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Gudin-Bulhões-Furtado: Matrizes do pensamento econômico brasileiro

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Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitora: Profa Ma Neusa Altoé Vice-Reitor: Prof. Dr. José de Jesus Previdelli

CONSELHO EDITORIAL Presidente: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli. Coordenador Editorial: Prof. Dr. Jean Vincent Marie Guhur. Membros: Prof. Dr. Antonio Cláudio Furlan, Profa Dra Astrid Meira Martoni, Prof. Dr. Carlos Kemmelmeier, Profa Dra Celene Tonela, Profa Dra Celina Midori Murassi, Prof. Dr. Celso Luiz Cardoso, Prof. Dr. Fernando Antonio Prado Gimenez, Prof. Dr. Gentil José Vidotti, Profa Dra Lizete Shizue Bomura Maciel, Profa Dra Maria Suely Pagliarini, Prof. Dr. Renilson José Menegassi, Prof. Dr. Thomas Bonnici. Comissão de Revisão em Língua Portuguesa e Inglesa: Profa Ma Eliana Alves Greco, Profa Ma Jacqueline Ortelan Maia Botassini, Prof. Jorge Júnior do Prado, Prof. José Hiran Sallée, Prof. M. Manoel Messias Alves da Silva, Prof. Dr. Salvador Piton, Prof. Dr. Silvestre Rudolfo Böing. Diretoria Geral: Profa Dra Silvina Rosa. Secretária: Maria José de Melo Vandresen.

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JOSÉ ADALBERTO MOURÃO DANTAS (Org.) CINTHIA MARIA DE SENA ABRAHÃO

GERALDO ANTÔNIO DOS REIS

Gudin-Bulhões-Furtado: Matrizes do pensamento econômico brasileiro

Maringá

1999

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FICHA TÉCNICA

Divisão de Editoração . Marcos Kazuyoshi Sassaka . Marcos Cipriano da Silva . Juliano Rodrigues Lopes

Capa . Marcos Kazuyoshi Sassaka

Diagramação . Marcos Cipriano da Silva Tiragem . 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Central – UEM, Maringá

G975 Gudin – Bulhões – Furtado: matrizes do pensamentos econômico brasileiro / José Adalberto Mourão Dantas (organizador), Cinthia Maria de Sena Abrahão, Geraldo Antônio do Reis. -- Maringá : Eduem, 1999.

179 p.

ISBN 85-85545-39-9

1. Matrizes. 2. Desenvolvimento econômico. 3. Crescimento econômico. 4. Política econômica. 5. Pensemento econômico. I. Título. II. Dantas, José Adalberto Mourão, org. III. Abrahão, Cinthia Maria de Sena, IV. Reis, Geraldo Antônio dos.

CDD 21. ed. 330.15 CIP NBR– 12899-AACR2

Copyright 1999 para José Adalberto Mourão Dantas Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer

processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor.

Todos os direitos reservados desta edição 1999 para Eduem Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá Universidade Estadual de Maringá Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação/Divisão de Editoração Av. Colombo, 5790 - Bloco 115/Campus Universitário 87020-900 - Maringá-Paraná-Brasil Fone: (044) 261-4253 e (044) 261-4394 Fax: (044) 263-5116 Home Page: http://www.ppg.uem.br E-mail: [email protected]

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Cada época social tem seus grandes homens. Se não tem, inventa-os.

Karl Marx

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................... 1

CAPÍTULO I ....................................................................................... 13

Eugênio Gudin disseminador do laissez-faire no Brasil ....... 13 Introdução................................................................................. 13

Notas biográficas de Eugênio Gudin e sua Introdução ao estudo da ciência econômica ................................................... 19

A controvérsia Gudin e Simonsen: duas correntes do pensamento econômico bnrasileiro ........................................ 28

O escopo do pensamento econômico de Eugênio Gudin ....... 42

Considerações finais ................................................................. 58

Bibliografia ............................................................................... 59

CAPÍTULO II

O antidesenvolvimentismo de Bulhões ................................... 61 Introdução................................................................................. 61

As idéias econômicas de Bulhões ............................................. 62

A primeira fase: a assessoria ministerial no I governo Vargas 67

A segunda fase: Bulhões, “papa” do liberalismo econômico .. 69

Modelo de desenvolvimento ................................................ 70 Política econômica ............................................................... 73 Liberalismo conservador ou neoliberalismo? ...................... 77

Bulhões e a política econômica do pós-64 .............................. 83

O Paeg e a política antinflacionária ......................................... 85

Distribuição de renda ............................................................... 87

Reforma tributária .................................................................... 89

Reforma do sistema financeiro ................................................ 91

Intervenção do estado e liberalismo........................................ 92

Os resultados do Paeg .......................................................... 94 As críticas de Bulhões aos desdobramentos da política econômica dos pós-67 ......................................................... 97

Considerações finais ................................................................. 101

Bibliografia ............................................................................... 118

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Gudin – Bulhões – Furtado: matrizes do pensamento econômico

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CAPÍTULO III ..................................................................................... 125

O pensamento econômico de Celso Furtado ......................... 125 Desenvolvimento e subdesenvolvimento ................................ 133

A produção madura de celso furtado ...................................... 153

Considerações finais ................................................................. 176

Bibliografia ............................................................................... 177

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APRESENTAÇÃO

O Brasil foi, inquestionavelmente, o País fora dos circuitos centrais em que, neste século, mais avançou o pensamento econômico. No entanto, nestes tempos obscuros em que tem predominado a ideologia neoliberal, a ausência de qualquer pensamento é que tem caracterizado o mundo oficial da economia e da ciência econômica no País. Os preconceitos forjados por essa ideologia – “globalização”, “falência do Estado”, “eficiência do mercado”, “fim da história” – têm assumido foros de verdade e invadido, não apenas a política econômica, mas o mundo da academia, que deveria estar mais preocupado com a ciência.

É, portanto, muito alvissareiro o fato de que, com muita freqüência, estejamos sendo recentemente brindados com livros, dissertações e teses que procuram recuperar o debate econômico que se processou no Brasil no período anterior. Esse novo interesse pelo trabalho criativo que os brasileiros realizaram no domínio da economia política é sintoma, não apenas do fato de que, apesar das pretensões arrogantes, o neoliberalismo não se converteu em “pensamento único”, como também do esgotamento a que chegou essa ideologia, esgotamento que se manifesta na verdadeira fúria com que a crise econômica que se alastra pelo mundo vem atingindo os países que foram mais longe na implementação dos dogmas neoliberais.

Reúnem-se, agora, em livro alguns capítulos de teses e dissertações de três professores universitários, Cinthia Maria de Sena Abrahão, Geraldo Antônio dos Reis, José Adalberto Mourão

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Gudin – Bulhões – Furtado: matrizes do pensamento econômico

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Dantas que, sob o título Matrizes do pensamento econômico brasileiro, procuram debater o pensamento econômico do período mais rico da economia brasileira, inaugurado com a Revolução de 30. Um importante livro, que, de certa forma, serve de referência para esses novos trabalhos, já se escrevera sobre o assunto, de autoria de Ricardo Bielschowsky, intitulado “Pensamento Econômico Brasileiro – o ciclo ideológico do desenvolvimento”.

Longe de serem repetitivos, esses trabalhos procuram desvendar novos caminhos. Escolheram os três principais economistas que intervieram no debate entre os anos 40 e os anos 70, além de haverem comandado a área econômica do governo, nas pastas da Fazenda ou do Planejamento. Referimo-nos a Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões e Celso Furtado.

Os dois primeiros expressam uma mesma corrente de pensamento que, de filiação teórica neoclássica, pautam suas elaborações na crença das faculdades alocativas do mercado e do livre-cambismo. Furtado é o principal prócer brasileiro de uma outra escola de pensamento, que vem de Alexandre Hamilton e Friedrich List, o nacional-desenvolvimentismo, que advoga a intervenção do Estado e o protecionismo como instrumentos para a ruptura com o subdesenvolvimento.

É evidente que essa caracterização simplifica um pouco a real contribuição desses pensadores, na medida em que, além de terem recorrido a outras fontes teóricas (Furtado, por exemplo, usou bastante Karl Manheim no desenvolvimento de sua idéia sobre planejamento), deram uma insubstituível contribuição pessoal. Mas, por outro lado, não devemos descurar o fato de que são, disparadamente, os principais representantes dessas escolas de pensamento no Brasil. Essas são, aliás, as correntes de pensamento econômico que vêm se digladiando no Brasil ao longo deste século. As contribuições de inspiração marxista que ocorreram antes estiveram, quase sempre, associadas à segunda corrente.

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Apresentação

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E era natural que fosse esse o enfrentamento no terreno das idéias econômicas, já que era esse o principal enfrentamento no terreno ideológico. Esse embate, que teve sua pré-história na época do Segundo Império, assumiu significação mais decisiva com a República. O nacional-desenvolvimentismo sentou praça no Brasil quando o ministro Manuel Alves Branco, depois de dizer em seu “Relatório” de 1844 que “um povo sem manufaturas fica sempre na dependência de outros povos”, elevou as tarifas de importação de 15%, que vigia desde 1828, para faixas entre 30% e 60%. E teve continuidade com o fundador da Associação Industrial, Antônio Felício dos Santos, que, em seu “Manifesto”, datado de 1881, caracterizou bem o que é um livre-cambista: “E chamam-se livre-cambistas os que assim se mostram realmente protecionistas... do estrangeiro”.

A República colocou o debate num novo patamar. De um lado, estavam os republicanos do Rio de Janeiro, que, reunindo intelectuais e militares, tinham peso decisivo nos governos de Deodoro e Peixoto e defendiam que a industrialização seria o caminho para o desenvolvimento. Rui Barbosa, como ministro da Fazenda de Deodoro, foi o principal defensor desse caminho, chegando a dizer que “a República só se consolidará, entre nós, sobre alicerces seguros, quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial”. E deu seqüência às suas idéias através de um amplo programa de incentivo à industrialização, que iam desde a cobrança em ouro das tarifas de importação até uma reforma tributária e uma reforma bancária que estimulavam a formação de indústrias. De outro lado, estavam os republicanos de São Paulo, representados por políticos ligados à oligarquia cafeeira, como Prudente de Moraes e Campos Salles, que defendiam a “vocação agrícola” do Brasil e estavam, portanto, de acordo com as idéias do “livre”-comércio internacional, que significava, na prática, a livre importação de produtos industriais ingleses e o bloqueio à industrialização brasileira.

No começo deste século, com a República já convertida em República Velha pelas mãos da oligarquia cafeeira, que ascende

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ao poder em 1894 com Prudente de Moraes e começa a desmontar os mecanismos pró-industrialização implantados por Rui Barbosa, reacende o debate sobre os dois caminhos do desenvolvimento brasileiro. O desmonte industrial foi realizado sobretudo pelo ministro da Fazenda de Campos Sales, Joaquim Murtinho, que, na virada do século, antecedendo os neoliberais de plantão, varreu as tarifas de importação, cortou os investimentos públicos, apertou o crédito e elevou os juros, promovendo uma brutal recessão, com o único intuito de arranjar divisas para pagar a dívida externa junto aos bancos ingleses. Murtinho dizia que o Brasil não podia seguir o caminho industrial dos EUA porque não tínhamos “as aptidões superiores de sua raça”. Na oposição, estavam os fundadores e dirigentes do Centro Industrial do Brasil (atual Firjan), entre eles o General Serzedelo Correa e o engenheiro Luiz Rafael Vieira Souto. Serzedelo, que defendia a intervenção do Estado e o protecionismo, dizia que “os povos que não têm a independência econômica não podem jamais constituir o tipo de grande nação”. Vieira Souto, em complemento, depois de denunciar o livre-cambismo, como sendo favorável unicamente à Inglaterra industrializada, declarou que “o problema das tarifas (de importação) é o epicentro da defesa da indústria”.

A Revolução de 30 transformou as idéias dos nacional-desenvolvimentistas em realidade. A industrialização brasileira, que tivera alguns surtos no passado, converteu-se em um fenômeno inexorável. Além de contar com uma conjuntura internacional favorável (Grande Depressão e Segunda Guerra), passou a ser o objetivo central do governo de Getúlio Vargas, que recorreu largamente aos instrumentos propugnados pelos nacional-desenvolvimentistas, a saber, a ação estatal na economia (através do planejamento, da legislação trabalhista e da construção de estatais) e o protecionismo. É nesse novo quadro que é retomado o debate econômico. O primeiro grande debate se dá entre o engenheiro-economista Eugênio Gudin e o engenheiro-empresário Roberto Simonsen e ocorre, em 1945, a propósito da discussão do Plano de Organização da Economia

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Apresentação

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Brasileira, do governo Vargas. Membro do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, Simonsen foi encarregado de elaborar o relatório; por sua vez, membro da Comissão de Planejamento Econômico, Gudin foi incumbido de apresentar o respectivo parecer.

Simonsen vinha desenvolvendo suas idéias desde a década de 20, quando, por razões profissionais, teve oportunidade de conhecer boa parte do território brasileiro. Essa experiência o fez concluir que “o engrandecimento da nação (se daria) pelo desenvolvimento industrial”. Segundo ele, “da liberdade ampla no intercâmbio comercial resulta, pela atuação natural de conhecidos fatores, o predomínio dos mais fortes”. Por isso, “não se pode conceber a idéia de nação sem a do protecionismo”. Além disso, “o tipo de grande empresa, servida por supermáquinas, seria reservado para as indústrias basilares e aí se justificaria, a par de uma necessária emulação, um maior controle do Estado, para evitar os malefícios decorrentes do excesso de poder econômico em mãos de poucos". Simonsen, que continuou a tradição dos nacional-desenvolvimentistas, além de estar em dia com o pensamento econômico, depois que a Grande Depressão deu um golpe mortal no pensamento neoclássico e deu origem ao pensamento keynesiano, foi não apenas um teórico e animador do desenvolvimento industrial e da independência econômica, mas também um implementador dessas idéias, tanto como integrante de comissões econômicas governamentais quanto como dirigente de órgãos empresariais: foi presidente da Fiesp e fundador e presidente da CNI.

Gudin, objeto do estudo de Cynthia Abrahão (“Eugênio Gudin, disseminador do laissez-faire no Brasil”), iniciou sua vida profissional como engenheiro de empresas estrangeiras de serviços públicos, experiência que, conforme a autora, pode ter influenciado sua posição futura no domínio da economia. A Grande Depressão, aliada a uma experiência frustrada de empresário de laranjas, despertou seu interesse por economia. A partir de 1929, iniciaria toda uma obra que vai até 1986, ano de sua morte. Um fato importante é que, apesar de sua oposição ao

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caminho seguido por Getúlio, este sempre o convidou para participar das comissões econômicas que criava. De acordo com Abrahão, Gudin chega a responsabilizar Getúlio por sua opção pela economia: “Eu fui entrando no plano da economia sem projeto, sem plano. O Dr. Getúlio tem muita responsabilidade nisso. Ele nunca formou uma comissão – e foram muitas – sem me nomear”.

Independente de outras passagens de Gudin pela economia (inflação, por exemplo), é evidente que a questão central que estava no debate dizia respeito à industrialização. Há quem defenda que, ainda que não fosse um entusiasta da industrialização, Gudin não lhe era um opositor ferrenho. Celso Furtado, por sua vez, conforme diz Abrahão, acreditava que ele era “um representante da oligarquia agrária, opositor da indústria”. Na verdade, pode-se perceber dois momentos do pensamento de Gudin sobre a industrialização. Num primeiro momento, que vai dos anos 30 aos 50 e em que a indústria ainda se debatia para nascer no ventre do modelo primário-exportador, ele era um opositor aberto da industrialização. Era isso o que significava sua defesa de que não deveria haver uma política estatal favorável à industrialização, deixando-a ao sabor das “forças de mercado”. É evidente que, se dependesse do mercado, o Brasil seguiria primário-exportador e as nações desenvolvidas manteriam o monopólio da indústria. Num segundo momento, que se inaugura nos anos 50, quando a industrialização já se tornara inevitável, deixou de fazer-lhe oposição. Refutava, no entanto, a ação empresarial do Estado, que considerava “como elemento deturpador da economia de mercado”, nos termos de Abrahão, e, para sanar o que considerava de “deficiência de recursos para financiar os investimentos privados”, defendia “a entrada do capital estrangeiro”. Nesse mesmo momento, segunda a autora, coincidentemente deixou de criticar a falta de experiência dos EUA para exercer o papel de economia hegemônica. Portanto, quando a industrialização se tornou inevitável, passou a defender que ela se desse sob controle estrangeiro,

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Apresentação

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particularmente norte-americano. E, passando da teoria à prática, aproveitou-se do curto interregno em que esteve à frente do Ministério da Fazenda, com a morte de Getúlio, para elaborar a Instrução 113, da antiga Sumoc (atual Banco Central), destinada a favorecer a entrada do capital estrangeiro no Brasil.

Tinha razão Antônio Felício dos Santos, quando, no século passado, percebeu que os livre-cambistas eram “protetores do estrangeiro”. Não está correto, portanto, o termo “liberal” para designar a esses senhores, que, em nome da liberdade, propugnam, na prática, o monopólio estrangeiro sobre nossas economias.

Os principais personagens do embate seguinte foram Octávio Gouveia de Bulhões e Celso Furtado, objetos de estudo, respectivamente, de Geraldo dos Reis e José Adalberto Dantas. O pano de fundo do debate foram as idéias da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Órgão da ONU, com sede no Chile, abrigou, desde os anos 40, importantes intelectuais da América Latina, preocupados em desvendar a realidade da região, bem como os caminhos da superação do atraso e do subdesenvolvimento. Celso Furtado foi o principal pensador brasileiro que participou da elaboração e divulgação das idéias cepalinas. E Bulhões foi também o principal brasileiro a combater essas idéias.

A obra teórica mais importante de Furtado é, inquestionavelmente, Desenvolvimento e subdesenvolvimento, de 1961, assim como Formação Econômica do Brasil é sua principal obra de história e análise econômica. Pode-se dizer que as anteriores eram obras preparatórias, assim como as posteriores se trataram de aperfeiçoamento. Tem sido uma verdadeira obsessão para Furtado, ao longo de sua vida científica, descobrir as razões do subdesenvolvimento e os caminhos para viabilizar o desenvolvimento. Segundo ele, o subdesenvolvimento dos países da periferia é produto do desenvolvimento dos países do centro, assim como o desenvolvimento destes é, de certa forma, produto do subdesenvolvimento daqueles. E, assim, o

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subdesenvolvimento ocorre "em economias que não podem ser concebidas fora de certo sistema de relações internacionais que engendra o fenômeno da dependência” (cit. em Dantas, O Pensamento Econômico de Celso Furtado). Isso porque, além de parte do excedente criado nas economias subdesenvolvidas ser transferido para o centro, este bloqueia o acesso daquelas às novas tecnologias e à produção de meios de produção: “o subdesenvolvimento, por conseguinte, é uma conformação estrutural produzida pela forma como se propagou o progresso tecnológico no plano internacional”. A teoria da deterioração dos termos de intercâmbio, formulada por Raul Prebisch, fundador e principal dirigente da Cepal, serviu de base para explicar os caminhos por onde o excedente econômico é drenado para o exterior.

A efetivação do desenvolvimento econômico nos países periféricos exigia, de acordo com Furtado, o rompimento com a dependência externa: “A partir desse momento, o conceito de desenvolvimento ligou-se explicitamente à idéia de interesse nacional”. Para ele, a indústria é o motor do desenvolvimento e “cabe... à tecnologia desempenhar o papel de fator dinâmico da economia industrial”. Nesse sentido, o conceito de forças produtivas, formulado por List, cumpre um papel-chave no sistema teórico de Furtado. O desenvolvimento das forças produtivas é o elemento decisivo para o desenvolvimento econômico, mas este não se limita apenas a isso. Desenvolvimento não é um mero sinônimo de crescimento econômico. Implica também desenvolvimento social, político e cultural. A cultura, aliás, cumpre importante papel na teoria furtadiana, na medida em que a criação de uma mentalidade favorável é um importante fator propulsor do desenvolvimento. Por fim, no processo desenvolvimentista, cabe ao Estado o papel de “agente propulsor e orientador das atividades econômicas e árbitro dos conflitos de classes na definição do interesse nacional”.

O título escolhido por Geraldo Reis para o trabalho sobre Bulhões não poderia ser mais apropriado - O

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Apresentação

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antidesenvolvimentismo de Bulhões -, pois, na sua época, ninguém foi mais ferrenhamente contra o desenvolvimento do que ele. Referimo-nos, certamente, à fase madura de Bulhões, pois, conforme nos lembra Reis, em sua primeira fase, ele chegou a participar da assessoria econômica do primeiro governo de Vargas, quando comungava, no fundamental, com as idéias que o norteavam, como a industrialização, a ação estatal na economia, o protecionismo. Nesse período, participou da conferência de Bretton Woods, quando chegou a rascunhar com Keynes uma proposta para correção dos desequilíbrios do balanço de pagamentos, o que, segundo ele, “foi um dos fatos mais marcantes da sua vida intelectual” (cit. in Reis).

A partir de 1950, conforme assinala Reis, com o livro “À margem de um Relatório”, Bulhões assume sua verdadeira identidade: desde então, tornou-se no mais duro opositor da Cepal no Brasil e converteu em sua obsessão o combate sem trégua à inflação. O primado do combate à inflação, isto é, da estabilidade monetária, sobre o desenvolvimento o acompanhou o resto de sua vida. Suas idéias sobre industrialização eram semelhantes às de Gudin. O desenvolvimento poderia prescindir dela, desde que promovesse as exportações. A industrialização poderia ocorrer, mas sem uma política deliberada do Estado, como defendia a Cepal; resultaria da ação espontânea do mercado, “desde que houvesse liberdade para a iniciativa privada, notadamente a estrangeira, que deveria receber um tratamento especial do governo” (cf. Reis). Isso porque “a entrada de capital estrangeiro evitaria a ampliação dos investimentos do Estado”. Ou seja, à maneira de Gudin, industrialização só com controle estrangeiro.

Ele era intolerante com qualquer nível de inflação. Crescimento, só se fosse com estabilidade monetária. Senão, era melhor que não houvesse crescimento. Depois de algumas tentativas de explicar a inflação por outros caminhos, terminou por se identificar com a visão monetarista: a inflação seria produto do excesso de moeda, que, por sua vez, resultaria, do excesso de gasto público, de investimento privado e de salários,

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o que seria expressão do conflito distributivo. O centro da política econômica seria, portanto, a eliminação desses “excessos”. Nas palavras de Reis: “na sua visão, a política econômica deveria prioritariamente promover a estabilidade, sobretudo com o uso dos instrumentos clássicos como controle dos gastos públicos, dos salários e do crédito”. E foi isso que fez Bulhões quando, secundado por Roberto Campos, assumiu, em 1964, o comando da área econômica do governo Castelo Branco e implantou o Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg). O resultado foi uma brutal recessão que duraria até 1967.

Criou-se a ilusão de que essa sua ação teria limpado o terreno para o crescimento que ocorreria a partir de 1968. Na verdade, o crescimento se deu graças à mudança da política econômica, que ocorreria sob o comando de Delfim Netto. Admitindo que a economia poderia crescer mesmo com um certo nível de inflação e que a pressão inflacionária teria passado a ser predominantemente de custos (pressão tributária e elevação dos custos financeiros), Delfim adotou um programa que visava estimular a demanda e ocupar a capacidade ociosa, revelando uma flexibilidade que Bulhões e Gudin jamais tiveram. O conservadorismo e o antidesenvolvimentismo de Bulhões e de seus pupilos Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen eram tão grandes que se opuseram fortemente ao caminho inaugurado por Delfim, taxando-o ora de “estruturalismo bizarro”, ora de “uma espécie de marxismo de varejo”.

Há quem ache estranho o fato de que, sendo profundamente anti-estatizantes, esses economistas tenham convivido com o crescimento das estatais no período militar. Na verdade, o Paeg propugnava a privatização. No entanto, esse seu aspecto não pôde ser implementado. E Reis, corretamente, dá a razão: “Nem mesmo entre os militares vinculados à ESG, com quem a equipe econômica liderada por Bulhões e Campos tinha proximidade, suas idéias (de privatização, nota nossa) predominavam. Ao contrário, a principal resistência à privatização das empresas era dos militares”. Delfim, por sua vez, mesmo não morrendo de amores pelas estatais, não tinha nada contra sua expansão,

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Apresentação

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desde que ajudassem a promover o crescimento da economia (é durante sua gestão, por exemplo, que se cria o sistema Telebrás). Delfim é uma espécie de desenvolvimentista de filiação neoclássica. E, depois, no período Geisel, passa a predominar a linha militar abertamente favorável à ação estatal e ao protecionismo, programa que é corporificado no II PND.

Isso mostra que não se sustenta um outro preconceito que tem caracterizado os meios intelectuais e políticos brasileiros: o de que teria predominado, durante todo o período militar, as idéias “liberais” dos economistas liderados por Gudin, Bulhões e Campos. Na verdade, elas predominaram apenas no período inicial, de 1964 a 1967, e ainda assim com a resistência dos militares a um de seus principais aspectos, a privatização. Mesmo assim, conseguiram fazer o estrago que fizeram. Aliás, nas poucas vezes em que essas idéias “estiveram” no poder, deixaram um profundo rastro de destruição. Foi assim no começo do século com Joaquim Murtinho; foi assim na década de 60 com Bulhões e Campos; e está sendo assim agora com a equipe econômica de Fernando Henrique Cardoso. Não apenas destruição tem sido o seu legado. Eles têm procurado entregar o que sobra ao monopólio do capital estrangeiro. É nisso que consistem suas idéias “liberais”: liberdade total para a invasão do capital estrangeiro.

O legado do nacional-desenvolvimentismo tem sido o oposto disso. No período de 1930 a 1980, excluindo a gestão Bulhões-Campos e o ligeiro interregno de Gudin, as idéias que predominaram na ação governamental, no Brasil, foram as do nacional-desenvolvimentismo. E foi sua implementação que transformou o Brasil de uma economia primário-exportadora numa economia urbano-industrial moderna. Nesse período, a economia brasileira foi a que mais cresceu no mundo, a um ritmo anual de 7%, chegando a 10 ou 11% em vários momentos. Foi isso que fez com que o Brasil chegasse a ser a oitava economia do mundo capitalista. O trabalho dos “liberais” tem sido sempre o de destruir o que os nacional-desenvolvimentistas construíram. Não é à toa que a obsessão de Fernando Henrique,

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repetida compulsivamente no discurso e na prática, vem sendo a de destruir a “era Vargas”. Destruir a “era Vargas” significa, na verdade, destruir o Brasil. Coisa que, certamente, ele não conseguirá. A retomada do debate das idéias econômicas, presente neste livro, é apenas um dos indícios dessa verdade.

Nilson Araújo de Souza*

São Paulo, 15 de novembro de 1998

* Nilson Araújo de Souza é doutor pela Universidade Autônoma do México.

Professor titular da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Idealizador e fundador do mestrado em Economia Rural da Universidade Federal da Paraíba.

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CAPÍTULO I

EUGÊNIO GUDIN DISSEMINADOR DO LAISSEZ-FAIRE NO BRASIL

Cinthia Maria de Sena Abrahão

Introdução

Existe uma espécie de consenso entre os historiadores brasileiros ao considerar que a tradição da ideologia econômica no Brasil até a década de 30 foi liberal. Mas, uma série de adversidades, seja de ordem interna ou internacional, foram exercendo efeito perturbador sobre a velha ordem republicana brasileira e impondo alterações a essa realidade.

A partir da década de 20, já era possível visualizar um intenso movimento da elite intelectual brasileira em torno de idéias que proporcionariam bases para seu ingresso no âmbito do poder. Tal processo de conversão dos intelectuais brasileiros ao cenário da política tomou, a partir de 1915, um caráter global que se expressava de diversas formas. Dentre elas, estiveram o nacionalismo, a busca pela modernização cultural, o ressurgimento do movimento católico, e o impulso antiliberal.

Com veemência, o nacionalismo invadiu a vida cultural brasileira a partir de 1915. Sendo que o ano de 1922 foi considerado marco de várias mudanças que se propagaram na

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sociedade brasileira. Isto ocorreu, dentre outras coisas, por causa de acontecimentos como a irrupção do movimento modernista, a primeira revolta de tenentes e a própria fundação do Partido Comunista do Brasil. Todos estes fatos apresentavam, em maior ou menor grau, um teor nacionalista.

Entre os adeptos do nacionalismo reacionário, o movimento católico foi também capaz de exercer forte atração. A religião passaria a ser considerada, para esta camada da intelectualidade, o pilar da edificação da nação. Aliás, justamente nesta corrente de militantes seriam recrutados muitos dos que ingressaram no Movimento Integralista. (Pécault, 1990)

Na década de 30, eram basicamente três os perfis mais comuns entre os intelectuais brasileiros: o de advogados, formação de grande parte dos doutrinários da tendência autoritária; o de engenheiro, em geral caracterizado pelo positivismo e inclinado para uma visão técnica do poder, e , por fim, o de homem de cultura. (Pécault, 1990). Isto se relaciona com o fato de que, no início do século no Brasil republicano ainda não havia uma tradição universitária e sim escolas superiores de engenharia e faculdades especializadas, dentre elas, as de Direito.

Especialmente com relação ao perfil de engenheiro, era comum , em publicações do período, a referência aos mesmos como símbolos da apropriação técnico-científica do território brasileiro. Tal elemento remete-nos à relação entre a formação acadêmica dos engenheiros e a preocupação com o cientificismo.

A própria influência positivista no Brasil apresentou, no geral, uma especificidade marcante: não se tratava de uma relação estritamente fidedigna da doutrina de Auguste Comte. Desde 1880, a influência que se firmou no País foi propagada de forma mais livre e sua repercussão se deu em vários meios, inclusive na Escola Militar e nas escolas de engenharia. Acrescente-se a isto o fato de que, nas primeiras décadas do século XX, a influência do positivismo foi mesclada com a de

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Eugênio Gudin disseminador do laissez-faire no Brasil

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várias outras teorias em voga na Europa, especialmente as teorias oriundas da direita revolucionária européia. Muitas vezes, a adesão ao espírito positivista representou forma de legitimação da rejeição aos sistemas representativos e o horror ao parlamentarismo que marcou vários segmentos da vida política brasileira (Pécault, 1990).

É relevante frisar que a exaltação do nacional, que marcou o Brasil na década de 20, visava expressar o desejo de superação da condição de dependência e subsunção que havia marcado os homens livres no Império, e acabou proclamando os intelectuais como uma espécie de elite autônoma. Fato marcante dentre os adeptos do nacionalismo foi a eterna desconfiança quanto ao funcionamento do capitalismo e ao vigor do liberalismo político no Brasil. Na plataforma nacionalista dos teóricos do autoritarismo, por exemplo, contemplavam-se demandas específicas, como o protecionismo e a restrição à exploração de recursos estratégicos por parte dos capitais forâneos. Tanto o pensamento da elite industrial, como certas formulações do pensamento autoritário convergiram para a visão que contrapunha países industrializados e agrário-exportadores em relação ao desenvolvimento (Diniz, 1978).

Este quadro demonstra como os argumentos pró-liberais, em sua forma mais pura, acabaram assumindo, especialmente a partir de 1930, um caráter marginal e de oposição ao discurso hegemônico no cenário nacional do período. A crítica às instituições liberais foi o fator de união dos elementos envolvidos nas várias revoltas do período, inclusive na de 1930. As divergências, no entanto, acabaram promovendo cisões e reacomodações dos mesmos entre organizações conservadoras ou opositoras do regime. Ainda assim, aquela crítica acabou levando à constituição de bases minimamente sólidas para respaldar as ações corporativistas e o intervencionismo econômico que marcaria o Brasil pós-30.

Outro elemento explicativo das várias posturas e inter-relações que marcaram a elite e a intelectualidade brasileiras

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foi o fato de que, no pós-30, o regime passou a fazer do anticomunismo e da ameaça de conspirações comunistas um fator de união e um argumento consistente em prol do regime político autoritário. Na verdade, a propagada ameaça comunista conseguiu viabilizar o consentimento dos católicos e dos liberais (ressalte-se que foi em São Paulo onde ocorreu maior grau de adesão) para a alteração do regime e a constituição do Estado Novo. Eram numerosos os setores liberais que admitiam apoiar o endurecimento do regime a partir de 1935, o que prova que o liberalismo, seja o universitário ou não, sabia fazer suas concessões mediante os acontecimentos da época.

No que se refere à condução da vida econômica, o ambiente geral que permitiu a expansão dos argumentos antiliberais acabou por impor uma readequação do liberalismo econômico em sua referência nacional. Isto, aliás, poderia ser tomado também como reflexo do que ocorreu com o pensamento neoclássico em suas matrizes, em função da expansão da influência do keynesianismo.

Bielschowsky proclama o resultado deste conjunto de transformações vivenciadas pelo pensamento liberal, que viabilizaram sua resistência frente à nova realidade, como o surgimento do neoliberalismo econômico.

O prefixo neo tem um significado muito preciso: representa o fato de que os liberais brasileiros, em sua maioria, passavam a admitir, na nova realidade do pós-1930, a necessidade de alguma intervenção estatal saneadora de imperfeições de mercado que, segundo reconheciam, afetavam economias subdesenvolvidas como a brasileira (Bielschowsky, 1988:43).

Não foge à percepção de qualquer analista da história política e econômica brasileira, que caminhou no sentido do fortalecimento do papel do Estado e da ideologia do intervencionismo, especialmente entre as décadas de 1930 e 1960. A contrapartida deste processo aparentemente consistiu na marginalização do discurso liberal, que não admitia tal

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fortalecimento como normalidade e menos ainda como necessidade, salvo momentos de exceção, como o período de Guerras Mundiais, por exemplo, onde o livre funcionamento do mercado fica, por princípio, inviabilizado.

Cabe, aqui, explicitar justificativa para que se perceba a relevância e a efetiva influência do discurso liberal ao longo dessas décadas1

Na medida em que o Estado brasileiro foi adquirindo forma especificamente capitalista a partir da década de 1930, concomitantemente foi incorporando à sua estrutura física as questões cruciais referentes à definição dos rumos da sociedade brasileira. Tornou, assim, suas próprias estruturas um campo de confronto dos interesses que permeavam a própria sociedade civil. Obviamente, nada disso pode ocorrer com isenção de contradições e conflitos. Interessa aqui destacar quais teriam sido os grupos políticos que efetivamente atuaram de forma expressiva no período.

. Algumas questões preliminares tiveram que ser enfrentadas. Dentre elas, destacam-se: a capacidade de especificar as formas de influência de um grupo político; bem como, definir, dentre seus principais atores, quais seriam aqueles cuja atuação, nas várias instâncias decisórias da vida econômica do país, apresentaram a influência mais contundente (Diniz, 1978: 37).

Dadas as evidências quanto ao já citado crescimento da ideologia desenvolvimentista, sabe-se que este grupo, também em si mesmo muito heterogêneo, exerceu influência considerável nos rumos da vida brasileira. Mas, o que não aparece de forma tão evidenciada na literatura sobre o período é a influência do grupo liberal, que, efetivamente, representou, juntamente com os desenvolvimentistas e nacionalistas, uma das

1 Referimo-nos às três décadas, embora a análise esteja concentrada em um

recorte mais estrito que se estende entre o imediato pós-guerra até meados da década de 50, tendo em vista que neste subperíodo a influência liberal foi mais evidente.

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correntes de maior expressão do pensamento econômico brasileiro.

A mensuração desta expressividade não pode ser realizada através de avaliações imediatistas que liguem a capacidade de influir exclusivamente à correspondência entre demandas formuladas pelo grupo político e as medidas concretas aprovadas e implementadas pelo governo. Muitas vezes, ocorre mesmo o inverso, isto é, as alternativas propostas apenas se tornam efetivamente viabilizáveis no longo prazo (Diniz, 1978).

Nesse sentido, a estratégia para captar as formas variadas de participação política não envolve apenas a verificação do grau de influência direta exercida pelo grupo liberal no Brasil, ou melhor, sua atuação em nível das instituições e na determinação das opções de política econômica. Sobretudo, inclui-se a disputa pelos recursos de poder, cujo leque é ainda mais amplo, abarcando os esforços empreendidos no sentido de sensibilizar a elite dirigente para determinadas questões; o envolvimento e a promoção de campanhas tendo em vista difundir princípios gerais de apelo ideológico, cujo intuito maior envolve a formação da opinião pública. (Diniz, 1978)

A corrente liberal não apenas foi significativa na vida política brasileira como teve ilustres representantes, que, embora não tenham exercido especificamente o papel de teóricos, estiveram sempre presentes no debate sobre os rumos da ação governamental e os meios de se alcançar o desenvolvimento. De todos os economistas liberais brasileiros (ou, neoliberais na concepção de Bielschowsky), Eugênio Gudin (1886/1986), sem sombra de dúvidas, se destacou como líder intelectual e maior propagador do ideário dessa corrente.

No tocante a esta questão, é importante ressaltar um elemento bastante peculiar da história do País, que se refere à destacada atuação política dos economistas. Fato este que difere muito do padrão comum da maior parte dos países, onde normalmente assumem papel restrito à assessoria política ou à gestão burocrática da economia (Loureiro, 1997). Isto explica a

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proeminência de intelectuais como o professor Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto Simonsen e muitos outros.

Notas Biográficas de Eugênio Gudin e sua Introdução ao Estudo da Ciência Econômica

A história da vida intelectual e profissional do professor Eugênio Gudin se confunde com a história do pensamento liberal no Brasil, tanto em função de sua intensa e ativa participação na vida política brasileira, como pelo fato de que em seus 100 anos de vida, grande parte deles foram dedicados às reflexões acerca dos problemas brasileiros. Engenheiro2

Na profissão de engenheiro, teve seu nome relacionado à construção da grande barragem do Ceará em 1911, atuou como diretor da Pernambuco Tramways and Power e da Great Western Railway and Co. Em função da gestão de negócios de grande vulto, fez freqüentes viagens à França e a Inglaterra, recebendo, assim, forte influência da vida cultural européia, cujos desdobramentos seriam sentidos em sua vida pública posterior. Em sua longa trajetória, Gudin foi professor de economia, engenheiro, homem de empresa e ocupou vários cargos públicos. Cada uma dessas etapas influiu em sua visão de mundo, “visão esta deixada em todos os lugares pelos quais passou” (Borges, 1996).

por formação, Gudin passou a se dedicar ao estudo da Ciência Econômica, como autodidata, entre o final da década de 20 e início da década de 30.

