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Natureza Jurídica do Orçamento: breves reflexões

Autor(es): Lavouras, Maria Matilde Costa

Publicado por: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24804

Accessed : 1-Feb-2019 19:50:26

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BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS

COIMBRA

UNIVERSIDADE DE COIMBRAFACULDADE DE DIREITO

VOLUME XLV 2 0 0 2

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLV (2002), pp. 419-454

NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 419

NATUREZA JURÍDICADO ORÇAMENTO– BREVES REFLEXÕES –

“Somos aquilo que fazemos conscientemente.Assim, a excelência não é um acto mas sim um hábito”.

Aristóteles

1. Ponto prévio

“Faites moi de la bonne politique, je vous ferrai bonnesfinances”– esta frase proferida pelo Ministro da FazendaFrancês aquando de uma sua intervenção no respectivoParlamento1 é bem elucidativa da inegável influência polí-tica sofrida pela matéria orçamental.

A vida económico-financeira e também social assumeactualmente novos e pouco definidos contornos, cabendoao Estado um papel cada vez mais interventor e regula-dor. Os horizontes do poder executivo alargam-se, e, nomeio deste turbilhão de ocorrências permanecem quaseimutáveis os métodos de previsão e contabilidade públicas,com toda a obscuridade e confusão que os caracteriza.________________________

1 Apud MONTEIRO, Armindo, 1921, Do Orçamento Português,vol. I, p. 130.

O presente texto corresponde no essencial ao trabalho demestrado apresentado na disciplina de Finanças Públicas sob a orienta-ção do Doutor Aníbal Almeida, no ano lectivo de 2001-2002.

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Ainda hoje o Orçamento é visto como uma meracifra, ou, também, como uma cifra condicionadora e atéconstritora de toda a actividade económica (quer públicaquer privada) e porque não também social2. Muitos, em-bora inconscientemente, desejariam a reintrodução dasidéias Liberais, e aos entendimentos então preconizadosacerca do Orçamento estadual e das despesas públicas emgeral, bem como do papel do próprio Estado na economia.

Apesar do que se acabou de referir, constitui umfacto notório a necessidade da intervenção estadual emdomínios tão diversos como a saúde, a educação, a habi-tação, etc., o que implica, independentemente da formaque assuma essa mesma organização cuja intervenção érequerida, movimentos monetários em sentidos opostos.Por um lado, torna-se necessário assegurar a essa mesmaentidade os meios financeiros de que ela terá de lançarmão por forma a levar a cabo as tarefas que lhe estãoacometidas, fluxo este que é maioritariamente constituídopelas receitas provindas dos impostos. Por outro lado, nodesenvolvimento das referidas actividades, são fornecidosbens ou providenciados serviços, que, directa ou indirec-tamente, vão acabar por influir positivamente na vida doscidadãos. Por outro lado, é também de referir o papellevado a cabo pelas entidades estaduais nas políticas a desen-volver assumindo uma especial relevância a política deredistribuição3. Estas actuações mostram-se, não poucas

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2 “Segundo Karl Marx, o fenómeno económico é a causa deter-minante de todas as outras manifestações da vida social... A justiça, apaz, a simpatia, o amor, os factos psicológicos não desempenham fun-ção alguma na evolução social...”. ALMEIDA, Aníbal, Prelúdio a umaReconstrução da Economia Política, 1989, pp. xxiv.

3 Sobre este ponto em especial ver, entre outros, Sousa FRANCO,António L. de, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª Ed. 4ª Reim-pressão, 1997, vol. II, pp. 304 ss; STEFANI, Giorgio, 1999, Economia

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vezes, permeáveis não forças endógenas ao próprio meiofinanceiro como seria de desejar, mas sim a forças estra-nhas a tais desideratos, e pressões de lobbies tão diversoscomo os emergentes de facções desportivas ou de orien-tações morais.

O Orçamento aparece-nos assim como uma frágilbola de sabão, que tenta sobreviver no meio da tempes-tade, mas que acaba por se moldar, por forma a não sucum-bir, seguindo as formas que lhe são “impostas” pela fontede pressão que mostrar ser a mais persuasiva ou quiçá, aque mais adeptos mobiliza, e porque não, aquela que poderápermitir arrecadar nas urnas um maior número de votos,reflectindo não só a forma geral da sociedade, mas tam-bém o meio económico (“real”) em que surgem, bemcomo os caracteres económicos da classe governante edos seus “súbditos”.4

2. A questão em análise

As controvérsias travadas nas Doutrina e Jurisprudênciados mais diversos países em torno da natureza, conteúdoe efeitos do Orçamento estão ainda hoje na ordem dodia, apesar de a teoria do Orçamento ter sido elaborada,sobretudo, durante a época liberal, surgindo intimamenteligada aos princípios jurídicos então vigentes, como o daprotecção dos particulares contra o crescimento excessivodo Estado e consentimento representativo dos encargosfiscais, tentando limitar deste modo a propriedade e as

Della Finanza Pubblica, 8ª Ed., CEDAM, pp. 115 ss; RIBEIRO, J. J.Teixeira, Lições de Finanças Públicas, 5ª Ed. Refundida e Actualizada,1995, pp. 399 ss.

4 Para maiores explicitações ver, entre outros, MONTEIRO,Armindo, ob. cit., vol I, pp. 132.

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despesas estaduais. O princípio da legalidade fiscal e avotação do Orçamento aparecem nas constituições do séc.XIX como consequência da superação dos regimes abso-lutos, consagrando normativamente a impossibilidade de osoberano e o seu governo invadirem a esfera da proprie-dade e liberdade dos cidadãos, ou de realizarem gastos deuma forma absolutamente insindicável.5

Já no séc XX veio a assistir-se a um declínio da ins-tituição orçamental, tal como era entendida pelos clássi-cos, devido, sobretudo, ao reforço da intervenção estaduala nível económico, à diminuição dos poderes dos órgãosrepresentativos, máxime a Assembleia, face ao poder exe-cutivo, e à crescente complexidade dos métodos utiliza-dos nas previsão e gestão financeiras.

Se no período que vai desde 1143 (Fundação daNacionalidade) até à morte de D. Afonso III foram criadasas bases orgânicas da constituição financeira, só muitosséculos depois, nomeadamente em 7 de Janeiro de 1823,é que as Câmaras Legislativas Portuguesas discutiram oprimeiro Orçamento (embora se possa afirmar que o pri-meiro Orçamento data de 18216 ).

Após as Revoluções Liberais, e com o triunfo doConstitucionalismo, nas sociedades democráticas foramsendo criadas instituições basilares por forma a conferirefectividade à democracia financeira. Com a afirmaçãodo princípio da aprovação do Orçamento do Estado peloórgão representativo (mormente pelas Câmaras representa-tivas), bem como com a consagração dos princípios da

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5 XAVIER, António Lobo, O Orçamento como Lei, 1990, p. 176 Cfr. MONTEIRO, Armindo, ob. cit., vol I, p. 275, nota 3.

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legalidade fiscal e da publicidade da gestão dos dinheirospúblicos7, muitas modificações tiveram que ser introdu-zidas no seio das Finanças Públicas.

Nesta senda ganha relevo a questão da natureza jurí-dica do Orçamento, sendo análise da mesma condiciona-da, em grande medida, pelos normativos constitucionaisvigentes em cada país num dado momento, e pelo papelaí atribuído à intervenção parlamentar na elaboração eaprovação do mesmo.

Ora, como sabemos, o direito vai sofrendo constan-tes mutações ao longo dos tempos.

