boltanski, l. sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária..pdf

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  • Traduo de Philippe Dietman

    Que retorno de Qual crtica?

    Em Le nouvel esprit du capitalisme, escrito em colaborao com Eve Chiapello

    entre 1995 e 1999, portanto h mais de dez anos, procuramos compreender

    como a crtica, em particular a crtica do capitalismo, muito intensa nos anos

    1965-1975, foi praticamente silenciada nos anos 1985-1995 (ver Boltanski &

    Chiapello, 1999). Mas, ao final deste trabalho, levando em conta, notadamente,

    os movimentos de greve de 1995, mas tambm a proliferao de associaes

    que desenvolviam atividades crticas em vrios domnios, pensvamos poder

    identificar sinais de uma reviravolta de tendncia se assim se pode dizer ,

    aps o declnio dos anos 1985-1990, um retorno e uma renovao da crtica.

    Podemos certamente dizer, dez anos depois, que este retorno aconteceu

    efetivamente. No mundo artstico e intelectual, as obras orientadas crtica

    proliferaram nos ltimos anos, tanto na rea da filosofia ou da sociologia, quan-

    to, por exemplo, no teatro. No domnio do emprego, o movimento contra o

    Contrato de Primeiro Emprego (CPE)1 em 2006, e no mundo acadmico, o movi-

    mento contra a reforma da Universidade e do Centre National de la Recherche

    Scientifique (CNRS) em 2008-2009, no tiveram o mesmo sucesso, mas estive-

    Sociologia da crtica, inStituieS e o novo modo de dominao geStionria

    Luc Boltanskii

    i cole des Hautes tudes em Sciences Sociales (EHESS), Frana

    [email protected]

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    ram longe de ser insignificantes. Nas empresas, movimentos de greves e revol-

    tas tenderam amplamente a serem retomados ao longo dos ltimos cinco anos,

    conforme demonstrado por vrios estudos em sociologia do trabalho, mesmo

    que esses movimentos, na maioria dos casos, tenham sido pouco divulgados

    nos meios de comunicao. No campo estritamente poltico, vrios indicadores

    apontam na mesma direo, da rejeio no referendo sobre a Europa de 2005,2

    at a formao de novos partidos posicionados esquerda do Partido Socialis-

    ta, partidos esses que querem ser radicalmente crticos.

    No entanto, as diferenas em relao aos anos 1965-1975 so bvias. A

    principal diferena me parece ser a seguinte: ela nem est associada a um nvel

    diferente de intensidade, o que poderia ser chamado de desejo de crtica, nem a

    uma marginalizao dos atores da crtica. Por volta do ano de 1968, a intencio-

    nalidade crtica era assumida por indivduos ou minorias, como ainda o caso

    hoje. Mas, nos anos 1960-1975, a crtica produzia efeito. De alguma forma ela

    impactava o mundo social e o espao poltico. Mas, parece que hoje em dia o

    aumento da crtica no acompanhado por um aumento, no mesmo grau, do

    poder da crtica, como se ela no tivesse mais impacto sobre a realidade. Talvez

    seja apenas uma impresso, mas, ainda que seja, ela compartilhada por muitos.

    Parece-me que esta situao precisa ser examinada, e as questes que

    ela levanta podem orientar nossa ateno em duas direes. Podemos olhar

    para a crtica e indagar suas formas atuais: ela seria obsoleta, no teria progra-

    ma poltico e no apresentaria alternativas claras etc. um discurso que se

    ouviu muito na Europa nos ltimos anos. No entanto, parece-me mais interes-

    sante olhar na outra direo, ou seja, analisar as mudanas que ocorreram nos

    dispositivos de governana sejam eles pblicos ou privados, o que hoje mais

    ou menos a mesma coisa isto , nos dispositivos que permitem aos respon-

    sveis conter a crtica e manter inalteradas as principais assimetrias sociais

    existentes, ou mesmo ampli-las. Em um trabalho como este, ateno particu-

    lar deveria ser dada a meu ver conjuno entre duas orientaes cujos

    contornos e usos so relativamente diferentes, ou at divergentes.

    Por um lado, verifica-se a instrumentalizao da cincia econmica por

    lderes polticos e econmicos. Esta instrumentalizao consiste numa expli-

    cao rpida em dar-lhe visibilidade pblica e torn-la a principal ferramen-

    ta capaz de escolher, entre tudo o que acontece, os eventos relevantes, e tam-

    bm em dar-lhes significado, encaixando-os em um quadro unificado e asso-

    ciando-os a certos mecanismos. Os economistas dizem diariamente nas arenas

    pblicas, particularmente nos meios de comunicao ou nos debates de espe-

    cialistas, qual o estado do Planeta, visto pelo prisma dos seus prprios siste-

    mas contbeis. Esta disciplina, neste sentido, substituiu a histria como o prin-

    cipal instrumento para a formulao de uma narrativa abrangente. E o tipo de

    trama que ela pratica apela, fundamentalmente, no apenas como na histria

    noo de causalidade, mas, sobretudo, de necessidade.

    jefersonscabioRealce

    jefersonscabioRealceMudanas que ocorreram nos dispositivos de governana: dispositivos que permitem aos responsveis conter e a crtica e manter inalteradas as principais assimetrias

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    A segunda orientao pode ser caracterizada pelo fortalecimento e o

    aperfeioamento das tcnicas de management e das ferramentas de gesto. Es-

    tas ltimas, desenvolvidas inicialmente no quadro das grandes empresas, foram

    agora importadas pelas esferas pblica e poltica. Mas devem ser ressaltados

    trs pontos. O primeiro que no se pode ignorar tudo que o aperfeioamento

    das tcnicas de gesto e, mais amplamente, dos modos de governabililidade

    que elas possibilitam, deve s contribuies das cincias sociais. No s,

    claro, a economia, mas tambm, e, talvez, sobretudo no caso da gesto, a so-

    ciologia, a economia e as cincias cognitivas. O segundo ponto diz respeito

    orientao destas tcnicas em direo eficincia prtica. Ao contrrio do eco-

    nomismo, elas no enfatizam a necessidade, mas o agir e o poder de agir sobre

    a vontade, sobre a autonomia e sobre a liberdade, uma vez que esta se ope

    necessidade. Enfim, o terceiro ponto diz respeito ao uso poltico que feito

    destas tcnicas. Ao contrrio da economia, as tcnicas e ferramentas de gesto

    no so divulgadas publicamente, notadamente nos meios de comunicao.

    Elas no esto colocadas na trama. So reservadas aos atores e especialmente

    queles que esto em posies de poder, os responsveis. a sua liberdade

    de ao que elas permitem otimizar. Os subordinados as conhecem principal-

    mente por intermdio das medidas fragmentadas s quais eles esto submeti-

    dos e das orientaes que devem aplicar.

    a caixa de ferramentaS

    O esboo de anlise que vou apresentar baseado em algumas das noes

    produzidas em um livro recente, De la critique (Boltanski, 2009), para tentar

    especificar o que eu chamaria de diferentes sistemas polticos de dominao.

    Para ser breve, lembrarei a seguir apenas alguns pontos deste trabalho.

    O primeiro ponto diz respeito ao nvel das reivindicaes. Uma pergunta

    persistiu no pensamento crtico, da Escola de Frankfurt at a sociologia crtica

    francesa da dcada de 1970: saber por que os explorados aceitam uma situao

    que, especialmente nos regimes polticos que reivindicam o legado da Revoluo

    Francesa, est claramente em contradio com as exigncias afirmadas de liber-

    dade e igualdade. Proponho uma resposta, no em termos de internalizao das

    ideologias dominantes, ou seja, de iluso, mas em termos de realismo. Os explo-

    rados num registro econmico, ou os dominados num registro categorial ou

    simblico, no tm necessariamente iluses sobre a natureza injusta ou assi-

    mtrica da ordem social. Longe disto. Mas eles autolimitam suas reivindicaes

    com base em suas avaliaes das possibilidades que as mesmas tm de serem

    reconhecidas e assim, serem mais ou menos satisfeitas, dentro da realidade.

