de gestãodo DF a fim de minimizar os efeitos do processo de exclusão sócio-espacial, um dos principaisfatores da origem da crise urbana da capital. Em segundo lugar o abandono do modelopolinucleado de urbanização em favor de projetos que privilegiem as habitações coletivas. Darprioridade à preservação ambiental com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população.Em suma um projeto de melhor distribuição democrática dos bens e serviços.

Palavras-chave: metrópole, gestão urbana, Brasília.

Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise1

Aldo Paviani*

EM HOMENAGEM A MILTON SANTOS:

Brasília é, ao mesmo tempo, uma capital política e umcanteiro de construção. Surgiu como um canteiro deconstrução e continuou sendo, após a instalação, ali,dos três poderes do governo brasileiro. Brasília é, tam-bém, uma cidade “artificial” e uma grande cidade, umacapital de país subdesenvolvido (Milton Santos, 1965).

The paper deals with the roleplayed by Brasilia in the development processof the central-western region of Brazil.Considering that the capital city is nowexperiencing a severe urban crisis, the authorsets forth a series of solutions for dealingwith it. First, it is proposed that managementof urban development should be permanentin order to minimize the perverse effects ofsocio-spatial exclusion, one of the main causesof the present urban crisis.

Second, it is suggested that the multi-nucleatedmodel of urbanization followed so far shouldbe abandoned and replaced by projects whichfavor multi-dwelling housing programs.There should also be more concern with theenvironment so as to improve quality of life.What is really needed is a better and moredemocratic project of distribution of goodsand services.Keywords:metropolis,urban,management,Brazília.

1 Adaptado do artigo apresentado no seminário “Brasília: passado, presente e futuro”, Brasília, 19 a21 de setembro de2001.2 Professor Titular, aposentado, e Pesquisador Associado do Departamento de Geografia e do Núcleode Estudos Urbanos e Regionais/CEAM, da Universidade de Brasília.

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Introdução

Nas décadas de 50 e 60, geógrafos, economistas, urbanistas e outros profissionaisinteressavam-se por estudos a respeito da área de influência das cidades, quanto às redes einterconexões regionais; analisavam a estrutura interna das cidades, isto é, os respectivos planosurbanos e suas funcionalidades. Na abordagem de temáticas sobre Brasília, passadas quatrodécadas de sua inauguração, pode-se considerar lacunosa a literatura sobre o papel desempenhadopela Capital no âmbito da região Centro-Oeste3. Quanto ao papel da Capital no contexto local,há uma enormidade de dissertações de mestrado e de teses de doutorado (no Brasil e no exterior),além de coletâneas editadas a partir de debates havidos no Senado Federal, na Universidade deBrasília e em outros órgãos, desde os anos 70.4 Assim, Brasília tem sido mais analisada comoCapital federal do que como cidade que desempenhou um papel importante no desenvolvimentodo Centro-Oeste brasileiro. Nos primórdios de Brasília, não se tentou implantar para a Capitala regionalização propugnada por François Perroux e Jacques Boudeville nos enfoques da teoriados “pólos de crescimento”.

Mesmo antes de o governo JK ter iniciado as obras de Brasília, havia um ideário para oCentro-Oeste no bojo da “Marcha para o Oeste” do governo Vargas. Nesse sentido, Brasília demarcouum tempo inicial para a efetiva “marcha para o Oeste”, pois no Plano de Metas de JK diversosprojetos dinamizaram a região, possibilitando a efetiva implantação da Capital. Entre estes projetoscitam-se: ampliação da malha rodoviária, implantação de hidrelétricas, novos aeroportos, indústrianaval e, logicamente, construção e transferência da Capital em pouco mais de três anos.

Durante a construção do Plano Piloto de Brasília, de Lúcio Costa, constatou-se quenão poderia abrigar as levas de imigrantes,5 sobretudo daqueles que passaram a trabalhar noscanteiros de obras. Por isso, antes mesmo de concluírem o núcleo central da Capital, os cons-trutores abriram novos espaços urbanos, iniciando com Taguatinga, em 1958. Com isso, acidade de hoje, polinucleada, é bem diversa da que foi esmeradamente projetada, não maispodendo ser apontada como o modelo brasileiro de “planejamento urbano”. O fracasso doplanejamento urbano se materializa nas dezenas de núcleos esparsos no território, denotandoapartação e exclusão sócio-espacial. Em outras palavras, o intenso trabalho de mais de quatrodécadas dos construtores urbanos não resultou em uma democrática apropriação social dosbens e serviços socialmente produzidos. As tensões sociais geram urbanização em constanteconflito e crise. Não se trata o espaço em um contexto de totalidade, compreensivamente6. Aocontrário, a gestão incrementalista, ao atender uma dada clientela, paternalisticamente, exclui edesatende outros grupos, gerando contradições e controvérsias não esperadas para uma cidadeque nasceu como modelo do urbanismo racionalista, depositária das esperanças do planejamentourbano. Ressalte-se ser esse não apenas um fracasso local ou regional, mas uma falência nosprogramas e projetos não levados a cabo com êxito no espaço nacional.3 Ver de Santana, R. N. e Farret, R. A Rede Urbana da Região Geo-econômica de Brasília. Brasília, Eco-Urb/UnB, 1975.4 Em 1974, o Senado promoveu o I Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília, editandoos trabalhos e debates. Em 1984, na UnB, se realizaram seminários dos quais resultou a ColetâneaBrasília, Ideologia e Realidade – Espaço Urbano em Questão, Ed. Projeto/CNPq. A partir de 1987,com a obra Urbanização e Metropolização – A gestão dos Conflitos em Brasília, inaugurou-se aColeção Brasília, da Editora UnB, com sucessivas publicações nos anos 80 e 90.5 - Ver artigo de Ferreira, I. C. B. e Paviani, Aa. “As correntes migratórias para o Distrito Federal”.Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, 35 (3): 133-162, 1973.6 - Ver artigo de nossa autoria “Urbanização: impactos ambientais da população”. Apresentado no IISeminário para Jornalistas sobre População. Curitiba, 18 a 22 de fevereiro de 1992.