Os Estados democrático-representativos tomaramcomo padrão básico a estrutura organizatória que se sedi-mentou no séc XIX8 e ainda hoje a distribuição dos pode-res financeiros entre o Governo e o Parlamento constituifonte de dúvidas e origem de problemas. O direito orça-mental traz consigo as marcas das grandes modificaçõessurgidas no seio da actividade financeira pública, não sendoalheio às transformações políticas entretanto ocorridas.

Podemos afirmar com bastante precisão que nos Esta-dos de Direito, aos Parlamentos é submetida anualmenteuma previsão de receitas e despesas que o Estado pretendecobrar e realizar, sendo a mesma estruturada por itens, edevendo ser objecto de autorização parlamentar; é tam-

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7 Nomeadamente através da criação de sistemas de controloexterno e independente da gestão financeira, bem como o estabeleci-mento de mecanismos de responsabilização pela utilização indevidados dinheiros públicos.

8 Embora se possa afirmar que desde o séc XII, que é aceite nageneralidade dos países europeus o princípio segundo o qual é aosrepresentantes dos cidadãos que compete dar a autorização para a co-brança de tributos.

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bém mais ou menos unânime nos diversos ordenamentosjurídicos, que a execução orçamental seja também elacontrolada pelo mesmo órgão. Contudo, a questão é bemmais complexa do que se poderia pensar à primeira vista,havendo desde logo que distinguir entre a função parla-mentar de criação e estabelecimento dos impostos eaqueloutra que consiste na aprovação e votação do orça-mento.

À semelhança do que sucede nas restantes actividadesdos órgãos da Administração estadual, também a activida-de financeira se deve considerar subordinada ao princípioda legalidade nas suas diversas acepções, sem que esta su-bordinação seja porém contundida com uma amálgamade procedimentos burocráticos tendentes à paralisação daactividade estadual bem como pra gerar desperdícios eineficiência na gestão do erário público aquando da satis-fação das necessidades colectivas.9 Contudo, a subordina-ção ao princípio referido deverá ser sempre permeada porcritérios de economicidade, eficiência e eficácia, introdu-zindo ao nível das Finanças Públicas princípios normal-mente identificados como sendo exclusivos das finançasprivadas, e também, medidas tendentes a possibilitar a publi-cidade e transparência da gestão efectuada, possibilitando-sedeste modo a racionalização da gestão financeira pública.10

A ideia e noção de Orçamento que hoje conhece-mos surgiu apenas no séc. XIX (excepto na Inglaterra,onde o mesmo é reconhecido desde o séc. XVII)11.________________________

9 Para maiores esclarecimentos acerca da actividade financeirado Estado, ver RIBEIRO, J. J. Teixeira, ob. cit., pp. 19 ss; SOUSA

FRANCO, António L. de, ob. cit. (1997), pp. 7 ss; STEFANI, Giorgio,ob. cit., pp. 1 ss.

10 Reforma da Lei de Enquadramento Orçamental – Trabalhos Prepa-ratórios e Anteprojecto, Ministério das Finanças, 1998, p. 13.

11 RIBEIRO, J. J. Teixeira, ob. cit. (1995), p. 50.

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Mas o Orçamento é um instituto cuja história é muitomais recente; a fiscalização das despesas efectuadas com oproduto das receitas cobradas foi inexistente durante muitotempo. As despesas soberanas eram consideradas “secretas”,e só a partir do séc. XIII são desenvolvidas tentativas nosentido de as mesmas serem fiscalizadas pelo Parlamento.

O Príncipe da Idade Média europeia não detinha,como já foi referido, poderes ilimitados perante a nação,sendo certo desde logo, que não poderia criar impostosilimitadamente, nem de forma arbitrária, havendo até paí-ses onde se afirmava que o Soberano deveria bastar-secom os rendimentos oriundos dos domínios régios, admi-tindo-se que os cidadãos fossem compelidos a contribuircom somas pecuniárias (embora os primeiros tributos fossempagos em géneros) apenas para fazer face a necessidadesextraordinárias.

Se os tributos começaram por ser vistos como umaentidade extraordinária, estava-lhes subjacente a ideia deque a sua criação carecia de consentimento do órgão repre-sentativo do Povo, podendo variar as formas pelas quais omesmo é expresso e o órgão representativo competentepara o prestar.

Com o advento do capitalismo, este princípio vaisofrer em muitos países um grande revés, tendo até desa-parecido em alguns deles. Entre nós esse retrocesso dá-senos reinados de D. Afonso V, D. Manuel, D. Sebastião edurante o domínio filipino. Com a Restauração dá-se umrecrudescimento da importância das Cortes.

A Revolução Liberal de 1820 veio encontrar vigentea Lei do Erário Régio de 1761, mas com esta como quea sociedade leva uma verdadeira “sacudidela” – o segredopassou a ser a base das finanças nacionais. As receitas e asdespesas eram vistas desprovidas de quaisquer considera-ções sociais, e apenas como meras somas monetárias, sen-

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do a maior preocupação a reforma e exame da contabili-dade nacional.12

A análise dos poderes financeiros e a sua repartiçãoleva-nos a penetrar no universo constitucional, de modoa que possamos encontrar o órgão de predominância polí-tica bem como quem é o verdadeiro titular do podernesta matéria. Não podemos afirmar de ânimo leve que acriação, autorização da cobrança dos impostos e a votaçãodo Orçamento pertencem ao mesmo âmbito de compe-tência do Parlamento, pois há que distinguir desde logo afunção parlamentar de criação ou estabelecimento dosimpostos, e aqueloutra da votação do Orçamento.

3. As teorias em debate – propostas de solução

Levantam-se assim várias questões de suma impor-tância. Aos jurisconsultos alemães se devem os primeirosestudos, tendo sido posto em relevo o problema e dadosos primeiros passos para a sua resolução.

Os homens da Doutrina reuniram-se sob bandeirasdiferentes, guiados por caminhos diversos, e nem sempresouberam pôr a questão nos melhores termos. Uns nãoviam senão um curioso caso de lei formal em oposição àlei material, outros viam esta “Lei de Meios” como englo-bada na categoria de lei material e outros vislumbravamapenas um curioso caso de acto administrativo.

Mas não foram apenas estes os problemas na abor-dagem da questão, pois muitos confundiam o conteúdogeral do orçamento com o conteúdo de cada uma dasinfinitas parcelas em que o mesmo pode ser decomposto;

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12 Ofício do Ministro da Fazenda, cit. por MONTEIRO, Armindo,ob. cit., vol I, p. 275.

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outra corrente olhava apenas para os elementos constitu-tivos sem ter em conta que o conjunto que os mesmosformam é diverso do seu somatório.

Conjuntamente com a questão da natureza jurídicado Orçamento considerado como um todo, levanta-se ada natureza jurídica de cada um dos elementos que ocompõem. Atender apenas a esta última é perder de vistaque o Orçamento é mais que um mero somatório de índo-les várias, e ignorar que ele desempenha por si só umafunção que não pode ser atribuída a nenhuma das parcelasem que é possível dissecá-lo. Mas atender apenas à uni-dade é cometer um erro não menor, é como se visás-semos explicar as propriedades de um composto químicosem atender aos seus componentes. Assim, aos efeitos doOrçamento visto como um todo há que juntar os efeitosde cada grupo de receitas ou despesas com característicaspróprias.