    Um segundo ponto pretende esclarecer o que se deve entender por reali-

    dade e introduzir uma distino, que desempenha um papel central neste con-

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    texto, entre realidade e mundo. A realidade entendida no sentido da realidade

    socialmente construda por uma rede de formatos de provas, regras, rotinas,

    formas simblicas e objetos. Mas essa realidade, que o resultado de uma

    seleo e uma representao, no inclui o mundo, isto , tudo o que acontece.

    Disto decorrem duas proposies: a primeira consiste em distinguir di-

    ferentes tipos de crticas, mais ou menos reformistas e mais ou menos radicais.

    A crtica reformista no questiona o contexto da realidade como um todo e

    particularmente os formatos das provas existentes. Mas ela se dedica, seja a

    denunciar realizaes locais que no esto em conformidade com os seus tipos

    (o termo sendo entendido no sentido da oposio entre token e tipo), seja a

    denunciar incoerncias entre diferentes elementos que constituem a realidade,

    levando a modificar alguns formatos sem afetar o todo. A crtica radical, dizen-

    do rapidamente, questiona a realidade da realidade. Ela vai buscar no mundo ele-

    mentos que permitem desconstruir as convenes at ento admitidas e, assim,

    desestabilizar a realidade como um todo.

    Uma segunda consequncia da oposio entre realidade e mundo que o

    grau de robustez da realidade no de uma grandeza estvel. Ele depende da

    conjuntura histrica. De fato, o nvel de realismo dos atores e, por conseguinte,

    as suas aspiraes, tambm so variveis. As aspiraes que, por realismo, po-

    dem ser moderadas quando a realidade parece muito robusta, tendem a au-

    mentar quando a realidade passa a se desfazer. Tal processo caracteriza os

    perodos de rpida mudana e, claro, os perodos chamados de revolucionrios.

    Um terceiro ponto diz respeito relao entre o trabalho de manuteno

    da realidade e o trabalho de questionamento da realidade. A ideia principal que

    o trabalho de manuteno da realidade desempenhado pelas instituies. O

    foco colocado (como explicado por Searle, 1998) sobre as funes semnticas

    das instituies. Elas defendem e reforam a relao estabelecida entre formas

    simblicas e estados das coisas. Elas confirmam que o que , realmente , e,

    assim, garantem a confirmao da realidade da realidade. o motivo pelo qual

    as instituies so descritas, neste contexto, como instncias de confirmao. Ao

    contrrio, essa relao entre formas simblicas e estado das coisas desesta-

    bilizada e questionada pela crtica, pelo menos quando a mesma toma formas

    radicais. Em contrapartida (por razes que demorariam demais para serem

    detalhadas aqui), a crtica no pode ser, estritamente falando, institucionali-

    zada, mesmo que os dispositivos crticos possam ser implementados. Por cau-

    sa dessa assimetria, as instncias crticas so consideradas portadoras de al-

    gum tipo de limitao em relao s instncias institucionais.

    Mas, em vez de remeter as instituies ao descrdito (o que uma ten-

    dncia do pensamento crtico) estou tentando mostrar que elas desempenham,

    intrinsecamente, funes positivas de segurana semntica e funes negativas

    de violncia simblica.

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    Um quarto ponto diferencia tipos de provas (um conceito introduzido no

    livro que escrevi com Laurent Thvenot, De la justification). Sejam provas de

    verdade que encenam os arranjos simblicos que fortalecem as instituies

    (como, por exemplo, cerimnias); provas de realidade, que confrontam, de acor-

    do com formatos predeterminados, as aspiraes dos atores realidade, na

    forma em que ela construda em uma sociedade determinada; ou, ainda, pro-

    vas existenciais, por meio das quais elementos que no so reconhecidos como

    parte da realidade construda, so tirados do mundo. assim, em grande parte

    a partir das provas existenciais, que surgem as formas de subjetivao que iro

    alimentar a crtica radical (ver Boltanski & Thvenot, 1992).

    Finalmente, um quinto ponto pretende explicitar a ambiguidade das ins-

    tituies e relatar a possibilidade mesma da crtica. Centra-se na contradio

    imanente vida institucional, que eu chamo de contradio hermenutica. Esta

    contradio sobre a qual no cabe me alongar aqui trata da tenso entre a

    natureza obrigatoriamente incorprea das instituies (que so entes sem cor-

    pos) e a natureza necessariamente corporal dos porta-vozes que permitem s

    instituie intervir na realidade. Esta tenso redobrada quando se trata das

    regras editadas pelas instituies cujo carter semntico est ameaado pelas

    condies pragmticas de sua implementao.

    Em resumo, aqui esto alguns elementos da caixa de ferramentas. Uti-

    lizando essas ferramentas, vou tentar agora distinguir esquematicamente o

    que pode ser chamado de diferentes sistemas polticos de dominao associa-

    dos no s a diferentes formas de manuteno das assimetrias sociais funda-

    mentais, mas tambm a diferentes formas de enfrentar as crticas. Trata-se de

    tipos ideais que podem se combinar de diversas formas.

    A violncia fsica desempenha um papel central no primeiro caso, o da

    dominao pelo terror. Esta a maneira mais simples de exercer uma dominao.

    Um segundo caso pode ser caracterizado por uma grande distncia entre o que

    se prega oficialmente e o que realizado de fato. Pode ser aplicado, para este

    segundo modo de dominao, o termo de ideolgico e este certamente aquele

    no qual a ideia de crtica como operao de desvelamento cabe melhor. identi-

    ficarei, finalmente, um terceiro modo de dominao que eu chamo de gestion-

    rio (tomando emprestado o termo de Albert Ogin [1995]). Vou sugerir a ideia

    de que esse modo de dominao caracteriza, pelo menos como tendncia, as

    formas de governana que se implementam nas democracias capitalistas con-

    temporneas. interesso-me, particularmente, por este terceiro modo e a forma

    como ele tende a limitar o poder de crtica.

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    a dominao pelo terror

    possvel identificar os efeitos da dominao mais simples em situaes-limi-

    tes associadas a contextos em que o medo desempenha um papel fundamental.

    As pessoas esto, aqui, total ou parcialmente privadas de liberdades elemen-

    tares. Profundas assimetrias so mantidas ou criadas estabelecendo uma vio-

    lncia explcita, e principal, mas no exclusivamente, fsica. No entanto, me

    parece prefervel, no caso deste tipo, para o qual a escravido funciona como

    paradigma, falar de opresso. Mas pode-se tambm invocar a opresso, em cer-

    tos casos menos extremos, em que a manuteno de uma ortodoxia obtida por

    meio de uma violncia, notadamente um terror policial, para reprimir a crtica.

    Em situaes de opresso, as pessoas dificilmente podem reconhecer

    algo em comum, considerando as outras relaes alm daquelas que so leva-

    das em conta pelas classificaes oficiais. Como mostrado na literatura sobre

    a escravido (sem mesmo mencionar o caso extremo dos campos de concen-

    trao), o coletivo crtico impossvel ou muito difcil de se formar. A sua

    fragmentao prevalece. No s a crtica excluda, mas tambm o a possi-

    bilidade de questionar o que est acontecendo, o que se constitui, talvez, no

    primeiro movimento de crtica (aqui, no se fazem perguntas). Crtica e ques-

    tionamento sendo impossveis, aqueles que exercem a dominao no precisam

    justificar suas aes.