No depoimento de Bulhões, a própria vivência de Gudin como empresário e o engenheiro havia conduzido à busca dos conhecimentos da ciência econômica, tendo em vista compreender melhor o funcionamento da lógica de mercado da vida moderna.

2 Eugênio Gudin se formou engenheiro aos 19 anos de idade, pela Escola

Politécnica do Rio de Janeiro, em 1905.

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A par do trabalho profissional, Gudin tentou lançar inovações empresariais. A de maior realce foi a da produção de laranjas destinadas à exportação. Conseguiu um trabalho esmerado, aceito no mercado internacional. Não contara, porém, com uma política de relativa valorização externa da moeda, em contraste com sua crescente desvalorização interna. Tal disparidade de valores diminuía a receita e aumentava o custo. E ironicamente o prejuízo crescia a par do acréscimo de produtividade (Bulhões, 1986:6).

Esse episódio, lembrado por Bulhões na ocasião em que lhe prestava a homenagem aos seus cem anos de vida, é bastante interessante e marca, de certa forma, o ponto de vista a partir do qual surgiu o interesse de Gudin pela Ciência Econômica.

Foi entre os anos de 1929 e 1933, em plena crise mundial, que Gudin voltou suas preocupações mais detidamente para a análise dos problemas econômicos. Tais preocupações constituíram o marco do ingresso do autor na Ciência Econômica. Esta última ainda incipiente no seio da intelectualidade brasileira. Dedicou-se a verificar as condições do ensino e da pesquisa em teoria econômica no Brasil. 1937, integrava a Sociedade Brasileira de Economia Política que projetava uma escola de economia no Rio de Janeiro. Em 1938, depois de criada a primeira escola privada de economia, a Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas, Gudin assumiu, por concurso, a cátedra da disciplina “Moeda e Crédito” (Loureiro, 1997). Foi também um dos fundadores do Núcleo de Economia da Fundação Getúlio Vargas e atuou como professor catedrático até o ano de 1954, quando se aposentou e passou a se dedicar mais exclusivamente ao jornalismo econômico (Chacel. In: Kafka, 1979).

O próprio Gudin relata sua experiência com a economia de forma interessante, na medida em que, simultaneamente, nos permite confirmar o seu grau de envolvimento com as grandes questões nacionais:

Eu fui entrando no plano da economia sem projeto, sem plano. O Dr. Getúlio teve muita responsabilidade nisso. Ele nunca formou

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uma comissão - e foram muitas - sem me nomear. Depois, a certa altura, uns amigos vieram buscar-me no escritório para fazer parte do corpo docente da faculdade que eles queriam fundar, a faculdade de economia. Eu não queria no princípio, mas acabei cedendo. (Gudin, 1979: 91. In: Loureiro, 1997: 35)

Esse depoimento do próprio economista contribui para tornar ainda mais nítidas as íntimas relações entre a constituição da Faculdade de Economia, cujo corpo docente foi recrutado entre os estudiosos autodidatas que tinham uma virtude inigualável, o seu envolvimento com as questões práticas da gestão da economia. Essa experiência foi originada na participação nos diversos organismos governamentais criados já no primeiro governo Vargas.

Um ponto central de suas proposições no período foi o cálculo preciso da Renda Nacional. Falando acerca deste assunto, iniciou sua carreira de jornalismo econômico em O jornal, na época, recém-adquirido pelo jornalista Assis Chateaubriand. Seus primeiros ensaios foram também desse período, dentre os quais aquele que seria pronunciado em 1936 na Liga de Defesa Nacional (Carneiro. In: Kafka, 1979). Em 1929, redigiu o “Notas Sobre Assuntos Orçamentários e Econômicos”; em 1931, “As Origens da Crise Mundial”; em 1936, “Capitalismo e Sua Evolução”; e em 1937, “Educação e Riqueza”.

O ano de 1936 foi uma espécie de marco do ingresso de Eugênio Gudin no âmbito da Ciência Econômica, bem como do amadurecimento de suas proposições. Por estarem ainda muito vivas as conseqüências da Crise de 1929, as preocupações que ocuparam seu raciocínio estiveram principalmente relacionadas à esta temática.

As bases teóricas do pensamento de Eugênio Gudin e a aplicabilidade ao campo da Ciência Econômica, sobre a qual exerceria importante atuação, no Brasil, até o final de sua vida, foram, evidentemente, influenciadas pelos paradigmas da Escola Austríaca (Escola Neoclássica) e por sua vivência prática enquanto profissional atuante em empresas de capital

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estrangeiro. Sem dúvida, se um traço marcou sua carreira de forma absolutamente coerente, este foi o de frisar os benefícios do ingresso do capital estrangeiro e da abertura da economia brasileira ao mesmo. O argumento nacionalista jamais freqüentou o rol de seus princípios teóricos ou práticos, mesmo nessa fase de ingresso no campo das teorizações em Economia.

Certa proximidade com os movimentos nacional-conservadores pode ser explicada pela veemência de suas intervenções anticomunistas. Ainda assim, Gudin permaneceu alheio às seduções do argumento nacionalista, que esteve muito em voga no Brasil a partir da década de 20, e especialmente a partir da década de 30. Adepto inconteste do Liberalismo Econômico, destacou-se no cenário nacional, mais especialmente a partir da década de 40, em função da árdua defesa destes princípios3

Não se diga, também, que o ceticismo de Gudin quanto às democracias latino-americanas era a manifestação de um reacionarismo ora latente, ora explícito....Sucede que em 1946 Gudin, já com 60 anos, havia vivido o bastante para perceber que, em matéria de tradição democrática, a América Latina nada tem a ver com os Estados Unidos, a Inglaterra e a Suíça (Simonsen, 1986: 20-24).

. Outro elemento capaz de elucidar a proximidade com o discurso conservador e suas instituições está num aspecto marcante que caracteriza a própria elite brasileira, a prática conciliatória. Tal prática expressa-se na coexistência e no compromisso entre as elites opostas e teses contraditórias, herança própria de uma sociedade estruturada, desde sua constituição, de forma altamente hierarquizada (Pécault, 1990). Simonsen chegou a alertar que em nível do pensamento político, Gudin se aproximava da União Democrática Nacional (UDN) de 1946, que apelava para o respaldo militar quando derrotada na disputa democrática:

3 Quanto a este aspecto há que se destacar que sempre foi árduo crítico do

intervencionismo estatal pró-industrializante, que marcaria a economia brasileira a partir do Estado Novo.

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A partir desse perfil, algumas foram as interpretações que se tornaram correntes sobre a linha de pensamento e atuação do economista Eugênio Gudin. Para Celso Furtado e Guido Mantega, tratava-se, simplesmente, de um representante da oligarquia agrária, opositor da indústria. Já para Dollinger e Bielschowsky, Gudin não era um aberto opositor da industrialização, mas era, sem sombra de dúvidas, contrário a uma política agressiva em sua direção (Reis, 1993).

Para Reis, os dois argumentos têm bases concretas nos argumentos de Gudin. Até 1950, foi preponderantemente contrário à industrialização, mas posteriormente modernizou seu discurso. A partir da década de 50, passou a se colocar de forma mais palatável em relação ao processo. Ainda assim, não abriria mão de um quesito fundamental, o de que a mesma fosse conduzida pelo mercado.

Em 1943, Gudin participou do I Congresso Brasileiro de Economia, realizado no Rio de Janeiro, sob a presidência de João Daudt. Foi então que nasceu o debate entre intervencionistas e liberais4

Foi também, no ano de 1943, editado o primeiro volume

, que muitos desdobramentos haveria de ter daí em diante. Numa visão ex post da polêmica que surgia naquele momento histórico, nasciam as duas correntes clássicas do pensamento econômico brasileiro. A extensão da influência de tais correntes não pode ser facilmente mensurada, dado que ainda hoje não se esgotaram completamente.

5

4 Este debate ficou conhecido e foi publicado como a “Controvérsia sobre o

Planejamento”.

de sua obra mais importante, Princípios de Economia Monetária. A difusão desse tratado nas escolas de economia do Brasil acabou se transformando em um termômetro do grau de influência do pensamento ortodoxo de Gudin na formação de várias gerações de economistas até a década de 60. A base teórica do seu Princípios transformou-se em pilar de uma nova tendência para a

5 Em 1952, a obra de Gudin foi desdobrada em dois volumes.

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formação acadêmica, tendo por referência os padrões que vigoravam na América do Norte.

Na Conferência de Bretton Woods, em 1944, Gudin, como membro da delegação brasileira, conheceu J. M. Keynes, a cuja Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda fez várias menções em sua obra. Por essa ocasião, foi também redator da proposta da delegação brasileira, na qual foram realizadas críticas à ordem internacional, que, em termos das relações de troca, vinha impondo perdas para os países primário-exportadores (Teixeira, 1986).

Foram muitas e relevantes as atuações de Gudin, em comissões ou conselhos criados pelo governo desde os anos 30. Em 1931, foi membro da Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos do Ministério da Fazenda; em 1935, participou da Comissão Mista de Reforma Econômica e Financeira; em 1944, integrou o Conselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF) do Ministério da Fazenda e, nesse mesmo ano, foi delegado brasileiro em Bretton Woods; entre 1954 e 1955, foi governador brasileiro junto ao FMI e do Bird e ministro da Fazenda do governo Café Filho (Loureiro, 1997).

Sua presença física nas instituições de ensino também reflete o peso de suas proposições sobre a formação de novas gerações de economistas no Brasil. Foi co-fundador da Sociedade Brasileira de Economia Política e catedrático da disciplina "Moeda e Crédito" da Faculdade Nacional de Ciências Econômicas, até 1957, da Universidade do Brasil (hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro); foi redator do projeto dos cursos de economia no Brasil entre 1944 e 1945. Fundador do Centro de Estudos Econômicos6

6 O Centro de Estudos Econômicos se transformou, na década de 50, em

Instituto Brasileiro de Economia (Ibre).

, da Fundação Getúlio Vargas; foi diretor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), entre 1951 e 1959, e vice-presidente da FGV, entre 1960 e 1976 (Loureiro, 1997).

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Até a década de 60, exerceu influência sobre o recrutamento de professores da Faculdade de Ciências Econômicas. Dentre eles, havia Octávio Bulhões, Antônio Dias Leite Jr., Roberto Campos, Jorge Kingston. "Consecutivamente, pode-se afirmar que seu papel na formação de várias gerações de economistas brasileiros, mais uma vez, pode ser atestado" (Abreu, 1984).

O Instituto Brasileiro de Economia, dirigido por Gudin ao longo de quase toda a década de 50, consolidou duas conceituadas publicações na área de economia, a revista Conjuntura Econômica e a Revista Brasileira de Economia que se transformaram em núcleos de influência dos neoliberais. Criado a partir da iniciativa de Gudin, o Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, tinha o objetivo de assumir o papel de uma instituição de pesquisa capaz de realizar análises e projeções que orientassem a elaboração da política econômica. A proposição maior do Ibre era a de atuar como formulador de metodologias. Como exemplo desse tipo de atuação, tem-se a montagem do esquema de Balanço de Pagamentos (Kafka, 1986:18-19) que depois de estruturado foi repassado a cargo da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc)7

Além disto, foi através do Ibre que promoveu vários debates, dentre os quais poderíamos citar o protagonizado por Jacob Viner e Gottfried Haberler , cujas influências teóricas são perceptíveis em toda sua obra e, sobretudo, em suas posturas práticas quanto à divisão internacional do trabalho (Simonsen, 1986). Dessa forma, pode-se ressaltar que, através do Ibre e do próprio Eugênio Gudin, alguns teóricos liberais do primeiro mundo tiveram, um canal para exercer influência desta linha de pensamento no Brasil.

.

As publicações realizadas pelo Ibre ficavam submissas, em última instância, ao crivo de Gudin. Apesar disso, jamais deixou 7 A Superintendência da Moeda e do Crédito - Sumoc, havia sido criada em

1945 ao apagar das luzes do Estado Novo, com a função de fiscalizar o sistema bancário nacional. Na verdade, representava uma espécie de embrião do Banco Central, inexistente até 1964 na economia brasileira.

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de estimular a produção teórica, levada com seriedade, no Brasil. O próprio Furtado reconhecia que Gudin:

estimulava a gente jovem a escrever e deixava transparecer seu desencanto com a pobreza da produção dos economistas brasileiros. Seu fino ceticismo se prolongava em pessimismo quando se tratava de observar a realidade econômica brasileira, como se tivesse dúvidas sobre a firmeza de caráter da gente desse país. O Brasil não era apenas um país condenado a viver da agricultura era também um país de solos pobres (...) Mas não era doutrinário: sempre estava disposto a corrigir-se em face de uma argumentação bem fundamentada em dados (1985:66).

Na verdade, a classificação de Gudin como maior representante da corrente neoliberal no Brasil advém do fato de ter se posicionado, enquanto viveu, sobre todas as grandes questões da economia brasileira. Contudo, sua atuação ao longo da década de 50 foi especial, na medida em que o período consistiu no ápice da influência da corrente intervencionista8

Em toda a sua carreira de economista envolvido nas grandes questões nacionais ocupou um ministério público apenas uma vez, quando da gestão do vice-presidente Café Filho no governo que complementou o mandato de Getúlio Vargas. Assumiu o Ministério do Fazenda em agosto de 1954, logo após a posse do vice-presidente. A situação era de uma aprofundada crise cambial, que marcou o último ano da gestão getulista.

, o que exigiu de Gudin uma veemência ainda maior nos seus argumentos.

Dentre vários aspectos, é importante relembrar que em sua atuação no Ministério da Fazenda se utilizou da elevação do ágio

8 Os efeitos da crise de 29 foram mais avassaladores para alguns países

exportadores em relação a outros, como foram os casos do Chile e do Brasil, onde não por acaso proliferaram com mais desenvoltura as teses que propugnavam as desvantagens comparativas da especialização na agro-exportação. Daí a base para a crescente influência das correntes defensoras do planejamento, do protecionismo à indústria nacional, dentre as medidas que viabilizaram o salto de etapas rumo à industrialização acelerada.

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do combustível como instrumento para o combate à inflação. Dessa forma, suprimiu o subsídio ao combustível que havia vigorado até então. Esta medida foi geradora de intensa polêmica no período, mas suas conseqüências favoráveis quanto à redução da dependência do subsídio acabaram se fazendo sentir muito depois da década de 50.

Seu envolvimento na conturbada discussão acerca da exploração do petróleo no Brasil vinha de experiências pretéritas. Ainda na década de 40, foi membro da comissão que elaborou o estatuto do petróleo, no Brasil, a convite do presidente Dutra. Por essa ocasião, Gudin foi terminantemente contrário à imposição de restrições ao capital privado, nacional ou estrangeiro. Depois da criação da Petrobrás (em 1954), sob a égide do monopólio estatal, transformou-se em principal crítico de sua atuação.

Ao longo do período que marcou o processo de industrialização brasileiro, notadamente entre 1930 e 1960, o intervalo dos seus últimos quinze anos representou um momento em que o discurso neoliberal teve muita ressonância, apesar da hegemonia aparentemente absoluta do discurso nacional-industrializante. Haja vista a tendência mais liberalizante do Governo Dutra e o conservadorismo do Governo Café Filho. E mais que isto, o pensamento liberal articulou-se com o poder de múltiplas formas, na medida em que seu grupo consolidou posições através da formação das escolas de economia, dos institutos de pesquisa, da significativa participação jornalística no período.

O peso político dos representantes da corrente liberal não é mensurável meramente pela participação direta nas instâncias governamentais, mas, sobretudo, em função da capacidade de legitimar seus princípios e influenciar a formação da opinião das elites. Entre 1930 e 1960, Gudin chegou a publicar sete livros e trinta e nove artigos nas principais revistas editadas no País (Loureiro, 1997). Além de sua participação contínua em importantes jornais cariocas, como o Correio da Manhã e O Globo.

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A controvérsia Gudin e Simonsen: duas correntes do pensamento econômico bnrasileiro.

O conhecido embate entre dois economistas que se tornaram referência no pensamento econômico brasileiro, Roberto Cochrane Simonsen e Eugênio Gudin, foi desencadeado quando, no ano de 1945, Gudin foi incumbido pelo presidente da Comissão de Planejamento Econômico (CPE) de elaborar o parecer acerca do Plano de Organização da Economia Brasileira apresentado no Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) por Simonsen (Carneiro. In: Kafka, 1979). A partir daí, surgiram duas correntes que se entrecruzaram, sem que uma se curvasse completamente à outra. A polêmica entre elas consistiu em processo que acompanhou a industrialização brasileira. De um lado, a posição de Gudin veio estruturar e refletir aquilo que se poderia reconhecer, com crescente nitidez a partir de então, como a corrente liberal no Brasil. Por outro lado, as proposições de Simonsen constituíram a ponta de lança da corrente desenvolvimentista.

A bem da verdade, o debate que se iniciara em pleno contexto da II Guerra Mundial, em nível do Brasil, não estava, de forma alguma, descolado daquele que tomava espaço crescente internacionalmente. Houve, portanto, uma efetiva interseção entre as questões que se colocavam nos âmbitos internacional e interno a respeito dos caminhos, das alternativas para se alcançar o desenvolvimento econômico. Isto é, via-se, no Brasil, um reflexo das preocupações acerca da teoria e da prática econômica mundial (dirigismo versus liberalismo econômico; protecionismo versus livre-cambismo).

A grande crise de 1929 havia sido, antes de qualquer outra coisa, o fator determinante da situação de desequilíbrio da hegemonia, até então inabalável, da teoria econômica ortodoxo-liberal. A partir de então, a disputa entre liberalismo e intervencionismo adquiriu novos contornos. Nos países subdesenvolvidos, e em especial em alguns países da América Latina, este processo foi mais contundente. Isto porque nestes, a

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heterodoxia econômica assumiu dimensões ampliadas em relação aos países desenvolvidos. Em vários casos, extrapolou o reconhecimento das imperfeições do mercado quanto à alocação mais eficaz dos recursos, chegando a justificar a necessidade de o Estado assumir funções do capital privado, tendo em vista corrigir as deficiências e viabilizar o desenvolvimento econômico em contextos muito adversos.

A famosa polêmica Simonsen versus Gudin se pautava em duas questões em especial, o protecionismo reivindicado pelo setor industrial através da proposta do primeiro e o planejamento econômico visto pelo mesmo como forma de redimir parcialmente as fragilidades intrínsecas à economia brasileira. Gudin foi veemente na argumentação opositora às duas questões.

No que se refere às propostas de planejamento, reunia os argumentos propiciados pelo ideário liberal. Aí se colocava seu duplo desafio: a) divulgar a superioridade dos mecanismos de mercado; b) revelar a identidade entre planejamento e socialismo.

De fato, de toda a sua atuação nas questões polêmicas do período, aquela que mais se destacou foi a que circundou o polêmico relatório sobre o parecer de Roberto Simonsen acerca da necessidade de planificação da economia brasileira. Na concepção de Simonsen, o vital problema brasileiro era a necessidade de quadruplicação da Renda Nacional no menor prazo possível. Para tanto, colocava em questão a eficiência dos mecanismos do liberalismo de mercado:

Preliminarmente, para resolvê-lo temos que decidir se poderíamos atingir essa finalidade pelos meios clássicos de apressar a evolução econômica, estimulando pelos processos normais as iniciativas privadas, as várias fontes produtoras e o mercado interno, ou se deveríamos lançar mão de novos métodos, utilizando-nos, em gigantesco esforço, de uma verdadeira mobilização nacional, numa guerra ao pauperismo, para elevar rapidamente nosso padrão de vida" (Simonsen. In: Gudin, 1978:62).

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Gudin fez duras críticas às concepções defendidas por Simonsen, na qualidade de relator de sua proposta ao CNPIC. Defendia, por exemplo, que o Estado deve se relacionar com os aspectos monetários, os da tributação, dos sistemas de comunicação, dos serviços de utilidade pública, dentre outros neste mesmo nível. Alicerçando o argumento com a idéia de que o estupendo progresso material do capitalismo era resultante do vigor dos princípios liberais nos séculos XIX e XX (Gudin, 1978).

Como já foi salientado, Gudin não visualizava as economias externas que poderiam ser proporcionadas pela instalação de um parque industrial completo, tal como propalavam os defensores (de várias linhas, privatistas ou estatistas) do industrialismo. Ademais, seu parecer acerca da proposta de Simonsen não se restringiu às críticas de cunho teórico, mas demonstrou a precariedade dos dados estatísticos sobre os quais se pautavam as reivindicações e sugestões:

No cálculo do Ministério do Trabalho, o valor tomado para a produção é o valor nas fábricas, nas fazendas e nas minas. Não inclui os fretes, os juros, os lucros e salários dos intermediários, os impostos, as armazenagens e todas as despesas de varejo. O único imposto que o Ministério adiciona é o imposto de consumo, que é justamente o único que não deveria adicionar, pois que, sendo pago pelo fabricante, seu valor já está compreendido no valor da produção na fábrica . Tampouco tem qualquer significação os gráficos apensos ao trabalho do Ministério, demonstrativos da progressão da renda nacional no período de 1919 a 1942 (se a tivessem, contraditariam a proposição do Conselheiro Simonsen de que nossa renda nacional está estacionaria), pois nem sequer neles se introduziu qualquer coeficiente corretivo dos índices de preços, isso em um período de violenta alta desses preços (Gudin, 1978: 60).

Nesse sentido, Gudin comprovava a consistência científica da sua crítica em relação à proposição de Simonsen, tirando o debate do âmbito das posições meramente ideológicas. A superioridade técnica de seu discurso mostrou-se notória em sua polêmica com Roberto Simonsen.

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O embate com a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), pode ser tomado como uma continuação da polêmica, que, em 1945, havia sido travada com Simonsen e o grupo de industriais brasileiros que requisitavam maior intervenção do Estado. Tanto a atuação da Cepal, como suas reflexões teóricas acerca das especificidades das economias latino-americanas, sobretudo ao longo da década de 50, foram pilares do pensamento heterodoxo que influenciou a atuação de vários governos daqueles países. A base de argumentação do pensamento cepalino se voltava contra a capacidade explicativa dos quadros teóricos baseados no “equilíbrio estático” da ortodoxialiberal, e para tanto, se baseava em modelos como os desenvolvidos por Prebisch9

os dois argumentos mais importantes da teoria do desenvolvimento contrários à idéia da capacidade das teorias de equilíbrio estáticas de enfrentar os problemas de investimento são os de “economias externas” e de “indivisibilidade do capital”, que foram introduzidos nas discussões sobre subdesenvolvimento principalmente através da doutrina de crescimento equilibrado de Rosenstein-Rodan e Nurkse (Bielschowsky, 1988: 15).

. Segundo Bielschowsky,

No que diz respeito aos efeitos negativos da divisão internacional do trabalho em relação às economias subdesenvolvidas, organizadas sob o modelo agrário-exportador, quatro linhas de argumentos foram comuns tanto na literatura latino-americana, como na brasileira. A primeira delas constitui

9 Raul Prebisch, economista argentino, um dos responsáveis pelo projeto de

criação do Banco Central da Argentina, do qual foi diretor geral entre 1935 (ano de sua fundação) e 1943. Dirigiu a Cepal desde sua fundação em 1948 até o ano de 1962, onde participou do esforço de elaboração de um corpo teórico, empreendido em conjunto com vários outros economistas latino-americanos, que se adequasse à realidade regional do continente latino-americano.

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provavelmente a que mais destaque encontrou ao longo das trajetórias de industrialização na América Latina, o da deterioração dos termos de troca, fundamentado na tese de Prebisch-Singer.

Na visão desses dois autores, o avanço das forças produtivas ocorria muito mais rapidamente nas economias desenvolvidas. Isto refletia a própria limitação de desenvolvimento técnico do setor agrícola, no qual as economias subdesenvolvidas eram especializadas. Este quadro era agravado em função de não ocorrer a distribuição homogênea dos efeitos daquele progresso, dado que as estruturas oligopolistas das economias desenvolvidas impediam que houvesse a queda de preços industriais na mesma proporção da elevação da produtividade.

Neste sentido, ligando à dinâmica do ciclo, Prebisch argumentava que os preços dos bens primários se elevavam mais que os industriais nos períodos de ascensão cíclica. Por outro lado, sofriam queda mais violenta no momento do descenso cíclico, em função das perdas salariais nas economias industrializadas acabarem repassando às economias subdesenvolvidas o maior peso do ajuste nos períodos depressivos.

Gudin (1952) identificava a agitação em torno da superação do subdesenvolvimento com o contexto do imediato pós-guerra, especialmente com os primeiros seis anos após o encerramento do grande conflito. Para ele, consistiam em quatro os motivos para tais anseios: 1) a divisão do mundo em dois blocos irreconciliáveis; 2) a mudança definitiva da hegemonia econômica para uma nação, em muitos casos, concorrente dos países agrário-exportadores, os EUA; 3) a difusão estupenda dos meios de comunicação, que havia impulsionado o aumento do anseio por melhoria do padrão de vida das diversas populações; 4) a criação de organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) e a (Unesco).

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No entanto, uma das questões fundamentais para o desenvolvimento, o aspecto tecnológico, dependia da capacitação de áreas relacionadas aos vários campos da engenharia. Além disso, Gudin lançava mão do argumento determinista das desvantagens naturais de algumas economias, referindo-se, sobretudo, às condições de ordem climática. Em síntese, a solução do problema do subdesenvolvimento se prendia a dois âmbitos, um relativo à técnica e outro relativo à natureza propriamente dita. Ambos eram independentes das medidas econômicas, portanto, muito pouco podiam oferecer os economistas no sentido de solucioná-las:

O primeiro é que o aspecto tecnológico do problema não se enquadra, senão em parte, no setor dos economistas e sim nos dos técnicos, engenheiros industriais, civis, mecânicos, eletricistas, agrônomos, de minas, físicos e químicos(...)A colaboração dos economistas só pode ser aí de natureza auxiliar e acessória (Gudin, 1952:49).

Não bastasse esse limitador do desenvolvimento, havia-se que considerar mais dois elementos: a extensão do país e a densidade demográfica. Considerava que a dificuldade para atingir metas de desenvolvimento era tanto mais difícil de ser atingida quanto maior fosse a extensão geográfica do país, em função de limitações à própria ação administrativa. Quanto ao problema demográfico, encontravam-se em situação crítica, tanto os países superpovoados, como aqueles que possuíssem taxa elevada de incremento populacional, como no caso do Brasil,

Os acréscimos de população absorvem toda a provisão de capital no investimento extensivo, nada sobrando para o intensivo, isto é, para o aumento de produtividade per capita (Gudin, 1952: 51).

Na medida em que o nível de produtividade constitui o indicador mais importante do desenvolvimento de uma economia qualquer, todos os elementos que obstruam de

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alguma forma sua progressão são por natureza obstrutores do próprio desenvolvimento.

Já o segundo efeito negativo, ressaltado pelos autores cepalinos e que teve forte rebatimento no Brasil, se referia ao crescimento do desemprego como resultante do ritmo lento da elevação da demanda por bens primários, além de constituir mais um elemento que atuava no sentido de alimentar a deterioração dos termos de troca. O modelo de Prebisch-Singer tem no excedente crônico de mão-de-obra uma hipótese fundamental e indispensável para fundamentar esse segundo efeito. A partir desta hipótese, torna-se inconteste a possibilidade de impulsionar um outro setor de atividade, o industrial. Isto é, atesta-se a disponibilidade de fatores de produção.

Para Gudin, o único fator de produção que se poderia considerar abundante no caso da economia brasileira era a mão-de-obra. Mas, a baixa qualificação da mesma não gerava alívio para o quadro de escassez de fatores10

O terceiro efeito versa sobre o desequilíbrio crônico do Balanço de Pagamentos, que, sob esta concepção, independeria da conjuntura inflacionária, e, portanto, não seria conseqüência dela. Isto se deve, especialmente, ao diferencial de elasticidade de renda entre os bens primários, que é baixa, enquanto a dos bens industrializados é relativamente elevada. Portanto, “A

. Assim, a condição do pleno emprego não estaria descaracterizada, podendo-se concluir que apenas a elevação da produtividade dos fatores empregados seria capaz de apresentar resultados do ponto de vista do desenvolvimento. Contudo, o aumento do nível de produtividade da economia constituir-se-ia em um resultado alcançável apenas no longo prazo.

10 Remete-se constantemente ao fato de que a evolução tecnológica, a

mecanização da produção seria responsável por tornar esta mão-de-obra dispensável. Isto acaba sendo contraditório com o argumento no quala mão-de-obra barata constituiria a vantagem comparativa de economias como a brasileira.

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correção desse desequilíbrio não se dava espontaneamente, a menos que o país aceitasse submeter-se a longos períodos de recessão” (Furtado, 1985: 96).

Avaliando a proposição relativa à deterioração dos termos de troca, Gudin se propôs checar a sustentabilidade dos dados estatísticos sobre os quais se basearam as análises de Prebisch. Tais estatísticas constam dos levantamentos realizados pelas Nações Unidas, com referência ao período entre 1876 e 1947. Para confrontá-las, tomou como referência um outro trabalho, do professor R. Baldwin, publicado simultaneamente ao de Prebisch e Singer, que utilizava a base de dados da Liga das Nações (Gudin, 1952).

Quanto aos dados trabalhados por Prebisch, segundo Gudin, no período situado entre 1876 e 1947, antes indicaram um primeiro problema, por incluírem o período entre guerra. Contudo, o correto, seguindo a lógica de Baldwin, seria limitá-lo até o ano de 1914, dado que entre esta data e o final da Segunda Guerra se torna basicamente impossível distinguir até que ponto foram os fatores econômicos efetivamente responsáveis pelas alterações nos termos de troca.

Com base em um outro trabalho, de Rostov sobre o caso da Grã-Bretanha, Gudin arrematava seu contra-argumento resgatando a idéia de que os dados estatísticos não podem estar isolados da “história dos fatos econômicos a eles referentes” (Gudin, 1952: 56).

Prebisch chamava a atenção para o fato de que os ganhos de produtividade dos países industrializados não haviam sido plenamente repassados para os preços. Caso isso tivesse ocorrido, o ganho seria apropriado pelos produtos primários, cujo ganho de produtividade havia sido muito menor, para o mesmo período. Na concepção gudiniana não cabiam tais correlações conflitivas na descrição do funcionamento do sistema internacional. Em discurso realizado ao congresso brasileiro de economia do ano de 1943, suas conclusões jamais caíam na sugestão da industrialização como solução para as

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perdas relativas dos países especializados na exportação de bens primários, mesmo reconhecendo suas enormes perdas. Por essa ocasião, Gudin considerava ser fundamental a criação de organismo reguladores internacionais que impedissem a excessiva e persistente oscilação da oferta desses bens, cuja demanda é muito pouco elástica:

A forte queda dos preços dos produtos importados por essas nações industriais, relativamente aos preços de seus produtos de exportação, conferiu-lhes uma vantajosa melhoria em suas “relações de troca”. Mas essa aparente vantagem, observa Robertson11

Em princípio, o ganho nas transações internacionais estimularia as exportações primárias. Mas os efeitos inflacionários internos acabariam anulando os ganhos do Balanço de Pagamentos, na medida em que as importações seriam estimuladas e as exportações desestimuladas.

, afetando o poder de compra dos países fornecedores de produtos de alimentação e matérias-primas , acarretou uma redução de suas importações e portanto uma depressão nas indústrias de exportação dos países industriais (Gudin, 1943).

"Por fim, o último argumento cepalino referia-se ao grau de vulnerabilidade das economias subdesenvolvidas frente aos choques externos, em função da especialização agrário-exportadora" (Bielschowsky, 1988:20-24).

Para Gudin, a “inferioridade congênita” dos países primário-exportadores não estava na especialidade primária, mas no reduzido número de produtos exportados. Por um lado, a elasticidade da oferta restringia o aproveitamento dos ganhos nas relações de troca internacionais. Pelo lado da demanda, os limites da expansão das exportações eram fruto do vigor da lei de Engel.

Além disso, os países primário-exportadores padecem em função de fortes oscilações cíclicas dos preços dos seus 11 Referência ao economista inglês e autor da obra “Economic Essays and

Adresses”.

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produtos. Por isso, são muitas vezes mais vulneráveis que os produtores industriais. Daí que fosse longínqua sua luta pela aceitação de uma política internacional de formação de buffer stocks, de estoques reguladores (Gudin, 1952).

Contudo, tais limitações não justificariam, na visão de Gudin, voltar as energias nacionais para a promoção da industrialização a qualquer custo. Considerava que apenas em alguns casos era justificável o esforço industrializante:

Há um caso em que a política da industrialização se justifica integralmente; é o caso dos países superpovoados, em que se verifica, positivamente, a existência do desemprego disfarçado, como na Índia e no Egito. Nesse caso o valor da mão-de-obra pode quase ser desprezado no cálculo da vantagem comparativa. Exagerando, dir-se-ia que a mão-de-obra é de graça (Gudin, 1952:65).

Dessa forma, pensava haver um grupo de economias para as quais se podia considerar aconselhável adotar a estratégia da industrialização e um segundo grupo para o qual esta estratégia seria completamente incorreta. No segundo, estariam inclusos aqueles muito bem dotados de vantagens competitivas agrícolas, no qual não se justificaria a dispersão dos recursos. O Brasil não se enquadrava em nenhum dos dois casos extremos, estaria num estágio intermediário, onde o aumento da produtividade do setor agrícola deveria consistir o primeiro passo, uma espécie de pré-condição para a industrialização.

Existe ainda um quinto argumento, que foi muito freqüente nos textos de Prebisch, da Cepal e mesmo de Celso Furtado, referente à incompatibilidade entre as modernas tecnologias e a disponibilidade de recursos das economias subdesenvolvidas. As novas tecnologias eram intensivas em capital, economizando fundamentalmente o fator trabalho, escasso nas economias avançadas. Enquanto ocorria situação inversa nas economias primário-exportadoras, que padeciam da escassez de capital, e contavam com um excedente crônico de mão-de-obra. Assim, a

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mera transposição tecnológica tendia a agravar o problema do desemprego e penalizar ainda mais os salários nas economias subdesenvolvidas.

Bielschowsky (1988) frisa a existência de dois argumentos adicionais, que, embora não fossem encontrados no arsenal cepalino, foram freqüentes no pensamento econômico brasileiro. O primeiro deles refere-se ao fato de que a industrialização, ao contrário do processo de modernização da agricultura tropical e subtropical, permite a transposição de tecnologias modernas. Com isso, reforçava-se a tese da industrialização como meio para alcançar o desenvolvimento econômico. Concretamente, este último abafou a ressonância do anterior.

Para Gudin, esta conclusão tinha origem em uma interpretação equivocada da realidade, com base em uma opção apenas aparentemente mais fácil de ser realizada.

Volta-se então o interesse econômico dos empreendedores para a indústria onde a técnica é importável e onde a proteção aduaneira (mais os ágios) assegura preços que permitem pagar duas vezes mais do que ao trabalhador da lavoura! E é sobre essa base que os nossos economistas diletantes concluem que a Agricultura é sinônimo de pobreza e Indústria sinônimo de riqueza e que toda a transferência de trabalhador da primeira para a segunda representa um incremento para a Renda Nacional! Valha-nos Nossa Senhora! (Gudin,1959:228-229)

Portanto, a inferioridade da agricultura estaria relacionada à ausência de desenvolvimento tecnológico da mesma, que deveria partir de um esforço interno, dado que não se poderia resolver a questão com importação de tecnologia. Por outro lado, a superioridade industrial estava relacionada não apenas à condição de importação dessa tecnologia, como também ao protecionismo12

12 Diga-se de passagem, um protecionismo considerado por Gudin excessivo e

que acabava conferindo poderes abusivos às empresas que dele usufruíam.

do qual usufruíam várias empresas.

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Gudin selou sua crítica aqui resgatando o argumento cepalino da necessidade de adaptar as metas de desenvolvimento à disponibilidade de recursos da economia. Isto é, pautando-se no fato de que, sendo intensiva em capital, fator escasso à economia brasileira, a vantagem da indústria acabaria se revertendo em má administração dos recursos. Portanto, procurando invalidar o argumento que muito se difundiu no Brasil: "não haveria melhor programa do que o da Produtividade Agrícola que tem sobre a Produtividade Industrial a vantagem de exigir muito menos capital, que é o nosso fator de produção escasso” (Gudin, 1959:230).

Também se pode alinhar ao rol de argumentos favoráveis à industrialização a relação freqüentemente firmada entre pressões de demanda e crescimento econômico em economias subdesenvolvidas, concedendo-se às pressões de demanda o papel de propulsionadoras do crescimento. Derivado deste processo, a intervenção estatal aparece como condição necessária. Isto leva ao rompimento com o modelo “clássico” ou “schumpteriano” em que o empresário capitalista, o agente privado é, por excelência, o sujeito econômico das transformações.

Na verdade, a teoria cepalina caracterizou o subdesenvolvimento como condição de uma periferia do sistema econômico capitalista. A inserção das economias latino-americanas após a fase colonial, enquanto fornecedoras de matérias-primas e alimentos, determinou que a dinâmica adviria do setor externo. Essa condição de subordinação, esse papel preponderante do setor externo sobre o funcionamento das economias latino-americanas é que justifica a denominação de periferia do capitalismo internacional.

A forma como se estruturou a divisão internacional do trabalho, em que coube às economias periféricas o papel de provedoras de bens primários a baixos preços, fez com que o progresso técnico ficasse restrito ao setor exportador das mesmas. Por outro lado, as economias centrais tiveram

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oportunidade de homogeneizar o progresso técnico entre os diversos setores da economia, garantindo um equilíbrio acentuado no processo de desenvolvimento socioeconômico (Bielschowsky,1988).

Acrescente-se a esse quadro o fato de que não ocorreu a transferência de ganhos oriundos da superioridade técnica do centro. Antes disso, a realidade teria correspondido ao inverso disso, na medida em que se processava a deterioração dos termos de troca, a cuja fundamentação teórica já nos referimos anteriormente.