Muitos foram os autores que perfilaram explicitaçõesneste domínio, e a classificação geralmente seguida reparteas doutrinas sobre a natureza jurídica do Orçamento nostrês seguintes grupos:

1) Teorias segundo as quais o orçamento é uma leipropriamente dita;

2) Teorias que lhe dão, em certos casos, a naturezade lei, e noutros a de acto administrativo,

3) Teorias que negam sempre a natureza de lei

Deve, contudo ser utilizada uma distinção diversa,uma vez que a supra referenciada não consegue dividir asopiniões em grupos homogéneos. Aventuro-me assim naseguinte distinção13 :________________________

13 No seguimento da distinção efectuada por MONTEIRO

Armindo, ob. cit., vol. I, p. 93, nota 1.

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1) Teorias que atendem ao conteúdo jurídico doOrçamento visto como uma unidade:

1.1) Autores para os quais o Orçamento é uma lei,quer em sentido material, quer em sentido for-mal;

1.2) Autores que consideram o Orçamento comosendo um acto administrativo;

1.3) Autores que consideram o orçamento como umacto condição;

2) Teorias que atendem apenas ao conteúdo de cadauma das parcelas em que o Orçamento pode ser dividido.

Comecemos então a análise das mesmas.

3.1. Teorias que atendem ao conteúdo jurídico doOrçamento visto como uma unidade:

3.1.1 Autores para os quais o Orçamento é uma lei,quer em sentido material, quer em sentidoformal;

Se nos debruçarmos a analisar as teorias que tomamo Orçamento como um todo, deparamo-nos desde logocom a opinião daqueles para quem este é uma lei emsentido material. De entre os diversos autores destacam-seHanel, Zorn e Von Martitz (na 2º fase do seu pensa-mento), e mais recentemente Ingrosso, Guiliani Foroungee Sainz de Bujanda. De comum a todos eles a afirmaçãode que é através dele que a administração estadual adquireo direito a receber as receitas e a afectá-las à coberturade despesas.

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a) Hänel14, parte do princípio de que toda a lei temnecessariamente por conteúdo um preceito jurídico. Olegislador tem o poder de subordinar à forma legal tudoo que, de um modo genérico, for susceptível de serexpresso por palavras. Entende que nos Estados consti-tucionais a forma de lei é que indicia necessariamente oconteúdo jurídico. Qualquer disposição que seja aprovadae inserta numa Lei sofre uma transformação fundamentalna sua natureza jurídica, deixando de ser, por exemplo, aordem de um detentor do poder naquele serviço, parapassar a ser a regra do legislador.15 Mas não basta a coo-peração dos factores legislativos, são também necessáriascertas condições formais, tais como a redacção do actolegislativo e a sua publicação.

Tendo em conta o sistema Alemão de então, afirmaque no sistema de Sax e da Baviera o Orçamento nãoreveste forma de Lei e por isso mesmo a sua natureza jurí-dica é diversa; no sistema germano-prussiano, o Orça-mento reveste forma de lei. Assim, neste último caso, oautor considera que a função jurídica do Orçamento con-siste na afectação das receitas ao serviço anual da admi-nistração financeira do Estado. Só pela lei orçamental aadministração adquire o direito de emprego, despesa edisposição face às receitas orçamentais, e é por virtudedela que se cria o dever de “preparar” as receitas comvista à utilização a que serão subordinadas. A lei do Orça-mento põe assim a cargo do executivo um certo númerode obrigações jurídicas, sendo por isso uma lei em senti-do material.

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14 Studien zum Deutcschen Staatsrecht, vol. II, apud MONTEIRO,Armindo, ob. cit., vol. I, p. 90.

15 Dando-se assim aquilo a que Laband chama a “transubstan-ciação por meio do poder miraculoso da forma de Lei”.

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Sem pretender retirar qualquer mérito a este autor, aformulação das conclusões a que o seu estudo conduziu,acaba por revelar-se ilógica e até falsa, pois não atendeao verdadeiro conteúdo do Orçamento, distinguindo ape-nas entre lei em sentido material e lei em sentido formal;mesmo nessa distinção estabelece um círculo vicioso aoafirmar que “A forma legal dá a qualquer preceito umconteúdo jurídico; o Orçamento tem um conteúdo jurí-dico porque reveste forma legal”16, dando deste modocomo assente aquilo que era necessário provar.

b) Por seu turno, Zorn17, entende que toda a decla-ração sob a forma de lei tem natureza jurídica, sendo oOrçamento, apenas por esse facto, uma lei sem caracterís-ticas especiais, quer quanto ao seu conteúdo, quer quantoaos seus efeitos.

Ao perfilar esta visão acaba por cair nos mesmos errosque Hanel, apenas acrescentando o tom de autoridade aoafirmar esta sua visão como um dogma jurídico, semefectuar qualquer demonstração fáctica ou teórica do porsi afirmado. O Orçamento é assim uma lei sem conteúdodiverso das outras lei, sendo que o carácter de todas asreceitas e de todas as despesas é pois sempre o de umanorma legal imperativa.

c) Von Martitz18 na segunda fase do seu pensamen-to, afirma que a força formal da lei em nada difere daprópria força da lei, tendo os mesmos efeitos que tem a

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16 HANEL, Das Gesetz im formellen und materiellen Sine, apudMONTEIRO, Armindo, ob. cit., vol I.

17 Staatsrecht, vol. I, pg 1895, apud MONTEIRO, Armindo, loc. cit..18 MARTITZ, v. Von, Betrachtungen uber die Verfassung der

Norddeutschen, Liepzig, 1886, pg. 69 e ss., apud MONTEIRO, Armindo,loc. cit..

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força material. E, como em qualquer lei, seja qual for oseu conteúdo, está sempre contido o direito do estado.O Orçamento faz parte integrante da ordem jurídica e ésó por ele que ao Governo é concedido o poder neces-sário para gerir a administração financeira, no âmbito dasautorizações dadas. Este autor não olha, à semelhançados anteriores, à natureza intrínseca do orçamento, que,segundo este autor, terá conteúdos diversos conforme sejaou não publicada sob a forma de lei.

d) Graziani19 preconiza a opinião de que o diplomaOrçamental é um curioso exemplo de lei formal, consti-tuindo a sua aprovação um acto de administração, inexis-tindo qualquer estatuição de regras fundamentais, gerais,abstractas e permanentes, pois a periodicidade é uma dassuas características indissociáveis.

Acaba também ele por cair em antagonismos, aoafirmar que o Orçamento é, por um lado uma lei emsentido formal, e aposteriori, dizer que esta não reveste ascaracterísticas de lei, pois não é permanente, geral, abs-tracta, não atendendo à natureza interna das regras orça-mentais, considerando esta querela solucionada ao afirmarque as estatuições nela insertas revestem forma de lei, oupor afirmar que a aprovação do mesmo constitui ummero acto administrativo.

3.1.2 Autores que consideram o Orçamento comosendo um acto administrativo

Contra o entendimento perfilado pelos autores acimareferenciados, levantam-se vozes no sentido da afirmação

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19 GRAZIANI, Instituzioni di Scienza delle Finanze, Turim, 1991,pp. 127-128; apud MONTEIRO, Armindo, loc. cit.

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de que o Orçamento, apesar de ser uma lei em sentidoformal, não tem qualquer conteúdo jurídico, sendo ape-nas uma mera autorização para que o Governo possa cobrarreceitas e realizar despesas.

a) Laband20 afirma que a elaboração e aprovação doOrçamento nada tem a ver com a legislação, sendo estaúltima considerada como uma regulação política da ordemjurídica. Não é pelo facto de o Orçamento ser publicadosob a forma de lei que tal vai alterar a sua natureza desimples plano de gestão financeira do Estado. Não contémnenhuma regra jurídica, nenhuma ordem ou proibição,encerrando apenas cifras diversas ligadas entre si por res-peitarem à gestão financeira de um certo país, e represen-tarem esta no seu conjunto.