    Pelas mesmas razes, estas situaes podem tambm, em larga medida,

    fazer economia de amplas implementaes ideolgicas. A ideologia neste caso

    visa, sobretudo, sustentar a moral dos agentes que exercem diretamente a vio-

    lncia fsica. De fato, o exerccio da violncia uma tarefa relativamente difcil

    de se executar friamente, e a longo prazo, sem apoio ideolgico, se que pode-

    mos dizer, sem apoio moral. Mas neste tipo de contexto, pode-se fazer eco-

    nomia de uma ao ideolgica intensa visando os dominados o que sempre

    custoso , j que a coordenao das aes no exige o consentimento, mas

    obtida diretamente pela violncia ou por sua ameaa e pelos dispositivos uti-

    lizados. Da mesma forma, e por razes semelhantes, as instncias de confir-

    mao so reduzidas ao mnimo. Considerando a impossibilidade de questionar

    sobre o que , a presena de instncias para confirmar se o que , realmente,

    intil.

    Em tais situaes, a crtica muitas vezes silenciosa e tcita. Qualquer

    gesto imprevisto, seja um gesto de desobedincia ou, sobretudo, um gesto de

    solidariedade, mesmo realizado em segredo, pode ser considerado uma mani-

    festao crtica.

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    artigo | luc boltanski

    dominao pela ideologia e diStncia

    entre o oficial e o extraoficial

    Em um modo de dominao pela ideologia (que pode, alis, se as circunstncias

    o exigirem, recorrer ao terror), a crtica parece, at certo ponto, possvel. Mas

    os atores nunca sabem o quanto ou quo longe eles podem ir sem que os cus-

    tos da crtica se tornem exorbitantes. Aqueles que exercem o poder expem

    publicamente as razes de suas decises e aes e, portanto, afirmam subme-

    terem-se s exigncias de justificao. Nestes contextos, a principal diferena

    se d entre o oficial e o extraoficial. De fato, as justificativas oficiais no so

    confrontadas com a realidade. Existe algo parecido com provas de realidade

    encaixadas em formatos. Mas difcil (e s vezes perigoso) controlar a confor-

    midade do andamento e do resultado das provas implementadas localmente,

    aqui e agora, com o formato ao qual elas deveriam corresponder.

    Da mesma forma, as demandas da justia (meritocrtica ou social) podem

    ser reconhecidas oficialmente como, por exemplo, os requisitos de reversibilida-

    de dos estados de grandeza3 (igualdade de oportunidades) ou, ainda, de separa-

    o das formas de avaliao das capacidades visando dificultar a acumulao

    das desvantagens, mas elas tendem a permanecer confinadas s declaraes,

    sem serem acompanhadas dos dispositivos que permitiriam coloc-las em pr-

    tica. As justificativas se degradam em meros pretextos, e tomam a forma de pala-

    vras verbais como dizem, ironicamente, aqueles a quem se destinam.

    Estes ltimos, longe de serem enganados, frequentemente desenvolvem

    interpretaes realistas, isto , sem iluses, da condio que lhes imposta.

    Nestes contextos, um saber extraoficial constituido a partir de experincias

    cotidianas, saber este que proibido de se tornar pblico. As provas existenciais

    conseguem difcilmente ser compartilhadas e transformadas em reivindicaes.

    Os esforos para criar ou manter as margens de autonomia se expressam na

    forma de um arranjo individual ou em pequenos grupos. Os atores, para redu-

    zir as restries que pesam sobre eles, desenvolvem uma competncia inter-

    pretativa especfica para identificar espaos de liberdade, aproveitando as fa-

    lhas nos dispositivos de controle.

    isto significa tambm que as pessoas comuns, que sofrem os efeitos

    da dominao, no perdem nem seu senso de justia, nem seu desejo de liber-

    dade, nem a justeza das suas interpretaes no que diz respeito ao que acon-

    tece na realidade ou, por assim dizer, a sua lucidez. Mas essa lucidez pessoal

    que assume a forma de ceticismo raramente leva a uma ao coletiva.

    Confrontado com este ceticismo e para alcanarem credibilidade, as

    instncias encarregadas de apoiar certo estado do que e do que vale, buscam

    reduzir as disposies crtica de duas maneiras. Por um lado, confirmam

    repetidamente a ordem estabelecida atravs da demonstrao espetacular de

    conjuntos simblicos, tais como rituais, cerimnias, desfiles, concesso de con-

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    decoraes, discursos, comemoraes etc. (ou seja, por provas da verdade). Por

    outro lado, quando isto no suficiente, aquelas instncias apelam s autoridades

    detentoras dos meios de violncia (geralmente dependentes do Estado) de forma

    a manter a sua dominao por meio da represso.

    Em geral, a dominao pela ideologia (acompanhada ou no por uma do-

    se de terror) orientada de forma quase obsessiva para a manuteno de uma

    realidade que j existe, que deve ser protegida contra interferncias que pode-

    riam levar em conta experincias conectadas com o mundo. Em decorrncia dis-

    to, uma crtica reformista pode ser julgada aceitvel (mesmo que no seja real-

    mente posta em prtica), mas no uma crtica radical. O objetivo procurado po-

    de ento ser caracterizado pela recusa da mudana e as medidas tomadas tm al-

    go a ver com o estado de guerra contra o inimigo interno perptuo.

    Em situaes como esta, a crtica, quando consegue se organizar e ser ou-

    vida, pode facilmente revelar a distncia entre o oficial e o extraoficial; entre os

    valores oficialmente proclamados e os atos. Ela tambm pode denunciar a hipocri-

    sia dos dominantes. Ou, ainda, denunciar a sua relutncia em mudar e seu con-

    servadorismo ou passadismo. Foram temas que alimentaram a crtica no sculo

    XiX e na primeira metade do sculo XX.

    modoS de dominao geStionria

    Nas ltimas dcadas do sculo XX foram se desenvolvendo outras formas de do-

    minao compatveis com as sociedades hipercapitalistas e baseadas politicamen-

    te na democracia eleitoral. Uma das caractersticas desses sistemas no apenas

    ter rompido com um modelo de dominao utilizando o terror, mas tambm ter

    quase enterrado as ideologias (o tema do fim das ideologias). Neste caso, a apro-

    ximao entre o exerccio do poder e a conduo de uma guerra, ou a ideia mesmo

    de dominao, podem parecer sem fundamento.

    Nestes contextos polticos, os fatos e as aes realizadas em um espao

    pblico esto sujeitos a explicaes e at a discusses, e as pretenses antagonis-

    tas das pessoas esto sujeitas s provas de realidade, pelo menos quando as dispu-

    tas ocorrem no espao pblico. H procedimentos para organizar as relaes entre

    as instituies e a crtica que deve ser ouvida (se no necessariamente satisfeita),

    pelo menos quando ela se manifesta de maneira considerada compatvel com as

    convenes legtimas. Portanto, precisamente a introduo de um novo tipo de

    relacionamento entre as instituies e a crtica e, de alguma forma, a incorporao

    disso nas rotinas da vida social, que caracterizam esses dispositivos.

    No entanto, neste tipo de contexto histrico, podem-se identificar os efeitos

    de dominao de outra natureza, compatveis com as exigncias de uma socieda-

    de capitalista democrtica. Uma das suas caractersticas garantir uma forma

    de dominao que insista na mudana.