Os sucessivos choques externos a que as economias periféricas foram submetidas terminaram por dar o primeiro passo no sentido da reversão desta condição de crescimento determinado a partir do setor externo. Impôs, assim, que houvesse um mínimo de industrialização visando reduzir a vulnerabilidade externa. Bielschowsky lembra que para os teóricos da Cepal este "novo padrão de desenvolvimento “para dentro”, teria um significado histórico especial, não apenas para a periferia, mas para todo o mundo: tratar-se-ia de uma nova era na difusão do progresso técnico” (Bielschowsky, 1988:20).

O processo de industrialização que se desencadeou a partir de então na periferia era sobremaneira distanciado do modelo clássico. O que, em parte, pode ser explicado por um nítido descompasso entre o desenvolvimento dos padrões de demanda, definidos de acordo com os parâmetros de uma indústria situada no setor externo, e a capacidade produtiva nacional. A alternativa de abastecer a demanda via importações dos produtos da moderna indústria explica por que o padrão de consumo de um segmento da sociedade brasileira se situava em nível mais avançado que a capacidade de produção da indústria nacional.

Na década de 50, fortaleceram os argumentos em prol do planejamento econômico e das políticas protecionistas de forma a viabilizar a internalização da produção desses bens até então obtidos através das importações. Mas havia, àquela altura, uma

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profunda dicotomia na posição das elites brasileiras. Desde 1948, com a chegada da Missão Abbink vinda dos EUA, havia endurecido a posição daqueles que, segundo Furtado (1985:103), “pretendiam curar o país dos excessos de uma industrialização de altos custos”.

Dessa forma, as idéias da Cepal serviriam como uma espécie de esteio para aqueles que se colocavam na defesa da industrialização. O estruturalismo cepalino colocava a industrialização não só como opção, mas como única saída para alcançar o desenvolvimento.

A ressonância das idéias cepalinas se fazia sentir com maior veemência em São Paulo, mas, no Rio de Janeiro, a hegemonia da ortodoxia sob a liderança de Gudin continuava inquestionável (Furtado, 1985). Na verdade, a década de 50 foi muito fértil na proliferação dos debates acerca dos rumos futuros da economia brasileira.

Liderando a corrente que realizava a crítica a esse esforço em prol da opção industrializante estava o professor Eugênio Gudin. Em 1949, depois de publicado, no Brasil, o primeiro ensaio de Prebisch, "Estudo Económico", na Revista Brasileira de Economia, foi desencadeada uma intensa luta, no plano das idéias sob a batuta daquele economista.

Tendo em vista o enfrentamento desse novo ideário, que emergia da difusão das teses cepalinas, Gudin mobilizou “as baterias pesadas das sumidades internacionais.” Foi realizada uma série de conferências com ilustres professores de renome internacional, dentre os quais o professor Jacob Viner, da Universidade de Princeton. Com as exposições, que iniciaram em junho de 1950, expunham-se e reafirmavam-se as premissas fundamentais do pensamento ortodoxo.

A Revista Brasileira de Economia acabou se consolidando como o maior palco dessas discussões entre ortodoxos e heterodoxos. Em 1952, Furtado publicou nessa revista um artigo teórico comentando as conferências de Nurkse e recebeu uma

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bateria de respostas, dentre elas uma análise do professor Robert Baldwin versando sobre o comportamento secular das trocas. Em sua resposta, Baldwin reduzia a significação dos dados utilizados por Prebisch e Singer. Também merece destaque a publicação do artigo "A Inflação em Relação ao Desenvolvimento Econômico" por Edward Berstein, um dos formuladores da versão monetarista do FMI. (Furtado, 1985)

Para Furtado (1985), essa bateria de respostas teria sido coroada com o artigo de Gudin, "O Caso das Nações Subdesenvolvidas". Neste, Gudin chamava a atenção para o fato de que não competia aos economistas o envolvimento nos aspectos tecnológicos, mesmo porque o progresso econômico não estaria diretamente subordinado às medidas econômicas.

Gudin advertia aos economistas da Cepal que estavam se desviando daquelas que deveriam ser suas legítimas preocupações: a inflação, o nacionalismo e a excessiva proteção ao produtor ineficiente. Sugeria que a atuação da CEPAL deveria se pautar pelo intuito de contribuir para que os governos latino-americanos tivessem instrumentos suficientes para administrar com maior racionalidade os recursos disponíveis.

Um novo round dessa luta foi desencadeado em função da realização da Conferência da Cepal, em maio de 1953, cuja temática era a técnica da planificação. O ciclo de combate ao tema foi intenso. Entre 29 de maio e 05 de junho, Gudin chegou a publicar uma série de cinco artigos sob o título de "A Mística do Planejamento". Era irredutível em sua afronta à idéia do planejamento econômico: “Gudin simplesmente não acreditava em desenvolvimento que fosse fruto da ação deliberada do Estado”(Furtado, 1985).

O Escopo do pensamento econômico de Eugênio Gudin

Embora se tenha convertido ao estudo da economia por esforço autodidático, Gudin foi responsável pelo primeiro trabalho sério de ensino e de legitimação da teoria econômica

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no Brasil. Provavelmente pela influência do momento histórico em que se engendrou nessa empresa e pela capacidade de reconhecer as especificidades das economias agrário-exportadoras, dedicou-se à reinterpretação dos princípios clássicos da economia.

Desde os primórdios de sua longa carreira de publicista, especialmente aquela de caráter jornalístico, já se apresentava sua preocupação com a inflação e, derivado disto, com o processo de estabilização através de uma política monetária austera (Borges, 1996). Na medida em que sua análise se baseava no diagnóstico de excesso de demanda, a inflação era tida como fenômeno típico de uma situação de pleno emprego.

Concebia a moeda como um fator exógeno no sistema econômico e a inflação como um ambiente em que havia proliferado excessivamente esse fator. Sendo exógena, a moeda em si não seria capaz de fazer expandir a base produtiva. O que ela faz é criar um efeito ilusório da existência de capacidade de compra superior ao que efetivamente ocorre. A confirmação de que este é o procedimento verídico está na ampliação dos preços dos bens e serviços disponíveis. O processo esbarra numa condição concreta, onde o ilusionismo que o excesso de moeda produz não é capaz de driblá-lo, mas impede que os agentes envolvidos percebam claramente. Dado que os fatores de produção são limitados, também o crescimento de uma economia é limitado, condição inexorável. Por conseguinte, não haveria como explicar a flexibilidade dos meios de pagamentos, que simplesmente representam os instrumentos viabilizadores da troca: “Inflação é um estado de coisas em que se criaram direitos de haver em quantidade maior do que a das mercadorias e serviços que podem ser havidos aos preços vigentes” (Grifos do autor. Gudin, 1959:14).

A escassez de fatores de produção era-lhe um princípio muito valioso, sobre o qual teria que se pautar qualquer avaliação econômica. Mesmo, quando houvesse o excesso de mão-de-obra não era condição suficiente para arrefecer o quadro,

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isto porque a ausência de qualificação lhe destituía o valor. Aliás, a hipótese central do argumento de Gudin sobre a economia brasileira se baseava na existência do pleno emprego dos recursos. Foi enfático em repetir que a economia brasileira sofria de baixa produtividade e de hiperemprego (sic). Para Bielschowsky (1988: 49), esta hipótese imunizava seu argumento frente às críticas de cunho keynesiano: “Mas isso não altera o fato da escassez do conjunto dos fatores de produção, já que essa mão-de-obra elementar é apenas um dos fatores – cada vez menos importante, com o progresso das máquinas – e que nada se pode produzir sem dispor de um conjunto de fatores” (Gudin, 1959:17).

A discussão teórica de Gudin acerca do caráter da inflação não deixou de ser permeada por seu caráter pragmático, isto é, que remetia à própria discussão da política econômica brasileira. Chamava a atenção para o fato de que o grande mal da inflação se relaciona ao caráter desigual do comportamento dos preços. Ou seja, em função de alguns preços subirem mais e primeiro em relação a outros, provocando desequilíbrio no sistema de preços relativos. Não importando por onde a inflação se infiltre no sistema econômico, ela sempre acaba se difundindo para os demais. Primeiramente, implicará aumento de demanda sobre os setores mais próximos, em termos de relações econômicas, àqueles que estão recebendo preços mais altos por seus produtos. Mas também se propagará para os setores que produzem bens de consumo para as classes beneficiadas (geralmente, os bens de luxo) e assim sucessivamente: “É nisso que consiste o mal da inflação. Ela não se processa nem igualmente nem simultaneamente para todos os grupos e para todas as classes sociais e tende a crescer automaticamente” (Grifos do autor, Gudin, 1959: 22).

A expansão da base monetária jamais poderia ser benéfica, quando não fosse fruto da expansão da produção, que, por sua vez, levasse a uma maior necessidade real de meios de pagamentos. Além disso, estando a economia em pleno emprego, isto é, sem excedente de fatores de produção, o

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crescimento apenas poderia advir de um aumento de produtividade real. O que aliás só é viável no longo prazo, contrariando qualquer visão imediatista a que normalmente se submete a lógica dos políticos e portanto dos governos.

No que se refere à sua interpretação acerca do sistema capitalista, pode-se vinculá-lo à vertente teórica que apreendia esse como a marca do fim da história.13

Na verdade, acerca dessa temática não se chegou a conformar um efetivo consenso. Existe uma escola de pensamento, à qual se filiam vários economistas e historiadores, que se nega a admitir que seja possível conferir significado exato ao capitalismo enquanto sistema econômico (Dobb, 1963).

O que tornava admissível o argumento onde as crises pareciam advir do fator político e não do econômico (Borges, 1996). No discurso que proferiu na Liga das Nações em 1936, O Capitalismo e sua evolução, Gudin demonstrava resistir à denominação de capitalismo para a especificação histórica da nova forma de organização da produção que emergiu no século XVIII.

Para os partidários da Escola Austríaca, o termo capitalista é usado em sentido técnico referindo-se ao uso dos chamados métodos de produção indiretos ou responsáveis pela redução do tempo despendido na produção. Nesse sentido puramente técnico, a produção, a partir do momento em que se superou a etapa mais primitiva da história da humanidade, poderia ser vista como capitalista. O que possibilita negar um significado histórico especial à denominação do capitalismo.

Dentre as correntes consideradas mais importantes por Dobb (1963) quanto à análise das especificidades do capitalismo, estaria aquela representada pela abordagem de Werner Sombart. Nesta, buscou-se a caracterização do capitalismo através dos aspectos representativos do espírito que haviam inspirado a época de seu surgimento, onde se encontrariam aqueles de 13 A discussão acerca do fim da história é sempre muito atual, na medida em

que o debate ressurge de tempos em tempos na sociedade moderna.

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empreendimento e de prudência ou racionalidade. Essa fusão teria proporcionado uma série de atitudes econômicas diferentes que se tornariam comuns na sociedade burguesa.

Nesse mesmo sentido, se encaminhou a argumentação de Max Weber que, de forma mais simplificada, havia definido que o capitalismo estaria presente "onde quer que a provisão industrial para as necessidades de um grupo humano fosse executada pelo método de empresa" (Dobb, 1963: 18-19).

Essas concepções, bem como tantas outras que concebem o capitalismo como um sistema comercial por excelência ou que focalizam a inversão lucrativa como a sua real especificidade, compartilham o caráter de insuficiência na restrição das características que possam confinar o termo a um período histórico. Nesse sentido, acabam respaldando a conclusão de que quase todos os períodos históricos tenham sido, em algum grau, capitalistas (Dobb, 1963).

A visão de Gudin acaba sendo lastreada por duas dessas concepções: a visão tecnicista da Escola Austríaca e a visão de Sombart. Ambas possibilitam a identificação do capitalismo isenta da especificidade das relações de produção, tal como é caracterizado pela escola marxista.

Pautava-se também por uma visão naturalista do capitalismo, sustentando o equilíbrio econômico natural no vigor da Lei das Vantagens Comparativas. A história apresenta-se em uma trajetória linear, isenta dos movimentos contraditórios. Para Gudin, havia um elo bastante estreito entre as teses de equilíbrio e das Vantagens Comparativas. Na medida em que acirrasse o comércio entre as nações industriais e agrícolas, ou seja quanto maiores fossem as vendas de produtos industrializados ao segundo grupo, maior seria a contrapartida em aquisição de produtos agrícolas e matérias-primas.

Reconhecia os custos sociais gerados pelo processo de acumulação capitalista, mas não considerava que chegassem a constituir obstáculos para a evolução natural do homem, cujo

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fim era proporcionar o bem-estar geral. Havia apenas um mal irremediável em sua concepção do capitalismo, a supressão do regime de concorrência. E para esse caso, a intervenção do Estado tornava-se não apenas permissível, mas necessária, tendo em vista policiar o risco de supressão do capitalismo competitivo (Borges, 1996)

Relacionava os desequilíbrios patentes do capitalismo do século XX no entre-guerras, como uma resultante da deturpação política que o sistema econômico havia sofrido. A tendência ao equilíbrio do capitalismo havia sido rompida em função dos conflitos de ordem política que foram vivenciados no período.

O desemprego é ligado ao cenário da Primeira Grande Guerra Mundial como sendo desta um desdobramento, na medida em que este se tornou um problema conhecido apenas após o grande conflito (Borges, 1996:75).

Ainda no que se refere ao período entre-guerras, percebia a mudança da liderança do capitalismo ocidental da Grã-Bretanha para os EUA como um processo de ruptura. Relacionava isso à postura deste país em relação ao comércio internacional. Ao contrário da Grã-Bretanha, os EUA não assumiram uma atitude de complementaridade em relação aos países primário-exportadores, o que lhes trazia perspectivas negativas quanto à inserção no sistema internacional.

Para Gudin, o fator político havia sido preponderante na interrupção do curso do desenvolvimento linear do capitalismo do século XIX até a I Guerra Mundial, em 1914. A guerra foi responsável por desorganizar ou destruir sistemas monetários, deslocar a liderança econômica e política da Inglaterra para os EUA, e permitir o surgimento dos regimes anti-capitalistas:

“Até 1914 a Economia Liberal conduziu a Humanidade por essa rota, de constante aumento de bem-estar e de elevação do padrão de vida das populações. Dentro de seus padrões se abordavam e resolviam os novos problemas à medida que eles surgiam” (Gudin, 1978: 63).

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Suas referências aos EUA foram inicialmente muito duras, acusando-os pela irresponsabilidade na condução do sistema internacional, o que teria agravado vários problemas do sistema internacional. Os graves equívocos, em termos de política econômica nacional, cometidos pelos EUA e mesmo pela Inglaterra, em muito haviam contribuído para o aprofundamento da conjuntura crítica que assolou a economia internacional no período entre-guerras.

Ao tempo em que demonstra os fatores políticos e a insuficiência de experiência dos EUA na condução do sistema internacional no entre-guerras, Gudin resguarda o liberalismo de culpas pelas adversidades que assolaram o capitalismo ocidental até a Segunda Guerra Mundial. Tomava esse princípio como base para rebater a crescente onda de defesa do protecionismo e do uso das técnicas do planejamento. Técnicas para as quais a experiência americana havia acabado por se constituir em uma espécie de paradigma, em função da implementação da política do New Deal.

A influência de pensadores liberais sobre a formação teórica de Gudin foi incisiva, mas sua relação foi mais próxima a alguns deles. A atuação como economista, tanto teórica, como praticamente, foi fortemente influenciada pelo pensamento de Viner e Haberler. As obras destes autores visavam, sobretudo, proporcionar uma espécie de:

“reavaliação e sustentação do princípio clássico da divisão internacional do trabalho (...) levando em conta a existência de ciclos econômicos e procedendo a uma discussão sistemática do livre-cambismo frente aos argumentos protecionistas.” (Bielschowsky, 1988:47)

Sem dúvida, tanto Viner como Haberler haviam teorizado com base nas economias desenvolvidas. Mas nem por isso, poder-se-ia afirmar que Gudin tivesse sido um mero interlocutor de idéias e modelos adequados apenas àquelas estruturas. Ele próprio chegou a estimular Viner a produzir uma reflexão acerca do caso dos países subdesenvolvidos quando esteve no

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Brasil à ocasião da já referida realização de uma série de conferências no Rio de Janeiro, promovidas pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) e publicadas entre 1951 e 1952. Nesse trabalho reafirmava a validade dos princípios das vantagens comparativas para as economias subdesenvolvidas.

Reconhecia a existência de problemas de ordem estrutural na economia brasileira. Assim, a industrialização era vista como uma forma de reduzir o grau de vulnerabilidade externa. Mas, tratava-se de uma industrialização gradativa, que possibilitasse apenas a diversificação da economia. Considerava que existiam três razões capazes de justificar uma industrialização progressiva (Gudin, 1959): 1) o fato de influir a lei de Engel sobre a demanda dos

produtos primários, bem como os reflexos do progresso técnico que permite poupar o uso de matérias-primas;

2) a condição de instabilidade a que se submetem as economias primárias, em função das oscilações de preços;

3) o fato de serem transferíveis as plantas industriais.

Aliás, aí estavam as razões pelas quais Gudin delegava a chamada inferioridade congênita dos países exportadores de bens primários. Dessa forma, comprovava que sua postura não era de oposição intransigente à industrialização. Ao contrário, visualizava condições efetivas para que a mesma ocorresse. A questão à qual se opunha efetivamente era quanto ao desleixo com que se tratou a agricultura brasileira, deixando subexploradas e mesmo inexploradas várias oportunidades de utilização de recursos produtivos. Atribuía tal irracionalidade ao fator político, que acabava por alterar o curso natural do aproveitamento dos recursos disponíveis.

“Mas os nossos Governos [não o atual somente] só se ocupam da Indústria, onde há maquinaria para os basbaques, inaugurações (até bênçãos), banda de música e foco de eleitores. Nada disso há na agricultura” (Gudin, 1959:206).

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Assim, ao afirmar não ser contrário à industrialização, mas na verdade não considerá-la na ordem das prioridades coaduna com a afirmação de Bielschowsky (1988: 62). Embora fizesse questão de não se mostrar avesso à industrialização, a preocupação com a redução da vulnerabilidade da economia brasileira através da mesma parece ter ficado restrita ao período que sucedeu imediatamente a crise de 29. A retomada do ciclo de prosperidade, a partir da década de 40, teria arrefecido seus ânimos quanto a esse aspecto.

A já alentada hipótese do pleno emprego, na economia brasileira, tornava injustificável a defesa das políticas que propugnavam a industrialização acelerada, embora sua prática política tivesse sido ainda menos complacente com as medidas governamentais, que propulsionaram o crescimento do setor industrial sob o modelo de substituição de importações.

Quanto ao seu perfil, pode-se dizer que Gudin foi um economista aplicado por excelência, o que refletiu em não ter se preocupado com a discussão propriamente teórica acerca da Teoria das Vantagens Comparativas. Tanto assim que, nas primeiras edições de sua obra maior, Princípios de Economia Monetária, constavam quatro capítulos sobre Balanço de Pagamentos e Taxa de Câmbio, que foram extintos nas edições posteriores (Bielschowsky, 1988).

Em sua obra, aparentava grau relativamente elevado de flexibilidade quanto à questão do intervencionismo estatal, aceitando-o quando tivesse o objetivo de neutralizar as oscilações cíclicas. Contudo, esta flexibilidade jamais se aplicou à análise do caso brasileiro. Em função disso, havia uma aparente contradição entre sua proposição teórica e sua prática mediante as árduas críticas que empreendeu à expansão do campo de atuação do Estado no País. A contradição, no entanto, não ultrapassava o nível das

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aparências, na medida em que, mais uma vez, a hipótese do pleno emprego, concedia-lhe sustentação tanto para a crítica do intervencionismo, como sua “flexibilidade teórica no tratamento das questões monetárias” (Bielshcowsky, 1988: 51).

Já no que se refere à temática do planejamento econômico, as posições de Gudin foram mais inflexíveis. Em relação a esta ferramenta, muito cara aos estruturalistas, predominou, ao menos durante o período que analisamos (entre as décadas de 40 e 50)14

Considerava que as experiências de planificação, adotadas a partir da grande Crise de 29, eram fruto do desequilíbrio econômico do período. Originavam-se, na verdade, da incompreensão dos desequilíbrios, enquanto apenas se deveria buscar o novo ponto de equilíbrio, a planificação tornar-se-ia, no mínimo, inútil. Gudin admitia, sim, o planejamento, mas apenas em casos excepcionais, como na economia de guerra (Borges, 1996).

, o argumento político e a obsessiva luta opositora.

As baterias voltadas contra a técnica do planejamento não visavam o aspecto propriamente teórico do instrumental. Gudin não se ateve à discussão acerca das deficiências técnicas do mesmo. Em função disso é que sua posição acerca do tema acabou sendo classificada de doutrinária.

Sua posição em relação ao Estado era muito próxima à teoria liberal clássica, embora admitisse que o nível de complexidade das economias modernas passasse a exigir do mesmo também uma atuação mais ampla. A necessidade de regulamentação institucional havia ampliado o raio de atuação dos Estados. Contudo, o eixo central não podia ser perdido. Conforme Gudin:

14 Fazemos esta ressalva porque após o advento da Social-democracia européia

Gudin parece ter arrefecido o teor de suas críticas ao planejamento, que passavam até então, em ligar esta prática à economia socialista.

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“O Estado devia impedir que a liberdade fosse utilizada para matar a liberdade” (Gudin, 1978:62).

Na medida em que elegia o Estado como elemento deturpador da economia de mercado, refutar o Estado-empresário tornava-se um ato de absoluta coerência. Este era visto como uma ameaça concreta ao sistema capitalista. Ademais, havia que se perceber ao menos dois aspectos que o transformam, por natureza, um empresário ineficiente. O primeiro se relaciona à tendência de tolerar a ingerência política na administração das empresas estatais:

O Estado é dirigido pelo partido. E o partido no poder não pode dispensar o apoio de seu eleitorado, nem faltar-lhe repetidamente (Gudin, 1951:35. In Bielschowsky, 1988: 73).

Um segundo fator que torna o Estado ineficiente na ação empresarial é a presença da rotineira máquina da burocracia, que não pode ser dispensada. Com base nesses argumentos é que Gudin atacou quase todas as empresas estatais, embora tenha sido mais contundente em relação àquelas que atuavam nas áreas de energia e transporte.

Assim, a empresa estatal não aparecia para Gudin, nem para os economistas liberais em geral, como recurso legítimo para equacionar a deficiência de recursos para financiar os investimentos privados. Defendia como remédio para tal deficiência a entrada do capital estrangeiro, única forma eficaz, àquela altura, de suprir tal deficiência.

Interessante ressaltar que não coincidentemente, na década de 50, Gudin abandonou o discurso crítico em relação aos EUA. Desapareceu a ênfase na inexperiência deste país para exercer o papel de economia hegemônica. Nada podia ter sido mais compatível com o momento em que se argumentava em prol da positividade da entrada do capital estrangeiro e a necessidade de ajuda financeira (Borges, 1996).

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Foi, de fato, um grande entusiasta da entrada do capital estrangeiro, tendo defendido permanentemente políticas atrativas para o mesmo. A instrução 113 da Sumoc da qual foi autor, uma das mais propaladas e controversas medidas para favorecer a entrada do capital estrangeiro, foi implementada em sua gestão no Ministério da Fazenda, em 1954. Em sua concepção, os benefícios da entrada do capital externo deveriam ser mensurados pelo efeito de geração de riquezas e não pelo Balanço de Pagamentos. (Bielschowsky, 1988). O desequilíbrio permanente na conta de capitais apenas se tornaria verdadeiro quando a inflação crônica tornasse a moeda persistentemente valorizada.

Assim, Gudin transferia quaisquer problemas para a órbita da gestão da política econômica, buscando driblar os argumentos nacionalistas que criticavam a liberalidade em relação ao capital estrangeiro. Isto é, o verdadeiro responsável pelo desequilíbrio das contas externas estaria na má gestão da política econômica que permitia a persistência da inflação.

Os problemas relativos a estabilidade monetária e ao balanço de pagamentos foram quase uma constante ao longo do primeiro decênio do pós-guerra para o Brasil. Daí que ocupassem posição central dentre as preocupações de Gudin. Na verdade, acabou se transformando no maior defensor da prioridade à política antiinflacionária. Para Bielschowsky (1988:80), o monetarismo de Gudin não era simplista, na medida em que não fazia relação direta e proporcional entre moeda e preços, mas filtrava essa relação com a avaliação das condições da produção.

Foi obsessivo na defesa da existência de uma relação íntima entre o processo inflacionário e o desequilíbrio do balanço de pagamentos. Dois argumentos explicavam tal relação, primeiramente alegava que o déficit externo constitui um reflexo do excesso de demanda interna. Em segundo lugar, a inflação provocava sobrevalorização da moeda o que também contribuía para os déficits nas contas externas. Já que não existia um mecanismo automático de ajuste do desequilíbrio externo, tal

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como na vigência padrão-ouro, a técnica da desvalorização cambial tornava-se a única alternativa para preservar a paridade do poder de compras entre as moedas no sistema internacional. A solução definitiva dependeria, no entanto, da estabilidade monetária, daí que fosse prioritária em relação ao ajuste cambial.

A ordem de prioridade dada às duas questões acima é que explica o fato de que Gudin não apenas admitiu o uso das políticas cambiais de taxas múltiplas, como foi mentor de algumas delas. Defendia tais instrumentais de política econômica como uma espécie de paliativo ao excesso de demanda interna, tornando as importações mais caras e conseqüentemente restritas. Negando o argumento estruturalista dos cepalinos, Gudin alegava que os diversos estrangulamentos da a estrutura econômica eram causados pela inflação e não o inverso.

Justamente aí se encontrava a matriz de suas discordâncias com parte das proposições do FMI, embora seus críticos o tenham visto sempre como um coadjuvante desta instituição. As discordâncias centravam-se especialmente na necessidade de buscar simultaneamente o equilíbrio no Balanço de Pagamentos e no sistema de preços (Bielschowsky,1988). Para Gudin, a eliminação da inflação acabaria por conduzir ao equilíbrio externo, e não o inverso. Aliás, esta foi também a base de seu contra-argumento frente a tese do desequilíbrio externo estrutural.

Em relação ao protecionismo, sua posição foi, em princípio, compatível com o argumento protecionista da “indústria infante”. Mas defendia uma avaliação seletiva das indústrias que poderiam usufruir de tal benefício. Dessa forma, concordava com o argumento da elevação gradual da produtividade, demonstrava perceber validade para tal, especialmente quando relacionado às atividades industriais pioneiras. Ou seja, aquelas onde houvesse potencial já constatado que justificasse sua internalização. O que atesta que não admitia qualquer vantagem econômica que pudesse advir da instalação de todo e qualquer segmento da

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indústria na economia, isto é, da industrialização vertical (Bielschowsky, 1988).

Ao se referir à questão do protecionismo, Gudin se concentrou mais em dois aspectos, argumentar quanto à necessidade de limitar o nível das tarifas e estipular o prazo de vigor das mesmas. Em 1956, ao participar das conferências do BNDE, afirmava que industrialização brasileira consistia em "tudo fabricar, a qualquer preço". Ou seja, representava um manancial de desperdício de recursos econômicos, que por sua vez implicavam elevado custo social, na medida em que o consumidor brasileiro ficava submisso às regras ditadas por empresas com poderes monopolísticos, derivados do excesso de proteção:

Mas nada justifica que tal amparo se eternize e – muito menos – nos termos vigentes de uma proteção 100%! (Grifos do autor; Gudin, 1959: 209)

Para Gudin, a própria natureza da divisão do trabalho determinava que os países não podem deixar de respeitar sua vocação natural. Quando não houvesse condições favoráveis ao progresso, nem por isso poder-se-ia culpar as trocas internacionais. A ausência de progresso e as desigualdades nos ritmos e níveis de desenvolvimento socioeconômico expressavam, antes de tudo, a ausência de condições que possibilitassem o mesmo (Borges, 1996).

No que se refere à distribuição da propriedade, sabe-se que persistiu no argumento da necessidade de aumento do nível de produtividade. Para Gudin, a baixa produtividade do setor rural, gerada pela deficiência na infra-estrutura de saúde, educação, técnica e crédito, era responsável efetiva pelo atraso. A questão da propriedade em si era vista como um elemento problemático, mas de caráter marginal dentre o feixe de fatores que levavam ao atraso do campo no Brasil.

Quanto ao quesito distribuição de renda, defendia, com rigor, que salários apenas poderiam sofrer elevação, quando

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tivesse ocorrido respectivo aumento de produtividade. Em caso contrário, o aumento de salários acabaria atuando como fator desencadeador de inflação. Ao tratar dessa forma os salários, buscava destituir-lhes o caráter de questão social. Atestando sua adesão ao raciocínio neoclássico, em que os salários constituem a remuneração de um dos fatores de produção e como os demais seu preço deve ser formado de acordo com os desígnios do mercado (Bielschowsky, 1988).

Foi crítico, em especial, da legislação do salário mínimo, no Brasil, considerando-a como eminente fomentadora de inflação. Seu raciocínio se pautava pela lógica do sistema de preços, onde o aumento de um dos preços não é capaz, por si, de modificar todo o sistema de preços relativos. Na verdade, a imposição de preços constitui uma interferência anti-econômica sobre a lógica do mercado (Gudin, 1959).

No sentido de reforçar sua argumentação, Gudin recorria ao argumento estatístico, sem, contudo, demonstrar os dados comprobatórios. Segundo o autor, a produção brasileira dividida pela população, isto é, a renda per capita, estaria longe de ser capaz de possibilitar o nível mínimo de conforto que se almejava com a instituição do salário mínimo (Gudin, 1959):

Socialmente, ou, antes, idealmente, é muito bonito. Economicamente, distribuir o que não há é um contra-senso (Gudin, 1959: 241).

Além disso, ainda no que se refere à legislação do salário mínimo, Gudin (1959: 250) considerava que estava através dela encarecendo o único fator de produção que a economia brasileira possuía em abundância. O que, por sua vez, acabaria estimulando a substituição da mão-de-obra, pelo processo de mecanização.

Em contrapartida, foi contrário às propostas de tributação sobre os lucros extraordinários. Considerava que se constituiria em uma espécie de punição aos mais eficientes e portanto um

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desestímulo aos ganhos de produtividade, que, por sua vez, representavam justamente o cerne da deficiência produtiva.

Para Gudin (1936), o próprio sentido da evolução capitalista se mostrava capaz, por si só, de corrigir os males sociais e econômicos gerados pela total ausência de regulamentação. Exemplificava com o caso da Constituição do Brasil (àquele momento recém-criada) que expressava tal evolução, ao impedir que a ação econômica fosse exercida em detrimento da sociedade ou de qualquer de suas classes.

À medida que as sociedades acumulassem riqueza, o passo seguinte seria a normatização, de forma que banqueiros e intermediários fraudulentos fossem punidos exemplarmente. O mesmo rigor não poderia, contudo, ser exigido dos países que não haviam consolidado o primeiro passo, o da acumulação. O que também implicava que não se deve respaldar a discriminação generalizada de capitais externos para um país ainda carente de capitais e por conseguinte de enriquecimento, como era o caso brasileiro.

Sem dúvida, o Imposto de Renda, no que se refere ao sistema tributário, constituiria um instrumento de justiça social. Mas dever-se-ia, segundo Gudin, atentar para os limites da utilização do mesmo como meio de redistribuição de riqueza naqueles países que ainda precisavam incentivar o afluxo de capitais para proporcionar o enriquecimento. A geração da riqueza deveria, pois, preceder a preocupação com a distribuição da mesma.

Quanto à interferência do Estado, defendia a tese de que a mesma sempre ocorrera de alguma forma, na medida em que existia a atuação no regime aduaneiro, sobre a política tarifária, no sistema tributário. No entanto, isto em nada se relacionaria com "economia dirigida", tal expressão seria cabível ao "regime de restrições, de cotas e

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valorizações". Ela não seria própria da evolução do capitalismo, mas constituiria um conjunto de medidas que as nações vinham tomando com o intuito de remediar ou reduzir os efeitos da Guerra. Os abusos neste sentido acabariam sendo mais prejudiciais que benéficos à sociedade, como no caso dos EUA cujo restabelecimento do equilíbrio econômico havia encontrado maiores dificuldades que a Inglaterra naquele período de reflexos da Crise de 29.

Percebia o Brasil como uma economia precursora do "dirigismo" em função da política de valorização do café. A prática do dirigismo havia se difundido e aprofundado por razões justificáveis no período de guerras. Justificável em função dos desequilíbrios monstruosos que o contexto de guerra cria na economia, impossibilitando o perfeito funcionamento do mercado. Contudo, não abria concessões para que tal situação se perpetuasse num contexto de normalidade das condições políticas, sobretudo no que se refere ao ambiente internacional.

Considerações finais

A trajetória pública do economista Eugênio Gudin foi bastante extensa. Sua lucidez e a capacidade de articulação de argumentos, quase sempre guardando imensa coerência, foram notórias. Em função disso e dos próprios veículos de propagação de idéias dos quais se utilizou, o reconhecimento de sua influência sobre os grandes debates que surgiram e se desencadearam, no Brasil, não pode deixar de ocorrer. Ademais, a ressonância de suas idéias faz-se visível, ainda hoje, na proximidade da virada do século XX, quando o momento histórico tem privilegiado as posturas liberais que por muito tempo foram vistas com desconfiança no País.

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Na base do pensamento de Gudin estiveram a influência de sua formação de engenheiro e sua carreira de homem de empresas ligado, sobretudo, ao capital estrangeiro. No desenvolvimento enquanto economista prático e acadêmico, a influência de grandes teóricos do liberalismo, mas em especial de um grupo de pensadores das relações internacionais, dentre eles o professor Jacob Viner. Além disso, seu ingresso nos estudos econômicos já na idade madura retirou do discurso a tônica dos apaixonados e concedeu-lhe certo ar de frieza, mas também de impaciência frente aos opositores nos debates.

Uma das preocupações básicas de Gudin, ao longo de sua carreiram, se relacionava à necessidade de adaptação dos princípios teóricos do liberalismo à realidade brasileira. Na sua visão, o Brasil padecia em função da carência de desenvolvimento das bases capitalistas, por conseguinte, da economia de mercado. Esta foi, sem dúvida, uma das mais importantes marcas de seu trabalho.

Bibliografia

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Pécaut, D. Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação. Tradução por Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990.

Reis, G. A. O pensamento de Octávio de Gouveia Bulhões. São Paulo. [Dissertação Mestrado] - FFLCH. Departamento de História, 1993. Mimeo.

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CAPÍTULO II

O ANTIDESENVOLVIMENTISMO DE BULHÕES

Geraldo Antônio dos Reis

Introdução

A hipótese básica que norteia este trabalho se relaciona ao fato de que o antidesenvolvimentismo encontra uma de suas formulações mais bem acabadas nas idéias econômicas de Octávio Gouvêa de Bulhões. Além disso, e por causa disso, ele ajudou a elaborar e implementar, no início do regime militar, uma política econômica com perfil assemelhado às suas idéias.

Considerando-se tal hipótese, o presente trabalho tem dois objetivos: em primeiro lugar, focalizar especialmente temas como modelo de desenvolvimento, política econômica e liberalismo, cujo conteúdo confere uma natureza antidesenvolvimentista às suas idéias. Em segundo, analisar a sua participação na formulação e na implementação da política econômica durante o governo Castelo Branco.

Para tanto, o trabalho priorizará, por um lado, o estudo dos escritos e textos associados a Bulhões, desde 1937 até 1964, sobre os temas citados. Por outro, os textos e documentos produzidos pelo autor, durante a sua passagem pelo governo Castelo Branco, bem como as diversas interpretações a respeito da política econômica no início do regime militar. Apesar de o trabalho cobrir basicamente as idéias de Bulhões até 1967, os escritos e textos posteriores a este período, até 1990, ano de sua

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morte, são referências indispensáveis, pois permitem o entedimento da sua análise sobre os principais fatos e as suas objeções às mudanças processadas na política econômica.

As idéias econômicas de Bulhões

A controvérsia brasileira sobre o desenvolvimento econômico e o antidesenvolvimentismo

A partir da década de 30, ocorreram significativas transformações nas estruturas econômica, política e social brasileiras. Em primeiro lugar, a crise iniciada em 1929 revelou os limites do sistema primário-exportador como eixo principal da economia brasileira. Com isso, houve um sensível debilitamento do peso político da oligarquia agrária, criando a possibilidade do fortalecimento de novos grupos, como a burguesia industrial, a classe média urbana, o proletariado industrial e os militares. Em segundo, tal crise impulsionou a industrialização - fato também ocorrido em outros países latino-americanos. Em terceiro, a crise fragilizou a crença no liberalismo econômico e, conseqüentemente, na concepção de que o mercado poderia espontaneamente conduzir ao desenvolvimento econômico numa economia primário-exportadora. Por essa razão, o Estado assumiu uma importância crescente na economia e na sociedade brasileira, sobretudo como agente fundamental no processo de industrialização.

Tais acontecimentos animaram o debate sobre o desenvolvimento econômico, especialmente, da década de 40 até 1964, com a participação de alguns grupos cujas propostas giravam em torno de duas concepções: de um lado, aqueles que permaneceram fiéis ao liberalismo e insistiam em acreditar na força do mercado como condutor da prosperidade e na continuidade do modelo primário-exportador e, de outro, os adeptos do desenvolvimentismo, que duvidavam da eficácia do mercado e exigiam o avanço da industrialização promovida por

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políticas do governo e a mudança do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho.

Nos anos 40, o debate pode ser, em boa medida, sintetizado pela polêmica entre Eugênio Gudin, defensor do liberalismo, e Roberto Simonsen, adepto do planejamento e da industrialização orientada pelo Estado.

Nos anos 50, o setor industrial ganhou um impulso capaz de transformá-lo no eixo dinâmico da economia brasileira. A burguesia adquiriu uma sensível força política e, por isso, a controvérsia refletiu os impasses e as alternativas existentes dentro da própria classe, pois, então, várias possibilidades se abriram desde um capitalismo autônomo e conduzido pelo Estado a um capitalismo associado apoiado no capital estrangeiro, ou mesmo a uma industrialização espontaneamente conduzida pelo mercado.