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A transferência da Capital

Sociólogos, historiadores e geógrafos, entre outros, já se ocuparam exaustivamenteda controversa questão da transferência da Capital para o interior do país. Para o cientistapolítico Benício Viero Schmidt “Brasília (...) nasceu da intenção do soberano e serve a finsessencialmente políticos” (SCHMIDT, 1985: 32)7, no que concorda o geógrafo José WilliamVesentini: “a interiorização da Capital federal possui uma conotação geopolítica” (VESENTINI,1986: 62)8. Para esses autores, a interiorização é alimentada por proposta que remonta aos“inconfidentes mineiros”, se mantém até o fim do Império e se robustece na República. Porquestões de espaço, remetemos os interessados a esses autores porquanto ambos dissecam ahistória da transferência: gestões, vantagens e desvantagens, polêmicas, motivações e interesses,desde o século XVIII até as medidas concretas do governo JK na década de 50, com a abertura dogrande canteiro de obras para a construção do Plano Piloto de Brasília.

Todavia, a transferência da Capital havia sido antecedida da implantação do projetopara a capital mineira em fins do século XIX e da capital goiana, nos anos 30 do século XX.Assim, a expansão do povoamento para o interior foi-se consolidando no bojo do ideário da“Marcha para o Oeste”, ao tempo do governo Vargas e visava incorporar ao mercado do Brasilindustrializado um hinterland cujas terras começavam a ser produtivas. A ferrovia chegava aointerior de São Paulo, de Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás e o mercado incorporavacada vez maiores territórios. Da “Marcha para o Oeste” de Vargas para os “anosdesenvolvimentistas” de Juscelino Kubitschek foi um passo. O país crescia, sua populaçãopassava dos 50 milhões de habitantes e a indústria se ampliava com os incentivos do governofederal. Criava-se um mercado para os produtos nacionais, reproduzindo-se rapidamente oscapitais investidos. Por isso, o mercado pressionava para a incorporação de novos territórios,tanto para ter acesso a matérias primas como para interiorizar o consumo de bens como o daindústria automobilística implantada nos anos 50.

Segundo Farret, “a construção de Brasília, ao contrário das justificativas simplistas,constitui-se num passo lógico dentro do processo de acumulação que impõe determinadospadrões de divisão social e espacial do trabalho. A política territorial nada mais seria que aintermediação do Estado nesse processo” (FARRET, 1985: 19)9. A intermediação ou a interven-ção estatal sempre desempenhou papel primordial na urbanização brasileira, sobretudo a partirdos anos 50, quando uma retomada do processo de industrialização afetou a organização sócio-espacial. Assim, de acordo com Schimidt, “a atual (dos anos 80) política urbana brasileira tem deser compreendida como um conjunto complexo de programas e ações dirigidas para a eliminaçãodos obstáculos à completa socialização do espaço urbano através da reprodução expandida docapital” (...) e que “a intervenção estatal aparece, assim, como um ‘corretivo’ capaz de criar ascondições materiais para a supremacia capitalista desejada...” (...), sendo que “a crescenteimportância da intervenção estatal na sociedade brasileira, em sua totalidade, tem atraído substancialatenção dos estudiosos, especialmente durante o recente período de rápido crescimento econômicoe taxas altíssimas de urbanização” (SCHMIDT, 1983: 13 e 14).10

7 Schmidt, Benício Viero. “Brasília como centro político” In Paviani, Aldo (org.) Brasília, Ideologiae Realidade: Espaço Urbano em Questão. São Paulo, Ed. Projeto/CNPq, 1985.8 Vesentini, José William. A Capital Geopolítica. São Paulo, Ed. Ática, 1986.9 Farret, Ricardo Libanez. “O Estado, a questão territorial e as bases da implantação de Brasília”. InPaviani, Aldo (org.). Brasília, Ideologia ...(op. cit.).10 Schmidt, Benício Viero. O Estado e a Política Urbana no Brasil. Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS/L&PM, 1983.

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Estado e setores privados uniram-se para o “ciclo desenvolvimentista” que, com o“Plano de Metas” de JK, incentivaram setores para o investimento na “indústria de base”,siderúrgica e metal-mecânica e naval, bem como a estruturação de malha rodoviária para asnecessárias conexões entre as capitais estaduais e o interior e vice-versa. Brasília, como “Meta-Síntese” foi um passo decisivo, mas controverso. Enquanto construíam-se os edifícios e aEsplanada dos Ministérios ganhava forma, a movimentação financeira de materiais de constru-ção impulsionava cidades ao longo das rodovias. Neste aspecto, Goiânia constituiu-se em umtrampolim para o abastecimento dos canteiros de obras, ao mesmo tempo em que a indústria demateriais de construção ganhava impulso, beneficiando igualmente Anápolis. Brasília, toda-via, foi o grande trampolim para efetivar mudanças no Centro Oeste. Em seus primórdios aCapital demandava materiais de construção de Minas e de Goiás. Foi Milton Santos quemmelhor captou o trinômio que envolvia Brasília: sua construção, por “vontade criadora”; a“dualidade” sócio-espacial e o “subdesenvolvimento” que envolviam (e envolvem) a Capital.Essas questões foram assim desenvolvidas por Milton Santos:

