boletim nº 15 junho de 2012
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Universidade de Brasília
Instituto de Relações Internacionais
Programa de Educação Tutorial
LARI
Laboratório de Análise em
Relações Internacionais
PET/REL
UnB
Boletim de Conjuntura nº 15
Junho de 2012
PET-REL
Análise de Conjuntura
Junho de 2012 2
Sumá rio
Introdução
3
O Laboratório de Análise das Relações Internacionais
3
A conjuntura internacional entre janeiro e junho de 2012
5
O caso da YPF: na onda das nacionalizações sul-americanas?
por Nuni Vieira Jorgensen
7
Irracionalidade econômica versus racionalidade política: uma
análise sobre as recentes nacionalizações na Argentina e
Bolívia
por Erlene Maria Coelho Avelino
10
O Fenômeno do Intermestics e a Conjuntura da Política
Externa Argentina
por Pedro Henrique de Souza Netto
13
Mali e o novo desenho africano: quem se importa?
por Rodrigo de Sousa Araújo
15
The many Sudans: war, ethnic nationalisms and citizenship
por Victória Monteiro da Silva Santos
17
Partnership Among Equals
por Stefanos G. C. Drakoulakis
20
Tradição, descontinuidade e o futuro da Coreia do Norte
por Patrícia Nabuco Martuscelli
23
Instabilidade e militarização crescentes na Ásia: mudanças e
continuidades na Coreia do Norte
por Lucas Santiago Brasileiro
26
Contatos
29
PET-REL
Análise de Conjuntura
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Introduçá o
Criado e implantado em 1979 pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), o
PET – então Programa Especial de
Treinamento e hoje Programa de
Educação Tutorial – é um Programa
acadêmico direcionado a alunos
regularmente matriculados em cursos de
graduação. Tais estudantes são
selecionados pelas instituições de ensino
superior de que participam e se
organizam em grupos, recebendo
orientação acadêmica de professores-
tutores.
O PET visa envolver os alunos
que dele participam num processo de
formação integral, propiciando-lhes
compreensão abrangente e aprofundada
de sua área de estudos. São objetivos
deste Programa: a melhoria do ensino de
graduação, a formação acadêmica ampla
do estudante, a interdisciplinaridade, a
atuação coletiva e o planejamento e a
execução, em grupos sob tutoria, de uma
gama diversificada de atividades
acadêmicas. Até o ano de 1999, o
Programa foi coordenado pela CAPES.
A partir de 31 de dezembro de 1999, o
PET teve sua gestão transferida para a
Secretaria de Educação Superior, ficando
sob a responsabilidade do Departamento
de Projetos Especiais de Modernização e
Qualificação do Ensino Superior.
Desde então, vem sendo
executado levando em conta as diretrizes
e os interesses acadêmicos das
universidades às quais se vincula, e que
passaram a ser responsáveis por sua
estruturação e coordenação.
O PET/REL – Programa de
Educação Tutorial em Relações
Internacionais – foi criado em 1993.
Inserido nos grupos PET da
Universidade de Brasília, orgulha-se por
seu pioneirismo em levar o campo de
estudos das relações internacionais para o
âmbito do Programa. O PET/REL hoje
conta com 14 alunos, que desenvolvem
atividades baseadas nas três funções
básicas da Universidade: ensino, pesquisa
e extensão.
O Láboráto rio de Aná lise dás Reláço es Internácionáis
No contexto do PET/REL, insere-se o
Laboratório de Análise de Relações
Internacionais (LARI), idealizado e
organizado desde 2005. Concebido como
atividade de pesquisa e extensão do
trabalho do grupo a toda comunidade
acadêmica, o LARI tem por objetivo
observar a conjuntura internacional e
produzir interpretações cientificamente
embasadas acerca da mesma.
O cerne das atividades do LARI
compõe-se de encontros mensais com
temas pré-definidos, nos quais os
participantes são encorajados a indicar
elementos de análise relevantes e a
identificar relações, explicações e
previsões relativas aos tópicos abordados,
num esforço concertado e organizado.
Após a discussão dos temas estabelecidos
nas reuniões mensais, os membros do
PET-REL
Análise de Conjuntura
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PET/REL produzem análises de
conjuntura, baseadas na premissa de que
o estudo e a aplicação de metodologia e
teoria científica permitem melhor
compreensão acerca do comportamento
dos atores internacionais.
O Laboratório de Análise de
Relações Internacionais, desde sua
concepção, constituiu-se num esforço
analítico que tem por meta capturar, de
forma clara e objetiva, os fatos da
conjuntura internacional que podem
engendrar-se com processos e dinâmicas
mais amplos das Relações Internacionais.