O debate interno foi também profundamente influenciado pela grande importância conferida no período ao problema do desenvolvimento econômico, que se tornou tema de interesse de diversos governos, de organismos internacionais, como a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), e de um crescente número de economistas. Por isso, surgiu uma vasta literatura sobre o assunto, natabilizando-se os trabalhos de autores, como Ragnar Nurkse, Raul Prebisch, Hans Singer, Gunnar Myrdal, Albert Hirschman e Simon Kuznets. Geralmente, as novas teorias do desenvolvimento questionavam a capacidade das teorias econômicas tradicionais (ou ortodoxas), particularmente as teorias clássicas e neoclássicas do comércio internacional, de explicar os fenômenos relativos ao subdesenvolvimento. Do mesmo modo, foi posta em questão a eficácia do livre-comércio e das forças espontâneas do mercado. Ao contrário, foi sublinhada a necessidade de uma firme presença do Estado, cuja política deveria contemplar particularmente a diversificação da estrutura produtiva, com ênfase na industrialização.

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Na América Latina, os principais argumentos antiliberais a favor do desenvolvimento e da industrialização foram elaborados na Cepal, especialmente através da concepção centro-periferia.

No Brasil, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) tornou-se um centro importante de debates sobre o desenvolvimento econômico. Entre 1951 e 1959, a instituição convidou alguns dos principais economistas estrangeiros da época, como Jacob Viner, Gottfried Haberler, Lionel Robbins, Kenneth E. Boulding, Hans Singer, Ragnar Nurkse, Alain Barrére, Arthur E. Burns e Nicholas Kaldor, para uma série de conferências sobre o assunto, que foram publicadas pela Revista Brasileira de Economia. Singer, Nurkse e Kaldor defenderam a industrialização e a ampliação da participação do Estado, com posições muito próximas das difundidas pela Cepal. Por outro lado, Viner, Robbins e Haberler, influenciaram profundamente as idéias dos economistas vinculados à FGV, principalmente, no que se refere à defesa do liberalismo econômico, do livre-cambismo, de uma maior especialização brasileira para uma melhor inserção na divisão internacional do trabalho, da necessidade de equilíbrio monetário e financeiro e do estabelecimento de limites rígidos à intervenção do Estado, além da crítica às teses cepalinas.

Dessa forma, a importância atribuída ao problema do desenvolvimento em escala mundial e aos desafios colocados para o País, como a crise do modelo primário-exportador, a necessidade do avanço da industrialização e a redefinição do papel do Estado, funda todo o debate econômico brasileiro no período. Em meio a este debate, foi ganhando forma e consistência o desenvolvimentismo, cujo embrião foi gerado no primeiro governo de Vargas, adquirindo corpo definitivo no seu segundo governo, com a consolidação do nacional-desenvolvimentismo. O discurso nacional-desenvolvimentista esteve voltado para o imperativo da construção de um projeto nacional, apoiado na industrialização estimulada pelo Estado, com ampla base social, buscando o desenvolvimento autônomo do País e a luta antimperialista.

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Dessa forma, o desenvolvimentismo pretendeu validar ideologicamente o processo brasileiro de transformação econômica, política e social entre 1951 e 1964, ao colocar, como meta, num primeiro momento, a industrialização planejada pelo Estado e, depois, enfatizar as reformas de base. Se por um lado, a industrialização foi bem-sucedida, resultando em notável crescimento econômico e profundas mudanças na estrutura econômica e razoável participação política e econômica das massas urbanas, por outro, o objetivo reformista fracassou. A efervescência política do debate, a mobilização popular em torno das reformas de base e a intensificação do processo inflacionário contribuíram para a ruína do modelo desenvolvimentista.

Com o golpe militar de 1964, a luta pelas reformas de base foi sufocada. Concomitantemente, processou-se uma reorientação substancial na política econômica. Rompeu-se com o desenvolvimentismo e o estruturalismo e formou-se um modelo excludente e concentrador de renda, através da marginalização dos grupos mais pobres, que antes vinham ganhando espaço no cenário político brasileiro.

A reorientação do modelo de desenvolvimento e da política econômica foi apoiada, sobretudo, por princípios defendidos antes de 64 pela intelectualidade liberal, como a busca da estabilidade econômica através do uso da terapia monetarista clássica - controle dos salários, do crédito e dos gastos públicos -, a maior abertura ao exterior e o estímulo à acumulação de capital, especialmente por meio do aumento da concentração de renda.

Nesse novo modelo, outros atores teriam importância. Eugênio Gudin, foi caracterizado como ideólogo das forças que tomaram o poder (Serra, 1982), embora não tenha participado diretamente do governo militar. Roberto Campos, mesmo tendo se projetado como um técnico desenvolvimentista, foi uma figura de destaque entre 1964 e 1967. Outro personagem que ganhou notoriedade foi Mário Henrique Simonsen, que,

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entretanto, na época não passava de um "aprendiz de feiticeiro", conforme Tavares e Assis (1985).

Um personagem de importância nesse contexto foi Octávio Gouvêa de Bulhões. Além de destacar-se, após 1950, como um dos principais expoentes do liberalismo brasileiro e ter mantido, por causa disso, uma forte oposição ao desenvolvimentismo, participou diretamente da conspiração golpista e contribuiu para a formulação e a execução da política econômica no início do regime militar. Portanto, Bulhões merece ser compreendido numa perspectiva ainda mais abrangente que Gudin, Campos e Simonsen.

A participação de Bulhões na formulação e na execução do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg), na Presidência de Castelo Branco, foi decisiva; fato reconhecido por Campos, em homenagem a Bulhões publicada pelo jornal O Globo, de 02/08/83, ao pôr em evidência que Bulhões deveria ser canonizado como "Santo Octávio de Bulhões", exatamente "por ter salvado a economia brasileira do caos em 1964". Bulhões, por sua vez, observou que naquele período não havia dificuldades em trabalharem juntos, pois "há muitos anos [tinham] as mesmas idéias" (1990:160). Simonsen, em comentário no Depoimento de Bulhões, ressaltou que a presença de Campos no Ministério do Planejamento foi "de fato, (...) indicação de Bulhões ao presidente". Simonsen acrescentou ainda que "realmente, nunca vi uma dupla de ministros, da Fazenda e do Planejamento, trabalhar a quatro mãos, perfeitamente, como os dois trabalhavam" (1990:218), E, recentemente, Teixeira, em artigo comemorativo dos 50 anos da FGV, confirmou a versão de Simonsen (1994:15). Assim, Bulhões foi um personagem ativo da equipe que dirigiu a política econômica durante o governo Castelo Branco.

Devido à sua filiação teórica ao liberalismo havia um grande distanciamento de Bulhões em relação ao desenvolvimentismo. De imediato, vale ressaltar que, apesar da sua posição antidesenvolvimentista, há um projeto de desenvolvimento nos

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seus escritos, obviamente muito diferente do desenvolvimentista.

Contudo, esse antidesenvolvimentismo não foi um traço permanente na trajetória intelectual de Bulhões. Ao contrário, o estudo das suas idéias econômicas possibilitou a identificação de duas fases bem marcantes na sua carreira: a primeira, representada pelos seus escritos que vão de 1937, iniciada com seu depoimento sobre o Banco Central, publicado no O observador econômico e financeiro (1937a), até fins dos anos 40, com idéias que se alinhavam com a proposta intervencionista de Vargas. A segunda, particularmente após 1950, quando se aproxima progressivamente do liberalismo e se opõe ao desenvolvimentismo, até 1990.

A primeira fase: a assessoria ministerial no I governo Vargas

Essa primeira fase constitui um período de formação e de progressivo envolvimento de Bulhões com a ciência econômica, e corresponde principalmente, na sua passagem pelo Ministério da Fazenda como assessor - respondendo, inclusive, pela chefia da Seção de Estudos Econômicos e Financeiros - do Ministro Souza Costa, que ocupou a pasta por um período de mais de 10 anos, entre julho de 1934 e fins de 1945. Isto é, Bulhões serviu ao governo Vargas durante a ditadura do Estado Novo, período marcado pelo aprofundamento do intervencionismo estatal no campo econômico, chegando até mesmo a ocupar o cargo de assessor técnico da Coordenação de Mobilização Econômica (CME), que havia sido criada em 1942, para enfrentar situação imposta pela Segunda Guerra.

A suas idéias nessa fase estavam em sintonia com a proposta política e econômica de Vargas, e, por conseguinte, contrariavam a ortodoxia, fato comprovado inúmeras vezes: em primeiro lugar, Bulhões defendeu a criação do Banco Central, endossando a proposta do governo, cujo modelo de funcionamento

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desobedeceria às regras do padrão-ouro, dando maior flexibilidade à execução da política monetária (Bulhões, 1937c).

Em segundo, no livro Orientação e controle em economia, de 1941, salientou que o problema inflacionário, a principal manifestação da instabilidade econonômica, seria um resultado natural do processo de desenvolvimento, passível de ser controlado com uma política seletiva de crédito, não guardando vínculos imediatos com erros de política monetária ou excesso de gastos do governo, colocando, inclusive, em dúvida a eficácia dos instrumentos tradicionais de política econômica.

Em terceiro, nos primeiros trabalhos sobre política cambial e comércio exterior, chegou a sugerir medidas que requeriam elevado grau de intervenção do Estado e de proteção à economia nacional, ao propor a diferenciação do câmbio (ou taxas múltiplas), tendo a Argentina dos anos 30 como modelo (Bulhões, 1937b) e o controle das importações (Bulhões, 1938). Além disso, afirmou que as variações no valor interno e externo da moeda também estariam associadas aos desequilíbrios no balanço de pagamentos decorrentes das “flutuações estacionais ou cíclicas” nas exportações de produtos primários e não necessariamente à má administração da política monetária (Bulhões, 1944).

Em quarto, a crença alimentada por Bulhões - em seguida à sua participação em Bretton Woods, em 1944 - de que o Fundo Monetário Internacional (FMI) teria como finalidade a cooperação monetária entre os países, desobrigando particularmente os países subdesenvolvidos de conservarem um grande volume de reservas cambiais, e a prevenção e o controle da instabilidade cambial decorrente da variação no preço de suas exportações. Contudo, o FMI cumpriu muito pouco tal finalidade, servindo mais como guardião dos interesses vinculados ao capital financeiro internacional, veículo de propagação da ortodoxia e instrumento de imposição de uma rigorosa disciplina econômica em muitos momentos, como foi no caso da crise da dívida externa dos países subdesenvolvidos nos anos 80. Mas, em

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Bretton Woods, Bulhões teve a oportunidade de discutir e rascunhar com Keynes - quando se sentou ao seu lado -, uma proposta de criação de mecanismo para a correção de desequilíbrio no balanço de pagamentos dos países, que acabou sendo rejeitada. Bulhões reconheceu que foi um dos fatos mais marcantes da sua vida intelectual (1990).

Portanto, a análise das idéias econômicas de Bulhões, nesse período, mostra que as suas posições eram incompatíveis com a ampla liberdade dos agentes econômicos, com uma economia livre de restrições e com uma limitada função alocativa do Estado. Tais posições conferem uma especificidade a esse período da sua carreira, justificando a separação dos seus escritos sobre economia em duas fases distintas.

A sua participação em Bretton Woods influenciou a sua transição intelectual rumo ao liberalismo e ao antidesenvolvimentismo. Em 1947, juntamente com Gudin, concedeu assessoria à Comissão Executiva do Diretório Nacional da União Democrática Nacional (UDN), partido que havia nascido da oposição ao getulismo e que se caracterizou pelo discurso liberal (Benevides, 1981). Isto é, Bulhões, que havia se projetado como assessor ministerial do primeiro governo Vargas, com proposições que se identificavam com as linhas deste governo, foi se livrando das antigas idéias, aproximando-se do liberalismo conservador e antigetulista da UDN.

A segunda fase: Bulhões, “papa” do liberalismo econômico

O livro À margem de um relatório, de 1950, pode ser considerado o marco fundador da segunda fase da carreira de Bulhões. Representa uma virada sensível em relação ao período anterior, pois aí se manifestam pela primeira vez as idéias liberais que dariam o tom definitivo à sua produção intelectual. A partir desse momento, os principais temas abordados por ele, como desenvolvimento econômico, papel do Estado e política

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econômica, tiveram uma orientação profundamente conservadora.

Modelo de desenvolvimento

Em razão da sua filiação à ortodoxia liberal, Bulhões se tornou um opositor de peso, no Brasil, das concepções difundidas pela Cepal e pelas novas teorias do desenvolvimento, sendo visivelmente influenciado por Viner e Gudin. Nas suas idéias sobre o tema, Bulhões advogou um modelo exportador e exaltou a livre iniciativa em detrimento da intervenção do Estado, enfatizando ainda a necessidade da estabilidade monetária como um dos pré-requisitos para o desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo, explicitou-se a rejeição da concepção centro-periferia e a descrença quanto à eficácia de uma política deliberada de industrialização. Daí a defesa incansável de um modelo econômico fundado na promoção das exportações, que, inclusive, poderia continuar primário-exportador, e fortemente integrado internacionalmente, contrariando, assim, os adeptos da substituição de importações.

A sua tentativa de refutar as teses cepalinas residia, sobretudo, na rejeição do argumento da tendência à deterioração dos termos de troca dos países subdesenvolvidos. Por essa razão, esforçou-se para mostrar a inexistência de constrangimentos ou desvantagens na produção para a exportação de produtos primários, apesar de reconhecer timidamente as dificuldades que envolviam a comercialização de tais produtos. A sua principal restrição aos que acreditavam na concepção centro-periferia era o fato de vincularem “o progresso com a produção de bens secundários, ou sejam os produtos industriais, e o retrocesso com a produção de bens primários, ou sejam as matérias-primas, extrativas ou agrícolas”

O processo de industrialização, no seu entendimento, prescindiria de uma política deliberada do Estado e poderia ser o

(Bulhões, 1960a). Isto é, na sua visão, os cepalinos insistiam numa falsa conexão entre agricultura e pobreza e industrialização e riqueza.

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resultado da ação espontânea do mercado, desde que houvesse liberdade para a iniciativa privada, notadamente a estrangeira, que deveria receber um tratamento especial do governo, com a criação de uma ambiente adequado à entrada, movimentação e remessa de seus capitais. Bulhões ressaltava que seria impossível, para uma economia como a brasileira, realizar simultaneamente grandes investimentos e aplicar parcela crescente da renda nacional no consumo, sem recorrer ao capital estrangeiro. Ademais, a entrada de capital estrangeiro evitaria a ampliação dos investimentos do Estado, particularmente nos serviços públicos, limitando o seu papel (Bulhões, 1959). Vale destacar que, após 1950, todas as vezes que assumiu cargos de confiança no governo, mostrou o interesse em criar um ambiente favorável ao capital estrangeiro.

E, quanto à política câmbial, que durante praticamente toda a década de 50 foi utilizada para promover a industrialização, Bulhões teve um comportamento ambíguo, que, muitas vezes, refletia os compromissos que tinha de respeitar por desempenhar algum cargo. Assim, foi favorável à adoção das taxas múltiplas de câmbio por Vargas, apoiando o projeto em tramitação na Câmara, em 1952, consolidado através da Instrução 70, em 19531

A sua crítica à diferenciação cambial se sustentava, sobretudo, nos argumentos de que as taxas múltiplas eram um

. Quando ocupava a Direção da Sumoc, no Governo Café Filho, Bulhões endossou a posição de Gudin de não reformar o sistema de taxas múltiplas de câmbio, contrariando a proposta do FMI, dos cafeicultores e de personagens como Roberto Campos. Mas, após a sua saída da Sumoc, em 1955, Bulhões se tornou um dos principais críticos da Instrução 70, sendo, inclusive, o responsável pela sua eliminação, por meio da Instrução 204, que iniciou o processo de unificação cambial, quando reassumiu a direção daquele órgão, no governo Jânio Quadros.

1 Conforme depoimento ao Observador econômico e financeiro (outubro de 1952)

e citado por Bielschowsky (Bulhões, 1988).

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“atentado ao sistema de preços”, ao se atribuirem valores diferentes à moeda (Bulhões, 1958a) e resultavam num subsídio invisível para determinados produtos e empreendimentos (Bulhões, 1958b). Dessa forma, ele passou a condenar o uso de instrumentos importantes como o câmbio no fomento à industrialização, em razão da sua crença em um processo espontaneamente conduzido pelo mercado.

Ao indicar a possibilidade da industrialização espontaneamente conduzida pelo mercado, Bulhões se opôs à implementação de uma política deliberada de desenvolvimento, através do planejamento, como sugerida pela Cepal, que transferia para o Estado tanto o papel de coordenador, como o de executor de determinados investimentos. Em artigo publicado em 1957, Bulhões forneceu indícios de quais seriam as atribuições aceitáveis do Estado, quando separou dois tipos de “economias externas”: o primeiro, representado pelos investimentos em assistência técnica, ensino agrícola e industrial. O segundo, representado pelos investimentos em serviços públicos, como energia elétrica e transporte. Logo:

No primeiro grupo seria considerado a educação e o ensino técnico, em suas múltiplas modalidades. O Estado assumiria a administração e a responsabilidade principal do financiamento desse empreendimento. No segundo grupo seria considerado o serviço público, orientado e regulado pelo Estado, mas administrado e financiado pelos particulares (Bulhões, 1957a, p. 11).

Isto é, ele advogou a restrição da interferência do Estado àquelas áreas clássicas delimitadas por Adam Smith, cuja ausência de lucro desestimularia os investimentos privados, não obstante a sua importância econômica e social.

Por fim, vale ressaltar que, de acordo com Bulhões, os entraves para superar o atraso econômico residiam, sobretudo, na interferência "considerável" do Estado nas economias subdesenvolvidas, notadamente na formação dos preços, além de se omitir quanto à preservação do valor da moeda, causando períodos prolongados de inflação que emperravam o progresso

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da iniciativa privada (Bulhões, 1960a). Ou seja, o funcionamento eficiente do mercado era comprometido pela forte interferência do Estado. Tal argumento era uma crítica à afirmação de Myrdall, realizada em um conjunto de conferências pronunciadas no Cairo, em 1956, de que “o jogo das forças de mercado tende, em geral, a aumentar e não a diminuir as desigualdades regionais” (Bulhões, 1972:51-52).

Política econômica

Na visão de Bulhões, o crescimento estável da economia dependeria da operação competente da política econômica, com a adoção de políticas monetária e fiscal rígidas. Quanto à política monetária, recebeu uma atenção maior por ser concebida como instrumento primordial de estabilidade econômica. Ainda em 1950, endossou o Relatório da Comissão Mista, cujo diagnóstico indicava a necessidade da manutenção da inflação brasileira em níveis semelhantes ao da inflação do resto do mundo. As recomendações da comissão para compatibilizar crescimento com estabilidade de preços obedecia ao receituário monetarista, como o equilíbrio orçamentário, o controle cambial e a restrição ao crédito, que também deveria ser complementado com a entrada de recursos estrangeiros, especialmente para a ampliação da capacidade produtiva (Comissão mista-relatório final, 1950).

Por ter aceitado o perfil monetarista do Relatório, Bulhões coerentemente passou a rejeitar a tese difundida pelos teóricos do desenvolvimento não-ortodoxos - particularmente pelos cepalinos - de que a inflação seria uma companheira inseparável do crescimento econômico dos países subdesenvolvidos, como se segue:

Será que o aumento da atividade econômica há de ser necessariamente acompanhado de inflação? Várias pessoas acham que a inflação é um mal inevitável, a serviço do desenvolvimento econômico de um país. Mas a grande verdade é que se a expansão se realiza com desajustamentos cumulativos, isto é, com inflação, a tendência à depressão é inevitável (Bulhões, 1950:33-34).

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A partir destas considerações, procurou dar uma interpretação teórica ao processo inflacionário brasileiro, quando fica evidente a sua conversão à ortodoxia. Vale lembrar que, na primeira fase, notadamente no livro Orientação e Controle em Economia, de 1941, Bulhões concebia a inflação como fenômeno inerente a uma economia em rápida expansão, ainda que houvesse disponibilidade de poupança para sustentar um grande volume de investimento. Na segunda fase, ao contrário, se sustentou na tese da existência de poupança forçada, decorrente de uma situação de desequilíbrio, em que o volume de investimentos seria superior ao volume de poupanças voluntárias dos indivíduos, provocando desequilíbrios cumulativos, que se manifestariam por meio da inflação, que deveria ser seguida de forte depressão (Bulhões, 1950).

Com o aprofundamento da industrialização no período, Bulhões alertou para o fato de que havia uma intensa pressão dos investimentos, sobretudo públicos, financiados pela via inflacionária, como pode ser visto em outro texto:

os investimentos são muitas vezes, de origem 'mágica'. Não se baseiam nem nas economias realizadas pelas sociedades, nem nas somas economizadas pelos indivíduos, nem, ainda, nas somas destacadas pelas empresas para depreciações. São investimentos financiados por meio de créditos bancários, amparados por sucessivos redescontos que se estribam, em última análise, em emissões permanentes de papel-moeda" (Bulhões, 1954a:2).

Isso justificaria a necessidade de medidas, como o controle sobre os gastos públicos, a adoção de uma política monetária disciplinadora dos investimentos que evitasse principalmente a poupança forçada e a restrição do crédito. Logo, tais medidas eram coerentes com o receituário ortodoxo.

Após 1956, Bulhões indicou uma nova fonte de instabilidade monetária. Além dos investimentos financiados pela via inflacionária, os aumentos salariais concedidos pelo governo em percentuais superiores à inflação estavam achatando os lucros, comprometendo as reservas empresariais destinadas aos

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investimentos. Desse modo, os aumentos salariais aumentariam o gasto agregado em consumo, em detrimento da capacidade de investimento das empresas privadas, restringindo a taxa global de inversão.

Ademais, na sua opinião, os reajustes salariais provocariam o acirramento do conflito distributivo, apontando, de modo ainda rudimentar, o risco da elevação contínua dos preços levar a uma certa inércia no processo inflacionário. Ele assinalava que, naquele período, a inflação estava se agravando "por força da adaptação das remunerações dos fatores à depreciação monetária". Quando se verificava apenas o incremento dos lucros, "a inflação aumentava de maneira mais gradativa". Entretanto, quando todos, trabalhadores, empresários, governo e até os detentores de títulos também "puderem reajustar seus vencimentos, seus lucros, suas rendas e também seus aluguéis, nesse dia estaremos em plena hiperinflação". Esse contexto cria a necessidade de que os reajustes sejam feitos em proporções e velocidades cada vez maiores.

Nesse artigo, Bulhões descreveu com razoável grau de acerto uma situação na qual os diversos agentes teriam de lutar de todas as formas para se protegerem da escalada inflacionária, pesadelo que iria fazer parte do cotidiano dos brasileiros anos depois da introdução da correção monetária - patrocinada por ele durante o governo Castelo Branco -, que viabilizou um processo de indexação generalizada da economia.

Em 1963, apresentou dados mostrando que estaria havendo incremento expressivo na participação dos salários na renda urbana, de 40,1%, em 1947, para 52,6%, em 1960, em razão dos reajustes abusivos concedidos pelo governo, comprometendo, por conseguinte, o lucro e a capacidade de investimento do setor privado.

Ao insistir que estaria ocorrendo uma elevação dos salários em níveis superiores ao aumento do custo de vida, assumia que uma política antiinflacionária obrigatoriamente teria de contemplar a contenção salarial, que viabilizaria a recomposição

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das margens de lucro e a recuperação da capacidade de inversão do setor privado.

A crença de que os desequilíbrios monetários decorriam de descontrole dos gastos públicos - principal resultado de uma errônea política de investimentos - e dos aumentos abusivos de salários acaba por identificá-lo com a "Teoria Quantitativa da Moeda" e do monetarismo, pois, grande parte destes investimentos era público, o que pressupõe que, ao invés de o governo, no seu programa de obras, interferir no nível de atividade econômica e do emprego, estava apenas provocando mais inflação e desvirtuando o mercado, emperrando a ação da iniciativa privada.

Além disso, a inflação representava uma ameaça à conduta lógica dos indivíduos, à racionalidade na escolha dos investimentos e à coesão.

No que se refere à política fiscal, a sua ênfase recaiu sobre a política tributária, que tinha por finalidade especialmente estimular a acumulação de capital e propiciar receitas ao Estado para o investimento naquelas áreas de sua exclusiva competência. Esse tipo de enfoque limitava sensivelmente a política fiscal como um instrumento capaz de promover o crescimento e realocar os recursos dentro da economia, como era defendido pelos keynesianos.

Entre as medidas fiscais, uma função especial teria o imposto de renda como "incentivador e disciplinador da expansão econômica". A sua cobrança seria a mais generalizada possível, pois deveria "recair sobre qualquer parcela da renda nacional, auferida pelos indivíduos, desde que supere certo limite, considerado mínimo de subsistência". Desse modo, "todos, ricos e pobres" deveriam contribuir para o financiamento das despesas correntes do governo. De acordo com Bulhões, o imposto de renda teria a vantagem de poder conjugar "impostos proporcionais e progressivos". O imposto proporcional serviria para custear as despesas do governo e incidiria sobre a renda de todos - pessoas físicas e jurídicas. O imposto "complementar

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progressivo" seria utilizado para fazer face aos objetivos econômicos do governo e incidiria sobre os contribuintes de maior renda.

Entretanto, Bulhões não se opôs ao elevado nível de regressividade atingido pelo sistema tributário brasileiro da época, que se sustentava, sobretudo, nos impostos indiretos. Ao contrário, demonstrava muita simpatia para a concessão de privilégios à acumulação de capital através do imposto de renda (Bulhões, 1960b). Isto é, havia uma ênfase no imposto de renda como instrumento impulsionador da acumulação de capital, em detrimento da sua função distributiva, que por intermédio de sua incidência sobre os grupos de rendas mais elevadas, aliviaria a pesada carga fiscal que recaía, via impostos indiretos, sobre a população mais pobre.

Em suma, as idéias de Bulhões sobre política econômica mostram uma grande intolerância quanto à inflação e à expansão dos gastos públicos, e se identificam quase que integralmente com os argumentos dos monetarista. Na sua visão, a política econômica deveria prioritariamente promover a estabilidade, sobretudo com o uso dos instrumentos clássicos como controle dos gastos públicos, dos salários e do crédito. As suas idéias forneceram as credenciais necessárias para transformá-lo, no início do regime militar, em importante formulador e executor da política econômica.

Liberalismo conservador ou neoliberalismo?

Bulhões foi caracterizado como um economista neoliberal e ativo participante da corrente neoliberal brasileira, por Bielschowsky. Ele ainda explicou que “a tradição da ideologia econômica brasileira desde o início do século XIX até os anos 30 foi liberal”. Mas, após 1930, a crise e as transformações no capitalismo obrigaram a adaptação de tal ideologia ao novo quadro, resultando no neoliberalismo. O prefixo “neo” refletia a admissão de alguma interferência estatal “saneadora de

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imperfeições de mercado” inerentes às economias subdesenvolvidas (1988, pp. 39-43).

Contudo, tal caracterização deve ser revista. Em primeiro lugar, liberalismo não implica ausência de intervencionismo, mas tão somente a restrição da atuação estatal ao mínimo necessário ao funcionamento eficiente do mercado. Daí o conceito de Estado mínimo.

Em segundo, após 1950, nos seus escritos, Bulhões dispensou o uso de medidas destinadas a promover a industrialização e, conseqüentemente, superar o atraso econômico. O modelo primário-exportador não representava obstáculo ao desenvolvimento. A diversificação econômica por ele defendida não era necessariamente sinônimo de diversificação industrial. E a industrialização por ele admitida deveria ser espontaneamente conduzida pelo mercado.

Em terceiro, Bulhões entendia o atraso econômico como produto da excessiva atuação estatal e da falta de "tradição de política monetária", provocadora da permanência da inflação. O subdesenvolvimento, da forma como foi definida pelos cepalinos, era um conceito estranho a ele, que esteve mais próximo da linha rostowniana. Por isso, a superação do atraso econômico prescindia da intervenção deliberada do Estado. O progresso econômico dependeria da maximização da eficiência econômica, só atingida com a "livre movimentação das forças de mercado", como ressaltou o próprio Bielschowsky anteriormente.

Assim, essas concepções não conferem um traço peculiar ao liberalismo de Bulhões, de modo a transformá-lo em neoliberal. As suas idéias econômicas conservam uma convicção nas incontáveis virtudes do mercado. Tal convicção coincide com os princípios do liberalismo do pré-1930.

Por último, vale observar que, principalmente com relação a questão da democracia e da reforma social, as idéias de Bulhões se harmonizaram com as concepções desenvolvidas pelo

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liberalismo conservador de meados do século XIX. Isto é, Bulhões foi adepto do liberalismo conservador.

Esse último ponto merece alguns comentários adicionais. O liberalismo foi marcado por muitos avanços e recuos. Na verdade, houve vários tipos de liberalismo, até o chamado neoliberalismo. A vertente pioneira, o liberalismo clássico, deixou um grande legado, representado pela defesa das liberdades individuais, da democracia representativa, do governo constitucional, da separação entre os poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - bem como a oposição ao regime absolutista, ao sistema feudal e mercantil e aos dogmas da Igreja. O resultado foi francamente positivo, ainda que as conseqüências sociais geradas pelo ambiente de intensa liberdade econômica tenham sido perversas para as populações mais pobres até o início do século XX.

Não há dúvida de que o liberalismo, progressivamente, foi perdendo o seu caráter de doutrina revolucionária, à medida que o capitalismo se desenvolvia e a burguesia se consolidava no poder. Conseqüentemente, o liberalismo se estabeleceu como ideologia conservadora de proteção dos princípios compatíveis com os interesses da burguesia, como a defesa da livre concorrência, o Estado mínimo, o direito inalienável à propriedade e a crença de que a busca da harmonia social decorre do ambiente de máxima liberdade que possa ser oferecido ao indivíduo para a perseguição dos seus próprios interesses.

É dentro desse novo quadro que, por volta de meados do século XIX, se fortalecem entre os pensadores conservadores "sentimentos liberais antidemocráticos", configurando o que Bobbio rotulou de "liberalismo conservador". O liberalismo conservador repudiava a democracia, através de uma volta à concepção Whig, que significava um liberalismo limitado e representação restrita, por meio da democracia censitária. Além disso, os liberais se colocaram contra os avanços da democracia e dos recentes compromissos assumidos pelos governos

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democráticos, que, muitas vezes, implicava ampliação da atuação do Estado, através da legislação de bem-estar (welfare legislation), em resposta ao fortalecimento dos movimentos dos trabalhadores (Taylor, 1965).

Nessa reação conservadora, havia o predomínio das concepções dos homens de negócios, cuja lógica era a defesa do intervencionismo que fosse favorável aos seus interesses, prestigiando o laissez-faire somente como fundamento legitimador do repúdio a todo tipo de legislação reformista e de proteção aos trabalhadores (Taylor, 1965).

Mas, a despeito da grande força do liberalismo conservador, já em fins do século XIX, surgiu um "novo liberalismo", que tinha como base a crescente preocupação com a justiça social e com a igualdade. Importantes reformas sociais foram apoiadas pelos "novos liberais"2

Tendo em vista essas considerações sobre o liberalismo, é possível verificar as suas diversas tonalidades, avanços e recuos. O liberalismo propiciou importantes conquistas, tanto no campo filosófico, quanto no político, no econômico e no social. Mas também é relevante salientar que, nos últimos dois séculos, segmentos do liberalismo se opuseram a conquistas valiosas como, a democracia e o governo representativo, os direitos civis e as reformas sociais, em nome da manutenção do laissez-faire, do individualismo puro e da livre competição.

. Ao mesmo tempo, houve a rejeição ao laissez-faire e ao Estado mínimo, a oposição ao darwinismo social e a alguns pressupostos do individualismo, bem como a crítica à liberdade negativa - a liberdade como ausência de restrições - e a busca da liberdade positiva.

A partir da Segunda Guerra Mundial, surgiu o chamado neoliberalismo, cujo texto de origem, como frisou Anderson, é O Caminho da servidão, de Hayek, escrito em 1944. Essa corrente empreendeu um ataque ao Estado intervencionista e de bem- 2 Muitas destas reformas estão descritas nos trabalhos de Taylor (1965) e

Fonseca (1989).

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estar e às políticas keynesianas. Daí a defesa do Estado mínimo, da privatização, da estabilidade monetária, da redução dos impostos e da disciplina orçamentária. Apesar do seu caráter conservador, refletida, principalmente, na oposição ao Welfare State, os neoliberais reconheciam a necessidade de medidas de combate à pobreza, destacando-se a proposta do imposto de renda negativo, de Friedman, e o programa de renda mínima garantida, de Hayek (Fonseca, 1989).

Após todas estas considerações, é possível qualificar o discurso liberal de Bulhões. Em primeiro lugar, ele não se comprometeu com questões como a democracia, governo representativo, direitos civis, cidadania. Ao contrário, Bulhões participou ativamente da conspiração que resultou no golpe militar de 1964 - conforme a bem-documentada tese de Dreifuss (1981) - e contribuiu decisivamente na formulação e na execução da política econômica no início do regime, que, para ser viabilizada exigiu exatamente a supressão do regime democrático e de muitos direitos políticos e civis. Além disso, Bulhões manteve laços com a União Democrática Nacional (UDN) e com a Escola Superior de Guerra (ESG), entidades marcadas pelo caráter autoritário, elitista, antipopular e anti-reformista.

Em segundo lugar, Bulhões quase não se ocupou com questões sociais. Reformas sociais não estiveram entre os assuntos de seu interesse. Ao contrário, no início dos anos 60, quando se acirrou o debate pelas reformas de base, externou a seguinte opinião:

"Fala-se em reforma agrária, reforma tributária, em reforma bancária etc. Não ouvi, porém, até agora, referência à reforma da mentalidade financeira do país, capaz de compreender a importância do lucro na formação da renda nacional (Bulhões, 1963b:35).

Desse modo, as reformas constituíam tema bem menos relevante para Bulhões do que era para os desenvolvimentistas e tinham outro caráter. O seu objetivo imediato era fortalecer a economia de mercado e recuperar as condições favoráveis para o

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desenvolvimento da iniciativa privada, intensificando a acumulação de capital, ainda que para alcançá-lo fosse necessária a intervenção autoritária do Estado e a supressão da democracia.

É possível condensar nas idéias econômicas e na atuação de Bulhões os três momentos da reação às reformas políticas, sociais e econômicas descritas por Hirschman3. Bulhões participou da formulação de um conjunto de proposições, no início do regime militar, que anulou a perspectiva de reforma social, tal qual estava sendo reivindicada na época, além de interromper o processo de amadurecimento democrático da sociedade brasileira no período. Desse modo, perde sentido caracterizá-lo como neoliberal. Ter sido contemporâneo de Hayek e Friedman é insuficiente para associá-lo ao neoliberalismo. Na sua trajetória identificam-se, com mais nitidez, elementos de um liberalismo conservador, semelhante ao existente por volta da metade do século XIX, avesso à democracia e às reformas sociais e descomprometido com o problema da pobreza4

As idéias liberais de Bulhões foram adequadas somente às aspirações dos empresários, ao influir na configuração do modelo do regime militar, que viabilizou a geração de um ambiente de grande liberdade de ação para a iniciativa privada, especialmente a estrangeira, e o controle sobre os trabalhadores,

. Mesmo dentro dos limites políticos e econômicos do liberalismo e do neoliberalismo, as idéias econômicas de Bulhões são profundamente conservadoras.

3 Para Hirschman, as grandes conquistas políticas e econômicas nos países

desenvolvidos foram sempre acompanhadas por uma reação conservadora. A primeira reação surgiu logo em seguida à Revolução Francesa contra a "afirmação da igualdade diante da lei e dos direitos civis em geral - o componente civil da cidadania". A segunda "onda reacionária" surgiu da oposição à extensão do direito de voto no século XIX, ao buscar desacreditar as "massas". A terceira onda se caracteriza pelas investidas contemporâneas contra as políticas econômicas e sociais que constituem o moderno Welfare State (1989).

4 Kuntz, em artigo sobre o neoliberalismo, argumentou que "no Brasil, discute-se como se o mundo tivesse voltando ao século XIX" (S/D, p. 61).

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numa competente combinação de liberdades econômicas e restrições políticas.

Por essas razões, não cabe o prefixo “neo” no liberalismo de Bulhões. Ademais, alguns depoimentos a respeito de Bulhões quase sempre lhe atribuíram um perfil de liberal da “velha guarda”. Roberto Campos, por exemplo, revelou que Bulhões "foi o papa do liberalismo econômico, antes que isso fosse consenso mundial".

Bulhões e a política econômica do pós-64

O governo militar que se instalou no dia 1o

Entre os novos condutores da política econômica, a crítica ao estruturalismo e ao nacional-desenvolvimentismo era centrada em quatro pontos: o distributivismo, a tolerância com a inflação, o estatismo e o nacionalismo. O discurso oficial propagava que as antigas concepções levaram à permanência de elevadas taxas de inflação, à redução do ritmo de crescimento, ao desestímulo à entrada de investidores estrangeiros e à crise política e social.

de abril de 1964 viabilizou importantes mudanças do ponto de vista econômico, político e social. A nova equipe econômica, sob a direção de Bulhões e Campos, promoveu uma reorientação da política econômica, além do rompimento com o estruturalismo e com o nacional-desenvolvimentismo.

Com o golpe militar, os técnicos então se auto-afirmaram portadores da verdade e da racionalidade, únicos capazes de conduzir de forma neutra a política econômica, livre da interferência política e de interesses de grupos econômicos.

Assim, ao diagnóstico estruturalista e à política desenvolvimentista, se opôs uma explicação de curto prazo, que encontrava na instabilidade política e institucional motivada por Goulart e na irracionalidade da política econômica a fonte dos problemas econômicos, sobretudo a inflação e a redução nas

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taxas de crescimento5. A explicação de curto prazo fundamentou a crença de que o autoritarismo possibilitaria uma intervenção rápida para varrer todos os resquícios populistas6. Isso implicava uma nova política econômica, cuja ênfase deveria se centralizar no lado da oferta, voltada para a mobilização de vários mecanismos destinados a gerar as condições adequadas para o desenvolvimento da iniciativa privada. O modelo buscaria ainda uma maior abertura ao exterior, tanto pela promoção de exportações7

A análise dos documentos oficiais - como o Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) e O mercado brasileiro de capitais - e das medidas adotadas durante o governo Castelo Branco permite a identificação de muitos pontos comuns com as idéias e as propostas amadurecidas por Bulhões entre 1950 e 1964. Ele ofereceu uma das formulações mais completas do projeto do início do regime militar. E, a partir da atuação dele, é possível observar os principais momentos da execução da política econômica durante o governo Castelo Branco.