“Brasília é, ao mesmo tempo, uma capital política e um canteiro de construção.Surgiu como um canteiro de construção e continuou sendo, após a instalação,ali, dos três poderes do Governo brasileiro. Brasília é, também, uma cidade“artificial” e uma grande cidade, uma capital de país subdesenvolvido. Cidade“artificial” surgiu de uma vontade criadora que haveria de se manifestar naprévia definição de diversos aspectos materiais e formais. A intenção que presidiuà sua criação é que orientaria aquela vontade criadora. Brasília já nascia comum destino predeterminado: ser “a cabeça do Brasil”, o “cérebro das maisaltas decisões nacionais”. Capital administrativa e canteiro de obras, essasduas realidades - a realidade planejada e a realidade condição para a primeira- vão contribuir para lhe dar uma fisionomia, um ritmo de vida, um conteúdo.(...) O subdesenvolvimento comparece como um elemento de oposição, diantedaquela “vontade criadora”, modificando os resultados esperados. Reduz aspossibilidades de uma rápida construção da cidade; refletindo-se sobre asatividades principais, explica as demais funções, o quadro, a fisionomia atual, aestrutura e os problemas; e é o responsável pela “dualidade” de Brasília, quetanto a aproxima das demais capitais latino-americanas. Vontade criadora esubdesenvolvimento do país são, pois, os termos que se afrontam na realizaçãoefetiva de Brasília. É da sua confrontação que a cidade retira os elementos de suadefinição atual”.11

Passados os anos JK, seguiram-se crises, como a renúncia do presidente Jânio Quadrose os tempos complicados de seu vice, o presidente Jango Goulart. Enquanto minavam-se as basespolíticas desse governo, esboçavam-se planos para a tomada do poder, numa aliança de militarescom empresários temerosos de um “governo sindicalista”. Nessas crises, ganha força um ideáriogeopolítico com amplo leque de ações para a soldagem das forças conservadoras. Essas forçascontraditoriamente se alimentaram nas trocas de apoios com setores militares e empresariais dosEstados Unidos da América, sem cortar os liames com tendências nacionalistas de alguns militaresbrasileiros. Nesse caldo controverso, ganha destaque a intervenção estatal. Como afirma Vesentini:“uma ação estatal sobre o espaço, tal como a transferência da cidade-capital, possui sempre uma

11 - Santos, Milton. A Cidade nos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira,1965, pp. 54 e 55.

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dimensão política; e se essa ação, ademais, for alicerçada no saber geopolítico, essa política éclaramente voltada para o controle social, para o reforço da dominação. E o discurso geopolítico,sem dúvida alguma, constituiu um dos pré-requisitos básicos para a transferência da Capitalfederal do Rio de Janeiro para Brasília” (VESENTINI, 1986:61).

Brasília, recém inaugurada, é abalada pelas crises políticas referidas, que puseramem cheque a permanência da Capital no Planalto Central. Sucessivos boatos sustentavam avolta do Poder federal para o Rio de Janeiro. Todavia, com o golpe de 1964, os militares viramem Brasília a possibilidade de aplicar teorias geopolíticas e instaurar o grande “projeto deintegração nacional”. De fato, ao longo dos governos militares tomaram-se medidas efetivaspara a consolidação da Capital como a transferência de órgãos federais do Rio para Brasília, amanutenção da rodovia Belém-Brasília e a implantação do megalômano projeto da Transbrasiliana.Todavia, foi no governo Geisel que Brasília passou a ter foros de cidade aceita internacionalmentecom a obrigatoriedade da transferência do corpo diplomático do Rio para a Capital federal. Comisso, a geopolítica ganha força e a cidade cresce aceleradamente.12

Desenvolvimento em “manchas de óleo”?

A respeito de regionalização, nos anos 50, pensava-se em “desenvolvimento regional”a partir de “pólos de crescimento”, sob as teorias elaboradas por François Perroux, posterior-mente difundidas por Jacques Boudeville. Na base desse ideário, as regiões seriam desenvolvi-das a partir de cidades bem equipadas e com poder de polarização. Elas teriam capacidade dedifundir inovações, tecnologia e provocar produção/consumo com efeito de esparramamento, àsemelhança de “manchas de óleo”. Tanto é assim que no relatório do urbanista Lúcio Costa jáestipulava que “... esta (a cidade de Brasília) não será, no caso, uma decorrência do planejamentoregional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejadoda região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador,nos moldes da tradição colonial” (C0STA, 1965; 343).13

Na realidade, o desenvolvimento não se deu como idealizado na teoria da polarização.O que ocorreu foi um efeito de aglomeração em centros já existentes, como no caso do DistritoFederal (DF) e em Goiânia. A capital de Goiás possuía poder de aglomeração, pois nos anos 50 e60 desempenhou um papel importante como entreposto de materiais para a construção deBrasília e de insumos e tecnologias para uma agricultura que se ampliava, sobretudo, no chamado“Mato Grosso de Goiás”. Nesse sentido, tanto Brasília como Goiânia incentivaram a produçãode grãos, como a soja, o milho e o feijão, bases para a alimentação de uma população que cresciaem razão das oportunidades de trabalho no DF, em Anápolis e Goiânia. Mas, não há comosustentar que o desenvolvimento da agricultura ou dessas cidades se deu por “efeitos de

12 O acompanhamento da urbanização no Distrito Federal (DF) encontra-se registrado em inúmerostrabalhos científicos publicados a partir de 1985 como “Brasília, Ideologia e Realidade: EspaçoUrbano em Questão”. São Paulo, Ed. Projeto/CNPq e, a partir de 1987, sob o patrocínio da ColeçãoBrasília, da Editora UnB, com diversas coletâneas como Urbanização e Metropolização – A Gestãodos Conflitos em Brasília (1987), Brasília – A Metrópole em Crise (1989), A Conquista da Cidade –Movimentos Populares em Brasília (1991) e Brasília – Gestão Urbana: Conflitos e Cidadania (1999),Brasília: Controvérsias Ambientais (no prelo).13 Costa, Lúcio. “Relatório sobre o Plano Piloto de Brasília”. In IBAM Leituras de Planejamento eUrbanismo. Rio de Janeiro, IBAM, 1965.