Parece assim suficiente a ideia e a declaração de queo Orçamento é apenas um plano de idéias, caindo assim

________________________

20 LADBAND, Das Budgetrecht e le Droit Public de l’EmpireAllemand, trad. Fr. 1904, Paris, 6º vol., pp. 266 ss, apud MONTEIRO,Armindo, loc. cit.

Ladband desenvolveu a doutrina do duplo conceito de lei, dis-tinguindo entre lei em sentido material e lei em sentido formal.Assim, podia definir-se lei em sentido material como sendo um actojurídico que estabelece uma regra de direito, centrada nos efeitos,considerando tratar-se de uma norma jurídica quando a sua eficácia severifica quer dentro da organização administrativa quer fora desta,estando desprovida de tal característica nos casos em que a sua eficá-cia é meramente “interna”. Ao conceito referenciado opunha-se o delei em sentido formal, sendo este visto como o acto emanado davontade estadual, revestindo uma forma solene (a forma de lei), sendoindiferente o seu conteúdo para a classificação. Mas Ladband nega,peremptoriamente, que uma norma para revestir natureza jurídica sejarevestida da característica da generalidade, atribuindo, como já foireferido, uma maior importância à característica da eficácia externa –CAETANO, Marcello, Manual de Ciência Política e Direito Constitucio-nal, 6ª Ed. revista e ampliada, vol. I, p. 161.

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no mesmo erro que Hanel, Zorn e Von Martitz (2º Fase).Nega ao Orçamento todo e qualquer valor jurídico, redu-zindo-o a um mero trabalho contabilístico sem qualquerforça obrigatória.

Tem porém razão ao afirmar que a forma de lei nãoaltera a natureza intrínseca do Orçamento, mas não temqualquer razão ao afirmar que este não contém qualquernorma jurídica, qualquer estatuição sem força obrigatóriageral.

b) Von Martitz21 (1ª fase), afirma que o Orçamentonão tem nem nunca teve força suficiente para suprimiroutras leis no todo ou em parte, sendo por isso erróneoafirmar que é uma lei. Não pertencendo à esfera do poderlegislativo, é acima de tudo uma medida de execução,um mero acto administrativo.

Ao dar-lhe apenas esta significação, evidencia a suaunilateralidade, mas toma uma posição insustentável aoafirmar que este não pode revogar leis, e consequente-mente, não pode ser revogado por elas, acabando por negarum facto evidente ao afirmar que a elaboração e aprovaçãodo mesmo não cabe ao poder legislativo.

c) Arndt22, parte da ideia de que a fixação do Orça-mento é um mandato às autoridades administrativas, umainstrução interna, concluindo que a sua votação não émais que a afirmação e a autorização para a realizaçãodaquelas despesas, constituindo a não aprovação do mesmouma forma de derrubar o executivo.

Concebe o Orçamento como um mandato dado aum certo executivo, o que bem se vê não ser verdadeiro,________________________

21 ob. cit.22 ARNDT, Kommentar zur Verfassung 1895, pp. 272 ss., apud

MONTEIRO, Armindo, ob. cit.

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pois imporia que mudando o executivo, tivesse que seraprovado um novo Orçamento (e consequente entrega deum novo mandato).

Tem contudo o mérito de alertar para o facto deque o significado do Orçamento das receitas e do Orça-mento das despesas ser diverso, embora o faça de umaforma muito simplista, e ao faze-o cai num erro poisafirma que o executivo apenas necessita de autorizaçãopara efectuar as despesas, mas não para cobrar as receitasestabelecidas por lei.

3.1.3 Autores que consideram o Orçamento comoum acto-condição

Uma última posição teórica para aqueles que anali-sam o orçamento como um todo, pertence aqueles quesustentam que o mesmo é visto como uma condição ne-cessária para que o poder executivo possa proceder anual-mente à administração financeira do Estado.

a) Seidler23 afirma que o Orçamento é uma condi-ção24 necessária para que o governo possa gerir os negó-cios públicos. O poder executivo precisa de ser todos osanos autorizado a proceder à administração financeira doEstado, e a aprovação do orçamento constitui precisa-mente essa autorização. Não podemos dizer que as afir-mações desta teoria são falsas, mas apenas contidas emmoldes muito estreitos e imperfeitos, que não permitemexplicitar todos os fenómenos ocorridos neste domínio dodireito público.________________________

23 SIEDLER, Budget und Budgetthéorie, Viena, 1885, apud MON-TEIRO, Armindo, ob. cit.

24 Encara esta como sendo um acontecimento futuro e incerto(tal como os civilistas).

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 435

b) Jellinek25 partindo da distinção entre lei formal elei material26, reconhece que o Orçamento é um planode gestão, e que a sua fixação constitui um mero actoadministrativo, por não conter regras de direito, mas núme-ros27, tendo como finalidade a regulamentação da activi-dade económica do Estado e não a delimitação de direitose deveres. Contudo, a actividade “legislativa” nesta áreanão era livre, achando-se circunscrita por todas as leisque estabelecem receitas e despesas permanentes do Estado,não podendo revogar as lei materiais preexistentes queestabelecessem receitas, criassem serviços públicos ou quedessem lugar à realização de despesas.

A lei orçamental representa constitucionalmente acondição requerida e necessária para o executivo poderefectuar a administração financeira do Estado. Se tal con-dição não for preenchida, e a Constituição não providen-ciar quanto à administração financeira na falta de aprovaçãodo Orçamento, os actos realizados pelo executivo nestecampo padecem de inconstitucionalidade formal, pois, a

________________________

25 JELLIENEK, Gesetz und Verordnung, Friburgo, 1887, apud MON-TEIRO, Armindo, ob. cit.

26 Tomando, à semelhança de Ladband, como ponto de partidaa distinção entre lei em sentido formal e lei em sentido material, eregeitando como característica atributiva da juridicidade da norma (leiem sentido material) a ideia de generalidade, segue um caminhodiverso do autor referenciado, ao modelar esta noção entrando emlinha de conta com o conceito de fim da norma, considerando tratar--se de norma jurídica nos casos em que esta tenha como fim imediatolimitar a actividade livre das pessoas. CANOTILHO, J. J. Gomes, “A leido Orçamento”, Boletim da Faculdade de Direito, Estudos de Homenagemao Prof. Doutor Teixeira Ribeiro, Vol. III, p. 549, e CAETANO, Mar-cello, ob. loc. cit.

27 Ideia esta mobilizada por Otto Mayer, Le Droi AdministratifAllemand, 1902, Vol. II, p. 185.

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actividade estadual nestas matérias encontra-se regulada,não por Lei formal como decorrência dos princípiosconstitucionais então vigentes, mas por uma acto gover-namental (regulamento).

Pode verificar-se uma inconsequência entre os prin-cípios formulados e as consequências daí deduzidas.

d) Matton28 afirma que o Orçamento abarca ao mesmotempo todos os interesses e é a condição a que está subor-dinada a existência dos vários poderes que exercem direi-tos sobre a nação, dominando assim toda a organizaçãoadministrativa por ser a fonte verificadora de todos osseus elementos. A sua natureza periódica faz com que sepossam encontrar suspensos, quanto aos seus efeitos, asdisposições orgânicas de que resultam as despesas, ficandoa realização das mesmas subordinada à intervenção do poderexecutivo, estando o exercício dos diversos poderes depen-dente da concessão dos fundos requeridos.