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    Estas formas de dominao, que podem ser chamadas de gestionrias

    para recordar a importncia que tm as disciplinas de gesto so adaptadas

    s modalidades de explorao que fazem economia da fora fsica, mas tambm

    de algum grau de persuaso. A explorao se aproveita da instrumentalizao

    de diferenciais para gerar lucro, e estes podem ser de natureza diversa. Trata-se,

    em primeiro lugar, do diferencial de propriedade. Mas tambm pode ser, por

    exemplo, o diferencial de mobilidade, do qual Eve Chiapello e eu tentamos

    mostrar a importncia crescente no Le nouvel esprit du capitalisme. Num quadro

    gestionrio, os processos de dominao esto associados com a manuteno

    duradoura de uma ou vrias assimetrias profundas, no sentido em que os mes-

    mos se beneficiam de todas as provas (ou quase), enquanto para outros sem-

    pre tambm os mesmos as provas sempre tm resultados adversos (ou quase).

    Mas a manuteno dessas assimetrias no assumida por indivduos

    facilmente identificveis. Uma das propriedades mais relevantes da dominao

    gestionria , de fato, ser sem sujeitos. Ela baseada em dispositivos dos quais

    indivduos ou grupos podem tirar maior ou menor proveito, dependendo das

    estratgias que eles adotam. Portanto, diferentes pessoas podem, em diferentes

    momentos, controlar esses dispositivos, o que torna difcil a identificao pela

    crtica dos detentores do poder de agir. Porm, mesmo que materializados em

    indivduos, estes dispositivos continuam a ser mais ou menos impessoais. A

    questo de saber quem so os dominantes muitas vezes tem um carter pro-

    blemtico.

    Por outro lado, as medidas implementadas no aparecem nem como se

    elas fossem o resultado de aes realmente intencionais, nem mesmo como

    sendo necessariamente desejveis em si. Elas no se definem, com prioridade,

    por referncia a um universo de valores antagonistas ou concorrentes, entre

    os quais as escolhas deveriam ser feitas e com relao aos quais as aes de-

    veriam ser justificadas. Este modo de governana remete a uma lgica comple-

    tamente diferente, que a da causalidade. sempre a necessidade, no sentido

    da necessidade causal, que determina as medidas tomadas, e fornece uma expli-

    cao em vez de uma justificao.

    Quando a manuteno ou o aumento das assimetrias questionado pe-

    la crtica, o que acaba acontecendo, a defesa da ordem das coisas existente d

    lugar a explicaes que se apoiam principalmente em dois tipos de motivos.

    Em nvel macro, so invocadas as evolues atribudas a um espao indepen-

    dente e neutro, no qual as vontades individuais no tm nenhum controle.

    Trata-se, geralmente, da cincia, da tecnologia e, claro, da economia como ci-

    ncia e como tcnica. Em nvel micro, as explicaes invocam, sobretudo, a

    ao das pessoas que, na maioria das provas, no so mostradas verdadeira-

    mente em vantagem porque, por exemplo, supe-se que bebem, se drogam ou

    no querem realmente trabalhar. Esta forma de culpar a vtima4 equivale a

    deslocar para a responsabilidade individual o peso das restries que so

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    apresentadas, no nvel macro, como as foras objetais sobre quais as vontades

    individuais no tm influncia. Duas figuras esto assim combinadas. Por um

    lado, a figura da necessidade, no que ela tem de inexorvel; por outro, a figura

    da liberdade, declinante no registro da autonomia e da meritocracia.

    a robuStez da realidade

    Uma das caractersticas dos efeitos da dominao gestionria fornecer menos

    abertura crtica do que a dominao pelo terror, ou at mesmo pela ideologia.

    No caso de sistemas que funcionam pela ideologia, a sociologia crtica pode

    recorrer temtica da iluso para explicar a aceitao aparentemente mais ou

    menos passiva das assimetrias por aqueles que esto pagando o preo. Espera-

    -se deles a adeso a uma ordem ideolgica, porque eles a teriam internalizado

    ou at mesmo incorporado, o que, em outras palavras, significa que eles desejam

    o que os oprime um argumento que remete temtica da neurose e pode fa-

    cilmente se apoiar em esquemas psicanalticos. Ou, ainda, eles no acreditam,

    mas acreditam que os outros acreditam. Ou eles no acreditam, e eles sabem

    que os outros tambm no acreditam, e que os outros tambm sabem que eles

    mesmos no acreditam, embora todos cooperem para manter a iluso de uma

    crena, por medo de ver a realidade entrar em colapso se esta descrena tacita-

    mente compartilhada se tornasse um saber comum (como nas anlises inspira-

    das do famoso artigo de Octave Mannoni, Eu sei, mas mesmo assim..., 2006 [1964]).

    Mas para entender um sistema de dominao gestionria, estas anlises

    sutis so de pouca utilidade. Em um sistema desse tipo, no solicitado aos

    atores e, especialmente aos mais dominados entre eles, se renderem iluso,

    porque no se pede a eles para aderirem ordem estabelecida de forma entu-

    siasmada. Pede-se a eles que sejam realistas. Ser realista, quer dizer, aceitar as

    restries, notadamente econmicas, tais como elas so, no porque sejam

    boas ou justas em si, mas porque no podem ser diferentes do que so.

    Para um tipo de mudana, no mais, ento, a temtica da autonomia

    que privilegiada, mas aquela da dependncia causal. Autonomia e dependn-

    cia formam uma dupla que se substituem mutuamente, dependendo do con-

    texto. A serialidade como ligao de impotncia para retomar as palavras

    de Sartre em Crtica da razo dialtica (Sartre, 1906: 352), prevalece sobre a te-

    mtica da ao voluntria. Cada indivduo particular, independentemente de

    sua importncia ou grandeza, no mais tratado como o elo de uma srie

    causal que predeterminaria as suas aes. No se pede a ele nada alm de se

    conscientizar da sua prpria impotncia. E precisamente esta forma bem

    particular de conscientizao, que deve lhe servir de realismo.

    Uma das contribuies do trabalho de sociologia pragmtica da crtica

    desenvolvida ao longo dos ltimos vinte anos tem sido de mostrar que os ato-

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    res no eram abusados (pelo menos certamente no tanto quanto sugere a

    sociologia crtica dos anos 1960-1970) e que, por tudo o que se referia ao curso

    normal das suas atividades, e as injustias que podiam sofrer em sua vida

    cotidiana, eles no tinham realmente iluso. Mas ela tambm mostrou que

    esta lucidez no lhes dava o sentimento de ter condio de mudar a realidade.

    Como entender este conjunto paradoxal de lucidez desencantada, at

    mesmo de desgosto e de sentimento de impotncia, muitas vezes resultando

    em um afastamento da esfera de ao poltica e, principalmente a falta de

    interesse, no s pelo exerccio militante, mas at mesmo por essa forma m-

    nima de atividade poltica que consiste em votar? Pode ser que seja necessrio,

    para dar-lhe significado, colocar temporariamente entre parnteses interpre-

    taes com as quais estamos familiarizados. Por exemplo, aquelas que invocam

    o medo ou a covardia, as crenas e as esperanas ilusrias, a desinformao e

    o desvio das insatisfaes para bodes expiatrios, alimentados pelas mdias,

    ou a ascenso do individualismo, um tema que constituiu a ltima grande

    narrativa scio-histrica ainda disponvel aps a grande faxina operada pelo

    ps-modernismo. Tais interpretaes, que, em ltima anlise, se baseiam final-

    mente na psicologia social, contornam o que deveria nos interessar em primei-

    ro lugar, ou seja, a realidade.