, quanto pelo estímulo à entrada de capitais estrangeiros.

5 Baer e Maneschi indicam duas vertentes explicativas para a crise do início

dos anos 60: a escola de curto prazo e a escola estagnacionista (1969). Simonsen segue a mesma linha, separando a explicação ortodoxa da explicação estruturalista (1976).

6 Vianna confirma esta crença, ao salientar que "as expectativas eram de eleições presidenciais diretas no início de 1966, pois dois anos bastariam, segundo cálculos de Roberto Campos, para a 'limpeza da casa', após o que se devolveria o país à normalidade constitucional" (1987).

7 A partir de 1964, houve a tentativa de mudança da estratégia da industrialização via substituição de importações, para uma de promoção de exportações, através de uma política agressiva que envolveu a concessão de incentivos e subsídios. Sobre a nova orientação vide Mpce (1964), Simonsen (1976), Oliveira (1981) e Barbosa (1982). Durante o período do "milagre", tal estratégia continuou, sendo o Brasil apontado, por técnicos do Banco Mundial, como um bom exemplo de modelo exportador. Contudo, o primeiro choque do petróleo obrigou o retorno, numa fase mais profunda, à política de substituição de importações, com o II Plano Nacional de Desenvolvimento do Governo Geisel.

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O Paeg e a política antinflacionária

Logo no início do regime militar, o tom do discurso da equipe econômica era triunfalista. Ainda em abril de 1964, Bulhões previa a correção do todos os desajustes em 22 meses, exigindo, porém, sacrifícios e a disciplina nos costumes (1964b), anunciando o uso de remédios amargos, ao alertar que não seria com "benzedura" que se poderia eliminar a inflação. Imaginava que o novo governo era "a oportunidade única para combater a inflação" (1965d). Assim, o autoritarismo era o ingrediente que faltava para garantir a execução das reformas econômicas e de uma política antinflacionária bem sucedida.

As medidas inicialmente adotadas incorreram em novas pressões, gerando a inflação corretiva. Apesar de todos esses ajustes, o discurso de Bulhões continuou otimista8

Em novembro, foi lançado o Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg), para o período 1964-1967, que pretendeu viabilizar as reformas capazes de gerar a estabilidade e criar as condições para um novo modelo de desenvolvimento. Seu diagnóstico indicava a inflação como o motivo fundamental da instabilidade, e resultava da "inconsistência da política distributiva". As principais causas da inflação residiam nos déficits públicos, na excessiva expansão do crédito às empresas e nos reajustes salariais concedidos pelo governo, em percentuais superiores ao aumento da produtividade. Tais causas estariam provocando a expansão dos meios de

.

8 Ainda em maio de 1964, repetia o discurso triunfalista ao prever que, em

1965, o país iria superar a crise econômica, proporcionando o retorno de uma taxa de crescimento entre 6 e 7% ao ano (Bulhões, 1964c). Em julho de 1964, apostava numa recuperação brilhante da economia em 6 meses (Bulhões, 1964e). Neste mesmo mês, quando apareceu na televisão no programa "90 Dias de Revolução", prevenia que o País atravessaria "dias amargos durante um prazo de seis meses para, depois, conquistar a melhoria do consumo" (Bulhõs, 1964f). E no mês de agosto, voltaria a afirmar que "antes do fim do ano estaremos em marcha ascensional, com tendência à estabilização dos preços" (Bulhões, 1964g).

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pagamento, "gerando, destarte, o veículo monetário de propagação da inflação" (MPCE, 1964).

A política de estabilização Paeg faria uso de medidas clássicas como contenção das despesas do governo, restrição do crédito e arrocho dos salários, identificando-se com os escritos de Bulhões posteriores a 1950. Essa política também se adequava ao receituário ortodoxo difundido pelo FMI.

Após o lançamento do Paeg, o discurso da equipe econômica foi mais contido e realista. Possivelmente, amadurecia a percepção da equipe econômica de que a política até então adotada havia gerado novas pressões inflacionárias que exigiriam maior tempo para serem absorvidas, contrariando a crença de que os ajustes feitos logo reconduziriam a economia à estabilidade. O gradualismo só é pronunciado oficialmente com freqüência após a publicação do Paeg, em novembro. É claro que o governo não havia usado a terapia de choque. Mas, a permanência da inflação elevada contrariou a previsão inicial de resultados rápidos, exigindo a justificativa do seu ajuste às metas de uma estratégia gradualista. A opção pelo gradualismo também passou a ser utilizada para refutar as associações entre o Paeg e FMI, já que o Fundo recomendava o tratamento de choque. Entretanto, o gradualismo não implicava tolerância para com o processo inflacionário, sinalizando apenas que a estabilização demoraria mais tempo do que o anunciando inicialmente. Ademais, a efetivação das reformas poderia contribuir no combate à inflação.

Por isso, o Paeg teve dois fundamentos: o primeiro, foi a política de distribuição de renda em favor dos empresários, com a imposição de uma severa disciplina salarial aos trabalhadores. O segundo, a combinação das reformas, como a tributária e a do sistema financeiro e do mercado de capitais, com um maior controle da participação do Estado, contemplando, inclusive, a proposta de privatização das estatais. A efetivação desses fundamentos seguiu uma orientação muito próxima das idéias de Bulhões.

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Distribuição de renda

Desde os anos 50, Bulhões concebia como abusivos os reajustes salariais concedidos pelo governo, que tinham como efeito a redução dos lucros e da capacidade de poupança e investimento do setor privado, bem como a elevação da inflação. A política de distribuição de renda executada após 1964 seria coerente com as suas idéias, pois havia a pretensão de transformá-la em sustentáculo da estabilização e mecanismo de recuperação da capacidade de acumulação do setor privado.

Nos documentos oficiais produzidos no início do governo Castelo Branco, o tema distribuição de renda foi tratado com muita sutileza, definindo como objetivo o reajuste dos salários conforme o aumento da produtividade e a manutenção da participação dos salários na renda nacional. Contudo, este objetivo permaneceu como peça de retórica, já que conflitava com outros objetivos contidos no próprio Paeg, como a elevação da taxa de poupança da economia (MPCE, 1964). A política econômica foi implementada com a intenção de compatibilizar o combate à inflação com aceleração da acumulação privada e não com o intuito de manter os salários reais. Mas, se por um lado o conteúdo dos documentos oficiais era sutil e ambíguo, o discurso claro e direto de Bulhões foi bastante revelador da nova orientação da política de distribuição de renda.

Bulhões, associou a retração da atividade econômica ocorrida nos últimos anos à política que buscava incentivar a distribuição e desestimular os investimentos (1964e). Desse modo, o novo modelo deveria se sustentar no estímulo à aceleração da acumulação privada, pois entendia-se que a baixa dos salários não levaria à estagnação, à medida que viabilizaria a expansão dos investimentos (1965b).

Uma fonte de distorções estava na administração pública. O crescente poder de barganha dos trabalhadores dos serviços públicos permitiu a adoção de "uma política de remuneração do trabalho em flagrante conflito com a evolução da produtividade

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dos empreendimentos", representando a principal causa dos déficits do tesouro (1964g).

Em 1965, os reajustes salariais concedidos no ano anterior foram apontados como uma das causas da permanência da inflação elevada. Ele destacou a necessidade de "um período prévio de estabilização da distribuição de renda", através da correção salarial em percentuais inferiores ao do aumento do custo de vida (1965b). Por essa razão, apesar de a nova política salarial ter definido como critério de reajuste a média do poder de compra dos últimos 24 meses, mais produtividade, na prática ela não foi aplicada, prevalecendo reajustes abaixo da variação dos preços.

Além de sustentáculo da estabilização, a restrição salarial permitia a recomposição da lucratividade e da capacidade de investimento privada. Conforme Bulhões, a política do governo anterior, que buscava "aumentar sua popularidade agradando os consumidores em geral e os trabalhadores em particular", através do congelamento dos preços, tarifas e aluguéis, e, ao mesmo tempo, concedia reajustes salariais, gerou diversas distorções, que, para serem corrigidas, exigiriam um processo de redistribuição de renda em favor dos produtores agrícolas, dos serviços públicos, dos proprietários de imóveis (1965c)9

combater a inflação é eliminar o excesso de distribuição de renda, de modo a concentrar os recursos disponíveis na restauração do

. Em virtude disso, ele enfatizava que:

9 Embora houvesse um controle rigoroso sobre os salários, o governo

buscou gerar um ambiente de liberdade de preços, como a eliminação dos tabelamentos e congelamentos (Idem, 1966a, p. 2; 1966e, p. 34). O organismo criado para a administração de preços, a Comissão Nacional de Estímulo à Estabilização de Preços (Conep), instituída em 23.02.65, como um departamento da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), visou conceder incentivos fiscais às empresas que voluntariamente mantivessem os reajustes de preços dentro de níveis estabelecidos pelo governo. O Conep foi substituído pelo Conselho Interministerial de Preços, em 1968 (Bulhões e Campos, 1965; Diniz e Boschi, 1987).

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processo produtivo, destruído pela inflação. Impõe-se o sacrifício da diminuição das remunerações individuais a fim de possibilitar a capitalização da eficiência empresarial (Bulhões, 1965e:4).

Assim, a lógica do modelo de Bulhões, e que vigorou entre 1964-1967, objetivou a estabilidade de preços e a acumulação de capital, em detrimento dos salários e, por conseguinte, do consumo dos trabalhadores. O crescimento deveria ser conduzido pela acumulação de capital e pela expansão do comércio exterior, dispensando esforços para incorporar as populações marginalizadas, tendo em vista a ampliação do mercado interno.

Reforma tributária

A reforma tributária cumpriu o duplo objetivo de recuperar as finanças públicas e estimular a acumulação privada, contribuindo para agravar a concentração de renda.

Desde o início da sua gestão, Bulhões explicitou qual seria a orientação do novo sistema tributário: a) a taxação do consumo em níveis superiores ao do capital e a concessão de generosos incentivos tributários à acumulação; b) a generalização da cobrança do imposto de renda e a moderação das alíquotas, de modo a limitar a sua cobrança progressiva e c) o oferecimento de estímulos fiscais para a manutenção dos preços.

As medidas implementadas aperfeiçoaram os métodos de controle fiscal do governo e modernizaram o sistema tributário, especialmente, com a substituição da incidência em cascata pela de valor adicionado e a eliminação de diversos impostos anti-econômicos e pouco funcionais. O novo sistema estabeleceu ainda instrumentos destinados a estimular a acumulação privada.

O novo sistema contribuiu para a recuperação da receita do governo. A carga tributária bruta, que estava em queda desde 1961, quando ficou em 18,8% do PIB, subiu para 19,4% em 1964, 21,8% em 1965, 24,1% em 1966 e 21,5% em 1967. A poupança do governo também teve uma recuperação substancial. Contudo,

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mesmo com o aperfeiçoamento do sistema tributário, percebe-se que o desempenho obtido refletiu muito mais uma recuperação das receitas, do que propriamente um aumento da capacidade tributária do Estado. Isto é, o governo buscou muito mais a recuperação da capacidade tributária, para sanear as finanças públicas - num momento de forte contenção das despesas - e a modernização do sistema, ajustando-o para o alcance de determinados objetivos, como o estímulo à acumulação de capital e às exportações. Não estava nos planos de Bulhões e da equipe econômica um aumento substantivo na carga tributária, mas somente a sua recuperação10

Por último, deve ser indicado que a elevada participação dos impostos indiretos determinou uma distribuição desigual em termos de capacidade de pagamento, contribuindo para agravar a concentração de renda.

. A redução da inflação e a retomada do crescimento nos anos seguintes tiveram uma influência no comportamento da receita tributária do governo tão importante quanto a reforma.

Reforma do sistema financeiro

A reforma do sistema financeiro, implementada após 1964, representou uma tentativa de estabelecer um arcabouço institucional capaz de viabilizar o financiamento da economia, sobretudo a longo prazo. É relevante um comentário sobre esta

10 Quando esteve na Comissão Mista do Congresso Nacional para prestar

esclarecimentos sobre a reforma tributária, Bulhões concordou com a preocupação do Deputado José Humberto, de que a proporção dos impostos na renda nacional, em torno de 25% - evidenciando certo exagero -, era elevada. Bulhões salientou ainda que as mensagens do executivo enviadas ao Congresso previam uma redução nesta proporção em 1965 e em 1966 (Bulhões, 1965f). Alguns anos depois, ele acusou que o próprio sistema tributário tinha se tornado um importante foco inflacionário, ao assinalar que devido às imperfeições no processo de arrecadação de impostos "dificilmente podemos alcançar uma expansão econômica superior a 5% sem provocar um surto de inflação" (1971, p. 12).

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reforma porque sua concepção original se assemelhou às propostas de Bulhões, que, entretanto, tornou-se um crítico dos seus desdobramentos no pós-67.

No início do regime militar, havia duas teses sobre o reordenamento do sistema financeiro: a primeira, sustentada por Jaime Magrassi de Sá, na época presidente do BNDE, defendia um controle estatal sobre o sistema. A segunda, de Bulhões e Campos, que saiu vitoriosa, advogava a criação de um sistema nos moldes londrinos, com um setor financeiro competitivo. Havia, desde o começo, a intenção de controlar o papel do Estado no sistema financeiro e eliminar o processo de transferência compulsória de renda dos indivíduos e empresas, através do imposto inflacionário, para o governo, o que era coerente com as objeções feitas por Bulhões, nos anos 50, ao processo de geração de poupança forçada decorrente da política econômica. Por causa disso, a reforma empreendida por Bulhões e Campos se enquadrava dentro da nova orientação de política econômica, firmada na crença de que a retomada do crescimento deveria ser induzida pelo mercado, prescindindo de mecanismos inflacionários de financiamento. Na reforma do sistema, destacam-se a transformação da Sumoc em Banco Central (BC), a criação do Conselho Monetário Nacional (CMN), a introdução da correção monetária, a segmentação do mercado financeiro e a modernização do mercado acionário11

A introdução da correção monetária e a eliminação do controle dos juros, com o fim da lei da usura, para possibilitar uma taxa de juros positiva, foram medidas importantes. Elas buscavam estimular a aplicação voluntária das poupanças, dinamizando o mercado de títulos e viabilizando o financiamento do déficit público, ao mesmo tempo que pretendiam reduzir as transferências compulsórias de recursos

.

11 A correção representou uma forma de proteção dos títulos públicos contra a

inflação, como sugerido por Bulhões ainda nos anos 50 (1954b). Sobre as reformas no sistema financeiro no pós-64 vide MPCE (1965a), Tavares (1983) e Galvêas (1985).

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do setor privado para o governo. A criação do CMN e do Banco Central e a limitação do poder do Banco do Brasil - o que deveria em tese permitir um maior controle sobre a política monetária - também deveria contribuir para aquela finalidade.

Intervenção do estado e liberalismo

No Paeg há uma declaração explícita de que o planejamento teria como objetivo criar uma ordem para favorecer a operação das "forças de mercado", assegurando o "papel regulador do sistema de preços", embora houvesse uma rejeição ao princípio do laissez-faire, aqui expresso no "livre jogo das forças do mercado" (MPCE, 1964:13).

Desse modo, percebe-se a orientação liberal do Paeg, definindo um tipo de planejamento que contrastava sensivelmente com as experiências anteriores, em especial com o Plano de Metas de JK12

Houve uma disposição firme da equipe econômica em fortalecer a economia de mercado e controlar o papel do Estado, ainda que o projeto liberal tivesse viabilidade política duvidosa. O próprio Paeg teve como uma das metas da reforma do mercado de capitais o saneamento de algumas empresas públicas, objetivando a privatização, devido ao "já excessivo grau de estatização da economia nacional" (MPCE, 1964). Bulhões

. Não havia a busca deliberada da continuidade da industrialização, nem a indicação de novas áreas, que a intervenção estatal deveria alcançar. A premissa fundamental do Paeg era exatamente promover a estabilização de preços, gerando as condições adequadas para o desenvolvimento da livre iniciativa.

12 Até mesmo o Conselho Consultivo de Planejamento (Consplan), criado em

fevereiro de 1965 como órgão de consulta do governo, sobretudo para colher sugestões quanto à execução do Paeg e a formulação do Plano Decenal, principalmente junto ao empresariado, teve resultados inexpressivos, servindo apenas como fórum de discussão das queixas deste segmento quanto ao rigor da política econômica (Velasco e Cruz, 1978).

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também ressaltou a "preocupação do governo em incentivar a iniciativa privada", acenando com a possibilidade de privatização de empresas sob o controle do governo (1964h). Tal propósito foi reforçado, quando se procedeu à recuperação das tarifas públicas, garantindo o retorno da lucratividade das empresas como meio indispensável à privatização (1966d).

Esse comportamento era coerente com a lógica liberal: primeiro, o saneamento das empresas públicas, com violentos reajustes de tarifas e, posteriormente, a privatização. E mesmo as empresas que foram estatizadas pelo governo Castelo Branco eram empreendimentos vitais para a economia, nos quais a iniciativa privada - na maioria dos casos estrangeira -, como a Bond and Share, a ITT e a Companhia Telefônica Brasileira, perdeu o interesse em investir devido aos processos de nacionalização realizados no período anterior.

A maior parte das empresas estatais criadas entre 1964 e meados dos anos 70, cumpriu funções que antes estavam a cargo da administração direta, muitas vezes apenas transformadas em subsidiárias na forma de unidades estaduais ou regionais, tendo em vista maior agilidade e eficiência da administração, não implicando a entrada em novas áreas.

O processo de saneamento financeiro das empresas acabou por contribuir para a ampliação do papel do Estado após 1967. À medida que o saneamento aumentava a capacidade de inversão das empresas, permitindo a ampliação das suas atividades, elas permaneceram nas mãos do governo, resgatando o seu papel nuclear, elevando o grau de estatização da economia, ao inverso do previsto pela equipe econômica.

Os Resultados do Paeg

A execução das reformas foi se transformando em condição necessária para garantir o sucesso da estratégia antinflacionária. Mesmo que em 1964, e particularmente em 1965, a expansão monetária tenha extrapolado as metas, houve restrição ao

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crédito, cujo impacto sobre a atividade econômica foi muito forte, comprovando que os resultados obtidos em termos de redução de preços eram modestos frente aos sacrifícios exigidos. Isso provocou insatisfação entre os empresários e os segmentos importantes das Forças Armadas, que progressivamente minavam as bases de sustentação do governo Castelo Branco, da equipe econômica e da política econômica. Bulhões respondia às críticas assinalando as conquistas, como a diminuição do déficit público, através da supressão dos subsídios cambiais, do congelamento das tarifas públicas e do controle dos preços agrícolas (1965b).

Nesse momento, além do rigor da política salarial, a política fiscal produzia bons resultados. O déficit público caiu pela metade entre 1964 e 1965, de 3,2% para 1,6% do PIB, graças ao aumento da receita e à redução das despesas do governo.

Não obstante as críticas, a política monetária frouxa e a permanência da inflação em níveis elevados em 1965 obrigaram a equipe econômica a desfechar um ataque mais violento e definitivo na inflação, através de uma política monetária bem mais severa já no início de 1966.

As críticas se intensificaram porque, ao mesmo tempo que aumentava o aperto monetário interno, o governo concedia privilégios às empresas estrangeiras, autorizando a contratação de empréstimos no exterior através da Instrução 289. Mesmo que todas as empresas nacionais e estrangeiras pudessem usar o instrumento, havia a acusação de que os grandes beneficiários eram as empresas estrangeiras. Bulhões refutava tais acusações ao afirmar que devido à facilidade de acesso aos recursos do exterior, elas deixavam de "competir com as empresas nacionais na procura de crédito no mercado nacional", aliviando a procura interna pelo crédito (1966f). Ele também destacava que a escassez de capital de giro não estava relacionada à restrição do crédito, mas ao excesso de imobilização. Por isso, receitava que era urgente a necessidade de desmobilização dos ativos por parte das empresas (1966d).

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Logo, a restrição ao crédito, além de ser coerente com o diagnóstico do governo, satisfazia outros objetivos, como a desmobilização e a queima de capital excedente, obrigando, muitas vezes, a abertura de capital das empresas, viabilizando assim a compra e associação de empresas nacionais com grupos multinacionais. Ou seja, estava em curso um verdadeiro trabalho de depuração, segundo a ótica de Bulhões - e de toda a equipe econômica-, ao eliminar as empresas ineficientes e possibilitar a entrada de capitais estrangeiros, mais competitivos, dotados de tecnologia mais avançada, concretizando a transição para uma economia mais internacionalizada.

A virada na política monetária ocorrida no início de 1966 fez com que no último trimestre desse ano e no começo de 1967 a economia apresentasse sinais de recessão. Mas, para que a inflação atingisse o patamar aceitável pela equipe econômica, era necessária a continuidade do aperto monetário, ainda que a estabilização completa dos preços implicasse uma recessão cavalar, já que a estratégia monetarista atingia em primeiro lugar e com mais intensidade o nível de atividade econômica e, somente depois, os preços.

Contudo, a anunciada saída do presidente Castelo Branco frustrava a expectativa de que a estratégia ortodoxa permanecesse. O próprio Bulhões testemunhou que não recebeu convite do novo presidente - que pretendia ver o ministério totalmente reformado - para ficar no cargo, embora a retórica de Bulhões expressasse a crença de que a política econômica não seria alterada (1967a).

A mudança de governo e da equipe econômica e, especialmente, o abandono da política econômica resultaram de algumas condições, tais como: a) a insensibilidade quanto aos custos sociais e econômicos da estratégia de estabilização, à medida que o crescimento econômico esteve totalmente subordinado à estabilização; b) a inconsistência do diagnóstico; c) o abandono da industrialização como objetivo deliberado de política econômica; d) o favorecimento explícito às corporações

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multinacionais, em detrimento do capital privado local, resultando no processo de desnacionalização. Esses fatos contribuíram para atrair a oposição de importantes segmentos que até então apoiavam o governo Castelo Branco. O balanço realizado por tais segmentos demonstrava que os progressos foram muito pequenos em relação aos objetivos perseguidos. Portanto, o fim da hegemonia da equipe liderada por Bulhões e Campos não guardava relação com a sua entrada triunfal em abril de 1964.

As mudanças políticas processadas em março de 1967 foram bastante radicais13

No seu discurso de posse como Ministro da Fazenda, em 17/03/67, Delfim Netto sinalizava a adoção de um novo tipo de política:

. Ainda que tenham permanecido alguns traços comuns, a alteração associada à condução da política monetária e da estratégia antinflacionária e ao papel do Estado foi muito profunda, transformando Bulhões - e Campos - em seus críticos.

No decorrer dos últimos meses, a inflação foi alterando a sua feição que era predominantemente de demanda para tornar-se predominantemente de custos. Hoje, o setor privado está comprimido por duas dificuldades que devem ser removidas: 1o) o aumento da pressão tributária e 2o) a elevação substancial dos custos financeiros (Neto,1967:3).

Delfim prometeu que o governo executaria uma política fiscal e monetária destinada a "criar condições para que o setor privado possa resolver o problema" (Neto,1967). No mesmo ato, Bulhões se despediu pronunciando que naquele momento havia "o desafio da escolha entre as medidas conjunturais e as de 13 Campos, muitos anos depois, explicou que a decisão do presidente Castelo

Branco de manter o resultado da eleição de 1965 e dar posse aos governadores da oposição eleitos "provocou uma revolução dentro da revolução", em virtude da rebelião dos oficiais da linha dura, que impuseram a Castelo a assinatura do Ato Institucional no 2, que estabelecia a eleição indireta para presidente e vice. Conforme análise sobre o movimento de 1964 feita por Campos no O Estado de S.Paulo, 31/03/1964.

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longo prazo", e que o novo Ministro saberia "optar pelo melhor caminho" (Neto,1967b). De fato, a opção de Delfim foi pelas "medidas conjunturais", com a progressiva liberalização do crédito e o aumento dos gastos públicos, permitindo a retomada do crescimento, afastando a ameaça de estagnação e iniciando o período do "milagre"14

As críticas de Bulhões aos desdobramentos da política econômica dos pós-67

.

As críticas de Bulhões - também as de Campos - se tornaram evidências incontestáveis das incompatibilidades entre os objetivos do Paeg e a política econômica do pós-67, quando os instrumentos criados foram mobilizados de forma inteiramente distinta. A essência dessas incompatibilidades diz respeito ao fato de que a retomada do crescimento após 1967 foi apoiada na expansão do crédito, sobretudo público, e na captação de empréstimos externos, contrariando o projeto original, que previa a mobilização de recursos via poupanças voluntárias e a entrada de recursos estrangeiros, tanto para investimentos diretos, quanto para aquisição de ações nas bolsas de valores, ocupando posição secundária os empréstimos.

A mudança mais importante, e que permite identificar a nova orientação, esteve relacionada ao papel do Conselho Monetário Nacional (CMN). O CMN havia sido criado para formular e controlar a política de moeda e crédito, ou, nas palavras de Vianna, para ser um "órgão especializado em política monetária", com autonomia frente à administração federal, inclusive com poderes para fiscalizar o Ministério da Fazenda. Entretanto, durante todo o "milagre", se transformou no centro formulador 14 A revista Quarterly Review of Brazil, publicada pelo Economist Intelligence Unit,

de abril de 1967, captou muito bem a reorientação da política econômica, ao evidenciar que "o fato do Sr. Delfim Neto ter, publicamente, declarado que uma taxa de inflação de 15% poderia ser tolerável (...) é um desvio radical do objetivo declarado, da administração anterior, de debelar completamente a inflação" citado por Fishlow (1974, p. 20).

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da política econômica. As novas atribuições do CMN inviabilizaram a pretensão de uma condução austera da política monetária, ao contribuir para uma forte expansão do crédito, mantendo a inflação num patamar superior ao pretendido por Bulhões.

Por essa razão, no início do "milagre", dizia ser impossível a permanência por períodos seguidos de uma inflação na casa dos 20% - que ele apontava como provocada sobretudo, pelo déficit orçamentário e pela pressão gerada pela procura de bens de consumo duráveis - sendo necessário "eliminar decisivamente o resquício inflacionário", sob o risco de que "as favoráveis condições financeiras e econômicas poderão rapidamente transformar-se em graves desajustamentos econômicos e sociais" (1968c).

Do mesmo modo como ocorreu durante o "milagre", Bulhões fez fortes objeções à estratégia do II PND de Geisel, que foi alicerçada mais na intensa expansão creditícia, no aumento dos gastos públicos e na ampliação do grau de estatização da economia e menos no dinamismo do setor privado, mantendo fortes semelhanças com os fatos de pré-64.

A interpretação de Bulhões para os acontecimentos daquele período foi temperada por uma forte oposição à política financeira vigente. O fato de o crescimento da economia após 1967 ter sido sustentado na expansão do crédito e na tomada de empréstimos externos fragilizou o desenvolvimento do mercado acionário, considerado por ele o meio mais adequado para a captação de poupanças. Ademais, a entrada de recursos externos excedeu as necessidades do balanço de pagamentos, aumentando as reservas, pressionando os meios de pagamentos e exigindo a colocação de títulos para enxugar o excesso de liquidez15

O enxugamento do excesso de liquidez, assinalava Bulhões, era realizado a taxas de juros crescentes, acarretando a elevação

.

15 Conforme O Estado de S.Paulo, 27/11/74.

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do custo dos empréstimos. Como os recursos não eram esterilizados16

A condução da política monetária levava a uma ampliação da participação do Estado. Daí as objeções de Bulhões, que advertiu: "enquanto os cofres públicos estiverem garantindo o crescimento econômico", não haveria remédio para o processo inflacionário que não envolvesse "medidas drásticas, recessivas". Posteriormente, houve a saída de Simonsen e o retorno de Delfim Netto à chefia da economia, que pretendia repetir as façanhas do "milagre". Contudo, a gravidade da situação econômica forçou o governo a progressivamente executar uma política recessiva (Fishlow, 1986), que se aproximava da receita de Bulhões.

, retornavam ao circuito financeiro via crédito, demandando o lançamento de mais títulos e assim sucessivamente. Desse modo, ele acusava a rápida perda de funcionalidade do mercado aberto, criado como um mecanismo de captação voluntária de poupança.

Mesmo que o governo tivesse optado aos poucos pela política recessiva, Bulhões criticou o gradualismo, exigindo a adoção de "medidas mais drásticas e sem conseqüências de caráter social". A defesa do tratamento de choque foi acompanhada por frases bombásticas, quando, por exemplo, afirmou que, caso a inflação não fosse derrotada abruptamente, era preciso "importar a Mrs. Thatcher"17, que empolgava os ortodoxos brasileiros, devido ao programa neoliberal implementado por ela na Inglaterra. Depois, Bulhões salientou que, se não acontecesse uma "rápida estabilidade nos preços", haveria a perda da paciência do público, que poderia fazer uma "revolução social" no País. Acrescentou, ainda, que três meses era o tempo suficiente para se jogar a inflação a zero18

16 Conforme O Estado de S.Paulo, 4/5/77.

.

17 Conforme Gazeta Mercantil, 23/6/83. 18 Conforme Folha de S.Paulo, 1/9/83.

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Nesse momento, quando se intensificou a "ciranda financeira" e a crise tornou-se inevitável, Bulhões, denunciou que o mercado aberto se transformou em "extravagante mercado monetário, completamente destituído de finalidade econômica". Por isso, o mercado monetário foi considerado como um "redemoinho de operações financeiras de realimentação inflacionária". Ao mesmo tempo, descreveu sinteticamente, como se processou o acúmulo de distorções na evolução recente da economia brasileira:

na concessão de sucessivos créditos adicionais, no louvável propósito de aumentar-se a produção, provocou-se enorme surto inflacionário. Na tentativa de reduzi-lo, aumentou-se o endividamento público, desmantelou-se o mercado monetário, abalou-se o sistema financeiro e enveredou-se pela recessão"19

Diante de todas essas considerações, é possível verificar que Bulhões fez uma excelente descrição da evolução do sistema financeiro após 1967, mostrando como se gestou a sua crise, além de alertar para a sua forma de funcionamento como a grande fomentadora da chamada "ciranda financeira", de modo parecido com outros autores mais à esquerda

.

20

A forma específica de funcionamento do sistema financeiro brasileiro gerou uma modificação acelerada na composição dos ativos financeiros. No entanto, essa modificação não implicou maior capacidade de financiamento do investimento da economia. Ao contrário, já no início dos anos 70, as distorções se explicitaram. Os títulos públicos, ativos financeiros mais importantes desde 1964, passaram a ter exagerada liquidez, circulando dentro do sistema como moeda financeira,

. Contudo, Bulhões não associou a crise ao tipo de reforma no sistema financeiro executada em 1964, que produziu a ilusão da construção de um padrão de financiamento (Goldenstein, 1994).

19 De acordo com O Globo, 2/8/83. 20 Como, Tavares (1983), Fiori (1990) e Goldenstein (1994).

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negociáveis e reconvertidos em dinheiro com extrema facilidade e dissociados do financiamento do déficit público ou dos investimentos produtivos. Assim, a própria política monetária fortaleceu a esfera financeira, em detrimento da esfera produtiva, a partir da intensa especulação com títulos públicos.

Considerações finais

A partir das reflexões e propostas de Bulhões, foi possível identificar um personagem atuante na história brasileira, particularmente, do final dos anos 30 até o governo militar, período marcado pela gradativa consolidação do capitalismo de base urbano-industrial no Brasil.

O seu antidesenvolvimentismo acabou justificando a sua atuação como importante conspirador do movimento que levou ao golpe militar de 1964 e a sua participação ativa na formulação e na execução da política econômica, expressa no Paeg, durante o governo Castelo Branco, que representou o segundo momento dessa fase.

A análise dos escritos de Bulhões do período anterior a 1964, sobre os temas modelo de desenvolvimento, política econômica e liberalismo, autoriza a conclusão de que tais escritos carecem de originalidade. Explicita-se com muita nitidez um traço indicado por Simonsen de que Bulhões privilegiou a prática da política econômica, encontrando na teoria econômica somente a base para legitimar esta prática21

21 Para Simonsen, Bulhões compreendia a teoria econômica como “um

conjunto de princípios a serviço da prática de política econômica” e não como “um conjunto de explorações intelectuais desenvolvidas por acadêmicos para ser discutidas por outros acadêmicos”. Por isso, ele “só acompanhou por alto as formalizações acadêmicas da década de 70 e dificilmente terá seguido a literatura macroeconômica da década de 80”. Conforme homenagem póstuma a ele oferecida, publicada na Revista Exame, de 31 de outubro de 1990.

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Dessa forma, o período de sua passagem pelo governo Castelo Branco exige uma atenção especial, implicando algumas considerações adicionais, porque é o ponto culminante da sua carreira, quando as suas idéias ganham concretude através da política econômica em vigor. Ao invés de se tecerem considerações sobre os temas abordados por Bulhões no pré-64, priorizou-se a avaliação da sua atuação no início do regime militar. À medida que as idéias de Bulhões careceram de originalidade, elas só adquirem significado se associadas à política econômica e, portanto, se forem tomadas como suporte teórico na conformação dos princípios que guiaram a estratégia do Paeg.

A preferência dada pela equipe econômica a alguns objetivos provocou uma divergência com as prioridades definidas por Bulhões na abordagem de determinados temas no período anterior a 1964. A política econômica contida no Paeg deu total primazia à estratégia de combate à inflação, subordinando o problema do desenvolvimento econômico - assunto que recebeu um tratamento especial de Bulhões antes de 1964.

Mas essa divergência é compreensível, se se admitir que, tanto nos escritos de Bulhões, quanto no entendimento predominante da equipe econômica, a inflação, além de não ser funcional ao desenvolvimento, era um dos principais entraves ao seu alcance. A estabilização completa da economia, por outro lado, era o pressuposto básico para a passagem para um novo modelo de desenvolvimento, que deveria se apoiar principalmente na promoção de exportações22

22 Embora o governo tenha adotado medidas para dinamizar o setor

exportador, elas foram insuficientes para definir um modelo exportador, semelhante ao dos tigres asiáticos. Ademais, uma efetiva estratégia de promoção de exportações representaria uma violenta intervenção no mercado, à medida que o comércio exterior teria de se apoiar tanto nos setores com vantagens naturais, quanto na criação de vantagens em novos setores, exigindo a intensa presença do Estado.

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Agora, com relação à intervenção de Estado e do liberalismo econômico, no governo Castelo Branco, prevaleceu uma orientação coerente com as idéias de Bulhões, à medida que se pretendeu privatizar algumas empresas estatais e privilegiar o mercado; apesar de ter sido frustrada tal pretensão.

Estando as atenções de Bulhões voltadas para a prática da política econômica, cuja temática exigiu um esforço maior de elaboração, foi exatamente no Paeg que se efetivaram muitos pontos defendidos por ele: a priorização do combate à inflação através de uma política ortodoxa envolvendo o arrocho salarial, a redução dos gastos públicos e a compressão do crédito. Além disso, a reforma do sistema financeiro, notadamente com a introdução da correção monetária, com a tentativa de se eliminar o processo de transferência de renda para o Estado através do imposto inflacionário e com a criação do Banco Central. Por fim, a reforma tributária, sobretudo com a concessão de estímulos e subsídios à acumulação de capital.

Diante do exposto, as considerações sobre os escritos e a atuação de Bulhões tiveram de ser centralizadas no período posterior a 1964, em especial, no momento de sua passagem pelo governo Castelo Branco. Ademais, a proeminência que muitos autores deram a Bulhões resultou da sua atuação na formulação e na implementação do Paeg, sendo que esse momento da sua carreira proporcionou um volume apreciável de interpretações a respeito do caráter da política econômica por ele advogada e executada, sendo, inclusive, chamado por Roberto Campos de "Santo Octávio de Bulhões", conforme já ressaltado na seção 1.1. E a referência a esse momento da carreira de Bulhões, torna-se oportuna a análise de algumas interpretações que se mostram insatisfatórias após o estudo das suas idéias.

Um aspecto que merece ser rediscutido esteve ligado ao problema da distribuição de renda. A política deliberada de concentração de renda em vigor no regime militar - endossada de forma explícita por Bulhões - gerou conseqüências práticas e

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um intenso debate teórico. Esse debate foi despertado, sobretudo, com a publicação do trabalho de Hoffmann (1975), ainda em 1971, que forneceu as primeiras evidências mostrando o aumento da desigualdade na distribuição de renda.

De um lado, Simonsen (1972) e Langoni (1973) buscaram isentar a política econômica da culpa pelo aumento das distorções na distribuição de renda, em resposta a Hoffmann. De outro, Wells e Malan (1975), e sobretudo Wells (1975), refutaram a explicação de Langoni, ao conferirem importância ao controle salarial processado pelo regime militar. Fishlow, por sua vez, mesmo atribuindo a responsabilidade pelo agravamento da concentração de renda à estratégia do Paeg, ressaltou que não foi um resultado "inteiramente intencional" - pressupondo um certo acidente -, refletindo apenas o fracasso da política econômica (1975).

Outros trabalhos, como os de Tavares e Serra (1975), Cardoso e Faletto (1981), Cardoso (1979), Pereira (1973), Castro (1972) e Oliveira (1981), ainda que não buscassem isentar a política econômica do governo, ressaltaram a funcionalidade da concentração de renda para o modelo de desenvolvimento já em curso antes do regime militar, ao adequar o perfil de demanda à estrutura de oferta gerada pela industrialização via substituição de importações, especialmente depois do governo JK, sendo, conseqüentemente, uma tendência inexorável do capitalismo brasileiro23

23 O debate surgiu em meio à tentativa de se refutar as teses estagnacionistas,

especialmente a de Furtado, e até mesmo ao reformismo nacional-desenvolvimentista, num momento em que a economia retomava o crescimento acelerado. Tais autores compartilharam o entendimento de que o avanço do capitalismo no Brasil seria necessariamente excludente e concentrador e, em virtude disso, manifestaram idéias muito próximas das defendidas pelos principais teóricos do regime, ainda que não estivessem engajados politicamente na sua defesa. Um exemplo de como havia uma estranha coincidência das teses pode ser encontrado no trabalho de Fiechter (1974), voltado exclusivamente para a apologia do regime, quando utilizou as críticas de Tavares e Serra (1975) ao estagnacionismo, para mostrar o vigor do modelo econômico do regime. Sobre as teses estagnacionistas vide Furtado e Maneschi (1968), Baer e Maneschi (1969), e Goldenstein (1994).

