brasil querelas do

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Brasil, querelas do Brasil, querelas do Brasil, querelas do Brasil, querelas do Por Tulio Vilaça Elis Regina gravou Querelas do Brasil, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, no álbum ao vivo Transversal do Tempo, de 1978. Segundo o pesquisador André Luís Pires Leal Câmara, a idéia da canção surgiu de uma conversa de Maurício com o artista gráfico e músico José Maurício Porto, em que teriam falado da importância de os brasileiros conhecerem o Brasil. Porém, tratar Querelas do Brasil como uma simples exaltação de belezas naturais, manifesto xenófobo ou mesmo o lamento de uma suposta decadência seria um enorme empobrecimento. Simultaneamente a este formato de inventário/manifesto, Querelas faz uma desconstrução da Aquarela do Brasil, a quem se referencia desde o título, e da própria visão de Brasil como uma cultura estritamente natural ou folclórica como a que é cantada por Ari Barroso, para depois reconstruir esta visão sob um ponto de vista modernista – ou seja, usando como referência muito dos avanços, não apenas estéticos, mas também ideológicos, da geração da Semana da Arte Moderna de 22. Antes de entrar na análise propriamente dita, uma consideração: os modernistas de 22 pouquíssima atenção deram à música popular. Enquanto Villa-Lobos tocava na Semana peças de influência debussyana, os Oito Batutas de Pixinguinha excursionavam pela Europa. Porém, desde o Tropicalismo, tanto questões como técnicas do modernismo, como a narrativa estilhaçada, foram sendo trazidos para a música popular. Portanto, não chega a ser novidade o que Querelas faz. O que a torna interessante é sua capacidade de fazer uma reflexão direta sobre este tema da aculturação unindo forma e conteúdo, tanto na letra de Aldir quanto na música de Maurício. O título referencial a Aquarela do Brasil não é simplesmente um trocadilho. O significado principal de querela, no dicionário Aurélio, é discussão, pendência. A transformação de aquarela em querela anuncia, no lugar da exaltação, uma problematização do assunto. E corrobora com isso o motivo melódico inicial, que será desdobrado adiante ( trata trata trata trata- - -se exatamente do mesmo motivo da se exatamente do mesmo motivo da se exatamente do mesmo motivo da se exatamente do mesmo motivo da

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Page 1: Brasil Querelas Do

Brasil, querelas doBrasil, querelas doBrasil, querelas doBrasil, querelas do Por Tulio Vilaça

Elis Regina gravou Querelas do Brasil, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, no

álbum ao vivo Transversal do Tempo, de 1978. Segundo o pesquisador André

Luís Pires Leal Câmara, a idéia da canção surgiu de uma conversa de Maurício

com o artista gráfico e músico José Maurício Porto, em que teriam falado da

importância de os brasileiros conhecerem o Brasil.

Porém, tratar Querelas do Brasil como uma simples exaltação de belezas

naturais, manifesto xenófobo ou mesmo o lamento de uma suposta

decadência seria um enorme empobrecimento. Simultaneamente a este

formato de inventário/manifesto, Querelas faz uma desconstrução da Aquarela

do Brasil, a quem se referencia desde o título, e da própria visão de Brasil

como uma cultura estritamente natural ou folclórica como a que é cantada por

Ari Barroso, para depois reconstruir esta visão sob um ponto de vista

modernista – ou seja, usando como referência muito dos avanços, não apenas

estéticos, mas também ideológicos, da geração da Semana da Arte Moderna

de 22.

Antes de entrar na análise propriamente dita, uma consideração: os

modernistas de 22 pouquíssima atenção deram à música popular. Enquanto

Villa-Lobos tocava na Semana peças de influência debussyana, os Oito Batutas

de Pixinguinha excursionavam pela Europa. Porém, desde o Tropicalismo,

tanto questões como técnicas do modernismo, como a narrativa estilhaçada,

foram sendo trazidos para a música popular. Portanto, não chega a ser

novidade o que Querelas faz. O que a torna interessante é sua capacidade de

fazer uma reflexão direta sobre este tema da aculturação unindo forma e

conteúdo, tanto na letra de Aldir quanto na música de Maurício.

O título referencial a Aquarela do Brasil não é simplesmente um trocadilho. O

significado principal de querela, no dicionário Aurélio, é discussão, pendência.