Sem a aprovação do Orçamento, as disposições orgâ-nicas dos serviços públicos não têm qualquer força quantoàs despesas que ordenam ou autorizam.

Esta teoria é de aceitar como um todo, embora ana-lise apenas o Orçamento visto como unitariamente, des-curando os diversos elementos que o compõem.

3.2. Teorias que atendem apenas ao conteúdo de cadauma das partes em que o Orçamento pode serdividido

Com vista ao mesmo fim que os teorizadores ante-riormente referenciados, surgem aqueles que visam expli-________________________

28 MATTON, Précis de droit budgétaire belge, apud. MONTEIRO,Armindo, ob. cit.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 437

citar a natureza jurídica do fenómeno orçamentário atra-vés da análise das várias partes em que o mesmo pode serdividido.

a) Duguit29 entende que os critérios formais devemser abandonados e que só o conteúdo do orçamento éque deve ser analisado. Por esse mesmo facto, e partindodo pressuposto de que os seus efeitos são diversos, distingueentre Orçamento das despesas e Orçamento das receitas.

Quanto ao Orçamento da despesas, afirma que esteé essencialmente um acto de administração, funcionandoo órgão representativo do povo (órgão legislativo) naqualidade de agente administrativo, tomando uma decisãoindividual e fazendo surgir uma situação jurídica subjectivapara o Ministro, e por vezes para o credores do Estado,consistindo aos seus efeitos em assegurar as verbas neces-sárias ao funcionamento das Instituições existentes e cria-das por lei prévia.

A sua posição é diversa quando se refere ao Orça-mento das receitas, uma vez que afirma que este tantopode ser visto como uma lei, ou como um acto adminis-trativo.

Será visto como uma lei, nos casos em que vigore oprincípio da anualidade, e:

a. Faça a enumeração dos impostos e taxas, contendouma disposição geral e abstracta, aplicável a todos aquelesque se encontrem nas condições aí referenciadas;

b. Renove impostos já existentes;

Na parte restante do Orçamento das receitas repre-senta apenas uma série de simples operações administra-________________________

29 DUGUIT, Léon, L’Etat, le droit objectif et la loi positive, Paris,1901, pp. 253 ss., Manuel de droit constitucionnel 1911, 1º vol. pp. 141ss e vol 2º pp. 333 ss., apud MONTEIRO, Armindo, ob. cit.

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tivas, que se reconduzem à autorização da cobrança dasreceitas percebidas devido aos impostos existentes.

A este autor cabe o mérito de ter aberto novos hori-zontes para o estudo da questão, criando uma cisão entrea natureza jurídica do Orçamento das despesas e do Orça-mento das receitas, não tendo sido porém muito feliz nassoluções que apresentou, por não conseguir desprender-seinteiramente da terminologia utilizada. Cai também emalguns erros, nomeadamente ao afirmar que as disposiçõesorçamentais que aprovam um imposto em virtude da regrada anualidade, têm relativamente a ele um carácter cria-dor, confundindo deste modo o acto criador do impostoe aquele que o põe em movimento, e estes são intrinse-camente diferentes.

Ao referir-se ao orçamento das despesas coloca-nosperante um acto administrativo, afirmando tratar-se deum acto individual, que faria surgir em certos casos umasituação subjectiva para o Ministro e algumas vezes paraos próprios credores; ora, o Orçamento muito dificilmentepoderá criar situações jurídicas subjectivas e poderá serconsiderado como um acto individual e concreto.

b) Jèze30, tal como Duguit, faz a distinção entre orça-mento das despesas e orçamento das receitas. Quanto aoOrçamento das receitas, subdivide a sua análise em doisitens, quando se trata de receitas provindas dos impostos,e vigorando a regra da anualidade, entendo que ao serefectuada a votação da sua cobrança pelo órgão constitu-cionalmente competente, está verificada a condição (nosentido de imposição) do direito positivo ao exercício dacompetência dos agentes administrativos para realizar acobrança das mesmas, podendo os mesmos, logo que a________________________

30 JÈZE, Gaston, Traité de Science das Finances, Le Budget 1910,pp. 48 a 60.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 439

mesma entre em vigor, praticar actos jurídicos, fazendonascer créditos em favor do Estado.

Não estando consagrada a regra da anuidade, a vali-dade e o regular exercício das competências administrati-vas não dependem da aprovação e entrada em vigor doOrçamento, deixando o mesmo de ter qualquer signifi-cado jurídico, sendo um mero documento financeiro.

Relativamente às outras receitas, o Orçamento nãotem qualquer significado jurídico, constituindo uma meraavaliação de ordem financeira.

Quanto ao Orçamento das despesas, tanto pode serestabelecido pelo executivo que o Orçamento é uma con-ditio sine qua non para que os agentes administrativos possamexercer regularmente as suas competências, criando atravésda práticas dos actos jurídicos inerentes a esta actuação,os débitos do Tesouro Público podendo realizar a respec-tiva quitação.

Tratando-se de despesas respeitantes a dívidas já exis-tentes, é feita apenas uma previsão de ordem financeira,mas pode suceder que o Orçamento tenha para elas tam-bém um valor jurídico, sendo necessário ao exercício regu-lar da competência dos agentes encarregues do pagamento.

Mas pode suceder que sejam distinguidas pelo legis-lador duas categorias de despesas públicas: as respeitantesaos serviços públicos instituídos por lei, e quanto a estasa lei orçamental não tem qualquer significado, pois nãoexerce qualquer influência sobre a actuação dos seusagentes; quanto às restantes despesas, a sua significação jurí-ica é diminuta, uma vez que a sua votação serve apenaspara a constatação da sua utilidade.

Pela sua formulação, esta teoria padece de diversasvicissitudes, sendo embora de referir que esta foi formuladade uma forma incompleta. Pode dizer-se que Jèse fezincidir a sua análise apenas sobre a natureza jurídica de

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cada um dos elementos constitutivos do orçamento e nãosobre este enquanto tal, logo daqui surgindo erros deraciocínio. Por outro lado, autonomizou os impostos dasrestantes receitas estaduais, fazendo corresponder conse-quências idênticas para entes juridicamente diversos.

Afirma que é diferente o acto jurídico, pelo qual secria um tributo e aquele pelo qual o mesmo é incluídonas receitas do estado. Se um o cria (o potencia) o outropõe-no em movimento, dinamiza-o.

No que concerne à análise do Orçamento das des-pesas, e embora esta tenha sido mais profunda, acaba pornão efectuar todas as distinções necessárias, não reconhe-cendo qualquer significação jurídica às despesas com obri-gações já contraídas.

Relativamente a este autor, afirmou Armindo Mon-teiro “seguindo o caminho pisado por Duguit levou ateoria ao máximo da perfeição até agora atingido, mar-cando em moldes definidos a fase francesa da sua evolu-ção.”31

4. O problema da natureza jurídica no direitoportuguês

Continua a fazer todo o sentido a afirmação proferidapor José António Veloso em 196832, que refere: “Não seráexagero afirmar que o Direito Orçamentário se encontra entre oscampos mais abandonados do nosso Direito Público. Verdadeque o Prof. Armindo Monteiro dedicou ao Orçamento um valio-sos estudo, ainda na vigência da constituição de 1911; mas essatentativa, apesar de auspiciosa, não teve qualquer seguimento”.