Para tanto, buscam-se usar mecanismos
que possibilitem o enquadramento dos
fatos nas dinâmicas e que favoreçam o
exercício intelectual de seleção dos temas
tratados e da produção de análises. Seu
intuito é eliminar arbitrariedade e
adquirir objetividade. Desse modo,
foram criados descritores para categorizar
os temas selecionados e direcionar o
exercício de produção das análises para
um foco mais acadêmico. Antes de expor
os instrumentos de classificação, vale
ressaltar que as categorias não se esgotam
em si mesmas, podendo ser atualizadas à
medida que houver necessidade de fazê-
lo. A tabela a seguir lista os seis
descritores idealizados pelo PET/REL
para classificação das análises de
conjuntura produzidas.
Descritor Definição
Escalada ou estabilização
de tensões e conflitos
Vinculado à variável de aumento ou contenção da
violência, enquadrando dinâmicas tais como conflitos
interestatais, guerras civis e crises humanitárias;
Construção de governança Desde a ótica multilateral, engloba processos
ligados a regimes internacionais e autoridade política para
gerenciar problemas e construir estabilidade no ambiente
internacional (no âmbito de ONU, OMC, organismos
regionais, G-8, etc.);
Exercício hegemônico ou
contestação anti-
hegemônica
Aplicação da capacidade hegemônica para induzir a
ordem internacional nos moldes e valores desejados, ou
movimentos inversos, de contestação dessa ordem e do
hegemon;
Integração Dinâmicas sistêmicas de desenvolvimento de laços
políticos, econômicos e sociais, que tenham por base
espaços interativos entre atores internacionais relevantes;
Transbordamento Processos de spillover, nos quais fenômenos
domésticos trazem repercussões para o âmbito regional ou
global: eleições, reivindicações por parte de grupos sociais,
etc.;
Mudanças e adaptações de
fluxos, padrões e
estruturas econômicas
Dinâmicas influenciadas pelo nível de liquidez da
economia ou capazes de causar modificações na liquidez,
tais como taxas de juros, taxas de câmbio e fluxos de
capitais.
PET-REL
Análise de Conjuntura
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A conjunturá internácionál entre jáneiro e junho de 2012
A conjuntura internacional dos últimos
seis meses é o foco das análises aqui
descritas. Em todo o mundo é perceptível
o constante rearranjo político,
econômico, social e humanitário, que é
traduzido em novas demandas e
interesses internacionais. Comparando o
presente boletim com seus antecessores,
observa-se tal continuação que, embora
com novos elementos e atores, ainda
representa o ciclo de crises e suas
repercussões em torno do cenário
internacional.
A renacionalizarão da empresa
petrolífera Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) pela presidente da
Argentina, Cristina Kirchner, em abril de
2012, surge como agente de combustão
para debates na América Latina acerca
das políticas econômicas recentemente
adotadas na região. Com isso, a agenda
internacional é diretamente influenciada
por inquietações sobre a eficácia de
intervenções estatais na dinâmica
econômica internacional, representada
não somente na Argentina, mas, também,
em alguns de seus vizinhos e parceiros
estratégicos, como Venezuela e Bolívia
pela estatização de mercados-chave.
Ainda no cone latino-americano,
a prospecção do Brasil na tela
internacional assume cada vez mais
importância, o que é reforçado pela VI
Cúpula das Américas, acompanhada das
visitas de Dilma Rousseff e Barack
Obama nos Estados Unidos e no Brasil.
A diplomacia brasileira tem atraído
holofotes em razão de seu lançamento
pragmático e, ao mesmo tempo, incisivo
no contexto internacional; porém, tal
status trouxe consigo ponderações acerca
da real posição do Brasil no jogo de
poder internacional, dadas interpretações
sobre as intenções do país.
No bloco africano, são
contrastados dois fenômenos que,
embora semelhantes em estrutura básica,
obtiveram resultados completamente
diferentes. O golpe de Estados anunciado
em março na República de Mali tornou
independente da região de Azawad, no
norte do país. Entretanto, a ruptura de
Mali com aquela região ganhou destaque
pouco gritante na comunidade
internacional em geral, apesar de apelos
remotos por parte de certos atores, que
urgem pela importância da estabilização
democrática no país e chamam atenção
para uma potencial crise humanitária no
país.
Por outro lado, a nova conjuntura
regional africana é colocada em primeira
perspectiva com relação ao Sudão e ao
recente Sudão do Sul, já reconhecido
internacionalmente por diversos países e
organizações. Não obstante, perpetuam-
se silêncios entre as regiões que
transcendem questões de identidade
nacional. Com eles, a sociedade
internacional vê-se então na
responsabilidade de observar e, acima de
tudo, guiar a proteção internacional dos
direitos e da segurança de civis na região,
vítimas da crise que se iniciou ainda em
2011.