    Mas, em um sistema de poltica gestionria, o realismo ocupa o centro

    do dispositivo de dominao. Ele constitui, ao mesmo tempo, o princpio de

    justificao no qual os dominantes se apoiam e a virtude que eles exigem dos

    dominados. Mas no se trata apenas de um discurso, ou por assim dizer, uma

    ideologia. O que caracteriza um sistema deste tipo , de fato, a sua capacidade

    de ligar no apenas idealmente, mas tambm nos fatos, os elementos diversos

    que compem a realidade para torn-los intimamente interdependentes. Ou,

    ainda, sua capacidade de constituir uma realidade em que tudo se encaixa, ou

    seja, uma realidade cuja fora teria uma dimenso absoluta. A realidade con-

    siderada como algo externo, que seria independente das relaes sociais (ou,

    por assim dizer, em termos marxistas, fetichizada) pode ento ser, no apenas

    evocada, mas mostrada em suas manifestaes mais tangveis. Pode-se atribuir

    a ela uma vontade prpria e mostrar como a mesma se manifesta, especial-

    mente quando capaz de punir aqueles que pensarem que dela podem escapar.

    A este respeito, governantes e governados, dominantes e dominados

    enfrentam o mesmo problema. Eles so, todos, supostos servidores da realida-

    de. A todos eles se pede para serem realistas. Mas esta igualdade de princpio

    encobre uma profunda assimetria. A fetichizao da realidade esconde o que

    a constitui como tal. Ou seja, a rede de regras, leis, formatos de provas, normas,

    modos de clculo e controle, que tm, na maioria das vezes, mas em graus

    variados, uma origem institucional. Mas um dos principais diferenciais entre

    dominantes e dominados justamente a posio assimtrica que ocupam em

    relao s instituies e, consequentemente, s regras que as instituies fixam.

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    Espera-se dos dominados que eles considerem as instituies como se

    fossem entes quase sagrados e ajam seguindo as regras ao p da letra isto ,

    obedeam s instrues fragmentadas , qualquer interpretao da regra sen-

    do, no caso deles, considerada uma transgresso. Ao contrrio, os dominantes

    podem adotar uma relao prtica, e de alguma forma dessacralizada, com as

    instituies simplesmente porque eles as fazem. Por outro lado, os objetivos que

    lhes foram atribudos, ou melhor, que eles se atribuem, sendo amplos e vagos,

    podem, e at devem, interpretar as regras, isto , na sua linguagem, se isentar

    de seguir a regra ao p da letra, mas com a condio de permanecer no esprito

    da regra. isso justamente para ficar mais perto da realidade.

    a neceSSidade como vontade e repreSentao

    Uma das caractersticas dos dispositivos gestionrios garantir, se for possvel

    por meios formalmente pacficos, uma forma de dominao que como j foi

    dito no s no impede a mudana, mas que se exerce mesmo por meio da

    mudana. Eles no agem tentando impedir a mudana a fim de manter a qual-

    quer custo uma ortodoxia, como nas sociedades em que a ordem mantida

    pelo terror ou pelo martelamento ideolgico. Em vez disso, eles intervm va-

    lorizando, acompanhando e orientando a mudana (ver Bourdieu & Boltanski,

    2008 [1976]; Boltanski, 2008). Neste sentido, eles esto ligados com o capitalis-

    mo como uma forma histrica subsistindo tacitamente por um conjunto de

    repeties e diferenas, mas defendendo a mudana por ela mesma, enquan-

    to fonte de energia.

    Portanto, estes dispositivos no so prioritariamente orientados para

    a manuteno das qualificaes e dos formatos das provas estabelecidas, mas

    eles intervm para mudar alternadamente, por vezes os formatos das provas,

    s vezes a realidade, construda e validada pelo desfecho das provas, e, por

    vezes, o mundo. Essas diversas intervenes s conseguem escapar da acusa-

    o de serem conduzidas por um desejo de dominao e de realizarem-se de

    forma relativamente impecvel se elas so incorporadas em um processo de

    acompanhamento de uma mudana permanente, apresentado ao mesmo tem-

    po como inevitvel e desejvel.

    Mas particularmente atravs dessa pluralidade de intervenes que a

    crtica se encontra desarmada. De fato, torna-se difcil para ela, no s fazer

    valer que as provas da realidade no concordam com os formatos oficiais,

    mas, sobretudo, tirar do mundo as experincias que escapam realidade,

    como ela construda, de modo a questionar a validade das definies e das

    qualificaes estabelecidas.

    o motivo pelo qual os responsveis ficam repetindo que preciso

    querer a mudana, mas porque ela imposta a eles como uma fora externa

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    sua vontade. Essa abordagem, por mais estranha que se pense, da vontade ou

    seja, da liberdade e da necessidade, que frequentemente associada aos regi-

    mes totalitrios que reivindicam uma filosofia determinista da histria, no

    entanto, constitui um lugar-comum dos modos de governana do capitalismo

    avanado. A mudana em questo no tanto uma mudana atual, mas anun-

    ciada. Esta ainda no conhecida, ou o de forma incompleta. Portanto,

    necessrio apelar para os experts em cincias sociais e aos centros de clculos

    e previso para conceber agora esta mudana que ser imposta a todos, mais

    tarde, inevitavelmente.

    Esta nfase sobre a necessidade necessria para legitimar a ao po-

    ltica num quadro formalmente orientado para o bem comum, quando dada

    ao mesmo uma denotao democrtica. De fato, em tal contexto, uma ao

    ilegtima quando se pode qualific-la de arbitrria, mostrando que ela est

    submetida vontade de um indivduo ou grupo que assumiria as decises

    sozinho. invocar foras impessoais e inexorveis permite subordinar a vontade

    dos atores, em posio dominante, s leis inscritas na natureza das coisas.

    Deve-se notar uma caracterstica particularmente especial deste modo

    de governana. Trata-se do carter instrumental, estritamente gestionrio das

    intervenes, e suas justificativas. As medidas adotadas encontram seu prin-

    cpio de necessidade por estarem de acordo com um quadro, muitas vezes

    contbil ou juridiscional, sem exigir uma ampla utilizao de discursos ideo-

    lgicos, nem a realizao de rituais ou cerimnias valorizando a coerncia de

    uma ordem no nvel simblico. As provas de verdade (como definidas acima),

    cujo papel to importante no caso das formas de dominao orientadas para

    a manuteno de uma ortodoxia, tornam-se mais ou menos obsoletas. No caso

    da dominao pela mudana, tudo est realizado sem aparato, nem afetao de

    grandeza. O carter tcnico das medidas torna difcil, ou at intil, a sua trans-

    misso para um pblico amplo. Nada, ou quase nada, vem para garantir a co-

    erncia do conjunto a no ser precisamente o quadro contbil e/ou juridiscio-

    nal geral ao qual as medidas especficas devem se ajustar. o que Laurent

    Thvenot (1997) chama de governo pelas normas.

    oS momentoS de criSe

    No entanto, estes longos perodos durante os quais a governana pela mudana

    efetuada por meio de uma srie de medidas bastante setorizadas, bastante

    tcnicas, bastante discretas ou at opacas, so pontuados por momentos de crises

    que desempenham um papel crucial no sistema de dominao gestionria. A

    crise , de fato, o momento por excelncia em que o mundo est incorporado

    realidade, que se manifesta, ento, como se fosse dotada de uma existncia

    autnoma, que nenhuma vontade humana, nem a da classe dirigente, a tivesse

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    laboriosamente moldado por meio de uma srie pouco coerente na aparncia,

    de pequenas intervenes que no pareciam realmente destinadas a terem

    consequncias gerais. Portanto, a crise o momento em que a existncia de uma

    realidade autnoma de alguma forma propriamente dita se mostra de modo

    indiscutvel. Ela ocorre principalmente na forma econmica (por exemplo, em

    momentos de recesso ou como foi recentemente no caso da Amrica Latina

    a hiperinflao), como financeira (estouro das bolhas do mesmo nome), ou

    como social (por exemplo, em tempos marcados por um aumento significativo

    nos nmeros que os especialistas em insegurana, produzem, interpretam e

    disseminam). Essas crises podem ser identificadas, sendo qualificadas de econ-

    micas, financeiras, sociolgicas, ou seja, sendo associadas s disciplinas do mesmo

    nome, relacionadas s chamadas cincias ditas sociais. Esta a maneira

    como, de acordo com uma concepo positivista, a natureza, e seus distrbios,

    se apresentam para as chamadas cincias, ditas exatas.