________________________

31 Obra cit. p. 109, vol I, nota de rodapé.32 In “Natureza Jurídica da Lei de Meios”, Sciencia jurídica, Tomo

XVII – nº 90, Março-Abril 1968.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 441

No estudo referido, conclui o ilustre Professor que“Dos efeitos jurídicos do Orçamento uns derivam evidentementedo conteúdo deste considerado como um todo, outros de cadauma das suas partes componentes”, sendo assim, do ponto devista jurídico “a)um acto condição e b)estabelecido em geral sobrea forma de lei”33. A sua análise completamente escorreita àépoca pode ainda, em muitas das suas acepções ter apli-cabilidade actual, embora as alterações legislativas intro-duzidas tenham sido significativas34, aceitando-se sem reser-vas que o orçamento visto como um todo tem efeitosjurídicos diversos dos que derivam da análise de cadauma das suas componentes.

O Orçamento visa, por um lado, a delineação deum programa periódico (anual) de administração, obtendodeste modo um quadro de previsões totais de receitas edespesas, assentando as bases para a fiscalização das finan-ças estaduais, concedendo deste modo, periodicamente, aoexecutivo, os poderes necessários para o exercício dasfunções que constitucionalmente lhe estão acometidas.

Os fins políticos dominam a vida do Orçamento,condicionam a sua natureza jurídica, e afastam-no do estritocampo financeiro em que estão confinados (ou deveriamestar) todos os outros trabalhos de contabilidade pública.________________________

33 Obra citada, vol I, p. 113.34 Refiro-me, nomeadamente, às sucessivas alterações Constitu-

cionais, e das próprias Leis de Enquadramento Orçamental, bemcomo aos diplomas reguladores do Regime Financeiro do Estado.

35 Fala-se actualmente no “esquecimento do poder de gastar” naterminologia de NABAIS, José Casalta, que, nos seus ensinamentos afir-ma que “o declínio ou degradação do poder fiscal do parlamento,liga-se ao que podemos designar por esquecimento do poder relativoà despesa pública, ou seja, liga-se ao que podemos designar por esque-cimento do poder de gastar” (“O princípio da legalidade fiscal e osactuais desafios da tributação”, Boletim da Faculdade de Direito, volumecomemorativo, 2002, em publicação).

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Parece que com a discussão e aprovação do Orça-mento há uma intenção de regularizar o exercício de todasas actuações estaduais, quer no que concerne ao funcio-namento financeiro dos serviços públicos, quer no querespeita à arrecadação e dispêndio das quantias referenciadas.35

Se do ponto de vista formal parecem não surgir dúvi-das de que se trata de uma lei, entendida esta como umo acto elaborado pelo órgão legislativo e segundo o pro-cesso constitucionalmente exigido para a sua formação36,do ponto de vista material surgem as divergências, pois amesma pode ser vista como uma lei em sentido mate-rial37, isto é, como prescrição que, independentemente daforma, revista o carácter de norma jurídica, constituindoum padrão de comportamentos, e sendo um acto criadorde regras jurídicas para a decisão de conflitos, ou ser enten-dido como um mero acto normativo emanado pela admi-

________________________

36 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional, 6ª ed. p. 827;CAETANO, Marcello, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional,6ª Ed., revista e ampliada, vol. I, pp. 158 ss.

37 Na Filosofia antiga e intermédia a lei tinha uma dimensãomaterial, pois era “expressão do justo e do racional; já com Hobbessurge o conceito voluntarista e positivo de lei: “a lei, propriamentedita, é a palavra daquele que, por direito, tem o comando sobre osdemais”; mas a evolução do conceito não cessa, e com o advento doliberalismo vai aparecer uma nova noção, Locke afirma que a “leinão é tanto a limitação, mas sim o guia de um agente livre e inteli-gente, no seu próprio interesse”; Rosseau teve o mérito de considerara lei como um instrumento de actuação da igualdade política e daíque a considerasse como um produto da vontade geral; a distinçãokantiana parte da diferença existente entre Lei e Máxima; enquantoque a primeira é um princípio prático, tornado-se válido para qual-quer ser racional por conter uma determinação, a máxima torna-seválida apenas pela vontade do sujeito que a emana; já a teoria Heglianaconsidera a lei como a expressão do geral, e os actos do executivocomo expressão do particular, CANOTILHO, J. J. Gomes, ob. cit. p. 817ss, e p. 991.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 443

nistração sendo este o acto normativo que permite definirde um modo imperativo e unilateral (tal como a lei) aregulação ou medida jurídica para um caso concreto38, eemitido pela administração no exercício de funções admi-nistrativas. Assim um acto normativo pode ser simultanea-mente lei em sentido formal e sentido material, mas osdois sentidos podem não coexistir em face do mesmopreceito normativo, e este consubstanciar-se, numa ouem ambas as dimensões como um acto administrativo.39

Vigorou entre nós até 1933 o figurino liberal de orga-nização da instituições políticas. O Orçamento era discu-tido e votado nas Assembleias Representativas, que atra-vés dele orientavam e fiscalizavam o emprego do eráriopúblico, bem como as contribuições efectuadas pelo Estado.Na verdade, com a crescente implementação na vida sociale política dos ideais liberais, desde logo se começaram amostrar insuficientes os princípios reguladores da vidaorçamental até então vigentes e herdados do séc. XIX.O princípio da legalidade ganha neste domínio contornosmuito específicos distanciando-se, em certa medida doentendimento tradicional que lhe era dado. Uma outranecessidade se faz sentir: a da fiscalização da execuçãoorçamental, até aí levada a cabo um pouco “às escuras”,denotando-se deste modo a tendencial abertura e transpa-rência da actividade financeira do estado e que hoje éalgo de irretractável e irrenunciável.

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38 OLIVEIRA, Mário Esteves e outros, Código de Procedimento Ad-ministrativo, Coimbra, 2ª Ed. 1997, p. 539.

39 Para melhor compreensão do conceito, ver SOARES, Rogério,Direito Administrativo, Coimbra, 1978, p. 76; AMARAL, Freitas,Direito Administrativo, vol. III, p. 66; OLIVEIRA, Mário Esteves de eoutros, ob. cit., 1997, pp. 539 ss.

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A CRP de 1976 (versão original), não assume demodo algum, a ideia clássica das Finanças Públicas, cons-tituindo um ponto de viragem neste domínio, e surgindofortemente marcada pelo princípio democrático.

As sucessivas revisões constitucionais e as alteraçõesna restante legislação financeira vieram consolidar as déiasplasmadas na versão original, bem como contribuir para acriação de um conceito constitucional de orçamento.40

4.1 A Constituição de 1911

O movimento republicano existente no nosso paísdesde 1820, coadjuvado pelos acontecimentos de finais doséc. XIX (revolução francesa, e posterior queda do Impé-rio francês, a instauração da 1ª República em Espanha –em 1973 – e, entre outros, o Ultimatum Inglês de 1890),levam a uma crítica crescente ao regime monárquico, e àtentativa de instauração do regime republicano, que cul-minou com a revolução de 5 de Outubro de 1910.41

Proclamada a República, foi nomeado o Governoprovisório, que, um pouco à revelia das idéias inicialmentepreconizadas, concentrando poder político, até 19 de Junhode 1911, data em que reuniu pela primeira vez a Assem-bleia Nacional Constituinte. Durante esse lapso de tempoforam aprovados e publicados diversos e importantíssimosdiplomas legais, bem como foi eleita (por sufrágio secreto,facultativo e directo) a Assembleia Nacional Constituinte.42

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40 XAVIER, António Lobo, ob. cit., pp. 83 ss.41 Revolução esta liderada pelo Partido Republicano, apoiado

pela Maçonaria Portuguesa, e pela Carbonária Portuguesa. Para maioresesclarecimentos ver, CAETANO, Marcello, História breve das ConstituiçõesPortuguesas, 1971, 3ª ed., pp. 97 ss;

42 CAETANO, Marcello, ob. cit., p. 100.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 445

A Constituição viria a ser aprovada em 18 de Agostode 191143 (e publicada a 21), tendo por base as anterioresConstituições Portuguesas (em especial as de 1822 e 1838)bem como a Constituição Brasileira de 1891. No domí-nio económico, ou mais concretamente no que concerneao direito “constitucional orçamentário” a solução preco-nizada por este texto constitucional, levou a que o únicoautor que à época se pronunciou acerca da natureza jurí-dica do Orçamento o fizesse no sentido de que o mesmoseria um acto-condição. Armindo Monteiro distingue entreas receitas provenientes dos impostos, relativamente àsquais a nossa normatividade vigente consagra a regra daanualidade, e afirma que quanto a estas receitas o orça-mento é, de facto, um acto condição; quanto às restantesreceitas orçamentais, como tinham por base actos jurídicoscujos efeitos não se encontravam dependentes do Orça-mento, não tinha qualquer significação jurídica, apesar deser a lei orçamental a autorizar a sua cobrança.