Já Coreia do Norte mantém-se
como objeto constante de análises
referentes à Ásia. Desta vez, a morte do
ditador Kim Jong-il e a ascensão de seu
filho ao poder, Kim Jong-un, trazem
novas aflições à comunidade
internacional quanto ao futuro daquela.
Novas atividades nucleares alinhadas à
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Análise de Conjuntura
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ainda incógnita das diretrizes políticas do
novo ditador são lidas com preocupação,
colocando em xeque a segurança
internacional.
Em geral, o contexto internacional
em recorte tem-se caracterizado por
múltiplas fontes para crises, desde jogos
econômicos e políticos até rupturas na
segurança internacional representam a
instabilidade no cenário internacional,
pontuada nas análises de conjuntura que
se seguem.
PET-REL
Análise de Conjuntura
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O cáso dá YPF: ná ondá dás nácionálizáço es sul-ámericánás?
por Nuni Vieira Jorgensen
A nacionalização da empresa de
Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF),
que causou grande repercussão ao redor
do mundo não é um fenômeno isolado.
Ela faz parte de uma cadeia de medidas
que visam recuperar uma fração da
autonomia estatal perdida durante os
anos do auge do paradigma das reformas
para o mercado, do governo Menem.
Entre suas semelhantes estão a
estatização dos fundos de pensão, das
Aerolíneas Argentinas, das
telecomunicações e das empresas de
distribuição de água ao longo das
administrações Kirchner.
O caso da empresa de petróleo
vem, no entanto, na sequência de outras
reformas latino-americanas levadas à cabo
por outros Estados, inclusive nas últimas
semanas, como é o exemplo da Bolívia.
Esta, bem como países como Venezuela
e Equador que também na década de 90
tiveram seus hidrocarbonetos explorados
por multinacionais, estatizaram não só
esse setor, como também outras
dimensões chave da economia, tais como
as de telecomunicações e eletrecidade. A
pergunta que se coloca, portanto, é de até
que ponto seria pertinente incluir o caso
da YPF em um contexto mais amplo de
nacionalizações na América do Sul.
Em um primeiro plano é
necessário colocar a aparente falência do
modelo de reformas para o mercado.
Mesmo países como o Brasil, que as
levaram à cabo em uma proporção muito
menor do que a República Argentina,
defendem hoje um paradigma de
economia mista. Nesse caso, setores
estratégicos da economia seriam públicos
ao menos em parte enquanto outros
permaneceriam regidos por
multinacionais. Grande parte desse
movimento está relacionado às próprias
preocupações de segurança energética
que hoje permeiam as políticas de estado
de todos os países. Os governos precisam
ter nas mãos as rédeas da produção de
energia se não querem ver aumentada sua
vulnerabilidade perante as outras nações.
Parece, entretanto, que esse
movimento único com relação à falência
do paradigma das reformas para o
mercado é contornado por diversos
matizes. Como defendem muitos
neoinstitucionalistas, cada Estado deverá
buscar a combinação mais adequada para
seus respectivos contextos políticos,
econômicos e sociais. Entretanto, alguns
estudos, como o do Banco Mundial,
pretendem dar contornos
homogeneizantes a esses processos:
segundo eles as estatizações tenderiam a
ocorrer em países com instituições
públicas deficientes, onde a recisão dos
contratos tem custo mínimo; e naqueles
com baixo nível educacional e economia
pouco diversificada.(CHANG, Roberto;
HEVIA, Constantino; LOAYZA,
Norman. “Privatization and
Nationalization Cycles” (Banco Mundial,
n.5029).
Analisando o argumento para o
caso bolivariano, percebemos que as
recentes estatizações claramente se
enquadram nesse modelo. Em primeiro
lugar, estes são Estados com um modelo
de internacionalização abertamente anti-
hegemônico – a ALBA, em seus
príncipios constituintes se coloca
categoricamente contra o modelo
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Análise de Conjuntura
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neoliberal de organização. Os seus
respectivos riscos-países sempre
tenderam, além disso, a permanecer altos
e a própria política governamental não
parece tentar evitar essa classificação.
Em segundo lugar, Venezuela,
Bolívia e Equador também apresentam
baixa diversificação da economia, embora
haja esforços recentes no sentido de
transformar essa situação. Na Venezuela
e no Equador a maior parte das
exportações ainda é de petróleo,
enquanto na Bolívia 30% destas são
formadas pelos hidrocarbonetos. A
estatização se coloca para esses países,
portanto, como uma prioridade
governamental, dando para os Estado o
controle dos setores sustentadores de sua
economia.