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esparramamento” (trickle down effects) ou de “barragem” (backwash effects), como teorizavamos “desenvolvimentistas”. Havia, isto sim, determinações históricas do capitalismo brasileiropara que a agricultura do Centro Oeste se ampliasse. Na divisão nacional e regional do trabalhoforam esses papéis atribuídos às cidades pré-existentes à Brasília. Com a Capital, essa divisão seampliou e se consolidou. Como bem percebeu Farret, “na divisão do trabalho entre as áreas ruraise urbanas, às primeiras correspondeu o lócus da produção, enquanto que, às últimas teve assentoa burocracia. Os pólos regionais desempenharam o papel de locus da intermediação e distribuiçãomercantil (a esfera da circulação) e da administração pública” (FARRET, 1985: 21).

Observando-se as décadas transcorridas, pode-se constar que, autonomamente, a agri-cultura recebeu os estímulos do mercado e ocupou terras novas e/ou desenvolveu territórios jáagricultados; as cidades pequenas não ganharam impulsos do “desenvolvimento” tal comoapregoado pelos “experts” e as cidades com potencial de crescimento, Goiânia e Brasília,incharam para além das expectativas. Nada que sustente a teoria dos “pólos de desenvolvi-mento” para o caso de ambas, pois o crescimento delas foi endógeno, o que fez crescer asrespectivas malhas urbanas com o surgimento de favelas e ocupações ilegais de terras públi-cas, sobretudo no caso da Capital federal14, como se verá.

De “cidade planejada” à metrópole polinucleada

Em 1985, havíamos cunhado para Brasília o epíteto de “Metrópole Terciária”, sob aconstatação do status de grande cidade assumido pela Capital. A base para que a denominás-semos de metrópole estava no fato de que ela possuía:

a) Significativa massa populacional. Em 1985, estimava-se que havia atingido a casa dos1.500.000 habitantes, o que lhe conferia porte metropolitano, equiparando-se às demaismetrópoles brasileiras;15

b) Complexidade funcional por ser sede do governo federal e por ter atraído considerávelnúmero de empresas comerciais, de serviços e algumas indústrias;

c) Capacidade de interagir com cidades de um largo território à sua volta, delas atraindo popu-lações em movimentos de commuting, isto é, trabalhadores que se deslocam diariamente daperiferia para a Capital e vice-versa.

O que havia sido idealizado para a Capital era um plano piloto “fechado”, no qual seestipulara uma população de 500 mil habitantes quando inteiramente ocupado. Esse patamarpopulacional tinha sua razão de ser na função de Capital federal. Em sua apreciação, um dosmembros do júri, Sir William Holford, assim justificou o teto populacional: “Não creio que sepossa projetar uma cidade-capital para ser aumentada indefinidamente. Se o centro, o sistema detráfego, os parques e os edifícios públicos são adequados para uma população eventual de meiomilhão a 600.000 pessoas, serão inadequados para uma população de um milhão ou um milhão emeio. Portanto, é preciso haver alguma limitação do crescimento da cidade-mãe, uma vezalcançado o tamanho mais aconselhável; e os desenvolvimentos posteriores, especialmente dos

14 A respeito, ver artigo de Malagutti, Cecília Juno “Loteamentos clandestinos no Distrito Federal:Caminhos alternativos para a sua aceitação”. In Paviani, Aldo (org.) Brasília – Gestão Urbana:Conflitos e Cidadania.Brasília, Ed. UnB, 1999.15 Ver “A metrópole terciária”, In Paviani, Aldo (org.) Brasília Ideologia e ... (op. cit., p.57).

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centros agrícolas e industriais, devem ser planejados, a fim de que eles atuem como cidadessatélites e de apoio dentro da região” (grifos nossos).16

É notório que governos e empresas têm apostado no crescimento da “cidade-mãe” edos núcleos que, no passado, recebiam a denominação de “cidades-satélites”. Em raras ocasi-ões se tentou agir para que houvesse “alguma limitação do crescimento da cidade-mãe”.

É justamente a questão das cidades-satélites, nesse início de século XXI, que devereter a atenção de todos os que se preocupam com:

1 – o crescimento populacional por migrações ou crescimento vegetativo;2 – a expansão urbana pela via de variados tipos de loteamentos, privados e públicos;3 – o crescente desemprego e lacunas de trabalho.

Essas problemáticas possuem impactos mais pronunciados nas cidades-satélites, afe-tando em menor grau o Plano Piloto de Brasília. Assim, enquanto o Plano Piloto, a cada censo,tem população menor, as cidades-satélites incham. Essa inchação obriga o governo do DF aabrir novos aglomerados como Samambaia, Santa Maria, Recanto das Emas e outros que tive-ram seus perímetros ampliados como Ceilândia e Riacho Fundo, por exemplo. Para ampararessa constatação, basta verificar que no início dos anos 90 Brasília possuía 9 regiões adminis-trativas, enquanto em fins de 2000 elas já eram 19. A população que, no início da décadapassada era de 1.515.889 habitantes17 somavam 2.043.169 habitantes18, no início desta década.Não se tem estatísticas confiáveis sobre qual o montante de imigração nesse total populacional.Também não há estatísticas de quantos dos que aqui residiam na década passada voltaram amigrar para outras regiões do país. Mas é certo que, cada vez com maior intensidade, a popu-lação cresce por incremento vegetativo.