A transformação de aquarela em querela anuncia, no lugar da exaltação, uma

problematização do assunto. E corrobora com isso o motivo melódico inicial,

que será desdobrado adiante (tratatratatratatrata----se exatamente do mesmo motivo da se exatamente do mesmo motivo da se exatamente do mesmo motivo da se exatamente do mesmo motivo da

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introdução de Aquarela do Brasil, só que invertido!introdução de Aquarela do Brasil, só que invertido!introdução de Aquarela do Brasil, só que invertido!introdução de Aquarela do Brasil, só que invertido!) Ao usar em forma

descendente o que era ascendente, fica clara também a intenção de mostrar

como que o outro lado da moeda – em vez decantar o Brasil nos meus versos,

cantar também as possibilidades de cantá-lo, e o que é feito destas

possibilidades.

Dito isto, vamos à intrincada letra do Aldir:

O Brazil não conhece o Brasil

O Brasil nunca foi ao Brazil

Tapir, jabuti, liana, alamandra, ali, alaúde

Piau, ururau, aqui, ataúde

Piá, carioca, porecramecrã

Jobim akarore Jobim-açu

Oh, oh, oh

Pererê, camará, tororó, olererê

Piriri, ratatá, karatê, olará

O Brazil não merece o Brasil

O Brazil tá matando o Brasil

Jereba, saci, caandrades

Cunhãs, ariranha, aranha

Sertões, Guimarães, bachianas, águas

E Marionaíma, ariraribóia,

Na aura das mãos de Jobim-açu

Oh, oh, oh

Jererê, sarará, cururu, olerê

Blablablá, bafafá, sururu, olará

Do Brasil, SOS ao Brasil

Do Brasil, SOS ao Brasil

Do Brasil, SOS ao Brasil

Tinhorão, urutu, sucuri

Ujobim, sabiá, bem-te-vi

Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê

Page 3: Brasil Querelas Do

Madureira, Olaria e Bangu, Olará

Cascadura, Água Santa, Acari, Olerê

Ipanema e Nova Iguaçu, Olará

Do Brasil, SOS ao Brasil

Do Brasil, SOS ao Brasil

E aí se percebem os vários pulos do gato da letra de Aldir, que amplia o rol de

belezas brasileiras a serem celebradas, a começar pela própria língua. Versos

enumerativos como Pererê, camará, tororó, olererê / Piriri, ratatá, karatê,

olará (além de Blablablá, bafafá, sururu, todas sinônimos de querela) não se

referrem a nada a não ser a própria sintaxe. Em versos como estes, Aldir

celebra a possibilidade que a língua portuguesa (com suas influências

múltiplas, indígenas e africanas principalmente) lhe dá de criar versos como

estes, com estas sonoridades onomatopeicas e abertas que a vocalização de

Elis só faz acentuar e escancarar.

Aldir parte do vocabulário tupi para construir a letra de Querelas. Isto poderia

levar a pensar numa espécie de purismo, um pensamento. Porém, lado a lado

com as belezas naturais descritas pela Aquarela, vem também a releiruta

artística destas belezas, via arte: juntamente com tapir, jabuti, ariranha,

aranha, sucuri, sabiá, bem-te-vi, há também Caandrades (Andrades: Mário,

Oswald, Drummond); sertões, guimarães (Grande sertão: veredas, de

Guimarães Rosa); bachianas, referente às Bachianas Brasileiras, de Villa-

Lobos; Marionaíma, fusão do nome de Mário de Andrade com sua obra

Macunaíma, (não por acaso, todos os citados são expoentes do movimento

modernista); e tinhorão (ao mesmo tempo um planta ornamental e José Ramos

Tinhorão, talvez o maior estudioso e pesquisador de nossa música popular).

Com isto, Aldir põe em pé de igualdade nossa criação artística como um

acrescentamento à Aquarela do Brasil. Se para Ari, a aquarela é pintada pela

natureza, por Nosso Senhor, para Aldir e Maurício a pintura tem como autores

também os Andrade, o Rosa, os artistas que recriaram e recriam esta beleza

na sua arte – até eles próprios, por extensão.