É importante colocar que no caso
da Bolívia, Equador e Venezuela, a
estatização tem como discurso principal a
recuperação dos recursos naturais, além
de pretende abarcar diversos setores da
economia. Na Venezuela, por exemplo,
essas medidas atingiram o setor de
minério, de petróleo, portos, aeroportos,
siderúrgicas, meios de comunicação e
bancos. Na Bolívia, o presidente Evo
Morales estatizou setores de energia
elétrica, petróleo, gás, serviços de
abastecimento de água, indústria
metalúrgica e telecomunicações. Em
menor proporção, Rafael Correa também
estatizou o setor petrolífero e aumentou a
presença estatal na economia.
A Argentina, por outro lado,
parece possuir um perfil bastante
diferente. Apesar do que se diz sobre a
pouca credibilidade argentina com
relação aos investidores internacionais
como consequência do calote da dívida
externa, é bom ter em mente que o seu
risco país antes da nacionalização era
semelhante ao do Brasil, o que põe em
dúvida que o país não tivesse nada a
perder com a estatização.
Em terceiro lugar, seria exagero
afirmar que o país vizinho tenha uma
economia pouco diversificada. A
Argentina produz tanto uma grande
variedade de bens agrícolas quanto
industrializados. Apesar do petróleo,
dessa forma, ser um setor estratégico para
a Argentina, tanto quanto para qualquer
país do mundo, não se poderia afirmar
que sua economia depende
majoritariamente desse hidrocarboneto,
como acontece nos países da ALBA.
Finalmente, seria premeditado
dizer que a Argentina possui um projeto
de inserção internacional anti-
hegemônico, como a Venezuela e a
Bolívia por exemplo. Poder-se-ia
argumentar, de outra maneira, que
semelhantemente ao Brasil, a Argentina
almeja um modelo de economia mista,
na qual setores privatizados conviverão
com ramos, geralmente estratégicos da
economia, nacionalizados. A estatização
da YPF se configuraria, nesse sentido,
como uma maneira de retomar parte da
autonomia perdida durante os anos 90 e
não um processo de estatização
generalizado.
Um indício dessa tendência é que
o governo Argentino já pediu pelo
aumento dos investimentos da Petrobrás,
da Total, da Chevron, Apache, Exxon e
Sinopec. O seu objetivo, portanto, é
realizar uma joint venture entre empresas
nacionais e estrangeiras que queiram
investir no setor de petróleo do país. A
intenção, dessa forma, não é financiar
todos os investimentos com o dinheiro
do Estado e, muito menos, abrir mão da
parceria privada. O próprio ministro
espanhol de Relações Exteriores ilustra
bem esse fato – segundo ele: “nesse caso,
teríamos sido expropriados para sermos
substituídos por outro parceiro privado”.
Assim, o que à primeira vista
poderia parecer um nonsense ilustra bem
o fato de que a estatização da YPF, em si
mesma, não faz parte de um plano
PET-REL
Análise de Conjuntura
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francamente anti-neoliberal. Ela tem
como objetivo principal excluir do
controle da exploração de um recurso
estratégico uma empresa claramente
ineficiente que se aproveita do
monopólio e de práticas cartelísticas para
atuar – ou seja, que é rent-seeking.
Obviamente, não se pode dizer
que a demanda de nacionalização nesse
caso não é importante. Querer que os
lucros da exploração de um produto
nacional sejam reivestidos no próprio
país ao invés de remetidos em sua maior
parte ao exterior seria, no mínimo,
bastante razoável – ainda mais quando o
argumento de maior eficiência da
inciativa privada não vem sendo
cumprido. A Argentina, que antes
possuia praticamente auto-suficiência
energética, se via agora obrigada a
importar a maior parte do seu petróleo –
a dívida subia a velocidades assustadoras
e indícios mostram que a empresa pouco
fazia no sentido de prestar contas
públicas de suas atividades.
O que se defende aqui, no
entanto, é que, ao contrário das
nacionalizações dos países da ALBA, a
expropriação da Repsol não faz parte de
um programa abertamente contra-
sistêmico como a imprensa e a
reclamações dos países hegemônicos às
vezes fazem parecer. Ao contrário parece
ir em uma direção mais à brasileira,
necessitando para isso, entretanto, tomar
medidas muito mais drásticas, tendo em
vista o seu passado de total venda do
setor público à iniciativa privada – o que
no nosso caso não teve as mesmas
proporções.