Assim, boa parte da população que irá ser fixada nos novos “assentamentos” éde nascidos no DF e que procuram um lugar para morar e trabalhar. O déficit habitacionaltambém cresce pela demanda endógena ou então, engrossam os que procuram os loteamentosem cidades goianas, próximas ao limite interestadual. Em pesquisas anteriores nas cidades ouloteamentos goianos, ficou clara a ligação entre os moradores dessas localidades e o DF em termosde trabalho, compras e/ou procura de bens e serviços como escolas, hospitais, etc. Não há,portanto, respeito aos limites entre o DF e Goiás para essa população “flutuante”, que pelamanhã migra para Brasília e pela tarde/noite retorna ao local de residência em Goiás. Com essesmovimentos pendulares, a população faz crescer a necessidade de se pensar em ente metropolitanopara a gestão dos serviços comuns e a organização sócio-espacial. As relações e inter-relaçõesestão caracterizadas tal como as de outras metrópoles, cujos núcleos possuem cidades-satélites àsua volta, com alto sentido complementar. Já indicamos a criação de uma Área Metropolitana deBrasília (AMB) com a demarcação de 9 cidades do estado de Goiás. Dessa forma, ascidades goianas teriam status de cidades-satélites no mesmo patamar das do DF.19

A propósito de cidades-satélites e de suas relações com a “cidade-mãe”, a metrópo-le, convém referir um dado, já previsto quando do julgamento dos projetos para a construção de

16 “Impressões de Sir William Holford sobre o Projeto Lúcio Costa para Brasília”, In IBAM Leiturasde ..., op. cit, p. 361.17 - IBGE. Censo Demográfico 1991. p. 32.18 - IBGE. Censo Demográfico 2000. “Dados Preliminares” (mimeo).

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Brasília. Em suas já referidas “Impressões” sobre o projeto de Lúcio Costa para Brasília, oarquiteto William Holford delimitava que “os aspectos essenciais de um satélite são: 1) queseja auto-suficiente para fins ordinários da vida, trabalho e recreação; e 2) que seja ligado porrápidas rodovias e ferrovias com a cidade-mãe para as funções especiais que somente umagrande cidade pode oferecer, como: universidade, teatro de ópera, comemorações e cerimôniaspúblicas, departamentos governamentais, etc.” Conclui este conceito de satélite com uma consi-deração de cunho espacial: “(...) a região deve ser claramente articulada, não se permitindo queespalhe disformemente em todas as direções” (grifos nossos).20 Essas características decidade-satélite, auto-suficiência e integração metropolitana, justificam-se para um controle doterritório em termos de crescimento para evitar um crescimento “desordenado”. Em Brasílianada disso aconteceu.

No caso da futura AMB, se detecta de antemão que tanto no território do DF quantono de Goiás há baixo coeficiente de controle do crescimento. Na periferia goiana, a iniciativaprivada repetiu o polinucleamento acontecido em Brasília, com a pulverização de núcleoscomo Valparaízo I e II, Cidade Ocidental, Novo Gama, Pedregal e outros, num verdadeirocrescimento espalhado “disformemente em todas as direções”. No caso de Brasília, seus nú-cleos satélites foram deliberadamente assentados no território, a começar com Taguatinga,em 1958, Gama e Sobradinho (no início dos anos 60) e outros. Tanto num caso como no outro,não se poderá falar em “planejamento urbano” o puro assentar de populações em terrenos malservidos de infra-estrutura, a partir de plantas urbanas em que apenas se traçaram as vias decirculação para delimitar as áreas residenciais, a de serviços e/ou de comércio e indústria.

Ademais, reforçando a idéia de Holford sobre cidades-satélites convém referir o que acomunidade geográfica conceituou como tal: “subúrbio ou centro urbano que atingiu certo grau,relativamente elevado, de autonomia em relação à dominância metropolitana”.21 Mais uma vezfica patente que nem as satélites goianas nem as do DF possuem autonomia para fins “ordináriosda vida urbana”, tais como trabalho e recreação, prescritos por Sir Holford. Ao contrário, nagrande mancha urbana que se formou a partir de meados dos anos 70, o que mais se observa é adominância metropolitana do núcleo, isto é, do Plano Piloto de Brasília. Nele estão os melhorespostos de trabalho e num volume superior ao que se poderia prever no projeto inicial.

Aliás, tanto a baixa autonomia das satélites, quanto a elevada polarização do Plano Piloto,acrescido da mancha disformemente espalhada no território, permitem afirmar que, de há muito,Brasília deixou de ser planejada, sobretudo quando o planejamento determina grande controle doespaço e a inclusão de traçado físico, mais planejamento sócio-espacial. Como o controle doterritório se subordina às pressões dos “sem teto” (e mesmo de aproveitadores) com predomi-nância de preocupações físico-espaciais, a conclusão a que se chega é a de que o planejamentourbano cedeu lugar à improvisações e à pressa na abertura de novos espaços urbanos para finshabitacionais. Com as práticas reiteradas de novos assentamentos, que incham a cada leva denovos habitantes e com a cessão de um terreno para cada família, é de se esperar que Brasília nãodeixe tão cedo de ser uma Capital polinucleada, estando os diversos núcleos disseminados noterritório do DF e fora dele.

19 Ver de Paviani, Aldo. “Gestão do território com exclusão socioespacial”, In PAVIANI, Aldo (org.)Brasília – Gestão Urbana: Conflitos e Cidadania. Brasília, Ed. UnB, 1999.20 - Ver Nota 16 : “Impressões”, de Sir William Holford.21 Verbete 228 do Vocabulário de Geografia Urbana. Rio de Janeiro, Comissão de Geografia do InstitutoPanamericano de Geografia e História, 1971.