    Estas crises tm um efeito aparentemente paradoxal. Questionam as

    relaes simblicas sobre as quais est baseada a ordem social e introduzem

    uma incerteza radical sobre a qualificao dos objetos e as relaes entre eles,

    ou seja, sobre o seu valor. Por exemplo, nas crises de hiperinflao a possibilida-

    de de uma predio tende a desaparecer porque a relao entre os indivdu-

    os e os bens est profundamente perturbada em razo da incoerncia dos

    sistemas de equivalncia (ver Kessler & Sigal, 1997). Mas esses momentos de

    desorganizao que seriam enfrentados, em um regime de dominao autori-

    tria, pela reafirmao da ortodoxia, por rituais reparadores e pela designao,

    ou a excluso ou a morte de bodes expiatrios so tambm aqueles que do a

    oportunidade a um regime de dominao gestionria de reafirmar seu controle.

    Tais momentos de crise desempenham pelo menos quatro papis dife-

    rentes que podem ser organizados em sequncia. Primeiro, eles inocentam a

    classe dominante, especialmente em sistemas polticos baseados na autorida-

    de de especialistas, o que lhes permite escapar de uma crtica desconstrucio-

    nista. De fato, o que se expressa em uma crise no uma realidade tal como ela

    , isto , ao contrrio de uma realidade construda; uma realidade nua, habitada

    por suas prprias foras, indiferente s vontades daqueles que esto l para

    orientar os outros por meio de seu saber, da sua experincia e de seu sen-

    so da responsabilidade?

    Em segundo lugar, eles deixam, assim, bvia e visvel na cena pblica,

    de qualquer maneira inatacvel, a existncia dessa necessidade invocada pelos

    responsveis para servir de apoio slido s suas aes. Ao mesmo tempo, esses

    momentos de crise so tambm, em terceiro lugar, a oportunidade de dar no-

    vamente a esses responsveis o cheque em branco que eles pedem para agir.

    Quem melhor do que eles poderia ser capaz de proteger, tanto quanto possvel,

    os seres humanos da realidade, aquela mesma que, aps sua reificao, parece

    lhes escapar e lhes atacar?

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    artigo | luc boltanski

    Finalmente, em quarto lugar, eles do razo aos responsveis, quando os

    mesmos, ao intervirem retomando o controle das coisas reafirmam a sua

    capacidade de enfrentar a desordem, ou seja, de transformar a incerteza em

    risco,5 mas apenas se mostrando realistas, isto , modelando a sua vontade sobre

    a vontade objetiva das foras que enfrentam. de fato, reconhecendo modesta-

    mente o poder dessas foras (isto , sua prpria impotncia relativa), que eles

    podem afirmar utiliz-la a servio do bem comum, a fim de controlar e esgotar

    a crise ao acompanh-la. certo que, na maioria das vezes, esses tipos de phar-

    makon podem parecer piores do que a doena. Mas, mesmo assim so como

    remdios e s isso importa, especialmente pelos efeitos pedaggicos que eles

    exercem, mostrando, para os atores comuns, o carter imperioso das leis da

    economia ou da sociedade, e a competncia dos especialistas.

    isto significa, por conseguinte, que em um regime de dominao gestio-

    nria, baseado na valorizao e na explorao da mudana, os momentos de

    pnico, de desorganizao, de desamparo moral, de salve-se quem puder, ou seja,

    tambm de individualismo frentico, desempenham um papel importante. Eles

    se juntam com os perodos aparentemente calmos, propcios multiplicao de

    intervenes pontuais sobre a realidade ou tcnicas sobre o formato das provas,

    que, em se acumulando de uma maneira nunca completamente controlada ,

    moldam a realidade de uma forma como ela poderia ser vista novamente, com

    o carter de uma necessidade implacvel, ao longo de uma prxima crise.

    o ponto da indiStino entre a realidade e o mundo

    Um sistema de dominao gestionria, como todo arranjo poltico-social ba-

    seado em instituies. Mas essas instituies apoiam-se em uma forma de

    autoridade aquela dos especialistas que pretende se situar no ponto de

    indistino entre a realidade e o mundo. A vontade que os porta-vozes das ins-

    tituies expressam se apresenta, ento, como sendo nada alm da vontade do

    prprio mundo na representao necessariamente modelizada, dada pelos es-

    pecialistas. Mas estes modelos sendo, ao mesmo tempo, os instrumentos da

    ao, so suscetveis de produzir modificaes profundas na textura do mundo.

    Estas modificaes mantm relaes de retroao com as representaes do

    que , sobretudo porque essas representaes tm, na maioria das vezes, um

    carter previsionrio.

    De fato, aqueles que moldam ou se apossam dessas representaes tm

    tambm o poder de torn-las reais, porque eles dispem de meios, notadamen-

    te jurdicos ou regulamentares, sem falar dos meios estritamente policiais, de

    modificar os contornos da realidade. No entanto, a modificao permanente

    dos formatos que enquadram e formam a realidade no precisa mais ser atri-

    buda a uma vontade distinta da vontade de foras impessoais. Os responsveis

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    para utilizar o nome dado hoje aos dominantes , porque esto encarregados

    de um todo cujos objetivos no so de ningum em particular, no so mais

    responsveis por nada, embora eles estejam encarregados de tudo. Assim, o

    lugar do poltico no mais apenas um lugar vazio, na acepo de Claude

    Lefort (1986), ou seja, um lugar sem fundamento, como ainda era o caso quan-

    do os lderes eram intimados a embasar sua autoridade em uma instncia ab-

    soluta, sempre empurrada para cima. Este um lugar inatingvel, porque se

    confunde com uma totalidade da qual ningum pode afirmar operar a totali-

    zao, nem parar a transformao. bem neste tipo de totalidade que as cin-

    cias vo buscar seus objetos. Mas tambm por isso que no faz parte de sua

    vocao inspirar polticas, e ainda menos construir o poltico.

    a entrada em jogo da crtica

    Tal situao no deixa muito espao crtica, pelo menos crtica poltica, j

    que a crtica se encontra desprovida pelos poderes dominantes dessa exterio-

    ridade que constitui o mundo, sobre a qual ela podia se apoiar para tentar

    questionar a realidade. De fato, a crtica facilmente absorvida nos dispositivos

    de dominao em que ela reinterpretada nas formas que lhe foram dadas nas

    instncias cientficas e tcnicas que servem de interlocutores s instituies.

    Ela, ento, entra nas disputas entre expertise e contra-expertise, nas quais a

    contra-expertise est necessariamente dominada, e na maioria das vezes der-

    rotada, uma vez que s pode procurar alcanar a expertise, isto , se tornar

    admissvel ou simplesmente audvel, se submetendo aos formatos de provas

    estabelecidas por esta ltima. Ou seja, adotando os formalismos e, de uma

    forma geral, os modos de codificao da realidade.

    o mesmo no que diz respeito s restries exercidas pelas jurisdies

    em vigor (especialmente no caso das lutas sociais, o direito trabalhista). O re-

    conhecimento oficial de instncias crticas que , como vale lembrar, uma

    conquista das lutas sociais , tende ento a obstruir a expresso de novas in-

    justias, e o surgimento de formas inovadoras de protesto.