As repercussões nesse caso não
são ainda claras, mas tendo em vista o seu
caráter não tão revolucionário, devem ser
menores do que esperava-se logo após o
ocorrido. Para o Brasil, a Argentina já
assegurou os interesses do Petrobrás e,
inclusive, pediu a participação mais ativa
da empresa. Tais garantias tendem a
diminuir o risco do processo ao longo do
tempo tornando o país provavelmente
mais receptivo aos investidores
internacionais.
Dessa forma, pode-se dizer que as
nacionalizações latino-americanas não
compartilham necessariamente todas as
características. De modos diferentes,
entretanto, seja por meio de um plano
alter-mundialista ou de uma contestação
equilibrada, todos esses Estados tentam
agora retomar a autonomia perdida
durante a década de 90. De uma maneira
ou de outra parece, assim, que as
reformas para o mercado de 20 anos
atrás vem sendo revertidas seja em rumo
a uma economia mista seja a um modelo
amplamente estatizante.
PET-REL
Análise de Conjuntura
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Irrácionálidáde econo micá versus rácionálidáde polí ticá: umá áná lise sobre ás recentes nácionálizáço es ná Argentiná e Bolí viá
por Erlene Maria Coelho Avelino
Considerando a existência das falhas de mercado, o Estado pode intervir na economia de
forma a minimizar tais falhas e assim, obter um
resultado mais favorável em termos sociais do
que aquele alcançado por agentes econômicos
independentes. No entanto, definir que o Estado
pode melhorar os resultados de mercado não é
equivalente a dizer que ele irá fazê-lo, pois de
maneira análoga às falhas de mercado, o Estado
possui suas próprias limitações que são
chamadas na literatura política de falhas de governo. No mercado político tal como no
mercado privado, os indivíduos podem se
comportar de maneira auto-interessada,
especialmente quando visam à conquista de
votos. Dessa forma, constantemente observamos
agentes públicos utilizando a política econômica
em proveito próprio, o que gera desvios em
relação ao que seria considerada uma conduta
ideal de Estado. Os últimos acontecimentos na
Argentina e na Bolívia exemplificam esse tipo de
comportamento.
Em meados de abril, a presidente
argentina, Cristina Kirchner, decretou a
renacionalização da empresa YPF (Yacimientos
Petrolíferos Fiscales), que era controlada pela
empresa espanhola Repsol desde 1999. A
presidente justificou a decisão diante da queda na
produtividade da petroleira, no aumento inédito
das importações de combustíveis e no fato do
país ser um dos poucos no mundo que não tem
o controle deste setor, ou seja, a decisão foi
apresentada a população como uma operação
de soberania energética, do tipo “o petróleo é
nosso”. Depois da Argentina, foi a vez da Bolívia
anunciar a expropriação de outra empresa. Neste
1° de maio, o presidente boliviano, Evo Morales,
deu sequência a uma tradição do seu governo no
dia do trabalhador e estatizou a Transportadora
de Eletricidade (TDE), afetando também a uma
empresa espanhola, agora a REE (Red Eléctrica
Española). O pretexto da falta de investimentos
foi o mesmo usado semanas antes pela
Argentina.
A proximidade entre os dois casos levou
a reações temerosas no mercado internacional
quanto a um risco de uma onda estatizante na
América do Sul. Entretanto, se tratam de casos
isolados, pois não se observa um movimento de
nacionalizações nos países sul-americanos que
leve a um efeito dominó na região. Cada governo
tem sua motivação particular para essa tomada
de decisão, não sendo ações coordenadas ou
influenciadas. Isso não quer dizer que não há
qualquer correspondência entre as expropriações
na Argentina e Bolívia, pois há uma forte
correlação em uma matriz ideológica nacional
populista.
Apesar das justificativas dadas pelos dois
presidentes, observa-se uma falta de
embasamento técnico-econômico nas propostas
de retomada dos ativos econômicos estratégicos.
De fato, os governos são autônomos e podem
optar por administrar novamente um bem
privatizado. Contudo, há várias formas de fazer
isso. Considerando que existem setores
econômicos que são monopólios naturais, como
o de energia, no qual processo produtivo
caracteriza-se pelos retornos crescentes de escala,
nesses setores é mais vantajoso ter apenas uma
empresa produtora do bem. Por isso, é
necessário que o Estado intervenha para que os
preços não sejam abusivos. Nesses casos, a
intervenção do governo pode tomar duas
formas: a regulação ou a produção do bem.
Argentina e Bolívia estão decidindo pela segunda
forma porque as empresas não estavam
investindo o suficiente, só que eles poderiam ter
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considerado a primeira alternativa e exercido
melhor seu poder de regular.