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O papel do Plano Piloto

O núcleo central da Capital, durante estes 41 anos de existência, concentrou bens eserviços, pois nele estão as instituições públicas e privadas necessárias ao desempenho de suasfunções precípuas. Não houve preocupação em disseminar atividades no território tal como seprocedeu com a população. Com isso, o Plano Piloto detém cerca de 70% dos postos de traba-lho mais bem remunerados, abrigando menos do que 1/5 da população economicamente ativa(PEA). A não ser Taguatinga e Núcleo Bandeirante, com maior poder de atração para ativida-des, sobretudo comerciais, as demais cidades do DF têm como grande função a residencial.Longe estão inclusive de se tornarem verdadeiras cidades-satélites como demonstram os con-ceitos acima referidos.

É desejável que o Plano Piloto de Brasília esteja equipado convenientemente para odesempenho de suas funções político-administrativas. Enquanto que as satélites deveriamabrigar atividades ancilares àquelas da Capital – terciárias e quaternárias – para irem se tor-nando “relativamente autônomas” em relação ao Plano Piloto, reduzindo a dependência funci-onal em relação ao centro. Uma vantagem decorrente será a retenção da força de trabalho naslocalidades de residência dos trabalhadores, evitando-se, com isso, o volume do commutingsobre os meios de transporte e mesmo as vias de circulação do DF. Além disso, os que migramdiariamente casa/trabalho reduziriam os custos de deslocamento e o cansaço físico/mental quea mobilidade de grande distância ocasiona.

Todavia, não há políticas públicas sinalizando no sentido da descentralização de ativi-dades e dos postos de trabalho no DF. Ao contrário, algumas ações recentes denotam umaopção clara para a concentração de atividades, empregos e equipamento no Plano Piloto deBrasília. O melhor exemplo é o do trem metropolitano, justamente construído como uma gi-gantesca forquilha com os ramos vindos de Samambaia e Ceilândia em direção ao tronco quese dirige ao Plano Piloto. Como esse é um equipamento fixo, que dependerá de continuado usopara se tornar viável, a conclusão é óbvia: o Plano Piloto deverá polarizar e afunilar todos osfluxos da periferia-centro pela manhã e, em sentido centrífugo, pelo fim da tarde, início danoite. Conclusão: essas ações são concentradoras.

Igualmente é obvio constatar-se que a concentração de equipamento e de trabalhono Plano Piloto tem outro desdobramento, de cunho sócio-espacial. A organização doterritório, de forma concentrada, vai consolidar um modelo de povoamento com exclusão eapartação espacial e social: o centro, bem equipado e concentrando os melhores postos detrabalho, está consolidando um modelo de metrópole com a elite ocupando os espaços maisnobres do Plano e os assalariados e trabalhadores residindo nas cidades da periferia. Comessa organização sócio-espacial não se poderá falar mais em “cidade planejada” e outroseufemismos que escondem a injustiça social na cidade. Como a área de influência maispróxima não inclui apenas cidades do DF, mas também as do Entorno, é de se esperar queesteja em curso a formação de uma grande metrópole. Essa grande cidade seria em tudoassemelhada às demais grandes cidades brasileiras como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro,Porto Alegre e outras: bem equipados núcleos centrais e periferias detentoras de bairrospobres, favelas, desequipados e depositórios de violência e criminalidade com crescentestensões sociais.

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Descentralização e combate à pobreza

O que foi descrito acima longe está de ser fruto de uma visão pessimista ou de umaantevisão pejorativa do futuro. Ao contrário, é o mundo concreto e real, tal como foi esmerada-mente materializado no território. Como não se deseja ver construída uma Geografia-sem-saída, quais seriam as propostas? Que ações efetivas poderiam reverter o quadro esboçado?Haveria vantagens em mudar o modelo polinucleado? Como distribuir a riqueza acumuladasocialmente?

Para responder essas questões, deve-se considerar que qualquer medida ou projetopara Brasília deverá passar, necessariamente, por programas de combate à pobreza, a fome e adesnutrição. Esses programas podem ser iniciados com a abertura de novos postos de trabalhoe a manutenção dos que estejam ocupados. Portanto, combate-se a pobreza com oferta detrabalho e com ações que evitem a eliminação de postos de trabalho existentes. Em outraspalavras, devem os governantes estancar o surgimento de “lacunas de trabalho”. Como defini-mos anteriormente22, “a lacuna de trabalho tem associação estreita com os mecanismos desubemprego e/ou desemprego, deles divergindo no aspecto de que, enquanto os subempregadosou desempregados têm (ou tiveram) alguma atividade de onde retiram (ou retiraram) seu sus-tento, naquela não se pode falar em atividade de qualquer tipo para o ativo em disponibilidade.Ou, dito de outra forma, a lacuna de trabalho é um componente irmão gêmeo do desemprego(ou subemprego), mas de natureza diversa. O desemprego poderá ser manifestação de ‘ajustes’conjunturais no interior do aparelho produtivo, que mantém ‘reservas de mão-de-obra’ ou ‘exér-cito de reserva’; as lacunas de trabalho se constituiriam na atividade-não-gerada ou nos postosde trabalho que não aconteceram, ou mesmo, que foram subtraídos do mercado de trabalho”(PAVIANI, 1991: 116). Assim, caberia aos governos do DF, de Goiás e de Minas Gerais e governofederal, bem como ao empresariado local e regional, encetarem esforços para que novas atividadessurjam no interior da Capital ou no chamado Entorno goiano. Há um mercado local e regional deboa envergadura para sustentar atividades novas e manter as existentes, de tal forma que não seultrapasse os 200 mil desempregados23, como a crise do setor produtivo e a conjuntura adversafazem prever.