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Os discursos de Bulhões são esclarecedores e sua análise permite concluir que o arrocho salarial e a crescente desigualdade na distribuição de renda não foram acidentes de percurso, ou um custo necessário, inevitável e transitório ou decorriam das imperfeições no mercado de trabalho e, tampouco sancionavam uma tendência inexorável do capitalismo brasileiro. Ao contrário, satisfaziam a lógica da política econômica, que deveria compatibilizar o combate à inflação com a recuperação da capacidade de acumulação do setor privado24

A política econômica do governo Castelo Branco aboliu, de forma deliberada e consciente, mecanismos institucionais de proteção aos trabalhadores, como a estabilidade no emprego. Isso se adequava ao objetivo de flexibilizar o mercado de trabalho, eliminando os entraves de uma legislação rotulada de paternalista e populista, de tal forma que os preços dos fatores refletissem a escassez relativa. Logo, o modelo favoreceu o capital e foi prejudicial aos trabalhadores, viabilizando a concentração de renda.

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Por outro lado, a política do governo, ao arbitrar contra os trabalhadores menos qualificados, achatando o salário mínimo - parâmetro regulador dos salários, principalmente para este segmento - num contexto de abundância de mão-de-obra desqualificada e escassez de mão-de-obra qualificada, criou uma situação em que o mercado aos poucos se encarregou de ampliar as diferenças salariais. Tal situação permitiu a elevação dos 24 A ampliação do grau de concentração de renda inviabilizou progressivamente

a criação de um mercado de consumo de massa no Brasil, do modo como se caracterizou o fordismo nos principais países capitalistas avançados. Tal fato é discutido por Coriat e Sabóia (1988). Os autores da Escola da Regulação - M. Aglietta, A. Lipietz, R. Boyer, B. Coriat e J. Mistral - salientam o papel fundamental de fatores como a relação salarial que se estabelece após a Segunda Guerra nos países desenvolvidos, viabilizando um equilíbrio contínuo entre o crescimento da produtividade e a elevação do poder aquisitivo dos trabalhadores, bem como a forte presença do Estado em áreas como saúde, educação e previdência social, que permitiram a consolidação de um mercado de consumo de massa. Sobre a Escola da Regulação vide Possas (1988).

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rendimentos dos trabalhadores mais qualificados, em detrimento dos menos qualificados. Daí a grande dispersão entre os salários que progressivamente foi se formando no mercado de trabalho brasileiro, acompanhou e reforçou o processo de concentração de renda.

Existe uma carência de trabalhos que analisem as tendências de longo prazo da relação entre distribuição de renda e acumulação de capital para o caso brasileiro. Mas, dentro dessa perspectiva de longo prazo, é duvidoso que o aumento da desigualdade na distribuição de renda tenha decorrido do próprio processo de industrialização do pós-guerra. Na verdade, ela resultou da opção de política econômica feita após 1964. Entre os governos Vargas e JK, quando a industrialização ganhou um grande impulso, através da instalação de novos setores, como a indústria de bens de capital, intermediários e bens de consumo duráveis, houve uma melhoria significativa do salário mínimo25 e, por conseguinte, uma elevação da participação dos salários na renda interna26

25 Dados fornecidos por Fonseca (1989), a partir do Dieese, permitem calcular

que o salário mínimo teve um aumento real de 170% entre 1951 e 1960, enquanto a renda per capita - que pode ser utilizada como medida do acréscimo de produtividade da economia - cresceu 40% no mesmo período. Deve ser lembrado que, em 1959, o salário mínimo atingiu o seu valor máximo em termos reais. Além disso, de acordo com dados de Baltar e Dedecca (1992), neste mesmo ano, o salário mínimo anual equivalia a 2,1 vezes a renda per capita nacional.

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26 Conforme dados publicados no Paeg, a participação da remuneração do trabalho na renda interna saltou de 56,1%, em 1947, para 64,9%, em 1960. E em relação ao PIB, a remuneração do trabalho passou de 47,9% em 1947 para 51,6% em 1960 (MPPCE, 1964). Kuznets (1986) formulou tese dando conta de que as primeiras fases do processo de industrialização são sempre acompanhadas por um aumento da concentração de renda. Entretanto, com o avanço da industrialização, haveria uma redução na desigualdade da distribuição de renda. Oliveira (1981) contestou a tese de Kuznets, assinalando que o avanço da industrialização não implicou melhoria da distribuição de renda, devido às próprias características do processo brasileiro. Mas a partir de dados do próprio Kuznets (1986), percebe-se que a participação relativa dos salários na renda nacional no caso brasileiro para

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O comportamento da economia, especialmente após o encerramento da euforia do "milagre", comprovou que a ampliação da desigualdade na distribuição de renda foi incapaz de manter o crescimento, colocando em dúvida a tese de que ela teria sido realmente a causa da retomada da expansão, ou que uma expansão apoiada apenas na concentração de renda pudesse ser sustentável no longo prazo. Por outro lado, a concentração de renda também foi incapaz de propiciar a elevação da taxa de poupança e, conseqüentemente, de investimento, nos níveis pretendidos pelos gestores da política econômica, gerando unicamente a ampliação dos contrastes sociais.

No que se refere ao papel do Estado, diversos autores indicaram uma contradição entre as idéias de Bulhões, que era conhecido como um dos principais adeptos do liberalismo na

aquele período era bastante semelhante a de diversos países capitalistas avançados, como o Reino Unido (70%), França (59%), Alemanha (60%), Suíça (60%), Canadá (66%) e EUA (69%). Do mesmo modo, na Noruega (55,2%), na Bélgica (54%), na Finlândia (61%), na Itália (48-59%), na Holanda (54%) e na Suécia (63%). Além disso, observa-se, para o ano de 1960, uma distribuição de renda no Brasil que tendia a se assemelhar à de alguns países em momentos que representaram pontos de inflexão importantes no processo de distribuição de renda, quando se inicia um movimento no sentido da redução das desigualdades, como pode ser visto no quadro abaixo:

Participação na renda (%)

País Brasil Estados Unidos Alem. Ocid. Dinamarca Suécia

estratos Ano: 60 70 89 29 50/54 55/59 85 50 59 84 49 55 81 48 54 81

60% + pobres 25,4 20,8 15,9 26,5 34,0 34,0 33,1 29,0 34,0 37,3 32,0 32,0 35,8 28,0 34,0 38,6

20% + ricos 54,4 62,2 68,0 54,0 43,0 44,0 41,9 48,0 43,0 38,7 45,0 44,0 38,6 48,0 43,0 36,9

5% + ricos 27,7 34,9 38,4 29,5 18,0 18,0 - 24,0 18,0 - 19,0 17,5 - 21,0 17,0 -

Fonte: Brasil: Langoni (1973). In: Ramos e Reis (1991) e Bonelli e Sedlacek (1991). EUA, Alemanha Ocidental, Dinamarca e Suécia: Kuznets (1986) e World Bank (1993).

Verifica-se que, após 1960, o Brasil segue uma direção totalmente oposta à dos países capitalistas avançados. Contudo, tal processo resulta muito mais de uma opção política definida depois de 1964 - que teve Bulhões como um dos principais formuladores - do que de uma característica inerente à economia brasileira.

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época, e Campos, pela sua formação neoclássica, e o tipo de política implementada no período, considerada de forte conteúdo intervencionista e estatizante, num regime autoritário. Tavares e Assis, por exemplo, argumentaram que o conceito de liberalismo no regime militar foi transformado em "mero cacoete ideológico", pois houve uma significativa ampliação da participação do Estado na economia. Eles denunciaram que o regime, que foi "privatista na retórica, se tornava consistentemente cada vez mais intervencionista na prática" (1985).

É duvidoso que o projeto liberal contido no Paeg tenha sido mera retórica, ainda que de viabilidade política duvidosa e, por isso, inconcluso. Os discursos de Bulhões no período 1964-1967 não corroboram qualquer proposta estatizante.

Por outro lado, o projeto liberal e antiestatizante da equipe econômica não era consensual entre os grupos que tomaram o poder em 1964, sobretudo entre os militares. Nem mesmo entre os militares vinculados à ESG, com quem a equipe econômica liderada por Bulhões e Campos tinha proximidade, suas idéias predominavam. Ao contrário, a principal resistência à privatização das empresas era dos militares. A chamada linha dura abortou a tentativa de execução integral do Paeg, evitando, assim, a privatização das estatais, que, naquele momento, poderia implicar sua completa desnacionalização (Bandeira, 1989).

A ampliação da intervenção do Estado resultava da atuação de forças que se fortaleceram com o processo de industrialização, especialmente após 1930, e fazia parte de uma tendência verificada nos principais países capitalistas no período e também satisfazia as exigências da própria industrialização. O projeto liberalizante-se confrontava com tal situação, tendo, em virtude disso, ficado inconcluso.

Após essas reflexões, é possível afirmar que não existiu ambigüidade na política implementada pela equipe econômica liderada por Bulhões e Campos, mas somente nos efeitos não planejados das políticas executadas, pois, conforme Barros e Mello,

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a retomada do crescimento no período posterior não seguiu "naturalmente o caminho do mercado", como estava previsto no Paeg, mas resultou da recuperação da capacidade financeira do Estado e, conseqüentemente, do seu investimento (1984).

Contudo, a retomada do crescimento não decorreu da mudança de orientação da política econômica do Paeg, mas só foi viabilizada pela virada política ocorrida em 1967 e pela substituição da equipe econômica e da política econômica.

A estratégia de combate à inflação do Paeg também merece algumas considerações. A política creditícia adotada pela equipe econômica objetivava a estabilização da economia, tanto pela via direta quanto pela via indireta: diretamente por tentar atingir os preços pela redução da oferta monetária; e indiretamente, ao forçar a desimobilização de ativos e o processo de incorporação e fusão de empresas, buscando o aumento da eficiência global da economia, propiciando uma produção com menores custos. Entretanto, o aperto de crédito, direcionado, sobretudo, à empresa nacional, ao favorecer a concentração das empresas - numa economia cujo padrão de crescimento desde fins dos anos 50 tendia para uma elevada concentração - consolidava a posição monopolista de vários grupos, principalmente estrangeiros, tornando muitos preços inflexíveis para baixo27

A manutenção de um nível elevado de capacidade ociosa implicava aumento dos custos de produção das empresas e, conseqüentemente, dos preços, resultando na inflação de custos. Por causa disso, o diagnóstico da inflação de custos elaborado

. Portanto, a política monetária influenciava muito mais a atividade econômica, através do aumento da capacidade ociosa, do que os preços.

27 Tais particularidades do processo brasileiro corroboravam a tese de Ignácio

Rangel de que era equivocado o diagnóstico realizado constatando inflação de demanda em virtude da expansão monetária, pois a inflação estava "relacionada inversamente com a oferta e não diretamente com a demanda" (1986). Fishlow também apresentou argumento semelhante ao de Rangel (1974).

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por Delfim Netto. Tal diagnóstico seria depois acusado de retornar aos princípios estruturalistas.

Ademais, a terapia monetarista pressupõe que em uma economia fechada, com liberdade de preços, os empresários se apóiem no comportamento da oferta monetária para a fixação dos seus preços. Entretanto, no caso brasileiro, em virtude da estrutura pouco competitiva e dos processos de reajustamentos corretivos de preços, dificilmente a oferta monetária seria o parâmetro determinante na fixação dos preços.

Além disso, a manutenção da inflação em nível superior ao pretendido pela equipe econômica desfazia alguns mitos monetaristas, principalmente, o de que os ajustes em economias fechadas podem ser sempre rápidos e estabilizadores, quando, na verdade, tais ajustes, muitas vezes, implicam novas tendências desestabilizadoras.

Devido à impossibilidade de a política monetária restritiva levar à estabilização dos preços, a redução da inflação foi sustentada particularmente na imposição do arrocho salarial e na ajuda externa, que equilibrou o balanço de pagamentos.

A partir das questões levantadas, é possível concluir, à luz da experiência brasileira entre 1964-1967, que a terapia monetarista teve um forte impacto sobre a atividade econômica e reduzido sobre os preços. A taxa de inflação registrada em 1966 foi de 38%, superior à verificada durante toda à década de 1950, a despeito da forte retração econômica. E, mesmo em 1967, permaneceu em 28%. A continuidade da política anti-inflacionária poderia ter gerado efeitos danosos irrecuperáveis sobre a economia, inclusive com o risco de desindustrialização, como no caso argentino e, em especial, no chileno, onde o experimento monetarista foi mais longe, durante os anos 70.

Assim, prevaleceu tanto uma atitude de insensibilidade quanto aos custos sociais e econômicos da estratégia de estabilização, quanto a convicção de que o crescimento só seria possível num ambiente completamente estável, em oposição à

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tese estruturalista, que recomendava alguma tolerância com a inflação. Em virtude disso, não foram levados em conta pela equipe econômica problemas como estrutura de mercado e os efeitos desestabilizadores do ajuste corretivo. O ano de 1966, quando a prudência aconselhava a mudança na estratégia, representou o período em que a ortodoxia começou a ser levada às últimas conseqüências. Mas a progressiva dúvida quanto à eficácia da ortodoxia determinou o redirecionamento da política, com a entrada de Delfim Netto.

Contudo, apesar das inconsistências do Paeg e dos seus resultados modestos algumas interpretações lhe atribuíram méritos que a própria equipe econômica, na época, desconhecia, como o êxito de ter reduzido a inflação para um patamar confortável de 20%, além de ter se preocupado com a manutenção do crescimento, como pode ser encontrado nos trabalhos de Resende (1982), Cysne (1986), Bier, Paulani e Messemberg (1987) e Macedo et al. (1988).

Campos (1966) e Simonsen (1976) reconheceram que a estratégia ainda estava inconclusa, os progressos foram lentos e o combate à inflação deveria ter permanecido como prioridade.

A queda do ritmo da atividade econômica, apesar de intencional, estava longe de ser algo "calculado" e, portanto, diretamente associado ao nível de preços - que ficou distante de um patamar "confortável" para os monetaristas. Seria impossível imaginar que o governo pudesse estabelecer com precisão um trade-off entre crescimento e estabilidade.

Dessa forma, a análise dos discursos de Bulhões inviabiliza as teses que, em primeiro lugar, dão conta de que a opção pelo gradualismo contida no Paeg implicava tolerância para com a inflação e a busca da sua estabilização num patamar de 20%, capaz de permitir a retomada do crescimento. Ao contrário, a estratégia gradualista prevaleceu somente em 1964 e 1965. Em 1966, o aperto do crédito representou o progressivo abandono dessa estratégia. E a volta do gradualismo, depois de 1967, foi mal recebida, como pôde ser notado nas críticas apresentadas. O

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patamar inflacionário adequado para acelerar o crescimento, para a equipe econômica, se aproximava de zero, como nos países desenvolvidos. Ademais, não é possível compreender o PAEG como um programa que abrangeu o período de 1964, quando a inflação estava perto de 100%, a 1969, quando baixou para 20%, conforme Resende (1982), quando, na verdade, em 1967, houve uma mudança profunda no diagnóstico e na política econômica.

Em segundo, a tese de que havia uma excessiva preocupação com o crescimento, de acordo com Resende (1982) e Macedo et al. (1988) e as evidências contidas nos discursos de Bulhões não demonstram o interesse em compatibilizar combate à inflação com a manutenção do crescimento. A recessão seria um recurso desejável e necessário, para se lograr a estabilidade, sendo que as suas propostas, após fins dos anos 70, reforçam tal perspectiva. Por isso, a forma como foi realizada a retomada do crescimento depois de 1967, por meio da expansão dos gastos públicos e do crédito, foi indicada como a principal causa da persistência da inflação e da instabilidade econômica.

A natureza conservadora do Paeg foi fundamental para sedimentar o caráter concentrador e excludente do modelo do regime militar. Mas, se por um lado, o Paeg contribuiu para determinar o caráter do modelo, por outro, foi frustrada a intenção da equipe econômica de favorecer as forças de mercado, através da restrição da atuação estatal nos gastos, no crédito e na área produtiva, e de manter a inflação totalmente sob controle. Na verdade, o projeto liberal ficou no meio do caminho. A sua efetivação completa trazia em si o risco de uma estagnação profunda, da renúncia à industrialização como objetivo deliberado de política econômica - ou mesmo da desindustrialização - e do aprofundamento da desnacionalização das empresas28

28 O regime militar chileno, implantado em 1973 sob a direção de Pinochet,

sempre foi considerado como a primeira experiência de aplicação de um programa monetarista radical, que envolveu a liberalização dos mercados,

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Além disso, esse risco determinava os limites da proposta liberal. Tais limites decorriam do fato de que o projeto desenvolvimentista satisfazia as exigências de determinado momento do capitalismo brasileiro. A mudança da estratégia desenvolvimentista para uma liberal se contrapunha aos interesses consolidados na etapa anterior. Isto é, teria viabilidade duvidosa uma reformulação completa do padrão de desenvolvimento capitalista que desprezasse os interesses fortalecidos com o projeto desenvolvimentista, e cuja mobilização foi fundamental para a efetivação do golpe, representando, ainda, um importante alicerce de sustentação do governo militar.

Na segunda fase de Bulhões, o pós-67 representa o seu terceiro momento e se destaca pelas suas objeções à política posta em prática e pela indicação dos limites do modelo econômico do regime militar. Suas críticas revelam que o regime fracassou naquilo que era exatamente o ponto mais sensível da economia: o estabelecimento de um padrão de financiamento que pudesse sustentar o crescimento no longo prazo (Goldenstein, 1994). A fragilidade desse padrão já havia comprometido a sobrevivência do nacional-desenvolvimentismo. O fracasso dos militares foi acompanhado por um estrangulamento financeiro do Estado e por uma perda da capacidade de execução da política econômica, nunca observado no período posterior a 1930.

Além disso, o estrangulamento financeiro que se verificou após o fim dos anos 70 evidenciou a gradativa perda da capacidade do Estado de orientar a formação de poupanças. O modelo, apesar de ter ampliado a lucratividade do setor privado, mobilizado o sistema tributário para favorecer a acumulação e haver obtido grandes volumes de capital estrangeiro - como era, em muitos aspectos, a intenção de Bulhões - não conseguiu transformar

como anunciou French-Davis (1983). Entretanto, a estratégia econômica do governo Castelo Branco também pode ser entendida como uma tentativa pioneira de execução de um programa ortodoxo e liberal.

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o excedente gerado em capital produtivo e dar autonomia ao processo de financiamento. Isso se deve, em boa medida, ao fato de as reformas implementadas terem limitado o poder do Estado de canalizar compulsoriamente os recursos disponíveis da economia.

Mas, se a orientação da política monetária no pós-67 seguiu um caminho que desvirtuou a concepção original das reformas implementadas pela equipe econômica, as distorções acumuladas resultaram do caráter de tais reformas. Em primeiro lugar, a correção monetária, que foi a grande inovação e talvez a medida mais polêmica, tornou-se a maior fonte de distorções da economia a partir de então. A correção foi o pilar das reformas. Contudo, a sua generalização como indexador transformou a economia brasileira na mais indexada do mundo, colocando-se como o principal obstáculo à estabilização. E o fato de ser polêmica gerou um comportamento muito confuso de Bulhões sobre a existência da correção, ora defendendo29

Em segundo lugar, o endividamento externo decorreu, por um lado, da orientação internacionalista, que passou a predominar no pós-64, quando foram concedidos todos os estímulos para a captação de recursos no exterior, como a instrução 289, e, por outro, da própria incapacidade das reformas financeiras implementadas de alicerçar um sistema que pudesse financiar de

, ora pedindo o expurgo, ora advogando a sua extinção. Dessa forma, a criação, a generalização do uso e até mesmo a manipulação abusiva, com os expurgos, que geraram perda de confiabilidade do instrumento, seguiram muitas das sugestões de Bulhões.

29 No início, assumia que a correção não pretendia somente a "disciplina das

contribuições fiscais", mas principalmente, "restaurar a poupança", numa fase de inflação decrescente (1967c). Mas, em 1978, mesmo depois de ter defendido a eliminação do instrumento, saiu em sua defesa, opondo-se à revisão da correção monetária, afirmando que "o Brasil apenas sistematizou a correção monetária". A sua ausência tornaria o governo o maior beneficiário. Conforme entrevista a O Estado de S.Paulo, 10/5/78.

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maneira eficaz os investimentos da economia30

A crítica de Bulhões aos desdobramentos da política antinflacionária, ao desempenho do sistema financeiro e à ampliação substancial da presença do Estado era elemento importante de uma interpretação liberal, que associava a nova orientação de política econômica, definida após 1967, como retorno ao estruturalismo.

, apesar de terem criado um sistema bem mais sofisticado.

Outros componentes da equipe econômica de Castelo Branco também expressaram as suas desavenças com a nova orientação. Campos, por exemplo, caracterizou a política seguida por Delfim Netto como uma espécie de estruturalismo bizarro, ao analisar o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), improvisado para substituir o Plano Decenal, como se segue:

Algumas das teses do PED são algo bizarras (à luz da pressão inflacionária ainda existente e do nível inadequado de investimento), como asserção da suficiência da poupança doméstica para o esforço do desenvolvimento, com o que nossas limitações proviriam apenas da oferta de divisas e não da capacidade de poupança interna. Foram, outrossim, ressuscitados alguns conceitos estruturalistas da CEPAL, relativos ao 'estreitamento do mercado' em função da concentração de renda, confundindo-se um problema social com um problema econômico, dado que a dimensão do mercado depende menos do número de seus componentes do que do excedente econômico disponível" (Simonsen, 1974:66-67).

Simonsen, por sua vez, acusou o PED de ter usado alguns ingredientes estruturalistas, sobretudo a tese da tendência à estagnação em virtude da excessiva concentração de renda, considerada por ele como "uma espécie de marxismo de varejo" (1976).

30 Staehler ressalta que o grande volume de recursos que passou a entrar no

Brasil após 1970 resultava muito mais de "deficiências institucionais internas dos mercados financeiros e de capitais do que de necessidade 'reais' para o crescimento econômico" (1990, p. 129).

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As objeções de Bulhões à política implementada após 1967 são relevantes por dois motivos: em primeiro lugar, reforçam a tese de que as suas idéias econômicas e a sua ação eram antidesenvolvimentistas, e talvez mais que isto, se opunham a qualquer estratégia que não tivesse um corte liberal, ainda que privilegiasse o setor privado, fosse internacionalista e continuasse submetendo os trabalhadores a uma disciplina ferrenha. Ou seja, para ele era inadmissível uma estratégia desenvolvimentista-estruturalista ou a sua versão bizarra.

Em segundo, porque a sua crescente oposição à política econômica demonstra os principais limites do modelo econômico do regime militar. Isto foi uma grande virtude, sobretudo num momento que as críticas consistentes eram raras. Na verdade, uma boa parte das análises realizadas pelos intelectuais de fora do regime no fim dos anos 60 e início da década de 70 se voltou para identificar a funcionalidade do autoritarismo. Nesta época, se multiplicaram teses dando conta de que o autoritarismo era um fator obrigatório para o avanço do capitalismo brasileiro. Somente após os fins dos anos 70, surgiram os primeiros trabalhos colocando em dúvida o desempenho econômico do regime militar31

Ao contrário do que imaginaram diversos pensadores, e especialmente os partidários do regime militar, o autoritarismo

.

31 A tese de O'Donnell foi refutada por Wallerstein (1980). Uma outra crítica

importante ao trabalho de O'Donnell pode ser encontrada em Serra (1982) - que se confrontava com as proposições do trabalho realizado em parceria com Tavares. Soares e Silva chegaram à conclusão de que o período democrático (1945-1964) teve um desempenho em termos de crescimento do PIB e da renda per capita igual ao do período autoritário de 1964-1984, (1989). Até mesmo, o testemunho de Roberto Campos explicitou toda a debilidade do regime militar. Além de reconhecer que o projeto do regime militar era uma improvisação, ele atribuiu notas aos diversos governos, que, na média, perfazem 5,6. Ou seja, para um bom entendedor, elas refletem um desempenho medíocre. Conforme depoimento a O Estado de S.Paulo, de 31/3/94. Contudo, ainda se observa uma grande carência de análises sobre o desempenho econômico de longo prazo do regime militar, particularmente em termos comparativos com o pré-64.

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não conseguiu ir além do que fizeram os civis ou que por estes poderia continuar sendo realizado. O regime não conferiu maior racionalidade e eficiência à politica econômica, nem propiciou avanços mais significativos na consolidação do capitalismo brasileiro. Ao contrário, gerou distorções que têm exatamente representado um entrave à continuidade do desenvolvimento capitalista, como a progressiva incapacidade do Estado de implementar uma política de desenvolvimento de longo prazo.

Foi exatamente com o II PND, que pretendeu aprofundar a industrialização, que o regime explicitou todas as suas fraquezas, tendo se constituído, como disse Serra (1982), no fator de sua "desestabilização", do mesmo modo que o Plano de Metas de JK acabou por provocar todas as tensões durante os governos de Quadros e Goulart, desembocando no golpe. Esse tem sido um traço marcante da política econômica, que acaba por reforçar os limites estruturais do capitalismo brasileiro. Portanto, toda vez que se tenta aprofundar a industrialização, a incapacidade da política econômica de romper os limites estruturais gera tensões não somente econômicas, mas políticas, sobretudo por causa da falta de autonomia no processo de financiamento e da débil articulação entre o Estado e o setor privado, e se manifestam principalmente através das restrições externas. Essas tensões não dizem respeito à falta de racionalidade, populismo, incompatibilidade distributiva ou de ausência de estímulos adequados à exportação e à entrada de capitais. Assim, o regime surgiu dessas tensões e se encerrou exatamente em virtude delas.

Como comentário final, deve ser assinalado que Bulhões conseguiu estabelecer uma estreita conexão entre as suas idéias econômicas e a formulação e a execução da política econômica e foi, por causa disso, referência indispensável no debate sobre as propostas de desenvolvimento para o Brasil. Nas idéias econômicas de Bulhões encontra-se o anti-desenvolvimentismo. Revela-se o sonho de se alcançar definitivamente a racionalidade na execução da política econômica, que viabilizaria o derradeiro impulso para a superação do atraso econômico brasileiro. Mas,

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por outro lado, observa-se nas idéias de Bulhões do pós-67 o despertar - e ele foi um dos pioneiros neste despertar - para os limites e inconsistências do modelo econômico do regime militar.

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CAPÍTULO III

O PENSAMENTO ECONÔMICO DE CELSO FURTADO

José Adalberto Mourão Dantas

O presente capítulo objetiva analisar o pensamento de Celso Furtado, que, antes de tudo, é voltado para entender a problemática do “desenvolvimento e subdesenvolvimento”, e, ao mesmo tempo, pretende formular uma nova interpretação para a questão do atraso, em geral, dos países da América Latina e, especificamente, o caso do Brasil. Devido a tal fato, é considerado “o fundador da moderna economia política brasileira”.1

Para empreendermos tal análise, torna-se necessário verificarmos a construção teórica inicial do autor e acompanharmos a sua evolução nos principais livros que publicou sobre o assunto. Para tanto é necessário apresentarmos primeiro, um esboço biográfico de Celso Furtado.

Celso Monteiro Furtado nasceu no Nordeste, em Pombal, na Paraíba. Descendente de uma família de servidores públicos -seu pai foi Juiz – o que lhe possibilitou ter acesso a uma cultura acima da média da região. Dessa forma, foi possível manter os primeiros contatos culturais no interior da biblioteca da família.

1 Oliveira. Celso Furtado e o Pensamento Econômico Brasileiro. In:Inteligência

Brasileira.P.149

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Aos quatorze anos, já demonstrava grande interesse pela história e pela literatura. Entre as duas, a história o atraiu mais.2

Graduou-se em Direito, em 1943, na antiga Universidade Nacional do Rio de Janeiro. Participou da Segunda Guerra Mundial como membro da Força Expedicionária Brasileira. Com o final da guerra, voltou ao Brasil, mas ficou o desejo latente de retornar à Europa. Acreditava que não podia perder a possibilidade de assistir, in loco, às transformações que estavam ocorrendo no Velho Continente. Voltou em 1946 e iniciou seu doutorado sob a orientação do professor Maurici Biê, tendo como objeto a economia açucareira: L’Economie Coloniale Brésiliene. No início de seus estudos, na França, não demonstrou interesse pelos títulos acadêmicos, pois “estudara economia, sociologia, filosofia na busca de subsídios para entender o mundo, convencido de que esta também é uma maneira de sobre ele agir”.

3

Permaneceu na França até 1948. Em 1949 ingressou nos quadros da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), onde trabalhou com Raúl Prebisch. Foi considerado mais aberto do que este economista argentino por não ficar preso, em suas análises, aos parâmetros econômicos. A sua primeira tarefa na Cepal foi a de preparar quadros e mapas da situação habitacional e de saneamento básico. Posteriormente, foi promovido e assumiu a direção da Divisão de Desenvolvimento Econômico. Foi um dos primeiros a ler o Manifesto de Prebisch, documento balizador das atividades científicas da Cepal, e tomou a seu cargo a tarefa de divulgá-lo, no Brasil. Permaneceu na Instituição até 1953. No período 1954-1955, chefiou o grupo misto Cepal/BNDE, cujo objetivo era o de elaborar um programa de desenvolvimento para o período 1956-1962. Nessa época, fundou o Clube dos Economistas e a Revista Econômica

2 Furtado. Auto-retrato intelectual. In: Celso Furtado Grandes Cientistas

Sociais.p.32 3 Furtado. A Fantasia Organizada.p.19

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Brasileira. A revista tinha como objetivo “Contribuir para o projeto desenvolvimentista, através da participação do debate econômico do país.”4

O debate foi travado, com os liberais incrustados na Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, notadamente com o engenheiro e professor Eugênio Gudin e sua equipe, e ainda, com economistas internacionais convidados pela Fundação Getúlio Vargas para municiarem teoricamente os liberais. Entre estes economistas, destacava-se Jacob Viner, da Universidade de Princeton.

Entre 1957 e 1958, Furtado participou do projeto da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Foi seu primeiro superintendente, ficando nesse posto até meados de 1962. Foi chamado a Brasília, tendo aí exercido, então, a função de Ministro Extraordinário do Planejamento no governo Goulart durante um ano. Volta à Sudene, e com o golpe militar de 64 é cassado e exilado, passando a viver nos Estados Unidos da América, na Inglaterra e na França.

Apesar de sua formação jurídica, o interesse em estudar economia nasceu durante os últimos anos do Curso de Direito. Estudou por conta própria, sem nenhuma orientação, apoiado somente nas publicações do Fondo de Cultura Económica do México. No entanto, foi no interior do Curso de Direito, especificamente no terceiro ano, que resolveu, também, estudar sistemas de organização, posto que o entendimento de como se organiza e funciona uma instituição, pública ou privada, o levaria a perceber melhor a função do planejamento, mesmo que fosse apenas do ponto de vista operacional. O aprofundamento na questão do planejamento dár-se após a leitura das obras de Mannheim. Entre elas, destaca-se Liberdade, poder e planificação democrática.

4 Bielshowsky. Pensamento econômico brasileiro. O Ciclo Ideológico do

Desenvolvimentismo. p.158.

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A admiração de Furtado por Mannheim não se deu somente no que diz respeito ao planejamento; como Mannheim, acredita que a intelligentsia tem um papel importante a cumprir na reforma da sociedade.

A sua vida pública foi marcada por uma atuação no sentido de resgatar a dívida social. Foi assim no período em que esteve na Sudene e nas funções ministeriais que assumiu. A sua inteligência, aliada à ação, estava voltada para a resolução dos problemas que mais afligiam e afligem o País.

A planificação motivou-o a transpor-se para o estudo da economia. Contudo, dedicou-se a estudá-la nos aspectos mais globais, evitando a vertente neoclássica da microeconomia. Foi através da história, especificamente via os trabalhos de Henri Pirenne e de Sombart que Furtado entendeu os aspectos macroeconômicos da “ciência da escassez”. Dessa forma, diz ele:

cheguei ao estudo da economia por dois caminhos distintos: a história e a organização. Os dois aspectos levam à uma visão globalizante macro-econômica.5

Assim, a ciência econômica nada mais é do que um instrumental que lhe facilita a análise dos problemas sociais.

Mesmo durante suas atividades como pesquisador da Cepal, as quais requeriam uma maior dose de pragmatismo, a história lhe parecia indissociável da pesquisa econômica, chegando, inclusive, a propor a Prebisch uma maior aproximação desta com a economia, objetivando aliviar um pouco as análises prenhas de economicismo.6

5 Furtado. A fantasia organizada. p.36.

E ainda mais: quando Furtado procurou entender o atraso do Brasil, foi investigar a causa de tal atraso na explicação histórica. Conforme Furtado, “essas causas teriam que

6 Furtado. Ibid.p. 117.

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ser desetranhadas da história, das peculiaridades do processo formativo do País.”7

No tocante ao estudo do desenvolvimento econômico, Furtado parte do seguinte princípio: “o desenvolvimento econômico é essencialmente um fenômeno histórico”.