Partindo de uma perspectiva histórica, a
intervenção estatal tem um caráter cíclico sempre
em transformação, ou seja, ela expande-se e
contrai-se ciclicamente, e a cada novo ciclo o
modo de intervenção modifica, devendo ser
aplicados novos modelos. Dessa forma, há
muitas formas de intervir no tabuleiro
econômico e tanto a Argentina como a Bolívia
optaram por um caminho circunstancialmente
indevido, pois as colocaram em choque com
outros países e quebraram a confiança de
investidores. Cristina Kirchner chegou a alegar o
desejo de se equivaler a países como o Brasil que
tem 51% da Petrobrás e, sendo assim, é legítimo
um país querer tirar proveito de seus ativos
econômicos naturais, especialmente um país
com as condições econômicas da Argentina.
Porém, se a soberania sobre o petróleo era o
maior objetivo, os argentinos poderiam ter
comprado a empresa novamente de forma
negociada com seus investidores. Da mesma
forma a Bolívia não precisava do espetáculo de
usar as Forças Armadas para ocupar a empresa
expropriada. Percebe-se então que não houve
uma racionalidade político-econômica
consistente nesses governos, ambos prefeririam
rasgar contratos e quebrar importantes regras do
comércio internacional em prol de um
verdadeiro exibicionismo político.
Isso nos leva a crer que a justificativa
para tais ações foram mais políticas do que
econômicas e o contexto político e econômico
desses países pode demonstrar isso melhor.
Argentina e Bolívia já tem um histórico de
dominância de racionalidade política de curto
prazo em detrimento de uma racionalidade
econômica. Os dois países vem expropriando
várias empresas nos últimos tempos e
instaurando crises diplomáticas que afetam suas
economias. Na Argentina, tem-se uma situação
de índices inflacionários de 24% ao ano,
desemprego próximo dos 7%, uso das reservas
cambiais para fazer pagamentos pontuais
arbitrariamente, restrição a importação de
inúmeros produtos e forte desaceleração
econômica. Tudo isso veio juntamente com uma
queda na popularidade de Cristina Kirchner, sua
taxa de aprovação caiu de 70%, em dezembro,
para 50%, em abril. Nesse sentido, a luta pela
soberania sobre o petróleo e a tentativa de
redespertar movimentos nacionalistas com a
abertura do caso Malvinas parece indicar que a
Argentina evoca questões de soberania para tirar
do foco esses problemas econômicos. Não
demorou muito para a popularidade da senhora
Kirchner subir, por meio de um discurso
peronista, bem ao estilo anos 50, atrelado a uma
estratégia política de longo prazo que passa pelo
fortalecimento do seu grupo político dentro do
peronismo é que a presidente conquista o apoio
popular, inclusive da oposição.
Já na Bolívia, o presidente Evo Morales
busca a reeleição para um terceiro mandato
consecutivo em 2014. O contexto econômico
boliviano é de grande crescimento da economia
informal. Além disso, em março, o país foi
cenário de 123 conflitos sociais, em sua grande
maioria, protagonizados por setores da classe
média e baixa que demandam melhoras salariais
e de qualidade de vida. Um dos grupos mais
combativos é o de médicos que estão parados há
quase dois meses. É com esse pano de fundo
que Morales busca elevar sua popularidade, mas
as últimas medidas para elevar seu apoio popular
não foram tão eficazes para ele quanto foram
para Cristina.
Com isso, percebe-se que Argentina e
Bolívia apelam a sentimentos nacionalistas para
recuperar parte do respaldo perdido e para não
trazer à tona seus vazamentos econômicos,
chegam até a limitar o acesso do cidadão a
informação. Para exemplificar esse último fato é
só comparar as informações sobre a economia
divulgadas pelos governos com os resultados de
uma análise econômica paralela mais
aprofundada. Os dados inflacionários publicados
pelo governo argentino não são confiáveis, eles
indicam uma inflação entre 5% e 11% ao ano,
mas outros estudos dobram as taxas oficiais.
Economistas argentinos independentes foram
obrigados a parar de publicar suas próprias
estimativas, sem contar com a relação nada
amigável que a presidente tem com a imprensa.
Apesar de dados indicarem que a economia
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boliviana cresceu 5% nos últimos anos e a
inflação está entre 6% e 7%, há uma economia
informal que envolve 85% dos trabalhadores,
falta de industrialização e diversificação da
indústria e total dependência das exportações de
gás, minério e soja, o que torna o país vulnerável
às oscilações dos preços internacionais. A partir
disso, compreende-se o apoio das massas a
medidas nacionalistas. Devido a problemas de
informação e vieses de percepção tem-se que
nem sempre, o que o eleitor mediano deseja é
compatível com o bem estar agregado da
sociedade. Por isso, pode-se pensar nesses
governos agindo para implementar aquelas
políticas que maximizem os seus votos, fazendo,
efetivamente, o que quer a maioria dos eleitores.