Por sua vez, a descentralização da cidade também é proposta que se encampa vis-à-visao polinucleamento urbano. Essa descentralização requer a criação de um ente metropolitano, um“quarto poder”, a Área Metropolitana de Brasília (AMB). O “poder metropolitano” teria umterritório e complexidade funcional menores do que a Região Integrada de DesenvolvimentoEconômico (RIDE), inclusive para tornar exeqüíveis as ações administrativas e de políticaspúblicas. A entidade gestora da AMB centralizaria, com poupança de recursos financeiros, aimplantação de infra-estrutura física e social em toda a metrópole. Com isso, a água tratada, aeletricidade, o abastecimento de produtos alimentícios (em feiras e centrais de abastecimento), acoleta de lixo urbano, a limpeza pública, a implantação de escolas, de centros de saúde e outros.Com essa medida, seriam aliviados os encargos do GDF com relação aos “serviços de uso

22 - “A construção injusta do espaço urbano”, In Paviani, A. (org.) A Conquista da Cidade, MovimentosPopulares em Brasília. Brasília, Ed. UnB, 1991.23 - A alta taxa de desemprego, algo ao redor a 21%, em setembro de 2001, poderá ser ultrapassada secontinuarem as crises de energia (estamos sob a ameaça do “apagão”), do dólar americano e doMercosul (devido, sobretudo, à crise Argentina, que contaminará todo o bloco do Cone Sul).

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comum” para os quais se voltariam os holofotes da AMB. Como já aventamos anteriormente “nadependência da escala, vão se disponibilizar os recursos de diferentes naturezas e magnitudespara a GT (Gestão do Território). Assim, se designarmos uma AMB, a GT se dará em um espaço jáorganizado com funcionalidades, interesses e conexões políticas, econômicas e administrativas. A GT nesseespaço deverá trabalhar com o futuro, com o que ainda for “organizável” e previsível. Haverá contradições,controvérsias e conflitos para estabelecer o novo formato que a GT requererá, ou, como se salientouanteriormente, a emergência de um quarto poder, a instância metropolitana”. 24

A administração unificada possibilitaria igualmente a gestão de fundos para combatera pobreza, tanto quanto de incentivos para a implantação de novas empresas em pontos estra-tégicos da AMB. Os incentivos e investimentos deveriam ser canalizados para aquelas ativida-des não-poupadoras de mão-de-obra e que se destinassem à exploração de matérias primas doCentro-Oeste ou que aproveitassem os setores terciário e quaternário do DF. Essas atividadesteriam um efeito cascata sobre toda a população economicamente ativa (PEA), atualmente emdisponibilidade, com o que seria reduzida a pressão dos desempregados e subocupados. Ageração de novos postos de trabalho teria efeitos positivos sobre a pretendida redução da po-breza e da injustiça social.

Problemática ambiental: questões para o futuro

De uma década para nossos dias, ampliam-se as preocupações com a problemáticaambiental urbana. Nesse período, foram desencadeadas algumas ações governamentais, quepermanecem na agenda como o combate às erosões urbanas e a despoluição do lago Paranoá.Foram investidos alguns milhões de reais para a dragagem do lago, que apresentava forteassoreamento em certos pontos e, na atualidade, procede-se à limpeza de suas margens, após orebaixamento da lâmina d’água.

Mas, como há outras questões ambientais, pergunta-se: por quê tanta preocupação coma saúde das águas do lago? Sendo ele um dos mais importantes cartões postais da cidade, servirápara atrair turistas, pescadores e velejadores? Ou o governo quer evitar a eutrofização(?) daságuas e a proliferação de algas no lago, como aconteceu há 15 anos, quando o mau cheiro prove-niente do lago atormentou os habitantes dos bairros do lago Sul e Norte?

Outras questões são levantadas para pesquisas futuras como a qualidade da águapotável servida à população do DF. Qual o comprometimento por poluição do lençol freático edas nascentes dos córregos e riachos tributários dos reservatórios utilizados para o abastecimentourbano? Qual a situação das barragens de Santa Maria e Santo Antonio do Descoberto, respon-sáveis por quase a totalidade da água tratada de Brasília? A agricultura praticada com defensi-vos agrícolas às margens desses reservatórios mereceria investigação mais acurada? Em termos depoluição ambiental com lixo urbano, esgoto a céu aberto e uso de pesticidas, qual a situação dasterras agricultáveis? Qual o grau de impregnação no solo por agrotóxicos? Seria este problemairreversível ou há tecnologias capazes de atenuar esse sério problema ambiental?

Ligada à expansão da mancha urbana, surge outra problemática, qual seja a do deteri-oro, esterilização e impermeabilização das terras por assentamentos urbanos, pavimentação24 - Ver, de nossa autoria, “Gestão do território com exclusão ....” op. cit. Nota 18.

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asfáltica e implantação de infra-estruturas físicas. Estes aspectos, desde os anos 80, têm provo-cado enxurradas, enchentes e erosões das terras em diversos pontos do DF, sobretudo em cidades-satélites. Nestas cidades, qual o comprometimento da qualidade de vida em função das erosões eenxurradas? E a devastação do Cerrado igualmente compromete a qualidade de vida das populaçõespobres e periferizadas? Ainda nesse aspecto, que medidas urgentes deverão ser tomadas pararecompor o Cerrado e a cobertura vegetal, tão agredido pelo avanço da urbanização? Em quepontos do DF, as matas ciliares e nascentes se encontram definitivamente comprometidas porinvasões e parcelamentos ilegais de terras por parte de especuladores imobiliários? Por fim, masnão menos importante, em que medida a urbanização desenfreada irá trazer problemas futurospara a qualidade do ar e do cerrado, possibilitando períodos mais longos de secura e elevação datemperatura em razão da massa edificada?