E ainda mais, o desenvolvimento econômico tem que ser apreendido no conjunto de relações sociais amplas, ou seja, como aspecto de um processo mais amplo de mudança social cujos contornos sòmente são perceptíveis no contexto de uma realidade histórica, isto é, partindo-se de alguma imagem figurativa do todo social e de seu comportamento no tempo (Furtado, 1964:25). Em virtude do apego à história, Furtado chegou a afirmar que a economia “pouca influência teve no meu espírito”.8

7 Furtado. A fantasia organizada. p. 117.

Percebe-se com isso que, na sua formação intelectual, não está reservado um lugar de primeira grandeza para a Economia. Ele a usa apenas como um dos instrumentos de análise da realidade, porque um problema econômico não é um problema estritamente econômico; ao contrário, é um conjunto de relações intimamente imbricadas. A inflação, diz Furtado, nunca foi em meu espírito outra coisa que manifestação de conflitos de certo tipo entre grupos sociais; uma empresa nunca foi outra coisa que a materialização do desejo de um ou vários agentes sociais, em uma de múltiplas formas,etc (Furtado, 1964:25). Enfim, Furtado sempre entendeu que “era necessário colocar os problemas econômicos em seu contexto histórico. Em síntese, adotei um enfoque interdisciplinar desde cedo”(Furtado. In: Biderman:63) . Essa visão de Furtado é, indubitavelmente, decorrente da sua eclética formação, derivada de várias influências epistemológicas. Sem dúvida, as influências decorrentes do

8 Id.Ibid. p. 167.

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positivismo, dos economistas clássicos, do marxismo, do keynesianismo e de Mannheim. O contato com o positivismo deu-se através de alguns livros deixados por um militar, seu parente, na sua residência no Nordeste. Ajudou, ainda, na sua “formação” positivista a direção kantiana, dada na época pelos cursos jurídicos no Brasil. O marxismo veio em decorrência de seu interesse pela história. Ao ler História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, entendeu que “os fenômenos sociais são históricos, portanto podem ser superados”. Por isso, ele concebe a história como movimento, entende que a sociedade está em constantes modificações e que os “atos e fatos” econômicos possuem uma determinação no tempo e no espaço. Sua aproximação com a história deu-se, ainda, por uma questão de método de análise: A necessidade de diagnosticar a problemática dos sistemas econômicos nacionais, em fases diversas do desenvolvimento, levou-o a aproximar a análise econômica do método histórico (Furtado, 1965:13). No entanto, tal metodologia é acompanhada de uma técnica, sobejamente usada pelo autor em sua produção intelectual, notadamente na Formação econômica do Brasil: a comparação de organizações econômicas e sociais diferentes. Ou, conforme o autor: O enfoque estrutural é conseqüência dos estudos comparativos de problemas idênticos, condicionados por situações históricas diferentes e em contextos nacionais distintos (Furtado, 1965:13). Ou ainda: a necessidade de diagnosticar a problemática dos sistemas nacionais, em fases diversas do subdesenvolvimento levou-o a aproximar a análise econômica do método histórico.9

9 Furtado. A fantasia organizada. p. 12

Com isso, o enfoque estrutural passa a ser conseqüência dos estudos comparativos em diversas épocas e em lugares diferentes. Daí, a sua grande diferença em relação aos economistas neoclássicos, cujo pensamento é estruturado conforme modelos matemáticos a-históricos, cuja aplicação pode

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ser destinada a uma população de favelados do Rio de Janeiro e à população que freqüenta Champs Elisées, em Paris. Sua permanência na França permitiu-lhe uma maior aproximação com o marxismo. Matriculado no curso do Prof. Cornu, que abordava mais os aspectos filosóficos do materialismo histórico do que os econômicos, apesar de o programa contemplar o estudo d’ O capital, Furtado não se identificou muito com os aspectos econômicos, ao contrário do que acontecia com os históricos. Achava superficial a teoria econômica marxista para quem havia estudado a clássica nos moldes ricardianos. Com relação ao marxismo, na época, ele pensava que: a formidável vista que descortina a gênese da história moderna não deixa indiferente a nenhuma mente curiosa. Já a contribuição no campo da economia parecia de menos peso para quem estava familiarizado com o pensamento de Ricardo (Furtado, 1984d:31). Com o passar do tempo, Furtado vai, paulatinamente, rejeitando o marxismo, a ponto de não mais aceitar a teoria do valor-trabalho, com as categorias dela resultantes, como mais-valia, trabalho produtivo e, outros pilares da arquitetura marxista, preferindo os conceitos de Joan Robinson, que ficavam a meio caminho entre os princípios clássicos e neoclássicos da acumulação (Mantega, 1989:34). As “influências” keynesianas derivam do entendimento de que a economia capitalista não pode operar sem certa dosagem de centralização das decisões, no caso, no Estado. E mais: todo capitalismo é, em certa medida, um capitalismo de Estado. Isto fica muito patente quando Furtado, ao elaborar os planos que lhe foram possíveis fazer, reservava ao Estado uma participação estratégica nas áreas que possibilitam o maior grau de acumulação. Revelava-se, assim, um intervencionista. Na década de cinqüenta, as análises econômicas estavam ligadas aos esquemas de interpretação da teoria neoclássica, donde se excluía qualquer possibilidade para as abordagens de caráter social. Qualquer tentativa de análise que demonstrasse diferenças estruturais entre as economias era vista como não-

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científica, o que, para Furtado, era um absurdo, já que suas análises estavam baseadas na história comparada e no estruturalismo, que vêem especificidades nas economias das nações. Como alternativas havia o keynesianismo e o marxismo. No entanto, Furtado fazia certos reparos a ambas: a economia keynesiana constituía-se numa ferramenta que, conforme Furtado, abria perspectivas inteiramente novas, e contribuiu poderosamente para romper `a sombra de um rigor metodológico cada vez mais estéril. Contudo, a elegância do modelo keynesiano ocultava nos seus agregados muito dos mais sugestivos problemas que apenas começaram a ser vislumbrados mediante o enfoque macroeconômico (Furtado, 1965:2). A opção marxista era vista por Furtado, na mesma obra, da seguinte forma: "o marxismo possibilitava fomentar uma atitude crítica, apesar de dificultar o desenvolvimento do trabalho livre em economia, pois seus postulados filosóficos, aceitos como dogma, emprestavam um caráter teleológico à análise econômica." 10 A eficácia do trabalho marxista era explicada como decorrente da necessidade de uma análise crítica, que era socialmente necessária em virtude das condições de atraso do País.11 Podemos inferir que a análise marxista se ligava mais à ação do que à ciência. Essas vertentes de análises foram se solidificando em Furtado, apesar dos reparos que fazia a elas, quando exerceu a função de economista, na Cepal. Assim, ele se explica: “A evolução do autor neste terreno realizou-se através de anos de trabalho como pesquisador e analista, principalmente na qualidade de economista da Cepal.”12

10 Furtado. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. p. 2.

Munido de uma sólida formação intelectual, Furtado percebeu

11 Furtado. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. p. 2. 12 Ibid.p.13

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que: “o esforço teórico a ser realizado, na fase atual consiste na identificação progressiva do que é específico a cada estrutura.”13

13 Ibid.p.2

Ou seja, consiste em identificar o que determina o desenvolvimento e o subdesenvolvimento em cada estrutura geográfica e em cada época, já que o subdesenvolvimento é um fenômeno histórico. Desenvolvimento e subdesenvolvimento A problemática desenvolvimento e subdesenvolvimento aparece sistematizada em vários livros do autor, principalmente, nas publicações da década de setenta em diante. Contudo, quatro desses, os mais antigos, contêm o núcleo do seu pensamento: A economia brasileira (1954); Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961); Dialética do desenvolvimento (1964), e Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967). Na obra A economia brasileira, encontramos as idéias germinais de Furtado. No primeiro capítulo, denominado categorias históricas, encontramos duas afirmações que consideramos essenciais para entender aqueles a que ele se propõe. A primeira é de caráter metodológico: pretende explicar os fenômenos econômicos num conjunto social, não de forma isolada, como se a economia estivesse desvinculada da realidade da sociedade, na qual as categorias econômicas interagem. A Segunda, ao escrever tal capítulo, Furtado parte do princípio de que a mudança cultural é a força criadora da civilização e a técnica é o campo em que acontecem com maior rapidez as mudanças na sociedade moderna. Então, para entender a problemática do crescimento econômico é necessário ter em conta as seguintes questões: Por que constitui a técnica o campo de mais rápida mudança em nossa sociedade? Que diferença existe entre a nossa civilização ‘tecnológica’e aquelas que a precederam? (Furtado.1954:14). As respostas a estas questões fornecem pistas para entender as mudanças que estão ocorrendo na economia brasileira no que diz respeito ao crescimento econômico. Contudo, é no livro

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Desenvolvimento e subdesenvolvimento que estas questões são respondidas. O autor vai reafirmar todas as principais idéias já discutidas no seu estudo anterior, A economia brasileira, aprofundando-as. Desenvolvimento e subdesenvolvimento expressa, de forma mais acabada, as idéias de Furtado. Foi escrito em 1961 e faz uma abordagem histórico-estrutural da economia brasileira. Podemos classificar este livro como sendo uma produção do “jovem” Furtado. Em Desenvolvimento e subdesenvolvimento, mais especificamente no segundo capítulo, que ele intitula "O mecanismo do desenvolvimento", encontramos a seguinte afirmação: A Teoria do Desenvolvimento Econômico não cabe, nos seus têrmos gerais, dentro das categorias de Análise Econômica(...). A Análise econômica não nos pode explicar a dinâmica das mudanças sociais senão de maneira limitada. Contudo, ela pode identificar alguns mecanismos do processo de desenvolvimento econômico. É a discussão dêsses mecanismos que vamos, em seguida dedicar algumas observações (Furtado, 1965:87). Perceba-se que Furtado tem a preocupação de fazer uma análise do desenvolvimento, desde o início de seus escritos, de forma mais ampla do que a produção dos economistas da época. Por isso, o seu interesse em estudar e compreender a dinâmica social. Ele inicia a discussão à qual se refere a citação partindo, da hipótese de que o desenvolvimento “se realiza seja através de combinações novas de técnica conhecida, seja através da introdução de inovações técnicas”(Furtado, 1985:29). O primeiro caso caracteriza as regiões subdesenvolvidas, porque estas só conseguem aumentar a produtividade com novos arranjos das técnicas já conhecidas. O segundo é típico das áreas desenvolvidas, posto que há um aumento de produtividade como decorrência da introdução de novas técnicas. Com relação ao uso de técnica preexistente, Furtado alega que não se pode ampliá-la devido à fixidez dos coeficientes técnicos, os quais não permitem combinar fatores da produção ad infinitum. Além disso, conforme Furtado, na mesma obra, "A tecnologia vem se desenvolvendo em função da disponibilidade de fatores e

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recursos dos países que lideram o processo de industrialização." Com isso, o progresso técnico nos países subdesenvolvidos fica a reboque daquele dos desenvolvidos. As nações desenvolvidas economicamente determinam o avanço e o ritmo da propagação do progresso técnico. Todavia, a produtividade não acontece sempre em decorrência do emprego de tecnologia. Pode-se consegui-la através da combinação dos fatores de produção, mão-de-obra e recursos naturais. Tal combinação pode ser facilitada pela abertura de uma linha de comércio internacional, a qual permite um maior tráfego dos dois fatores citados. Ao acontecer tal fato, a renda real aumenta por um outro caminho, diferente do progresso técnico. Ou seja, foram incorporados na economia aqueles fatores de caráter extensivo. Por isso: o aumento da renda real, assim obtido, poderá constituir a margem necessária em que se apoiará a economia para dar início o processo de acumulação de capital (Furtado, 1985:92). Garantida a produtividade, esta se transforma em fluxo de renda que assumirá a característica de lucro, o qual será investido nos setores da economia mais atraentes. Ou seja, investe-se onde o consumo é expressivo, rendendo, desta forma, mais lucros. Com isto, novos investimentos serão realizados, dinamizando a economia. Contudo, como tal dinamismo é decorrente do comércio externo, Furtado discute as formas de economia que se organizam com o intercâmbio externo, distiguindo duas formas. Uma primeira, que não contribui com o desenvolvimento, é o caso de uma mineração, em que a renda por ela gerada assume a característica de lucro. Contudo, os gastos com consumo, nessa economia, são feitos por e em benefício de uma minoria, implicando poucas conseqüências para o conjunto da sociedade. E mais, as necessidades de consumo deste segmento são satisfeitas com as importações, impedindo a formação de um mercado interno, fator tão importante para o desenvolvimento. Além do mais, esse tipo de organização econômica impede que se faça poupança e investimento internamente. Um segundo tipo de economia é o de caráter agrícola e familiar.

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A renda aí gerada transforma-se em salários, que são destinados ao consumo, o que impede, também, a formação de poupança e investimentos. Só que, nesse caso, os empecilhos ao crescimento são menores do que antes, posto que, após a satisfação de consumo básico da população, notadamente de alimentos, a demanda se dirige para outros bens. Em outras palavras: a procura se diversifica, obrigando também a oferta a se diversificar, porque deve atender aos consumidores. Devido a esses fatos, os investimentos são realizados, embora em pequena escala. Já que estes são feitos tendo em conta a procura futura, amplia-se, assim, o aparelho produtivo. Neste momento, o pensamento econômico de Celso Furtado incia um processo que prioriza as atividades do mercado interno no fomento econômico. Para complementar a análise do mecanismo do desenvolvimento, mais duas variáveis são introduzidas: produtividade do capital e taxa de inversão. O capital reprodutivo “constitui a soma total do trabalho realizado no passado para aumentar a produtividade do próprio trabalho no presente” (Furtado, 1985:98). Assim, a quantidade de produto que pode ser obtida depende da quantidade de trabalho passado e presente. Ou seja, depende da quantidade do estoque de trabalho, inclusive do trabalho do presente. Deve-se notar que esta quantidade de trabalho cria e recria certo número de produtos, que, ao serem transformados em renda, incorporam-se, em parte, ao capital. A esse mecanismo de reprodução Furtado denomina capital reprodutível. Fica implícito que o tempo é um fator importante na acumulação de capital, posto que quanto mais trabalho passado o processo econômico incorporar, maior o estoque a ser usado no presente, advindo daí uma maior produtividade e um maior grau de acumulação, ou de capital reprodutível. Advém daí a afirmação de que “o desenvolvimento econômico é fundamentalmente, um processo de acumulação capitalista” (Furtado, 1985:88). No que diz respeito aos investimentos, Furtado entende que o quantum poupado, posteriormente investido, depende do que se deixa de consumir. Ou, conforme palavras dele:

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A taxa de inversão traduz o grau de esforço que faz uma economia, num período dado de tempo, para crescer. Ela define a parte do produto obtido nesse período de tempo, que a população deixa de consumir para transformar em capacidade produtiva (Furtado, 1985:101). Assim, é fácil inferir que os investimentos são influenciados por vários fatores, que irão determinar o que os economistas chamam de propensão a consumir. Entre tais fatores, destacam-se as motivações de fundo psicológico dos agentes econômicos, tanto dos consumidores quanto dos poupadores: “o agente que investe recebe estímulos mais intensos que o agente que consome”. Com isso, o ritmo do crescimento mantém uma dada relação com a disparidade entre consumir e poupar. A sociedade que possui uma maior propensão marginal a consumir, notadamente uma sociedade pobre, dificilmente poupa, posto que os seus rendimentos são canalizados para a satisfação das necessidades básicas. Nada ou quase nada sobra para poupar. Não há, com outras palavras, excedente. Contudo, se a sociedade possui propensão marginal a poupar, é porque se encontra em uma boa situação econômica. A poupança excedente transforma-se em investimentos os quais vão dinamizar a economia, possibilitando um aumento no nível de emprego.14

14 Esta análise contém um viés keynesiano. Mas as análises sobre o

desenvolvimento econômico dos diversos autores pós-30 seguem de certa maneira a vertente keynesiana.

Nessa altura, Furtado acredita ter demonstrado os mecanismos do desenvolvimento. Todavia, faz algumas ressalvas no sentido de que, quando são analisados os mecanismos de desenvolvimento, estas análises são realizadas num elevado plano de abstração. Com isso, só se conseguem descrever alguns mecanismos do processo econômico: A esse nível de generalidade não é possível construir uma teoria que nos dê uma explicação satisfatória do processo de desenvolvimento tal como o observamos na realidade (Furtado, 1965:104).

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Então, para explicar o processo de desenvolvimento, Furtado vai à história: Nesse ponto a teoria do desenvolvimento tem que baixar ao plano histórico, o qual comporta o agrupamento das economias de acordo com certas categorias relevantes (Furtado, 1965:110). Entende, assim, o autor que só a história possibilita captar as especificidades das diversas economias, o que, num plano de generalidades, não é possível fazer. Fica claro, para ele, que colocar o problema do desenvolvimento na história é identificar as especificifdades inerentes a cada região e aos diversos estágios do desenvolvimento. No capítulo terceiro de "Desenvolvimento e subdesenvolvimento", Furtado afirmou que o conceito de desenvolvimento está relacionado a elementos quantificáveis. Já no que diz respeito à questão qualitativa, esta é resolvida pela teoria dos preços: "um produto vale mais do que o outro se for mais caro". Se num dado período o preço desse bem se modifica, sua importância no interior da renda nacional também será alterada. Este tipo de abordagem da realidade social tem sido objeto de críticas. Furtado propõe, então, uma nova visão dessa realidade que, no fundo, é uma concepção de desenvolvimento. Para tanto, vai à história tentar uma identificação dos fatores que condicionam o aumento da capacidade produtiva e os efeitos dêsse aumento sôbre o comportamento do fluxo de renda (Furtado, 1965:112). O ponto de partida é o conceito de excedente da Teoria Clássica, porque a formação de excedente, em toda e qualquer economia, tem sido entendida como crescimento econômico. Do ponto de vista da Teoria do Desenvolvimento, na qual o processo de acumulação assume grande importância, é conveniente voltar ao conceito clássico de excedente renda (Furtado, 1965:113). Todo sistema econômico é capaz de produzir além das necessidades básicas da população. Essa produção adicional é o excedente. Se este for consumido, as condições materiais do povo melhoram temporariamente, porém o setor produtivo se mantém inalterado. Vale dizer, a capacidade produtiva da

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comunidade permanece estacionária. Todavia, nem sempre o estado estacionário permanece, isto porque em todas as sociedades existem grupos que se apropriam do excedente e a acumulação realizada por tais grupos é transformada em fatores de produção. Ou seja, o excedente é transformado em capacidade produtiva, abrindo-se, com isso, a possibilidade de expansão do parque produtivo. Continuando a análise, Furtado vai afirmar que a “apropriação primitiva” do excedente foi feita com base no trabalho escravo. A totalidade do excedente daí resultante foi compulsoriamente apropriada. Contudo, na medida em que a produtividade foi crescendo, outros métodos foram inventados, com o objetivo de elevar as suas taxas. Às vezes, os recursos decorrentes do excedente foram usados para elevar o consumo dos grupos de parasitas. Mesmo assim, Furtado considerou esse fato importante, porque permitiu a diversificação do consumo. Ou seja, à medida que as demandas de tais grupos eram atendidas através da oferta, diversificou-se o consumo, e isto foi feito porque a oferta se diversificou em primeiro lugar. Com isso, "a busca dessa diversificação constitui a base das atividades comerciais, às quais se deve a primeira revolução nos processos econômicos" (Furtado, 1965:114). A partir da atividade comercial já não se extrai o excedente através da compressão do consumo. Isto ocorrerá com a ampliação do comércio e com a dedicação dos grupos somente a essas atividades, porque toda a riqueza, nas mãos destes, se transformará em capital de giro. Com essa elaboração teórica inicial, Furtado entende que está dada a condição para se entender o que chama de “esquema do processo de desenvolvimento”. O esquema é iniciado pela análise das economias pré-industriais. Primeiro, aparecem os fatores exógenos, criando um excedente, decorrente do trabalho escravo, por exemplo; segundo, a apropriação do excedente por grupos minoritários, com o que se eleva o consumo de tais grupos que se diversifica; terceiro, os padrões mais elevados de consumo dos grupos minoritários criam a necessidade de intercâmbio com outras comunidades:

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quarto, o intercâmbio permite a especialização geográfica, a maior divisão do trabalho e o aumento da produtividade; quinto, concentração de riqueza, decorrente do intercâmbio; sexto, incorporação dos recursos gerados pelo comércio ao processo produtivo. De conformidade com esse esquema, o excedente da produção transforma-se em fonte de renda: automatiza-se o processo de acumulação.15

15 Furtado. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. p.115 e passin

O modelo anteriormente anunciado permite, ainda que de forma resumida, captar o que de importante existe no processo econômico: Do lado da produção, aparece a criação de excedente; do da distribuição, a apropriação desse excedente por um grupo minoritário; e, do lado da acumulação, a possibilidade de incrementar a produtividade com a incorporação do excedente ao processo produtivo (Furtado, 1965:116). Entende o autor que esse esquema diz respeito às fases iniciais de desenvolvimento. Nessas fases, torna-se importante a apropriação do excedente, por grupos minoritários, para evitar que o consumo absorva a totalidade da produção. Com o passar do tempo, os bens que serão consumidos tendem a se diferenciar dos que irão incorporar-se ao processo produtivo: O negociante que faz comércio marítimo necessita transformar os recursos que acumula, em barcos e outros instrumentos de trabalho (Furtado, 1965:117). A partir daí, o aparelho produtivo especializa-se. Ao retomar o conceito de excedente dos economistas clássicos, não há dúvida de que Furtado comete os mesmos erros desses economistas, que acreditavam que a oferta gerava a própia demanda. O autor volta a se inspirar na velha Lei de Say. Nestas análises anteriores, deixa claro que a dinâmica do desenvolvimento se dá pelo lado da oferta. No item “O desenvolvimento econômico como expansão do universo econômico”, Furtado afirma que, para entender o crescimento, é indispensável se ter uma percepção do universo

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econômico no qual ele se insere16. Tomando a Inglaterra como exemplo, ele identifica unidades econômicas isoladas, e outras interagindo num sistema econômico nacional; estas, por sua vez, integram-se com o sistema econômico mundial. Com esse esquema, pode-se inferir que o desenvolvimento é desigual: surge em uns pontos, propaga-se com maior ou menor facilidade à outros, toma vigor em determinados lugares, aborta noutros, etc (Furtado, 1965:118). Concluindo, o autor diz que isso acontece devido à impossibilidade de tornar uniforme a constelação de recursos e fatores. Estes são, em cada localidade, diversos. A heterogeneidade de fatores de produção faz com que os mesmos bens sejam produzidos com graus diversos de esforços, em diferentes localidades.17

16 Furtado. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. p.115.

Isso evidencia a discordância de Furtado com autores do tipo de Rostow, que estabelece etapas que os países devem percorrer, sem, contudo, levar em conta que o processo de desenvolvimento não é o mesmo para todos os países. Entende Furtado que, dada a dificuldade de produzir sob condições diversas, o ideal é carrear bens de um local para outro. Os recursos acumulados numa comunidade são transformados em capital comercial, que, inevitavelmente, irá beneficiar outra. Isto constitui um processo de interação comercial. Observando a interação entre as diversas regiões Furtado deduziu que.”o desenvolvimento em seus primeiros estágios (grifo nosso) é, principalmente, um processo de expansão geográfica do universo econômico.” (Furtado, 1965:119). Se o desenvolvimento, em seus primeiros estágios, é dado pela expansão geográfica, é óbvio que esta expansão é decorrente da atividade comercial. Dessa forma, a categoria profissional mais importante em um sistema comercial é, sem dúvida, o comerciante, porque,

17 Idem.

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a acumulação de recursos em mãos dos comerciantes permite a estes financiar a abertura de novas linhas de produção, a colonização de melhores terras, etc. (Furtado, 1965:116). Esses comerciantes assumem, no pensamento furtadiano, o papel de pioneiros, por abrirem novos comércios, posto que o crescimento de uma economia comercial depende da abertura de novos mercados. Daí se poder atribuir ao comerciante um duplo papel: primeiro, o de apropriar-se do excedente para, posteriormente, reinvesti-lo no setor comercial, ampliando, dessa forma, o próprio comércio; segundo, o de criar novos mercados, tanto para carrear matérias primas para as comunidades mais evoluídas quanto para consumir produtos destas comunidades. Na impossibilidade de aberturas de novos mercados, os lucros são investidos em guerras e em obras improdutivas. É compreensível a importância que assume a atividade comercial, na interpretação de Furtado, porque este confere aos fatores exógenos a função inicial de modificar as condições internas de uma comunidade, preparando-a para o desenvolvimento autóctone. No caso de uma economia em que o nível de acumulação é decorrente do comércio, deve-se ter em conta que esta economia foi antecedida por um sistema fechado, cujos fatores endógenos não permitiram que existissem transformações que alavancassem o desenvolvimento. Exemplo: os feudos. Estes, para se transformarem, tiveram que receber um impulso vindo de fora, da atividade comercial, que, realizada extramuros, penetrou posteriormente nestes, modificando o comércio já existente e introduzindo novas formas comerciais e de produção. No entanto, o motor do desenvolvimento econômico no pensamento furtadiano está na indústria, isto porque só com a industrialização foi possível incorporar técnicas e métodos científicos na economia. O uso de técnicas no processo industrial é explicado a partir da necessidade de reduzir custos, redução esta necessária em virtude da concorrência, posto que a disputa intercapitalista exige cada vez mais

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métodos que, cientificamente aplicados, reduzam custos em relação ao aumento da produtividade. Vale dizer, é necessário dominar a ciência e a técnica, inovar, objetivando melhorar os métodos de produção, cujo fim é alcançar uma maior racionalidade produtiva. Tal racionalidade significa, antes de tudo, a minimização dos custos de produção, para que o produto final possa ser vendido a preços baixos. Só assim haverá lucros. Com a indústria, o crescimento econômico não é dado pelo crescimento extensivo - como a ampliação das linhas comerciais, por exemplo- mas ocorre no interior da própria produção industrial, com a constante transformação da técnica e dos métodos de produção. Ou seja, para cada momento da produção, uma nova técnica, um novo método científico gerado no próprio processo produtivo é por ele incorporado, havendo, dessa forma, uma constante inovação tecnológica. Com isso, eleva-se para novos patamares a produtividade. Furtado, assim, descreve o processo, após concluir que é na organização e na técnica de produção que está o elemento central do novo sistema econômico: E não significa só isso: inovar nas técnicas de produção significa, via de regra, abrir oportunidades ao capital - que sob a forma de lucros está afluindo às mãos do empresário - reincorporar-se ao sistema produtivo. A eficiência produtiva e o avanço da técnica constituem, portanto, no novo sistema econômico, a fonte do lucro do empresário e a oportunidade de aplicar remuneradamente esses lucros. Cabe, assim, à tecnologia desempenhar o papel de fator dinâmico central da economia industrial. E, como a tecnologia não é outra coisa senão a aplicação ao sistema produtivo do conhecimento científico do mundo físico, pode-se afirmar que a economia industrial só encontra limites de expansão na própria capacidade do homem para penetrar no conhecimento do mundo em que vive (Furtado, 1965:147). Devido, então, à importância que a ciência e a técnica têm no processo produtivo, o desenvolvimento econômico não pode ser entendido como crescimento físico do produto. Por isso,

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cabe definir o desenvolvimento econômico como um processo de mudança social pelo qual um número crescente de necessidades humanas(...)são satisfeitas através de uma diferenciação no sistema produtivo decorrente da introdução de inovações tecnológicas. O avanço da ciência desempenha papel estratégico nesse processo, pois dele emanam as inovações tecnológicas (Furtado, 1964:29). Nesse sentido, o desenvolvimento econômico é também uma problemática de ordem cultural, isto porque as inovações tecnológicas, que são a essência do desenvolvimento econômico, não provocam apenas modificações na estrutura do sistema de produção. Põem em movimento (...) uma cadeia de reações decorrentes da interdependência que existe entre os elementos básicos de toda cultura. Assim, as mudanças na estrutura econômica tendem acarretar modificações em toda estrutura social, o que ocorre não como causação simples, mas em função de determinadas condições históricas (Furtado, 1964:29). Esta nova abordagem, com “ingrediente” cultural, acerca do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, é retomada mais tarde, com mais intensidade, por Furtado. Podemos concluir que o desenvolvimento, na fase industrial, é decorrente da expansão e da inovação tecnológica, ou do aumento de produtividade por unidade física de produção. Tal situação tem como locus ideal o setor industrial. Com outras palavras: o excedente econômico é criado a partir da combinação racional dos fatores de produção. Tal fato faz com que a economia industrial se diferencie das economias pré-capitalistas, nas quais o excedente era obtido pelo trabalho intensivo, no caso de uma economia com base no trabalho escravo, ou pelo aumento da fronteira geográfica, no caso da economia comercial. Assim, como nas economias pré-capitalistas, onde havia uma categoria profissional minoritária, o dirigente (no fundo, o responsável pelos investimentos), na fase da industrialização esta função passa a ser do empresário, que, além de ser o responsável pela alocação de novos investimentos, deve ser um inovador, do ponto de vista schumpeteriano.

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As análises de Furtado, na fase do desenvolvimento com predominância da atividade industrial, não se diferenciam de outros autores que vêem na industrialização o fator determinante do crescimento. Estamos nos referindo a autores, como Schumpeter, Rostow, Baran. No capítulo quarto de "Desenvolvimento e subdesenvolvimento", especificamente no item As estruturas subdesenvolvidas, Furtado demonstra a questão do subdesenvolvimento a partir do pressuposto de que os modelos que pretendem explicar o processo de desenvolvimento das economias hoje desenvolvidas não podem ser generalizados, com o objetivo de analisar economias de caráter distinto, porque as categorias e as leis elaboradas, a partir de um determinado modelo abstrato, têm como condicionante a realidade histórica e social. Nesse sentido, afirma Furtado: derivar um modelo abstrato do mecanismo dessas economias, em seu estágio atual, e atribuir-lhe validez universal valeria por uma reencarnação do homo oeconomicus em cuja psicologia rudimentar os clássicos pretenderam assentar as leis econômicas fundamentais. A dualidade óbvia que existe e se agrava, cada dia mais, entre as economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas exige a formulação desse problema em termos distintos (Furtado, 1965:171). Para entender as economias subdesenvolvidas, torna-se necessária uma nova teoria; Furtado se propõe a formulá-la, tendo em conta que o subdesenvolvimento é um processo histórico, não uma etapa do desenvolvimento pela qual todas as economias desenvolvidas devam passar.18

18Furtado. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. p.173

E para apreender a essência das economias subdesenvolvidas, é necessário levar em conta suas especificidades. Assim sendo, o modelo desenvolvido com base na realidade dos países europeus que se industrializaram no século XIX não é ideal para analisar os atuais países subdesenvolvidos. Para captar, então, a problemática do subdesenvolvimento,

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Furtado recorre à história e constata que, a partir da formação de um núcleo industrial, na Europa, no século XVIII, houve uma ruptura com a economia mundial da época. Tal evento passou a determinar o desenvolvimento econômico posterior em quase todas as regiões da Terra. Esse núcleo dinâmico projetou três linhas de influências: a primeira aconteceu na própria Europa ocidental, quando desagregou as formas pré-capitalistas de produção dentro do quadro do mercantilismo, resultando daí uma rápida liberação de mão-de-obra e uma lenta absorção desta, tornando este fator de produção altamente elástico. Num segundo momento, a oferta de mão-de-obra torna-se inelástica, exigindo a intervenção de tecnologia, com o objetivo de melhor combinar os fatores de produção. Assim sendo, o desenvolvimento da tecnologia - isto é, as transformações das indústrias de bens de capital - passa a ser cada vez mais condicionado pela disponibilidade relativa de fatores nos centros industriais (Furtado, 1965:171). A segunda linha de desenvolvimento foi marcada pelo deslocamento para além das fronteiras européias, notadamente para onde houvesse terras desocupadas e com características semelhantes às da Europa. O melhor exemplo de tal situação é a ocupação e a colonização da Austrália e do Oeste da América do Norte, onde o ouro desempenhou um papel básico. Além do mais, o comércio dos produtos primários das colônias com a metrópole abria a possibilidade de concorrência no mercado europeu. No entanto, essa linha de desenvolvimento se assemelhava ao das metrópoles. Furtado assim vê o fenômeno: Mas importa ter em conta, entretanto, que este deslocamento de fronteira não se diferenciava, basicamente, do processo de desenvolvimento da própria Europa (Furtado, 1965:171).) Isso porque as economias australiana, canadense e estadunidense, nessa fase, eram um apêndice da economia industrial européia. Tal fato é ratificado pelo processo imigratório, no qual os migrantes levaram os hábitos de consumo e as técnicas vigentes na Europa. Os imigrantes, encontrando recursos em grande escala, alcançavam

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rapidamente níveis mais elevados de produtividade e de renda. Daí se entender que, desde cedo, as populações destas colônias tenham alcançado bom nível de vida. A terceira linha de expansão da economia industrial européia teve como destino as regiões já ocupadas, mas com uma forma de produção econômica pré-capitalista. Foram vários os interesses que motivaram tais contatos, os quais não se deram de maneira uniforme: Em alguns casos o interesse limitou-se à abertura de linhas de comércio. Em outros houve, desde o início, o desejo de fomentar a produção de matérias - primas, cuja procura crescia nos centros industriais. O efeito do impacto da expansão capitalista sobre as estruturas arcaicas variou de região para região, ao sabor das circunstâncias locais, do tipo de penetração capitalista e da intensidade desta. Contudo, a resultante foi quase sempre a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra a manter-se dentro da estrutura pré-existente. Êsse tipo de economia capitalista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento contemporâneo (Furtado, 1965:171). Furtado vê, então, dois tipos de conseqüências causadas pela penetração capitalista, e estas vão depender das novas atividades nas antigas estruturas, da importância relativa da renda aí gerada e do quanto que internamente permanece. Em outras palavras: vai depender, fundamentalmente, do volume de mão-de-obra absorvido, uma vez que os salários não eram determinados pela produtividade marginal do trabalho e, sim, pelas condições de vida já existentes no setor de subsistência. Neste setor os salários, via de regra, estão no limite da subsistência. No entanto, se o salário pago pela empresa capitalista, na região onde causou impacto, fosse maior do que a média regional vigente, surgiria aí uma mão-de-obra totalmente elástica. Ou seja, um grande número de trabalhadores estariam dispostos a ocupar postos de trabalho na empresa, aumentando a massa salarial da região. Pode-se dizer, então, que a empresa capitalista cumpre a função de gerar certo volume de renda (notadamente salários) na região, objetivando modificar as estruturas

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econômicas. Assim sendo, as economias subdesenvolvidas são caracterizadas de duas formas: a primeira, em que a massa de salários, decorrente do setor exportador, não alterou a estrutura econômica; a segunda, em que ocorreram modificações. No primeiro caso, Furtado refere-se a uma exploração mineira, cuja produção se destina à exportação, caso em que se deve ter em conta que o volume de renda gerado pela mineração é pequeno e o lucro decorrente de tal atividade não é reinvestido na própria economia. Ou seja, no mercado interno. No segundo caso, Furtado refere-se às economias subdesenvolvidas, nas quais a massa de salário gerada pelo setor exportador modificou a estrutura econômica preexistente, dando origem, assim, a um processo de industrialização. Os fundamentos de tal processo repousam na produção e na defesa da política dos produtos primários, tendo em vista as transformações da conjuntura internacional. No caso brasileiro, a cafeicultura é o melhor exemplo. Os lucros do setor cafeeiro foram empregados na própria cultura nas fases de prosperidade e, com isso, não houve possibilidades de mudanças significativas em nível de sistema. Apesar de tal fato, devemos frisar que as inversões na economia cafeeira permitiram a incorporação do setor de subsistência a esta e financiaram a imigração européia para se constituir força de trabalho na agricultura. A conseqüência imediata de tal situação foi a expansão da massa de salário na economia, que possibilitou a modificação nos hábitos de consumo, criando uma demanda e ampliando, desta forma, o potencial do mercado interno, o que constituiu um fator dinâmico da economia, na medida em que este exerceu pressão por produtos que vieram satisfazer à demanda preexistente. Os produtos importados, inicialmente, supriram tal demanda. No entanto, com as medidas de defesa do café, cujos preços internacionais se deterioravam, tornou-se difícil a importação. Foi necessário produzir internamente o que antes era comprado no exterior, criando-se um núcleo industrial para satisfazer a procura interna. O núcleo industrial, criado com base na procura preexistente -

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antes atendida com importações - iniciou-se a partir de indústrias ligeiras, produtoras de artigos de consumo geral, como tecidos e alimentos elaborados (Furtado, 1965:181). No tipo de economia em que o núcleo industrial foi conseqüência de fatores exógenos, coexistem três setores : no primeiro, predominam as atividades de subsistência, e o fluxo monetário, aí, é reduzido; no segundo, estão as atividades ligadas ao setor exportador; no terceiro, estão as manufaturas ligadas ao mercado interno, que têm o objetivo de suprir as necessidades da população. A partir daí, Furtado entende haver dois tipos de economia subdesenvolvida: uma de grau inferior e outra superior: Nas estruturas subdesenvolvidas de grau inferior, a massa de salários gerada no setor exportador se constitui o único elemento dinâmico (Furtado, 1965:182). Isto implica dizer que, se o setor se expande, há uma absorção dos fatores ocupados no setor de subsistência. Contudo, se o setor exportador se mantiver estacionário, o crescimento da população forçará uma baixa dos salários médios e declinará a renda por habitante. Infere-se, portanto, que não haverá modificações estruturais no sistema. Nas economias subdesenvolvidas de estrutura superior, nas quais já existe um núcleo industrial ligado ao mercado interno, o fator dinâmico continua sendo o mercado internacional e a diferença está na existência de uma dinâmica interna decorrente do fator exógeno. Com isso, transformações estruturais no sistema ocorrerão por conta da renda induzida pelo comércio internacional. Esta renda permite novas inversões no núcleo industrial. A partir daí, as importações tendem a sofrer concorrência da produção interna. No entanto, com a desvalorização cambial, para manter o nível de renda do setor exportador, a capacidade de importar diminui, voltando-se a dinamizar o núcleo industrial, pois a demanda para ele se dirige. Mesmo, nessa segunda “fase”, Furtado acredita haver um limite para o crescimento. Isto porque os altos lucros provenientes de atividades ligadas ao mercado interno, numa etapa de aumentos relativos dos preços de equipamentos

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industriais, faz surgir uma tendência de inverter capitais nas atividades menos dependentes das importações, tais como as construções residenciais (Furtado, 1965:183). Como os investimentos em atividades deste tipo não modificam ad aeternum a estrutura de emprego da comunidade, o processo de crescimento fica comprometido. Para Furtado, a etapa superior do desenvolvimento só é alcançada quando há uma diversificação no núcleo industrial, adquirindo este até a capacidade de produzir parte dos equipamentos que permitam ampliar a sua capacidade produtiva. Contudo, deve-se ter em conta que “o processo normal de desenvolvimento do núcleo industrial é ainda o da substituição das importações” (Idem) Isso porque o fator dinâmico ainda é a demanda existente, decorrente dos fatores exógenos e não das inovações tecnológicas ocorridas no processo produtivo, como costuma acontecer nos países desenvolvidos. Em suma, para Furtado, uma estrutura subdesenvolvida é aquela em que a utilização plena do capital disponível na sua alocação mais eficiente, não significa a absorção de toda a mão-de-obra existente. Deve-se isso à relativa fixidez dos coeficientes técnicos e ao fato de que a tecnologia se vem desenvolvendo em função da disponibilidade de fatores e recursos dos países que lideram o processo de industrialização (Furtado, 1965:83). Isso significa dizer que existe um descompasso entre os fatores da produção e o destino dado à tecnologia. Aí reside um dos maiores problemas dos países subdesenvolvidos, ou seja, no processo de desenvolvimento periférico não existe aquele fator fundamental de flexibilidade responsável pelo equilíbrio entre as disponibilidades de fatores de produção, que foi o progresso tecnológico induzido nos países centrais.19

19 Para melhor entendimento, consultar, Romeiro. Os fundamentos teóricos do

estruturalismo: uma análise da contribuição de celso furtado. p.100.

Nesse sentido, Furtado afirmou que: o subdesenvolvimento, por conseguinte, é uma conformação estrutural produzida pela forma como se propagou o progresso

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tecnológico no plano internacional (Furtado, 1992:74). Dessa forma, a superação do problema reside na possibilidade de os países periféricos desenvolverem tecnologia industrial. Para tanto, torna-se necessário contar com uma diversificada indústria de bens de capital. Nessa altura dos seus trabalhos, o autor deixa, às vezes, implícita e, às vezes, explícita, a idéia de que o desenvolvimento acontece pela via da industrialização. Ser desenvolvido é ser industrializado. Essa forma de pensar é, sem dúvida, influenciada pela Cepal. Para esta instituição, desenvolvimento é sinônimo de industrialização. A produção madura de celso furtado Entendemos que o livro "Dialética do desenvolvimento" é uma publicação de Furtado numa fase mais madura. Embora reconheçamos, nesse livro, um forte viés político, ele não se limita às análises políticas do fenômeno desenvolvimento e subdesenvolvimento. Há uma construção científica que prepondera. Encontramos, aí, a construção de uma “contrateoria”, na medida em que o autor procura demonstrar a insuficiência do marxismo nas análises das economias subdesenvolvidas. Referência especial é dada à luta de classes. Esse livro foi escrito durante o estado de sítio em que viveu o País em setembro de 1963. Pretendia o autor chamar a atenção dos intelectuais para o grave momento pelo qual o Brasil estava passando. O autor parte do princípio de que desenvolvimento é um processo de mudança social e que sua compreensão não havia sido ainda captada pela teoria econômica, a qual entende a economia como perfeito equilíbrio, numa postura estática. Dessa forma, perceber a questão do desenvolvimento num processo mais amplo de mudança social é percebê-lo no contexto de uma realidade histórica, isto é, partindo-se de uma imagem figurativa do todo social e de seu comportamento no tempo (Furtado, 1965:25). Para Furtado, as mudanças sociais encontram sua explicação graças à introdução de inovações que têm origem na própria cultura de uma nação ou na do exterior. Essa, por sua vez, é a visão antropológica de Furtado, no tocante ao desenvolvimento.