Quanto às despesas, e se estas fossem emergentes dedívidas já nascidas anteriormente, os artos 18º, 42º e 104ºdo Regulamento de Contabilidade Pública de 31 deAgosto de 1881, bem como o art 26º/ 2 da Constituiçãode 1911 estabeleciam a necessidade da votação das mes-mas, sendo este acto condicionante da sua exequibilidade,mas como constituíam direitos subjectivos nascidos noperíodo anterior, o parlamento teria o dever de as votar.

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43 Apenas como nota de curiosidade de referir que, em 19 deJunho de 1911 foi eleita uma Comissão encarregada de elaborar oprojecto de constituição, tendo sido nomeado relator o deputadoSebastião Magalhães de Lima, revestindo o projecto uma clara ten-dência presidencialista. Em consequência da rejeição deste projecto,foi então elaborado um outro que veio dar origem à Constituição de1911, e que é até hoje o mais pequeno texto constitucional portu-guês, com apenas 87 artigos.

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Quanto às restantes despesas, e como relativamente a elasvigora a regra da anualidade, o orçamento reveste a natu-reza de um acto-condição para que as mesmas possam serefectuadas.

4.2 A Constituição de 1933

A ditadura militar instaurada em 1926, e em geral, aconsciência da necessidade urgente de uma reforma pro-funda dos hábitos políticos, bem como as sucessivas leisentão aprovadas, concomitantemente com o apoio popu-lar44, levam à necessidade e tentativa de reformulação dalei constitucional vigente. Em 8 de Julho de 1930 foiaprovado o Acto Colonial através do Decreto 18 570,que veio substituir o título V da Constituição, e que deve-ria incorporar esta aquando da sua reforma.45 A reformanão se fez esperar. Em 22 de Dezembro de 1931 foi criadoo Conselho Nacional, e não mais cessaram os esforçostendentes a tal desiderato46, mas só em 22 de fevereiro de1933 foi aprovado, pelo Decreto nº 22 241 o texto oficiale definitivo.47

No que concerne à matéria orçamental as alteraçõesforam profundas, pois se por um lado a lei de autorização

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44 As forças políticas que servem de base de sustentação ao regimeprovêm quer de facções monárquicas, quer de facções republicanas.

45 CAETANO, Marcello, ob. cit., p. 126.46 O primeiro projecto levado a discussão foi o do Prof. Oli-

veira Salazar, então Ministro das Finanças, em 5 de Maio de 1932.47 O texto incluía o Acto Colonial como previsto, e foi alvo

de diversas revisões (de 1933 a 1938 a Constituição foi, por diversasvezes emendada o que leva a uma republicação integral do texto em1938): em 1945, 1951, 1959 e 1971.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 447

de despesas e receitas compete à Assembleia Nacional48

(art.91º), a aprovação do Orçamento era efectuada pordecreto governamental49 no âmbito dos art.91º nº4 e 64º.

Em face disto, houve quem entendesse que a autori-zação concedida pela Assembleia Nacional ao Governoatravés da “Lei de Meios”, não era mais que um actomeramente político desprovido de quaisquer efeitos jurí-dicos, pois embora fosse uma lei em sentido formal,poderia não conter matéria legislativa.50 Em oposição aeste tipo de entendimento, levantaram-se vozes no sentidoda sua classificação como lei em sentido material, sendoarvorados argumentos como a competência legislativa daAssembleia Nacional neste domínio, a previsão de precei-tos jurídicos inovadores nomeadamente em matéria tribu-tária, o facto de revestir forma de lei51, e em relação àsreceitas tributárias, a Assembleia Nacional apenas autorizavaanualmente a sua cobrança, o papel da Lei de Meios erao da confirmação da eficácia das leis fiscais.52

Entendimentos foram posteriormente criticados; oprimeiro com base na previsão constitucional que exigia aforma de resolução para os actos de carácter eminente-

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48 A Assembleia Nacional limitava-se à enunciação dos princípiosgerais em matéria orçamental – RIBEIRO, J. J. Teixeira, “Os poderesOrçamentais da Assembleia Nacional”, in Boletim de Ciência Económi-cas, vol. XIV (1971), pp. 195 ss; ibidem, “Evolução do Direito Fi-nanceiro em Portugal (1974-1984)”, in Boletim de Ciências Económicas,vol. XVIII (1985), pp. 105 ss.

49 Decreto simples.50 CAETANO, Marcello, Manual de Ciência Política e Direito Cons-

titucional, 6ª ed, vol. II, Coimbra, 1972, p. 613.51 Pois em relação aos actos de conteúdo exclusivo ou maiorita-

riamente políticos a forma exigida pela Constituição de 1933 impu-nha a forma de resolução.

52 VELOSO, José António, “Natureza jurídica da Lei de Meios”,Sciencia Iuridica, tomo XVII, nº 90, pp. 178 ss.

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mente político, por outro lado, não podemos afirmar quepelo facto de a Lei de Meios conter normas inovadorasem matéria tributária esta é uma lei em sentido material,uma vez que esta não passa de uma autorização dada aoGoverno para cobrar as receitas e efectuar as despesas,não tendo, por si só, um conteúdo inovador, sendo neces-sário esse acto do governo para que pudesse ser eficaz.

A função da Lei de Meios, não era a de anualmentecriar os impostos, mas apenas repor em vigor (anualmente)as leis nessa matéria, conferindo-lhes eficácia e permitindodesse modo a sua cobrança;53 quanto ao decreto orçamen-tal do Governo entendia-se pacificamente que se tratavade um acto administrativo com conteúdo essencialmenteeconómico.54

4.3 A Constituição de 1976, e as revisões ocorridasem 1982, 1989, 1992, 1997 e 2001

Fruto da Revolução de 25 de Abril de 1974, a leifundamental não poderia deixar de reflectir as grandesmutações políticas ocorridas. A constituição que, desde aépoca liberal é vista como lei fundamental na organizaçãodo Estado, e definidora dos seus limites no que concerneà sua relação com os cidadãos55 , a constituição económicareveste particularidades.

Tomando como ponto de partida a versão origináriada CRP de 1976, a questão em análise colocava-se nos________________________

53 FRANCO, António L. de Sousa, ob. cit. (1996), vol. I, pp. 778 ss.54 VELOSO, José António, est. e loc. cit., pg. 188; FRANCO,

António L. de Sousa, ob. cit. vol. I, pp. 793-794.55 FRANCO, António L. de Sousa, “A Revisão da Constituição

Económica”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 42, Setembro--Dezembro (1982), p. 601.