Em última análise, observa-se que o que
esses governos fizeram não foi uma loucura. De
um ponto de vista político, há um método, uma
lógica dos ganhos políticos táticos de curto prazo.
Ao mesmo tempo em que há uma
irracionalidade econômica há uma racionalidade
política. Portanto, as recentes expropriações na
Argentina e Bolívia se inserem em uma análise
das típicas falhas de governo, só que não se pode
esquecer que após o início da crise econômica
houve uma grande abertura para ideias
intervencionistas, ocorrendo uma legitimação
destas do ponto de vista ideológico, inclusive na
Europa e Estados Unidos. Assim, tem-se que a
atuação do governo é solicitada e essencial no
controle do mercado, mas da mesma forma que
é preciso tratar dos fracassos do mercado, deve-
se lembrar que há os fracassos do governo,
porque as instituições públicas também são
imperfeitas, sendo completamente influenciadas
pelo jogo político. Não se deve por isso, abdicar
da presença do Estado nem reduzir sua atuação,
mas sim desvendar qual a melhor maneira do
governo intervir no mercado sem gerar grandes
distúrbios ou introduzir novos problemas.
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O Feno meno do Intermestics e á Conjunturá dá Polí ticá Externá Argentiná
por Pedro Henrique de Souza Netto
Com a aproximação do dia 2 de abril de
2012, quando se completou o 30º
aniversário da Guerra das Malvinas,
notou-se grande movimentação
diplomática por parte da República
Argentina a fim de novamente inserir o
tema na agenda internacional. No dia 17
do mesmo mês, a presidência daquele
país decretou a nacionalização da
petrolífera YPF, então subsidiária da
espanhola Repsol, medida que veio a ser,
em seguida, aprovada pelo parlamento.
Tais ações coincidem com um
crescimento da pressão inflacionária
naquela nação, que ainda se lembra
amargamente dos episódios ocorridos em
2001. Essa situação remete a um
recorrente fenômeno em nações do
Oriente Médio: o intermestics (KORANY, 2008).
Observando as diversas realidades
presentes em nações do Oriente Médio e
Norte da África, o egípcio Bahgat Korany
cunhou o termo intermestics. O
professor define o neologismo como um
conceito que “denota a próxima
interconexão e sobreposição entre as
dimensões internacional e doméstica de
processos e interações sociopolíticos. […]
É, assim, o reflexo da globalização,
caracterizada pela retração do Estado [...]
e ascensão de intensas interconexões
sociais e rápida circulação de ideias”
Dessa forma, o autor define um
fenômeno que pode ser observado não
apenas em seu campo de estudos
original, mas também na atual Argentina.
O processo de globalização
destacado pelo professor Korany pode
claramente ser notado, por exemplo, no
Egito em 2011, na Grécia em 2008, e na
Argentina em 2001. Vinda de um
período de estagnação econômica e
encorajada por medidas do Fundo
Monetário Internacional, a República
Argentina tomou diversas medidas
liberalizantes em sua economia na década
de 1990. Tais medidas, que consistiram,
por exemplo, na privatização da
petrolífera YPF, e na adoção da plena
conversibilidade do Peso em Dólar norte
americano a uma paridade fixa,
significaram a renúncia de soberania e
poder estatais sobre a economia, na
medida em que o poder decisório
relativo a um setor estratégico foi
transferido a agentes externos e se abriu
mão da política monetária. Isso, contudo,
não foi capaz de manter uma longa era de
crescimento econômico no país austral,
levando a uma grave crise institucional e
econômica que atingiu seu ápice em
dezembro de 2001, quando o governo
declarou a maior moratória de dívida
soberana do mundo até então.
Desde a moratória declarada em
2001, é notável o interesse dos governos
argentinos em, reagindo ao processo
desencadeado pela globalização,
reafirmar sua soberania adotando
políticas que muitas vezes unem as
dimensões doméstica e internacional.
Uma possível interpretação para esse
movimento seria que, com a perda da
soberania estatal, o chefe de estado
perderia também seu poder,
contrariando o animus dominandi (desejo natural de todo ser humano pelo
poder) proposto por Morgenthau.