Essas e muitas outras questões serão levantadas nos próximos anos ao serem desenvol-vidas pesquisas no bojo do projeto para o qual esta obra é uma etapa inicial. Desta forma, aspesquisas futuras apontam para a análise ambiental em novas bases e vinculada à ampliaçãoda qualidade de vida urbana no DF. E mais: que essa qualidade de vida, hoje mais presente noPlano Piloto de Brasília, possa sr irradiada para os demais núcleos urbanos, num esforço parademocratizar o acesso ao bem estar urbano existente no centro da Capital. Mais ainda: queações governamentais concretas, demandadas pela população, possam estancar a dilapidaçãodas terras públicas por pressão do povoamento e que estas terras sejam preservadas comoestoque estratégico para uso das gerações futuras.

Finalmente, que a população, governo e empresas tenham sensibilidade e determina-ção para que a questão ambiental seja posta num patamar compatível com o status de “CidadePatrimônio Cultural da Humanidade”.

À guisa de conclusão

Para superar a constante crise em que está imersa a urbanização do DF e de sua região,sendo reflexo da conjuntura e modelo nacional, faz-se necessário apontar propostas e soluçõesalternativas.

Em primeiro lugar, estabelecer um “horizonte permanente de gestão do DF”25, de talmodo que as ações governamentais sigam um padrão compreensivo, com visão de totalidade,inclusive com relação à sua área metropolitana. Na gestão compreensiva, não haveria açõespontuais, incrementais, isto é, não se atenderiam grupos esparsos no território em detrimento deoutros. A exclusão sócio-espacial, por antidemocrática seria evitada para não erodir a taxa decidadania dos construtores urbanos. Um exemplo concreto é o das ações para “erradicação deinvasões”, tão usuais em Brasília. O favelado não seria “erradicado” nem seria rotulado de “invasor”pois, como cidadão, tem direito ao acesso à terra. Essa terra, não seria doada, mas conquistada,justamente para que não fosse utilizada como “mercadoria de troca”. Como afirmamos em outrotrabalho, “em países capitalistas, a terra tem sido utilizada como fator de produção, tanto no

25 Da forma como foi definido no artigo de nossa autoria “A realidade da metrópole: mudança outransformação na cidade”, In PAVIANI, Aldo (org.) Brasília: Moradia e Exclusão. Brasília, Ed. UnB,1996, p. 227.

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ambiente urbano como no agrário. Todavia, nesses mesmos países, o uso da terra como mercadoria,favorece o surgimento e a manutenção de resultados perversos, como a exclusão dos empobrecidose a segregação socioespacial de consideráveis contingentes populacionais. Com isso, os que nãotêm acesso à terra são periferizados social e geograficamente”.26 Essa prática política, que ressaltaa cidadania, se tornaria uma opção para a Capital, para toda sua área de influência próxima,servindo como modelo para o país.

No plano local, abandonar o modelo polinucleado de urbanização, bem como o decidades horizontalizadas, isto é, “um lote, uma família, uma família, um lote”, sobretudo quandoda “erradicação” de favelas. É o momento de se pensar em adensamentos com habitaçõescoletivas para evitar a espacialização de infra-estruturas e, mesmo, para se poupar um bem quepoderá a escassear: as terras para fins habitacionais. Há que se respeitar as terras não ocupadaspara usos futuros. A “verticalização” já se torna oportuna em cidades como Ceilândia eSamambaia (ou mesmo Santa Maria e Recanto das Emas). O uso extensivo de terras públicas,com espaços ociosos, poderá se constituir em motivo para cobiça dos especuladores imobiliários,com mudança de usos, “doações” e outras práticas danosas ao patrimônio público.

Ainda no plano local, rever a prática de “ajustes” ao modelo original, uma vez que acidade foi profundamente modificada em sua estrutura e operacionalidade. E, ao rever essaspráticas, dar prioridade à preservação ambiental,27 com sentido de totalidade, isto é, o ambienteque inclua a natureza primeira (o ecossistema cerrado, vegetação, águas superficiais e subterrâneas,etc), a natureza segunda, nela incluídas as modificações (e seus impactos) com a presença extensivade conjuntos urbanos e suas infra-estruturas. Nessa segunda natureza incluir as questões dasegregação sócio-espacial e a da má distribuição da riqueza gerada socialmente. Então se pergunta:como preservar um ambiente tão distorcido em relação ao plano original, socialmente mais justoe equânime? Muito se propala a respeito da preservação ambiental, mas há um esquecimento deque essa preservação somente interessa se tiver como base a qualidade de vida dos brasilienses. Ecomo ampliar a qualidade de vida, preservando o patrimônio urbanístico, mas omitindo os urbanitasbeneficiários últimos de qualquer ambiente modificado em suas funções e materialidades?

Em suma: o que se deseja, inclusive com o uso de instrumentos legais, é enfrentar osdesafios que o crescimento da cidade irá nos antepor. Esse crescimento não deverá ser contra-posto apenas à preservação, mas a qual preservação estamos referindo. Se nela estiveremincluídosos construtores da cidade, então o crescimento ensejará um conjunto de medidas que preservemo ambiente em sua integralidade, o homem nele incluído. O que se quer é o crescimento compreservação, mas sem apartação sócio-espacial. Essa visão não apenas irá enfrentar os desafios demudanças, mas sim as transformações profundas no modo de produzir a cidade e de como asociedade deseja distribuir os bens e serviços postos à disposição de todos, democraticamente.Seria isto utópico?

26 Ver, de nossa autoria, “A realidade da metrópole... op. cit.27 Sobre a questão ambiental, ver a coletânea Brasília: Controvérsias Ambientais. Ed. UnB (no prelo).

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