    Esta forma de controlar a crtica ao incorpor-la reforada pelo fato

    de que a dominao pela mudana reivindica, ela mesma, a crtica da qual

    priva aqueles que querem se opor a ela. Mas uma crtica interna, construda

    imagem das discusses cientficas que se instauram apenas entre aqueles

    que detm a autoridade necessria, justificada por suas competncias, ou me-

    lhor, por seus ttulos, para fornecer uma opinio pertinente. No entanto, o que

    caracteriza essas brigas de especialistas precisamente que aqueles que es-

    to competindo concordam sobre o essencial e s entram em conflito em pon-

    tos marginais. isto , provavelmente, o que se quer dizer quando, com admira-

    o, se qualificam esses debates como aguados.

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    artigo | luc boltanski

    Diante de um sistema de dominao deste tipo, a crtica, quando no

    apenas desarmada, encontra-se profundamente alterada. A forma como ela se

    aproveita da contradio hermenutica tomar um novo caminho. Por exemplo,

    em um sistema poltico-semntico no qual as instituies que dizem qual a

    situao do que esto includas em arquiteturas baseadas em formas de repre-

    sentao do corpo poltico (ou do povo), a contradio muitas vezes se mani-

    festar na forma de uma suspeita com relao aos representantes (o que po-

    demos chamar de forma rousseauniana da contradio hermenutica). Ao con-

    trrio, em um sistema poltico-semntico baseado na expertise, a contradio

    se manifestar na forma de um conflito entre o realismo versus o construcionis-

    mo. A dificuldade ento se concentrar na questo de saber se o especialista

    mostra bem as coisas tais como elas so, com uma transparncia que exclui-

    ria qualquer mediao e conferiria aos fatos uma necessidade implacvel, ou

    se ele os faz passar pelo filtro de uma construo de sua prpria criao de

    forma arbitrria, de tal modo que se poderia muito bem apresent-los de

    outra forma. Mas torna-se muito tentador e bastante fcil desqualificar a sus-

    peita crtica tachando-a de niilista ou at de negacionista, desvios que so,

    de fato, o gnero de ameaa em um sistema deste tipo, que assedia a crtica.

    Esta preocupao da crtica, no entanto, no sem fundamento. Ela

    reforada pela intuio do novo papel propriamente poltico dado s empresas

    de descrio da realidade em um modo de dominao deste tipo. Tomemos

    buscando apoio no trabalho de Alain Desrosires (2003) o exemplo do bench-

    marking, uma tcnica vinda da gesto, cujo papel vem crescendo, e agora chegou

    s operaes de descrio estatsticas relevantes dos Estados (ver Bruno & Di-

    dier, 2013). Em suas formas clssicas, que prevaleceram at a dcada de 1980,

    o estatstico, dentro de seu instituto, devia, pelo menos idealmente, ficar o mais

    longe possvel da realidade que ele estava encarregado de descrever, de acordo

    com uma concepo positivista da cincia baseada sobre a separao radical

    entre sujeito e objeto do conhecimento. precisamente em uma reverso des-

    sa posio que est baseada a utilizao que a estatstica faz do benchmarking.

    Os rankings, construdos sobre a base dos indicadores estatsticos codificados,

    visam a expressar todas as diferenas qualitativas em diferenas quantitativas

    favorecendo a comparao e a concorrncia. So formas de descrio cujo ob-

    jetivo explcito e reivindicado consiste em incentivar os atores a mudar seu

    comportamento a fim de melhorar sua posio hierrquica nos rankings, de

    acordo com uma lgica que a da maximizao do indicador. A descrio, in-

    separvel da avaliao do que est descrito, assume explicitamente a existn-

    cia de relaes de retroao entre o sujeito e o objeto do conhecimento, e as

    implementa de forma estratgica para aumentar a eficcia das medidas que

    visam modificar os contornos da realidade. Torna-se ento tentador suspeitar,

    por trs de qualquer apresentao de resultados numricos, de um tipo de

    manipulao.

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    a crtica reformiSta versus a crtica radical

    Lembrei, no incio deste artigo que, quando Eve Chiapello e eu publicamos Le

    nouvel esprit du capitalisme, julgvamos provvel o retorno da crtica. Mas tam-

    bm prevamos a possibilidade de que, a partir das mudanas do capitalismo

    ocorridas durante os anos de 1980-1990, surgisse o que, retomando a conceitu-

    ao desenvolvida com Laurent Thvenot em De la justification (Boltanski &

    Thvenot, 1992), chamamos de uma Cit. Quer dizer, neste caso, uma nova es-

    fera de justificao do capitalismo capaz de introduzir dispositivos de justia

    no mundo conexionista que se implementava durante este perodo. Ns a cha-

    mamos de cit por projeto. Pensvamos captar evidncias indo nesse sentido,

    indicando claramente que o seu estabelecimento no tinha nada de fatal, mas

    dependeria, em grande parte, da intensidade das presses que uma crtica em

    fase de reconstituio faria pesar sobre o capitalismo.

    O livro se abria neste sentido, em uma perspectiva reformista. No que,

    como se imagina, a chamada cit por projeto tenha correspondido ao nosso

    prprio ideal poltico e social. Mas, pelo menos no sentido em que creditamos ao

    capitalismo do nosso tempo uma capacidade reformista que poderia ter se ma-

    nifestado sem passar pelos dramas que, dos anos 1930 aos anos 1950, tinham

    acompanhado a instaurao de um sistema poltico e econmico conhecido co-

    mo Estado-providncia. Mas, deve-se notar que nada disso aconteceu. A cit

    por projeto permaneceu no limbo, e o capitalismo, longe de se reformar, viu a

    sua violncia se intensificar e as suas contradies crescerem ao longo dos dez

    anos que se seguiram, at chegar crise que marcou o ano de 2008 e os seguintes.

    As formas de crtica que tm uma orientao reformista e as que tm

    uma orientao radical no diferem de maneira absoluta pelos princpios que

    as fundamentam. Elas tm razes, uma e outra para dizer rapidamente , no

    esprito do iluminismo e nos mesmos requisitos de liberdade e igualdade, de

    modo que se pode ver em uma crtica radical uma forma de passagem ao limi-

    te do liberalismo. Mas elas diferem uma da outra por duas concepes da rea-

    lidade, e ao mesmo tempo, por duas formas diferentes de imaginar o possvel.

    A posio reformista baseia-se na crena segundo a qual os componentes da

    realidade so suficientemente independentes uns dos outros para que alguns

    deles possam ser melhorados progressivamente sem que os contornos da rea-

    lidade sejam radicalmente transformados, pelo menos de uma s vez e em

    bloco. isto implica, notadamente, uma relativa independncia do que se pode

    chamar a forma Estado com relao s formas possveis do capitalismo.

    Ao contrrio, as posies oriundas da crtica radical que podem ser cha-

    madas revolucionrias negam essa possibilidade. Elas se concentram na inter-

    dependncia dos componentes da realidade e, portanto, sobre a quase impos-

    sibilidade de modificar certos elementos pelo menos, elementos importantes

    sem alterar tudo, de uma s vez. So maneiras de pensar sobre a totalidade.