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NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO 449

mesmos moldes da Constituição de 1933, pois tambémaqui havia que distinguir entre a aprovação da lei orça-mental que era competência da Assembleia da Repúblicanos termos do art.164º g)56, e o decreto-lei que aprovavao orçamento e o punha em execução que era da compe-tência do Governo – art. 202º b). Contudo esse era oúnico ponto de contacto entre ambas, pois apesar de oOrçamento ser elaborado pelo Governo de acordo com alei de autorização, a natureza e conteúdo da mesma pare-cem divergir. Enquanto que a lei da Assembleia Nacionalera uma simples lei de autorização das receitas e despesasapenas com o adminículo da fixação dos princípios emmatéria de despesas não previstas na leis preexistentes, alei da Assembleia da República constituía uma verdadeiralei do orçamento, ao discriminar os quantitativos das recei-tas e das despesas, estes por funções, por Ministérios epor Secretarias de Estado.

Ora, parece que não é pelo facto de a competêncianeste domínio por parte da Assembleia ser exercida sob aforma de lei, que tal é suficiente para que a mesma possaser qualificada como Lei em sentido material, até porquetal matéria não se encontra regulada no art.176º que con-tém as matérias da competência legislativa da AR, massim no art.174º que trata de actos eminentemente políti-cos. Nesta matéria estava vedada aos deputados a apresen-tação de prorpostas de Orçamento, não sendo tambémalvo de possível autorização legislativa ao Governo.

Contrariamente ao que acontecia na CRP de 1933,não cabe agora à AR votar anualmente os impostos nema sua cobrança, cabendo-lhe apenas competência no domí-nio da sua criação – art. 167º o).

Parece assim ser de concluir pela ideia de que a Leido orçamento não era mais que um acto meramente

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56 Revestindo forma de lei – cfr. Art.169º nº 2 CRP de 1976.

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político, embora sob a forma de lei, e que em articulaçãocom o Plano condicionava o exercício dos poderes daadministração estadual, e definia a sua forma de actuaçãodurante o ano económico.57

Também relativamente ao decreto-lei pelo qual oGoverno aprovava e punha em execução o Orçamento,se lhe negava a natureza de lei, uma vez que este careciade generalidade apesar de conter normas imperativas, deve-ria qualificar-se como acto administrativo, até porque estavaexcluído da necessidade de ratificação pela AR – art.172º.

Após as alterações constitucionais introduzidas pelaLei Constitucional 1/82 de 30 de Setembro ao art. 108ºda CRP de 1976, a iniciativa na elaboração deste passoua pertencer à esfera de competência do Governo, queapresenta uma proposta à votação da AR., levando a quemuitos autores defendam que a mesma é uma lei emsentido material.58 Perdeu-se assim o traço comum exis-tente entre a Constituição de 1933 e a de 1976 (emboraeste fosse meramente formal).

O texto Constitucional saído da revisão de 1982,marca a viragem ou o regresso à estrutura monista doOrçamento, desaparecendo o decreto-lei orçamental, e o

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57 Neste sentido ver, QUEIRÓ, Afonso, Lições de Direito Adminis-trativo, vol. I, Coimbra, 1976, p. 343; FRANCO, António L. de Sousa,Estudos sobre a Constituição, vol. III, Lisboa, 1979, p. 490, nota;TEIXEIRA, Braz, A Introdução ao Direito Financeiro, Lisboa, 1980, p. 62.

Defendiam a natureza de lei, MIRANDA, Jorge, Direito Constituci-onal – Aditamento sobre organização do poder político, Lisboa 1978, pp.167-168 e COSTA, J. M. Cardoso da, Sobre as Autorizações Legislativasda Lei do Orçamento, Coimbra, 1982.

58 COSTA, J. M. Cardoso da, est. cit., MONCADA, Luís S. Cabralde, Perspectivas do novo Direito Orçamental português, Coimbra 1984,pp. 57 ss, SOUSA, Marcelo Rebelo, in “Nos dez anos da Constitui-ção”, Lisboa, 1987, pp. 133 ss.

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orçamento da segurança social (aprovado por Decreto-lei),para se fundirem e dar origem ao designado Orçamentode Estado, procurando-se com esta redenominação tornarpatente a ampliação do seu conteúdo.59 As alterações60

eram de tal forma complexas que a nova disciplina apenasfoi utilizada a partir do Orçamento de Estado de 1983.

À modificação profunda acrescem outra menos rele-vantes e que levaram à constitucionalização de diversosaspectos do processo de preparação e elaboração do Orça-mento, de onde cumpre destacar o conteúdo do Relatórioa justificativo da proposta de lei apresentada pelo governoà Assembleia da República.

Ainda como decorrência destas alterações, exigia-seque a aprovação do Orçamento seja feita através de Lei(art. 168º al.p) – versão dada pela Lei Constitucionalnº 1/82 de 30 de Setembro, inserindo-se nos casos decompetência relativa da Assembleia da república, o quepotenciava a “Governamentalização” de todo o processo.Só com a revisão Constitucional operada pela Lei Consti-tucional 1/97 de 20 de Setembro, a situação se vem alte-rar, passando esta competência a pertencer ao âmbito dacompetência Absoluta da Assembleia da República.

De referir ainda que, desde a revisão de 1982, oOrçamento deixa de ser elaborado de harmonia com oPlano, para passar a ser elaborado tendo em conta asopções do plano. (cfr. art. 108º da CRP-76, ar. 108ºCRP-82, 105º – CRP 97 (onde a expressão “do planoanual” foi substituída por “em matéria de planeamento” e105º – CRP 2001).

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59 Para maiores explanações ver RIBEIRO, J. J. Teixeira, “As alte-rações à Constituição no domínio das Finanças Públicas”, Boletim deCiências Económicas, Vol. XXVI, pp. 241 ss.

60 FRANCO, António L. de Sousa, “A revisão da ConstituiçãoEconómica”, Revista da Ordem dos Advogados.

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Apenas umas palavras finais para referir que se temargumentado que aquando da votação das propostas doExecutivo, o Parlamento toma uma decisão com umconteúdo material indiscutível, definindo o quadro globalda política económico-financeira que deverá ser seguidanum determinado ano. Pode também argumentar-se quea articulação do Orçamento com o Plano, vem reforçaros argumentos no sentido da qualificação jurídica do pri-meiro como lei em sentido material.61

Após as revisões constitucionais de 1992 e 1997 e2001 este entendimento não foi alterado, uma vez que asmodificações não foram substancias, quer na vigência dalei de enquadramento orçamental aprovada pela Lei 6/91,quer actualmente coma Lei de enquadramento Orçamentalaprovada pela Lei 91/2001 de 20 de Agosto, conjunta-mente com algumas normas do Regulamento de Conta-bilidade Pública de 31 de Agosto de 1881.

Se podemos afirmar que o Orçamento é lei em sen-tido formal e é também exacto que a mesma contémdisposições que extravasam as mencionadas no art 12º daLei 91/2001 art.11º Lei 6/91).

Parece assim ser de suma importância a questão emanálise, até porque da sua classificação jurídica poderãoadvir diversas consequências práticas, nomeadamente aonível da responsabilidade dos agentes administrativos encar-regues de realizar a cobrança de receitas, ou de efectuaro pagamento das despesas. Contudo, uma análise maiscuidada do problema não poderá ser efecutada de “ânimoleve”, sendo remetida para um trabalho mais apro-fundado.

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61 MIRANDA, Jorge, Funções, órgãos e actos do Estado, Lisboa,1990, pp. 482 ss.

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Matilde Lavouras