E principalmente, mais que todos: Jobim akarore, Jobim-açu (akarore = “índios

gigantes ou krenakore, kreen akrone, variantes do nome kaiapókran iakarare,

que significa cabeça cortada redonda, segundo a Enciclopédia dos Povos

Page 4: Brasil Querelas Do

Indígenas do Brasil. Açu = grande em tupi). E na última estrofe, o prefixo

U Ujobim , significando pai em tupi. Não é por acaso que a nota mais aguda da

canção, ao término da primeira e segunda estrofes, aconteça justamente em

referência, em deferência a ele. Tom Jobim, em três modos diferentes, tem seu

nome mesclado à língua tupi, de modo a ser entronizado, mais do que todos,

como parte indissolúvel do próprio Brasil. Nele se configura a fusão, agora

indistinguível, entre a terra e a visão da terra, entre o Brasil e a construção

deste Brasil, e ao mesmo tempo como uma espécie de corolário deste Brasil,

ao ter o nome posto como ápice melódico da canção. Jobim, o grande, o pai,

sintetiza aquarelas e querelas em sua música, da qual Maurício Tapajós é

discípulo e continuador.

Deixei propositalmente para depois aquela que é a marca registrada desta

canção: o uso alternado das palavras Brasil e Brazil nos refrães, com grafia (e

pronúncia) alternadamente brasileira e estrangeira. À luz destes últimos

parágrafos, fica claro que ao conceito de Brasil estendido se contrapõe um

conceito de Brazil que também resiste a estereótipos: não se trata de uma

ameaça externa, mas de uma visão (ou falta de visão) interna. A crítica pela

falta de valoração do nacional não corresponde a uma des-valoração do

estrangeiro, e sim pelo não reconhecimento do que se é. Brazil e Brasil são, na

verdade, o mesmo, as duas faces da moeda, ali, alaúde, aqui, ataúde,

aquarela/querela, tentando se reconhecerem mutuamente. No último verso da

canção explicita-se: só há o Brasil, só o Brasil pode socorrer o Brasil contra si

mesmo. Se conhecer, se merecer.

No meio da última estrofe de Querelas do Brasil Aldir deixa de lado as belezas

naturais e/ou artísticas e muda de tática, terminando a canção com uma lista

de bairros do Rio de Janeiro. Bairros, em sua maioria absoluta, da Zona Norte,

Oeste, até um município da Baixada Fluminense e um bairro deste município

(Cabuçu, em Nova Iguaçu). A enumeração destes lugares, quase todos alheios

à Terra de Nosso Senhor da Aquarela (Chico Buarque cantaria na canção

Subúrbio: lá tem Jesus – está de costas), cantada com entusiasmo crescente

por Elis, corresponde igualmente a esta visão ampliada do que é o Brasil, e um

exemplo palpável do Brasil que o Brazil não conhece. O subúrbio do Rio de

Janeiro torna-se um microcosmo do Brasil, reduzindo simbolicamente para

termos geográficos uma questão que é também (ou principalmente) cultural.

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O nome do célebre bairro de Ipanema, quase no fim da lista, poderia ser visto

como uma espécie de concessão à cidade partida, um símbolo mesmo

do Brazil que não conhece o Brasil, do Brasil para turistas, estereotipado em

canções. De certo modo, é isso mesmo, mas não uma concessão, e sim uma

conciliação. Querelas do Brasil não está, em última análise, em oposição à

Aquarela, mas sim acrescentando-lhe desdobramentos. A letra de Querelas,

como um espelho quebrado, mostra em cacos diversas facetas do Brasil, de

forma próxima à que almejava Mário de Andrade ao fazer versos de poemas

que deveriam soar como acordes harpejados, em que uma palavra se somava

à seguinte em sonoridade: Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… povoar!, ou

na visão literária que Oswald tentou dar ao cubismo em alguns de seus

escritos. Aldir consegue efeito parecido, com a melodia de Maurício que

provoca a emenda das palavras e a coagulação de outras em neologismos. Não

me parece que a querela de Aldir e Maurício queira separar. Muito pelo

contrário, trata-se de um convite feito pelo Brasil. Que o Brasil trate de aceitar.

Em tempo: aqui, um estudo léxico da letra, de onde tirei város significados, de

autoria de Jussara Dalle Lucca (1) sob a orientação do pesquisador Marcos

Napolitano.

P.S. a sugestão da análise de Querelas do Brasil veio do Francisco de Assis

Furriel, do Blog do Chico, a quem agradeço.

Retirado do Blog ‘SOBRE A CANÇÃO’

https://tuliovillaca.wordpress.com/2012/02/01/discoteca-brasilica-brasil-

querelas-do/

(1) http://docslide.net/documents/querelas-do-brasil.html