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    artigo | luc boltanski

    Esta diferena est relacionada com oposies de natureza antropolgi-

    ca. O reformismo aposta nas propriedades integradas aos equipamentos cog-

    nitivos e morais dos seres humanos, como o fato, por exemplo, de serem dota-

    dos de razo ou terem sentimentos altrustas. inversamente, as posies radi-

    cais so bastante sistmicas, e provavelmente por isso que elas se apoiaram

    to frequentemente nas cincias, entendidas em um sentido positivista, e,

    particularmente, nas cincias histricas e sociais em que o foco estava posto

    nos processos, escapando das vontades individuais, tais como as leis da hist-

    ria, estruturas, sistemas, dispositivos etc.

    Mas as ltimas dcadas do sculo XX foram marcadas por uma espcie

    de inverso de posies. A partir de meados da dcada de 1970, so as foras

    sociais ligadas defesa do capitalismo, ou seja, usadas para tir-lo da crise que

    vinha enfrentando ao longo dos anos 1960-1970, que adotam uma posio cien-

    tfica e sistmica. A referncia necessidade mudou de campo. Ningum, ou

    quase ningum no campo da crtica, invoca mais as restries implacveis dos

    modos de produo ou o materialismo histrico. Em contrapartida, se

    apoiando nas concepes no menos implacveis da Cincia, com C mais-

    culo, que governam os dirigentes dos pases democrticos capitalistas.

    Deve ser enfatizado novamente o fato de que no se trata de um

    discurso ou de uma ideologia, mas de uma transformao que afeta a realida-

    de. As mudanas do capitalismo durante o perodo considerado tiveram am-

    plamente como efeito a instaurao de uma realidade na qual os elementos se

    encontraram efetivamente colocados em uma interdependncia cada vez mais

    estreita. A crise que o capitalismo conheceu nos anos 1960-1970 foi marcada

    principalmente por uma eroso dos lucros e uma estagnao da produtividade.

    Esses fenmenos foram, na poca, atribudos, pelo menos em parte, a um ex-

    cesso de polticas reformistas postas em prtica durante o perodo anterior.

    Mas os novos quadros do capitalismo que, gradualmente, se construram nos

    anos de 1970-2000, resultaram, ao liberar o capitalismo dos controles do Estado

    e ao aumentar a interdependncia dos elementos que compem a realidade,

    em tornar o reformismo realmente muito difcil de ser alcanado. Testemunhas

    disso so as dificuldades e as renncias do que chamado, a partir dos anos

    1980, de a segunda esquerda, que abandona a referncia ao movimento tra-

    balhador com a pretenso de conciliar a social democracia com a dependncia

    com relao aos mercados.

    A situao atual na Frana, e, talvez, em diferentes pases da Europa,

    apresenta analogias com aquela que analisava Karl Polanyi, em meados dos

    anos 1940, quando mostrava em La grande transformation (1983), como os exces-

    sos do liberalismo econmico tinham contribudo para favorecer o crescimen-

    to, frente ao desenvolvimento das desigualdades, de uma oposio antiliberal,

    mas nacionalista, xenofbica e autoritria. Pode ser observado, atualmente, na

    Frana e, talvez, de modo mais geral, na Europa, no discurso de muitos atores

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    Luc Boltanski Directeur dtudes da cole des

    Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Fun-

    dador, com Michael Pollak e Laurent Thvenot, em meados da

    dcada de 1980, do Groupe de Sociologie Politique et Morale

    (GSPM). autor de inmeros livros, entre os quais Le nouvel

    esprit du capitalisme (com Eve Chiapello, 1999), De la critique.

    Prcis de sociologie de lmancipation (2009) e Enigmes et complots.

    Une enqute propos denqutes (2012).

    intelectuais e/ou polticos, muitas vezes vindos da esquerda, uma passagem

    gradual da crtica do neoliberalismo para posies nacionalistas e xenofbicas.

    Estas ltimas so inspiradas, principalmente, pela hostilidade pelo externo,

    com relao aos pases chamados emergentes, cujo crescimento assusta, e

    dentro do pas contra os trabalhadores de origem estrangeira, especialmente

    do Magreb, acusados de ameaar os valores nacionais. Diante de uma situao

    como essa, a reconstruo da crtica social confrontada com uma dupla exi-

    gncia. Ela deve, por um lado, continuar a crtica das formas atuais do capita-

    lismo e se interrogar sobre os meios de torn-la eficaz. Mas ela deve, tambm,

    por outro lado, reforar a crtica s posies nacionalistas, xenofbicas e mo-

    ralistas, mesmo quando estas pretendem, como agora frequentemente o ca-

    so, justificar o seu excesso em direo ao autoritarismo em nome da defesa do

    povo. O termo utilizado, neste contexto, estritamente para se referir aos

    cidados considerados autctones, e para distingui-los das multides que so-

    frem, da mesma maneira, a dominao das formas atuais do capitalismo.

    Recebido em 04/08/2013 | Aprovado em 20/09/2013

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    artigo | luc boltanski

    refernciaS bibliogrficaS

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    Trom, Danny. Historicits de laction publique. Paris: PUF, p.

    207-221.

    notaS

    Este artigo resultou de uma conferncia proferida no ins-

    tituto de Filosofia e Cincias Sociais (iFCS) da UFRJ em

    agosto de 2013, a qual contou com o apoio do Programa de

    Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia (PPGSA), do

    iFCS e do Colgio de Altos Estudos da UFRJ. [N.E.]

    1 O CPE (Contrat de Premier Emploi) era um projeto visando

    atender os jovens de menos de 26 anos, muito contestado

    e que foi retirado em 2006 [N.T.].

    2 Proposta de um Tratado Constitucional Europeu rejeitada

    por parte significativa dos membros da Unio Europeia.

    3 A frmula utilizada em De la justification para analisar o

    que suponha a exigncia de igualdade de oportunidades

    (ver Boltanski & Thvenot, 1992).

    4 Conforme a expresso de William Ryan (1988).

    5 Com relao diferena entre a incerteza probabilista e o

    risco radical, ver Knight (1985 [1921]).

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    Gallimard.

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    artigo | luc boltanski

    Palavras-chave

    Sociologia da crtica;

    Dominao gestionria;

    instituies; Sistemas

    polticos de dominao;

    Realidade e mundo.

    Keywords

    Sociology of critique;

    Managerial domination;

    institutions; Political

    systems of domination;

    Reality and world.

    Sociologia da crtica, inStituieS e o novo

    modo de dominao geStionria

    Resumo

    O artigo retoma questes j tratadas pelo autor, principal-

    mente em Le nouvel esprit du capitalisme (1999), escrito em

    colaborao com Eve Chiapello, para destacar a importn-

    cia de refletir sobre o papel e os limites da crtica. Reco-

    nhecendo, embora, que a postura crtica no desapareceu,

    o autor questiona o poder da crtica, diante da chamada

    dominao gestionria de nossos dias. Nesta, diferente-

    mente do que ocorre na dominao pelo terror ou pela

    ideologia, a legitimidade dada pela cincia, as estratgias

    de management e as novas ferramentas de gesto, garantem

    s formas de governana pblica ou privada dispositi-

    vos que permitem conter a crtica e manter inalteradas as

    principais assimetrias sociais existentes.

    SociologY of critiQue, inStitutionS and tHe

    neW model of managerial domination

    Abstract

    The article deals with issues already addressed by the au-

    thor and Eve Chiapello in Le nouvel esprit du capitalisme

    (1999), to highlight the importance of reflecting on the role

    and limits of criticism. While recognizing that the critical

    attitude has not disappeared, the author questions the

    power of criticism, before the so-called managerial dom-

    ination of our days. in this case, unlike what happens

    with the domination by terror or by ideology, the legiti-

    macy given by science and new management strategies

    and tools, support forms of governance public or private

    that prevent criticism and maintain unchanged the major

    existing social asymmetries.