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E, para ele, essa nova postura analítica marca o encontro da antropologia e da sociologia com a teoria econômica. Furtado disse que Marx percebeu, com clareza, a relação entre infra-estrutura e superestrutura. Concorda com Marx no sentido de que, se houver desenvolvimento nas forças produtivas, ou seja, na base tecnológica, e se não ocorrerem mudanças na superestrutura, haverá uma “época de revolução social.” A despeito de concordar com Marx, ele entendeu que o modelo marxista só tem validade em situações historicamente condicionadas e que Marx tomou como modelo o capitalismo do século XIX. Com isso, Nas economias capitalistas de industrialização posterior (fenômeno atual do subdesenvolvimento) um processo rápido de mudança na cultura não material teve muitas vezes um papel determinante (Furtado, 1965:28). É o caso de economias que incorporaram, nos seus hábitos e atitudes, inovações de outras culturas. Este fato implicou uma modificação que “pode dar lugar a uma cadeia de reações com repercussões em toda a estrutura social.” A citação anterior permite inferir que mudanças na superestrutura podem modificar todo o espectro de uma sociedade, sem que, necessariamente, as mudanças tenham sido decorrentes de alterações infra-estruturais. Ciente de que o desenvolvimento é um processo de mudanças via de regra induzido por mudanças tecnológicas, Furtado define agora desenvolvimento econômico como sendo um processo de mudança social pelo qual um número crescente de necessidades humana - preexistente ou criadas pela própria mudança - são satisfeitas através de uma diferenciação no sistema produtivo decorrente da introdução de inovações tecnológicas (Furtado, 1965:29). As inovações tecnológicas, tão essenciais ao desenvolvimento econômico, induzem mudanças em toda a estrutura do sistema. No caso das economias subdesenvolvidas, observam-se peculiaridades que não se encontram nas economias centrais. Nas economias capitalistas desenvolvidas da atualidade, o sistema econômico tende a um relativo equilíbrio. Nessas economias, o desenvolvimento científico possibilita um

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constante avanço tecnológico, assim, a acumulação não encontra grandes obstáculos à sua expansão, mas apenas desajustes ocasionais, e os possíveis obstáculos são de caráter institucional. É o caso de uma desigual distribuição de renda e a conseqüente insuficiência na demanda, que podem ser corrigidas ou através do planejamento ou de uma política fiscal realocadora dos recursos distributivos. Para Furtado, nas economias subdesenvolvidas, onde a base tecnológica é montada a partir de matrizes importadas, a adaptação das estruturas sociais às mudanças induzidas por esta base tecnológica é problemática. Normalmente, a penetração de nova tecnologia no setor produtivo desorganiza uma faixa da economia artesanal já existente, criando um excedente de mão-de-obra que vai migrar para a economia de subsistência, dando origem a uma dualidade no sistema econômico. Essa dualidade apresenta uma distribuição desigual da renda e uma demanda enfraquecida, o que resulta numa estrutura social diferenciada das economias desenvolvidas: o excedente deste tipo de economia é apropriado pelos grupos minoritários dirigentes, que não encontram resistência por parte dos trabalhadores porque estes, na visão de Furtado, não possuem consciência de classe. Em conseqüência, os grupos dirigentes empregam o excedente, que por eles foi apropriado, em consumo suntuário, ou investem no exterior. Em Dialética, a inovação mais importante é a forma como Furtado vê a luta de classes. Ele parte do princípio de que a luta de classe só é o motor do desenvolvimento nas economias estruturadas no capitalismo industrial, isto porque somente nessa fase do desenvolvimento é que os trabalhadores podem ter consciência de classe. Esta consciência surge a partir da aglomeração de grandes unidades produtivas nas cidades. E segundo Furtado, a antiga cidade entreposto, de população heterogênea e flutuante, substituiu-se a metrópole industrial com grandes massas de trabalhadores assalariados sujeitos ao desemprego periódico. Quando portador de uma consciência de classe, o trabalhador pode transformar os conflitos eventuais em luta de classes.

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Nesse caso, a luta de classes pode assumir o papel de motor do desenvolvimento social. Nas organizações sociais diferentes do capitalismo, no feudalismo por exemplo, não havia luta de classes, e sim, conflitos entre os segmentos da classe dominante, no caso entre a nobreza feudal e a burguesia em ascensão. Nesse momento, o motor da história, para Furtado, foi a luta no interior de uma mesma classe, embora em ramos diferentes. Para Furtado, a importância da luta de classes está no fato de que esta, ao atuar no interior de um cenário institucional flexível, ou seja, no âmbito das liberdades cívicas, permite que a classe dominante ceda às demandas reivindicatórias dos trabalhadores sem comprometer os seus privilégios. Do ponto de vista econômico, podemos dizer que uma classe trabalhadora aguerrida é importante para o equilíbrio do sistema, na medida em que representa a garantia de uma vigorosa demanda efetiva. O que podemos concluir desse livro é que Furtado só atribui validade para as idéias de Marx na fase do capitalismo industrial. Daí aceitar com ressalvas a relação infra-estrutura e superestrutura na lógica marxista, como também a linha de raciocínio de que a “história da humanidade tem sido a história da luta de classes”. No exílio, outro livro vai ser produzido com maior aprofundamento teórico, mas seguindo a linha do Furtado “maduro”, já iniciada em Dialética. Partindo de uma perspectiva macroeconômica, o autor produziu Teoria e política do desenvolvimento econômico, durante seu exílio em França. A obra é resultado dos apontamentos de suas aulas na Sorbonne. Nela, o desenvolvimento é definido como fluxo de renda. Antes, porém, ele vai dizer que o ponto de partida para explicar a idéia de desenvolvimento está na categoria progresso em dada circunstância histórica, ou seja, o progresso é uma expressão vaga mas que serviu de ponto de partida para explicar o conceito inicial de desenvolvimento. Mas é com a definição de fluxo de renda que se tem um melhor entendimento do que seja desenvolvimento: com efeito, o aumento do fluxo de renda, por unidade de força de trabalho utilizada, tem sido aceito, desde a época dos clássicos como o melhor indicador do processo de

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desenvolvimento de uma economia (Furtado, 1977:90). O conceito de fluxo de renda, conforme expresso na citação anterior, é decorrente, por um lado, das modificações técnicas de produção, e por outro, na quantidade de capital aumentada por pessoa ocupada. Segundo o autor, para seu estudo utiliza-se de uma maneira geral, como base, a constelação de fatores (grifo nosso)que formam um conjunto econômico nacional (Furtado, 1977:90). Convém destacar que Furtado entende que a problemática do desenvolvimento deve ser apreendida num leque de categorias econômicas que ele chamou de constelações, isso porque: o conceito de desenvolvimento pode ser igualmente utilizado com referência a qualquer conjunto econômico no qual a composição da procura traduz preferências individuais e coletivas baseadas em um sistema de valores (Furtado, 1977:90). Aqui aparece a novidade que vai diferenciar a produção de Celso Furtado, numa fase mais madura, do “jovem” Furtado da época de A economia brasileira. Na nova fase, Furtado incorpora variáveis não-econômicas na interpretação do desenvolvimento econômico, de forma contínua, daí ter feito referência a sistema de valores. Continuando a análise acerca do desenvolvimento em Teoria e política, o autor mostrou que, em certos casos, a idéia de desenvolvimento está mais próxima da de crescimento. Isto acontece quando um subsistema não cria a própria procura. Isto é, o crescimento não implica mudanças na função de produção. Quando há mudanças, o conceito de desenvolvimento é mais amplo porque se refere a um conjunto de estrutura complexa. E esta complexidade, segundo Furtado, "na verdade traduz a diversidade das formas sociais e econômicas engendrada pela divisão do trabalho social" (Furtado, 1977:90). Tal complexidade das estruturas acontece porque o sistema tem que satisfazer às necessidades da população, que, obviamente, são inúmeras. Dessa forma, uma multiplicidade de ações tanto sociais quanto institucionais age sobre as estruturas ocasionando, via de regra, modificações estruturais. Nesse momento, Furtado critica qualquer análise corrente que não opte

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pelo mesmo enfoque mais abrangente dado por ele ao fenômeno do desenvolvimento, ou seja, mais macro. Finalizando, Furtado nos ensinou que a noção de crescimento fica restrita ao plano das idéias, isto porque na vida real o crescimento econômico modifica os fatores de produção, realocando-os de forma diferente, e ocasionando um aumento da produtividade destes fatores. Na interpretação anterior do subdesenvolvimento, que acabamos de relatar, o autor foge da idéia de que a oferta gera a própia demanda. Entende ele que as ações sobre o sistema implicam modificações estruturais. Isto equivale a dizer que o consumidor não fica na dependência da produção. Como as necessidades são inúmeras, a oferta tem que se adaptar às necessidades da população. Deve produzir para atender ao consumo e não mais para induzi-lo. No tocante ao subdesenvolvimento, Furtado manteve a mesma lógica de análise empregada em Desenvolvimento e subdesenvolvimento, não valendo a pena repeti-la aqui. Contudo, uma abordagem do autor introduzida em Teoria e política, no capítulo XIV, "Características Estruturais do Subdesenvolvimento", que ele denominou dualismo e subdesenvolvimento, deve ser considerada para fins deste nosso estudo. Nas economias subdesenvolvidas, convivem duas estruturas: uma capitalista e outra não-capitalista. O setor não-capitalista mantém uma interdependência em relação ao capitalista, embora estejam ambos os setores no bojo de relações internacionais que configuram um quadro de dependência. No dizer de Furtado, O conceito de dualismo tem sido objeto de amplo debate entre os estudiosos do subdesenvolvimento. Na forma em que o utilizamos(...) ele se refere à coexistência do modo de produção capitalista com outros modos de produção não capitalistas (...) no quadro do subdesenvolvimento, isto é, em economias que não podem ser concebidas fora de certo sistema de relações internacionais que engendra o fenômeno da dependência (Furtado, 1977:121). A interdependência é responsável pela continuidade dos

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elementos pré-capitalistas no sistema. Assim sendo, o autor vai explicar que o excedente criado no setor capitalista depende das condições de vida do setor não capitalista. É fácil imaginar que ele se referia à economia açucareira do período colonial, que, de um lado, mantinha relações com o mercado internacional, e do outro, com o setor de subsistência, que lhe fornecia algumas mulas para transportes e uma parca alimentação. Esta situação configura melhor o quadro explicativo da interdependência, que tendia a se perpetuar. Contudo, a eliminação desse dualismo é praticamente impossível, pois a lógica da economia está baseada na retençao da lucratividade do setor capitalista no exterior e na manutenção do salário dos trabalhadores, mesmo aqueles do setor capitalista, em um nível próximo da subsistência, isso porque a transformação de todos os trabalhadores em assalariados não é suficiente para romper com o subdesenvolvimento, isso é, com o dualismo. Pode-se concluir que o processo de industrialização, que na visão do “jovem”Furtado poderia superar o subdesenvolvimento, já não surge no Furtado “maduro” como um processo que tem o condão de retirar as populações do Brasil e de todas as regiões subdesenvolvidas do secular atraso. Conforme Furtado, des donnés empiriques montrent que l’ industrilisation de substitution a aggravé le dualisme du marché du travail et amplifié l’ecart entre le secteur moderne et le secteur précapitaliste sans réduire l’importance de ce dernier en tant que principale source d’emplois. Dans le secteur urbain, l’aggravation du même dualisme se manifeste par l’augmentation rapide du sous-emploi (Furtado, 1970:121).•

• “Os dados empíricos mostram que a industrialização por substituição das

importações agravou o dualismo no mercado de trabalho e ampliou às diferenças entre o setor moderno e o setor pré-capitalista sem reduzir a importância deste último no que diz respeito as principais fontes de emprego. No setor urbabno, a gravidade deste mesmo dualismo se manifesta pelo aumento rápido do subemprego.”

Esta afirmação foi feita nos anos setenta, ao aprofundar a sua postura teórica já em mudança a partir do seu exílio no Chile DOWNLOAD FREE

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quando passou a pensar a industrialização nos quadros da dependência. Numa publicação de 1977 - Prefácio a nova economia política- o autor evidencia com mais clareza, a sua nova postura teórico-metodológica e vai aprofundá-la ainda mais no início dos anos 80, com a publicação de Pequena introdução ao desenvolvimento. No Prefácio, já na Introdução, é salientada a insuficiência teórica dos economistas: Um quarto de século tateando os labirintos das teorias econômicas e esforçando-me para descobrir relações entre os ensinamentos que daí se derivam e os problemas práticos de nossa época, convenceu-me sobejamente da insuficiência, do quadro conceitual com que trabalhamos nossa ciência (Furtado.1977:9). Detectada a insuficiência do quadro teórico, Furtado escreve a primeira parte do Prefácio com o objetivo de superar tal insuficiência, e o faz com base numa reconstrução do quadro conceitual de que se utiliza o economista, reconstrução esta apoiada na visão global de estruturas sociais historicamente identificadas (Furtado.1977:9). No livro Pequena Introdução ao Desenvolvimento, as análises de Celso Furtado já são realizadas com base na teoria esboçada no Prefácio. Aí, o autor continua fugindo da rotina das interpretações economicistas, fato que pode ser comprovado na seguinte citação: a idéia de desenvolvimento está no centro da visão do mundo que prevalece em nossa época. Seu substrato é o processo de invenção cultural (Furtado, 1980:11). Após estas breves explicações acerca das duas obras que marcam um novo balizamento teórico em Furtado, passamos a demonstrar como esta modificação teórica realmente aconteceu. No Prefácio, Furtado afirmou que a análise econômica corrente quando não consegue explicar, a partir de um conhecimento que tem um número limitado de variáveis econômicas e de parâmetros incorporados em uma matriz estrutural, o economista tenta reinserir indiretamente

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nesta última, que assim vai ganhando espessura e opacidade. Desta forma, os fatos de maior significado ocorrem no ‘plano das estruturas’,sendo praticamente invisível para o analista econômico (Furtado, 1977:13). É bem sabido que uma matriz teórica comporta um número limitado de variáveis. Assim sendo, a realidade, que obviamente é muito mais ampla do que os modelos decorrentes das matrizes, não pode ser explicada pelos mecanismos matriciais, daí se entender que os fatos mais importantes de uma dada realidade não são captados pelo analista. O conceito de acumulação, por exemplo, deve ser mais amplo. Não pode ser enfocado só sob o ângulo de uma variável. Não deve, por exemplo, restringir-se somente à variável investimento. Estes modelos formam um caso específico de acumulação: acumulação ligada ao aumento da capacidade produtiva de um sistema econômico. Mesmo sendo um caso específico, o investimento deve ser contextualizado em relações mais amplas: se um investimento é uma forma particular de acumulação, cabe indagar até que ponto essa forma sofre a concorrência de outras, que relações existem entre as diversas formas de acumulação, que fatores teriam a acumulação-investimento em benefício de outras formas? (Furtado, 1977:13). As questões anteriores servem como pontos de partida para que Furtado possa informar que somente através de uma visão global de um processo é que podem ser captadas as especificidades mais ocultas. Por isso, as relações entre acumulação e progresso técnico, que constituem um dos pontos centrais da teoria do desenvolvimento, somente podem ser adequadamente percebidas a partir de uma análise global do processo de acumulação (Furtado, 1977:13).) Para ele, quando o progresso técnico ocorre na produção, o processo produtivo torna-se mais eficiente; quando acontece fora, modifica o estilo de vida da população. Conclui-se que, no primeiro caso, as razões são técnicas; no segundo, as razões entre acumulação e progresso técnico são regidas por fatores sociais:

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quanto mais concentração de renda mais a acumulação fora do sistema produtivo requer modificações no estilo de vida, ou seja na introdução de novos produtos (Furtado, 1977:13). Infere-se que o desenvolvimento não consiste mais somente em mudanças na composição dos fatores de produção, com intermediação da técnica. O estilo de vida da população passa a ser determinado pelo grau de concentração de renda, que, pelo lado do consumo, exige produtos diferentes. O autor em estudo dá a entender que o estilo de vida é determinado pelo tipo de desenvolvimento, pois, ao se modificarem os bens ofertados, a população tem que se adaptar a esta oferta. Esta adaptação é o que caracteriza os hábitos correntes de uma população. Este tipo de desenvolvimento é imposto pelos padrões tecnológicos vigentes em dado momento. Em outras palavras, por um tipo de modernização. Num primeiro momento, a substituição das importações foi realizada com a implantação de indústrias de bens de consumo mais imediatos - roupas, pequenos utensílios etc. Mais tarde, esses produtos foram substituídos por outros mais sofisticados e mais caros, que exigem maior poder aquisitivo para adquiri-los, para o que foi necessário operar-se uma elevada concentração de rendas. Tal fato foi responsável por um processo de heterogeneidade social. Estabeleceu estilos de vida diferenciados para a sociedade: uma parte, devido ao elevado poder aquisitivo, consumiu bens modernos, e a outra procurou os produtos tradicionais. Com essa análise, o autor volta a reafirmar a Lei de Say após tê-la negado. São os produtos sofisticados, ou seja, é a oferta de tais produtos que induz a um novo estilo de vida. A análise anterior configura a vertente cultural do processo de desenvolvimento, presente agora em Furtado, que começou a ser esboçada na Análise do modelo brasileiro, obra de 1973. Demonstrando, ainda, a importância das análises mais abrangentes na apreensão dos fenômenos sociais, Furtado afirmou que o excedente não é só uma categoria puramente econômica, mas é também, uma categoria social, que comporta múltiplas determinações(uma subteoria do poder, das classes sociais, de mudança social etc.). “Portanto, a teoria do excedente

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constitui a face econômica da teoria da estratificação social” (Furtado, 1977:18). No tocante à divisão do trabalho, esta teve como conseqüência o aumento da produtividade do trabalho. Este aumento se deu de forma variada, possibilitando diversos graus de apropriação do excedente. Esta diferenciação estabelece uma hierarquia e funções desiguais. Obviamente que se tem aí uma estratificação decorrente do grau de apropriação do excedente. Tal fato permitiu a Furtado afirmar que Em todas as sociedades que alcançaram certo grau de complexidade, o produto social é em parte diretamente apropriado por instituições que integram o sistema de poder, o que tanto pode contribuir para reduzir como para aumentar as desigualdades sociais, sem que o fundo do problema venha a modificar-se (Furtado, 1977:19). Para ele, a existência de um excedente possibilita à sociedade um conjunto de opções. Contudo, esta sociedade deve se modificar e não apenas se reproduzir. Ou seja, dado um conjunto de opções, é necessário haver mudança porque, tendo-se uma taxa de crescimento da produtividade social, deve haver, necessariamente, um amplo quadro de transformações sociais. Assim, a forma como o excedente é apropriado define os padrões de mudança social. Desta maneira, o desenvolvimento econômico consiste no conhecimento de processos sociais que definem o modo e a utilização do excedente. Esses processos resultam da utilização de forças antagônicas, por isso torna-se importante conhecer as duas formas de antagonismos que configuram a luta de classes: antagonismos que estão ligados principalmente ao custo de reprodução da população, e antagonismos principalmente relacionados com a destinação final do excedente (Furtado, 1977:26). No primeiro caso, houve uma considerável melhoria com o desenvolvimento do capitalismo. Furtado não diz, mas se pode inferir que ele faz referência à melhoria de vida da classe trabalhadora e da população de uma forma geral, sob o capitalismo, tendo em conta o seu início e o modo de produção

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anterior. No segundo caso, os antagonismos variam desde a simples concorrência entre firmas até os conflitos internacionais. Concluiu Furtado que em todas as sociedades os conflitos e lutas em torno da apropriação do excedente são fatores decisivos das transformações sociais, particularmente daquelas que respondem pela orientação geral do desenvolvimento econômico (Furtado, 1977:27). De conformidade, então, com as categorias de acumulação e excedente, é possível construir um corpo teórico que consiga explicar todas as formações sociais.20

20 Romeiro. Os fundamentos teóricos do estruturalismo: uma análise da contribuição

de Celso Furtado. p.100.

Com base nessa propositura, dedica-se o autor a elaborar uma teoria do poder, e parte para tal empreitada, tem o conceito de excedente como princípio: poder é a capacidade que tem um grupo social de forçar a formação de um excedente e/ou dele apropriar-se. Assim, o excedente é, por si mesmo, a manifestação material da existência de um sistema de poder (Furtado, 1977:29). Todo poder tem uma face política e outra econômica, separação difícil de ser percebida. Nas sociedades mais complexas, o poder exterioriza-se na posse da terra e de vários recursos naturais escassos, nos meios de comunicação, no acesso ao crédito, no controle das informações, no controle dos órgãos do Estado. Essas são as formas mais explícitas. Há uma outra, que é aquela que se manifesta em forma de sistema de valores, via de regra, transmitida pela Igreja e pela família. No caso da economia, o mecanismo do poder aflora, por exemplo, na teoria dos preços, os quais não se formam num mercado livre, mas são resultado da ação conjugada de todas as forças que respondem pela amplitude relativa do excedente e pela forma como este é finalmente utilizado (Furtado, 1977:30). Por assim ser, a ciência econômica tem um grande alcance ideológico, posto que oculta o poder que se manifesta nas

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decisões econômicas, mascarando tais manifestações no automatismo do mercado e nas leis que devem ser respeitadas. A sociedade anônima, por exemplo, mascara o poder. A democratização do capital e a idéia de que suas decisões são decorrentes das condições de mercado escondem que tais empresas detêm o poder de monopólio. Por isso, determina o comportamento do mercado. Isso é poder; contudo, não explícito. Ou, conforme Furtado: Esse elemento de monopólio consiste no poder que tem a empresa de transformar o contexto social onde atua, mesmo que aparentemente procure a ele adaptar-se. Voltando, agora, a Pequena introdução ao desenvolvimento, nele consta que toda a reflexão acerca do homem pressupõe uma teoria geral sobre ele ou uma antropologia filosófica. A ausência desta teoria, ou a pobreza dela, para ser mais fiel ao autor, é que permite o deslize para o reducionismo econômico. Para Furtado, as sociedades são desenvolvidas quando o homem supre as suas necessidades e realiza suas aspirações. Neste sentido, o estudo do desenvolvimento tem portanto, como tema central a invenção cultural, em particular a morfogênese social. Ora, essa temática permanece praticamente intocada (Furtado, 1980:2). A visão cultural, para o nosso autor, tem dois eixos: o primeiro refere-se à ação em que se supõe a existência de objetivos; o segundo, a ação liga-se aos fins, aos desígnios últimos. O primeiro nos dá a técnica; o segundo os valores (religiosos, morais, estéticos etc.) Constata Furtado que permanecem inexploradas, no terreno da teoria do desenvolvimento, as razões pelas quais uma sociedade escolhe, em determinados momentos de sua história, a criação de técnicas e não a de valores. Propõe-se, em Introdução, a superar a interpretação que reduz a fatores econômicos o fenômeno do desenvolvimento econômico. Para tanto, no Capítulo I, Furtado explicou que o ponto de partida para uma visão globalizante da história se encontra em Kant, uma vez que este atribui ao sujeito uma consciência transcendental. Mas é com Hegel que a humanidade assume o papel de sujeito. Este

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sujeito deve se reproduzir sob uma lógica que aponta para o progresso. Configura-se, com isso, uma percepção otimista da história. Otimista na medida em que as contradições podem ser superadas, possibilitando, desta forma, imaginar uma sociedade mais produtiva e menos alienante. Na economia, a visão otimista do progresso aparece como uma mão invisível, entidade criada por Adam Smith, que harmoniza a sociedade. No entanto, essa harmonia pressupõe a liberdade de mercado nos moldes da filosofia individualista, que, antes de tudo, implica não estabelecer limites às ações humanas egoístas no mercado. Isto só foi possível no capitalismo comercial. Segundo o autor, no quadro do mercantilismo e no Pacto Colonial, o comércio era considerado pelos europeus como ato do império, inseparável, portanto, do poder das nações que o praticavam (Furtado, 1980:3). O quadro social do período não era tão harmonioso e tão promissor como imaginava o pensamento corrente. Furtado procurou evidenciar essa situação mostrando a existência de novas estruturas de dominação social decorrentes das relações mercantis que penetraram na produção, transformando imput em mercadorias. Ou, conforme o próprio Furtado: O processo de emergência de novas estruturas de dominação social deriva de que as relações mercantis, antes circunscritas ao intercâmbio de produtos finais ou semifinais, tendem a verticalizar-se: a penetrar na estrutura da produção, vale dizer, a transformar os ingredientes da produção em mercadoria (Furtado, 1980:5). E afirma, logo em seguida, que a penetração dos critérios mercantis na organização da produção não é outra coisa senão a ampliação do espaço social submetido à racionalidade instrumental (Furtado, 1980:4). Vale lembrar agora que o autor está introduzindo o conceito de racionalidade instrumental, desenvolvido por Max Weber, e mais tarde pelos filósofos da Escola de Frankfurt, notadamente Habermas. Esta chamada de atenção é apenas para mostrar que Celso Furtado está operando no campo da filosofia crítica

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produzida na Escola de Frankfurt. Perceba-se, com isso, o ecletismo do seu pensamento. Além do mais, não se pode esquecer que a presença da técnica e da ciência no pensamento de Furtado revela que este pensamento opera de acordo com a lógica da razão instrumental. Voltando à questão central, observa-se que é a partir do momento de racionalidade que o econômico passou a ter autonomia, porque O capitalista que antes tratava com os senhores de terras, com corporações detentoras de privilégios e entidades similares, passa a lidar com ‘elementos da produção’, passíveis de serem visualizados abstratamente, comparados, reduzidos a um denominador comum, submetidos ao cálculo. A partir desse momento, a esfera das atividades econômicas poderá ser concebida isoladamente das demais atividades sociais (Furtado, 1980:5). Com isso, houve uma subordinação do processo social aos critérios da racionalidade instrumental. Dessa forma, as estruturas sociais são modificadas de acordo com tais critérios, não levando em consideração as conseqüências danosas para a sociedade: êxodo rural, urbanização caótica, revolução nos preços devido à maquinaria na produção e a conseqüente quebra na produção artesanal. Uma segunda abordagem, conforme a nova perspectiva teórica, é a que diz respeito à tecnologia. O progresso, aí, não significa apenas um aumento na produtividade decorrente de arranjos em um dos fatores de produção ou em mais de um, com intermediação da técnica. O progresso técnico foi e, em certa medida ainda é, visto como uma forma de gerenciamento de um dos ingredientes da produção.Isto é, o progresso técnico permite um melhor arranjo nos fatores de produção. Este fato configura uma percepção microeconômica da técnica, não possibilitando uma visão mais abrangente das mudanças na função de produção, dificultando assim uma abordagem dinâmica do processo econômico. Dessa forma: muitas das manifestações mais significativas do que chamamos progresso técnico (...) somente podem ser captados plenamente

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mediante uma visão global do sistema social (Furtado, 1980:7). Assim sendo, o progresso técnico surge como algo destituído de conteúdo: é uma expressão vaga que no seu uso corrente cobre o conjunto de transformações sociais(...)que tornam possível a reprodução da sociedade capitalista (Furtado, 1980:7). Frente a tal questão, Furtado tenta desvendar as novas formas do progresso técnico que não foram percebidas devido ao recorte microeconômico feito pelos economistas. O progresso técnico, na sociedade capitalista, faz parte de um projeto de acumulação que objetiva criar determinada renda (excedente) no conjunto da sociedade. O uso final desta renda, ou a sua apropriação, reflete a relação antagônica dos grupos sociais. O mesmo progresso técnico é, também, causador de desigualdades sociais. Conforme Furtado, a acumulação encontra obstáculos ao seu desenvolvimento, porque os rendimentos têm um componente decrescente. Isto acontece quando há impossibilidade de modificar a tecnologia e quando a acumulação para formação de capitais tende à saturação. Este quadro só pode mudar com métodos produtivos novos. Isto, no entanto, é insuficiente para alterar a situação. O impasse só é superado quando a acumulação passa a se apoiar na introdução de novos produtos. O consumo destes bens exige concentração de renda que, inevitavelmente, leva a desigualdades sociais. Assim sendo, por trás do que chamamos progresso técnico enfileiram-se complexas modificações sociais, cuja lógica devemos tentar compreender como passo preliminar em todo desenvolvimento (Furtado, 1980:9). A tecnologia agora é entendida como uma forma de poder. Ele demonstrou, em Pequena Introdução, que o crescimento do processo de formação do capital foi mais rápido do que o crescimento demográfico. As classes dominantes sempre procuraram preservar o produto social e manter os privilégios de que desfrutam como decorrência da apropriação deste produto. Ao manter esta posição intensificam a acumulação, que exige cada vez mais mão-de-obra, ao ponto de ultrapassar a taxa de

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crescimento demográfico. Frente a uma rigidez de mão-de-obra que pode levar a tensões sociais, Furtado afirmou que: a saída encontrada para a superação permanente das tensões sociais inerentes à reprodução da sociedade capitalista consistiu na orientação do progresso técnico no sentido de compensar a rigidez potencial da oferta de mão-de-obra (Furtado, 1980:10). Ou seja, a tecnologia entra no processo para substituir o trabalhador. A acumulação encontra outros obstáculos, além da rigidez da oferta de trabalhadores: a concentração industrial e financeira. Esta opera no sentido de transformar o trabalhador individual em elemento de grupamentos sociais estruturados, dando origem a novas formas de poder (Furtado, 1980:10). Mas, ao mesmo tempo que tal fato acontece, os privilégios das classes dominantes são facilitados pela tecnologia. Dessa forma, passam a conviver, de um lado, os privilégios, e do outro, as forças sociais que os contestam. No entanto, se a economia cresce, os antagonismos permanecem abafados porque as necessidades são satisfeitas, por um lado, através de aumento de salários e, por outro, devido a uma maior participação dos capitalistas no produto social. Enfim, a técnica é poder e não simplesmente um elemento interveniente no processo de produção, porque mantém o status quo dos capitalistas, mas também cria um grupo de pressão, que contesta este mesmo status quo. Encerrando a análise acerca do progresso técnico, de conformidade com a sua nova linha teórica, Furtado atribui a visão estreita dos economistas à ausência de uma teoria da acumulação: A falta de uma teoria de acumulação deve-se atribuir o fato de que a Ciência Econômica, longe de evoluir para uma explicação de processos sociais globais, haja tendido a restringir o seu campo de observação, limitando-se a estudar a racionalidade de agentes visualizados isoladamente (Furtado, 1980:12). Esta abordagem nos parece muito generalista para quem critica as teorias genéricas, que não levam em conta as especificidades. Ao afirmar que os aumentos de salários abafam os antagonismos,

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Furtado generaliza. Primeiro, porque no período em que Furtado escreveu o Pequena Introdução havia no País um arrocho salarial que muitas vezes ele denunciou. Desta forma, acreditamos que ele tenha escrito esta obra de forma genérica, o que o levou a alguns deslizes teóricos. Uma segunda linha de crítica refere-se aos modelos de crescimento. Observou Furtado que, nos últimos anos, os trabalhos sobre desenvolvimento são subprodutos do modelo keynesiano. Estes trabalhos apontam para duas direções: na de reencontro com a tradição clássica, ligada ao esquema de distribuição de renda de raízes institucionais, e na de retomada da tradição neoclássica a partir do conceito de função de produção de coeficientes variáveis, relacionando a remuneração de fatores com suas produtividades marginais respectivas (Furtado, 1980:12). Este tipo de teorização, reconhece o autor, foi um ponto de partida para a macroeconomia, que desejava dar mais concretude às políticas econômicas. Contudo, essa teorização não foi eficiente para o estudo das mudanças estruturais. No capítulo segundo, intitulado "Desenvolvimento e subdesenvolvimento: uma problemática atual", Furtado, seguindo o seu pressuposto inicial, de inovar metodologicamente, explicou a relação desenvolvimento/subdesenvolvimento nos marcos da nova metodologia.Segundo ele, o conceito de desenvolvimento tem sido utilizado em dois sentidos: O primeiro diz respeito à evolução de um sistema social de produção na medida em que este, mediante a acumulação e progresso das técnicas, torna-se mais eficaz, ou seja, eleva a produtividade do conjunto de sua força de trabalho (Furtado, 1980:15). Os conceitos como eficácia e produtividade revestem-se de ambigüidade, porque têm em conta sistemas sociais de produção em que as matérias-primas (imput) e os produtos finais(output) são heterogêneos e se modificam com o tempo. O segundo sentido diz respeito ao desenvolvimento e sua relação com a satisfação das necessidades humanas. Neste caso, a ambigüidade torna-se maior, uma vez que só se pode ter

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clareza do conceito de necessidade, quando esta diz respeito às necessidades básicas: alimentação, vestuário, habitação. Assim sendo, quando as necessidades humanas exigem além do mínimo necessário à subsistência, ela só pode ser determinada num quadro de valores presente em um dado contexto social. Com a continuação da análise, Furtado nos revelou que a idéia de desenvolvimento possui, pelo menos, três dimensões: a do incremento da eficácia do sistema social de produção, a da satisfação de necessidades elementares da população e a da consecução de objetivos a que almejam grupos dominantes de uma sociedade e que competem na utilização de recursos escassos (Furtado, 1980:16). A terceira dimensão é tida como a mais ambígua, posto que o que almeja determinado grupo social pode ser desperdício de recursos, segundo a ótica de outros grupos. Isto levou Furtado a afirmar que a terceira dimensão deve ser vista como parte de um discurso ideológico. Por isso, a concepção de desenvolvimento de uma sociedade não é alheia a sua estrutura social, e tampouco a formulação de uma política de desenvolvimento e sua implantação são concebíveis sem preparação ideológica (Furtado, 1980:16). O sentido de ideologia, em Furtado, pode ser percebido quando ele desvenda o que está por trás de categorias como eficácia, produtividade ou, ainda, quando ele faz acusações às análises que escondem os altos custos decorrentes do desenvolvimento. Segundo Furtado, a eficácia, por exemplo, que é considerada como o principal indicador do desenvolvimento, não é condição suficiente para que as necessidades mais básicas da população sejam satisfeitas, porque a sofisticada tecnologia, que permite a eficácia, pode degradar as condições de vida. Furtado volta, então, a atacar o progresso técnico: o estímulo às técnicas apoiadas na utilização intensiva de energia, fruto da visão a curto prazo engendrada pela apropriação privada dos recursos não renováveis, agrava essa tendência, fazendo do processo econômico uma ação crescentemente predatória (Furtado, 1980:17). E mais: na sociedade capitalista, o uso da técnica tem sido

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orientado no sentido de produzir bens para as classes média e alta, não descartando a possibilidade de se expandir a produção de tais produtos para a classe de menor poder aquisitivo, mesmo que isto tenha um custo social elevado. Um outro problema enfrentado pelo desenvolvimento econômico, no tocante ao progresso técnico, é o da sua distribuição geográfica. A técnica, via de regra, está concentrada nos países desenvolvidos. Estes, por exportarem produtos que incorporam tecnologia mais avançada, apresentam uma tendência estrutural para concentrar renda. Ou seja, nos quadros das vantagens comparativas, os países detentores da técnica são beneficiados nos intercâmbios internacionais. Estes mesmos países, pretendem sempre aprofundar a especialização, no interior da divisão do trabalho e sob o livre cambismo (Furtado,1980). Perante tal situação, formou-se um movimento de reação ao livre cambismo fundado "na idéia de complementaridade entre atividades econômicas e levou ao conceito de sistema econômico nacional" (Furtado, 1980:19). Sob a idéia de sistema econômico nacional ou nacionalismo econômico, realizou-se a industrialização de vastas regiões do globo, sob ditames do intervencionismo. "A partir desse momento, o conceito de desenvolvimento ligou-se explicitamente à idéia de interesse nacional" (Furtado, 1980:20). É nesse momento que prevalecem os enfoques mais abrangentes ou, como diz Furtado, globalizantes do processo econômico, na concepção do desenvolvimento. Isso foi possível porque o Estado se estabeleceu como, "agente propulsor e orientador das atividades econômicas e árbitro dos conflitos de classes na definição do interesse nacional" (Furtado, 1980:20). No tocante ainda ao enfoque globalizante, o autor comenta o retorno ao pensamento historicista por parte dos estudiosos do desenvolvimento. Retorno este justificado pela possibilidade que o historicismo ofereceu (ainda oferece) de, por um lado, fugir-se da análise neoclássica, e, por outro, construir-se uma teoria que capte “a interdependência das atividades produtivas, o que requer partir da idéia de sistema”. Foi Friedrich List quem cunhou o conceito de sistemas de forças produtivas.

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Este conceito projeta luz sobre a complementaridade das atividades produtivas, que assim são vistas como um processo social e não como adição de elementos discretos (Furtado, 1980:20). Daí a admiração de Furtado por List. A teoria listiana permite uma visão mais globalizante do fenômeno desenvolvimento. Furtado, em seguida e no mesmo livro, analisa o pensamento existente a partir da Segunda Guerra Mundial, acerca do desenvolvimento. Tal pensamento teve como causa fundamental a percepção da pobreza e da miséria em que vive a maioria da humanidade. Os indicadores acerca da mortalidade infantil, incidência de enfermidades contagiosas, o grau de alfabetização, entre outros, contribuíram para que se propugnasse por bem-estar, modernização, enfim por tudo que fosse decorrente da civilização industrial (Furtado, 1980). Esta reflexão transformou-se em debate político fortalecido pelas grandes mudanças decorrentes da guerra. As Nações Unidas centralizaram este debate. Contudo, a tomada de consciência da situação de atraso fez com que as reflexões, acerca de como sair deste, entrassem em choque com os Estados Unidos e com o pensamento liberal daí emanado, o que explica sua orientação inicial para a crítica da teoria do comércio internacional e para a condenação do sistema da divisão internacional do trabalho que se pretendia restabelecer (Furtado, 1980:21). Furtado informa que, neste período, a discussão acerca do desenvolvimento se deu de forma multidisciplinar e com preponderância dos aspectos políticos.

Enfim, a mensagem que Furtado passa ao leitor, nesta nova visão teórica, é a de que as análises acerca da problemática desenvolvimento/subdesenvolvimento têm que ser realizadas de forma mais abrangente, nos marcos de uma ciência social, no seu sentido mais amplo, mais política e menos técnica.

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Considerações finais

Celso Furtado, ao produzir a teoria do desenvolvimento, derivou a do subdesenvolvimento, é como se ambas fossem faces diferentes da mesma moeda. Esta produção evidencia a contemporaneidade do pensamento do autor na medida em que este evolui no conceito de desenvolvimento e subdesenvolvimento para se manter constatemente atualizado.

Furtado nas suas análises não se prende às categorias da economia, vai além, isso é, a sua abordagem é multifacetada e incoropora outras váriaveis, entre elas, as sociológicas e históricas. Daí o autor constatemente fazer referência ao método histórico como a melhor forma de se apreender o fenômeno econômico, entendendo que este último é decorrente da junção de vários fatores que a análise econômica pura é incapaz de captar.

Não se pode esquecer que o autor coloca a problemática do desenvolvimento e do subdesenvolvimento no plano da história. Fato este que o diferencia dos seus contemporâneos.

O autor é um pensador eclético. O seu pensamento é conseqüência da influência de vários pensadores de diversas linhas teórica e metodológicas. Furtado não está preso a esta ou aquela postura teórica e sim a todas. É por este fato que muitos o entendem como um historicista.

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