PET-REL
Análise de Conjuntura
Junho de 2012 14
De qualquer forma, seguindo a
política de fortalecimento da soberania
nacional, os últimos governos argentinos,
lançando mão de um discurso
nacionalista, tomaram diversas medidas
internas que afetaram também a política
externa da república. A recente “batalha”
pelas Ilhas Malvinas gerou certo mal estar
no ambiente internacional, chegando a
nação sul-americana, inclusive, a
apresentar sua reclamação de soberania
perante a ONU. Apesar dessa situação e
do consequente enfraquecimento das
relações entre Argentina e Reino Unido,
entretanto, as movimentações
diplomáticas da nação austral obtiveram
maciço apoio popular doméstico. Outra
medida argentina, ainda mais
característica do intermestics, foi a
recente nacionalização da YPF. A ação,
considerada pelo governo brasileiro
como uma “questão interna” daquele
país, apresentou claramente grande
reação internacional, e, segundo certos
governos, contrariou diversos acordos
internacionais, entre tratados bilaterais
entre Argentina e Espanha e demais
compromissos internacionais. Enquanto
o México (acionista minoritário da
Repsol) acusou a Republica Argentina de
contrariar tais tratados, a Espanha
declarou que prestaria uma queixa contra
a nação sul-americana junto à
Organização Mundial do Comércio. A
União Europeia e os Estados Unidos da
América posicionaram-se também
contrários à nacionalização da companhia
petrolífera, afirmando que tal medida
poderá influenciar negativamente os
investimentos estrangeiros na nação
portenha. Domesticamente, entretanto, a
medida também encontrou grande apoio
em numerosos setores da sociedade.
Em suma, pode-se constatar que,
no caso argentino, o governo, reagindo ao
já registrado enfraquecimento de
soberania nacional causado, em última
instância, pela globalização, toma
medidas que mesclam políticas
internacionais e domésticas, contando
sempre com o apoio de amplos setores
da sociedade. É relevante destacar,
contudo, que a questão não se restringe à
Argentina, já que existem evidências de
que o fenômeno esteja se manifestando
também na Bolívia, sem que se esqueça
da Venezuela. Assim, nota-se que, a
despeito de ser inicialmente observado
no Oriente Médio, é possível constatar
que a ocorrência do intermestics ultrapassa as fronteiras daquela região,
tornando o neologismo ainda mais
abrangente e relevante aos estudiosos das
Relações Internacionais.
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 15
Máli e o novo desenho áfricáno: quem se importá?
por Rodrigo de Sousa Araújo
“Nulo e sem força legal”. Com essas
palavras a ECOWAS – Comunidade
Econômica para os Estados Africanos
Ocidentais – define o golpe militar de
Estado ocorrido na República de Mali
em 22 de março de 2012. Sob o
comando do Capitão Amadou Sanogo,
líder do Comitê Nacional de Restauração
da Democracia e do Estado (CNRDR), o
Movimento Nacional de Libertação de
Azawad (MNLA) declara de forma
unilateral a independência da região
norte de Mali, Azawad, acompanhada da
queda do então presidente maliano
Toumani Touré.
As linhas mestras do movimento
independentista foram planejadas por
insurgentes do povo Tuaregue,
tipicamente nômade e que habita além
do norte do país, grande parte da Argélia,
Líbia, Niger e Burkina Faso, todas ex-
colônias francesas. O objetivo dos
revoltosos era não somente tornar
independente Azawad, mas criar um
novo Estado formado também por
tuaregues daqueles outros países.
Entretanto, estranha-se o fato de
que pouca atenção vem sendo
direcionada ao novo cenário maliano, por
vezes reconhecido como um dos regimes
políticos mais estáveis da África, em
níveis comparados aos da região. Tal
silêncio não se refere somente à
comunidade internacional política como
um todo, mas principalmente por parte
da mídia, crucial na formação de opinião
pública transnacional. Desta forma, torna-
se necessário levantar a resposta chave
para a região.
Primeiramente, sublinham-se
questionamentos quanto à aceitação
legítima do novo Estado de Azawad. Em
primeiro nível, é difícil alcançar uma
coerência interna ainda na própria região,
já que sua população é composta
principalmente por tuaregues, mas não
em maioria absoluta. Assim, as
disparidades de preferência entre o
pastoril nômade, característica principal
daqueles tuaregues, e aqueles que vivem
da agricultura fixa na região, dependendo
de forma direta do controle ou, ao
menos, apoio de um governo estável. A
nova dinâmica, imprevisível, ilegítima e
“crua”, coloca em xeque a durabilidade
de aceitação da própria população
habitante da parte norte de Mali.
Ainda, o aspecto da ilegitimidade
parte do plano interno e econômico para
o internacional e político. Passados dois
meses do golpe proferido, é irrefutável a
não aceitação da separação de Mali e
Azawad pela comunidade internacional.
Para tanto, ainda são mantidas políticas
de embargo e isolamento diplomático
por parte de países próximos, como
Guiné-Bissau. O Conselho de Segurança
das Nações Unidas continua a reiterar o
não reconhecimento do novo Estado,
assim como a União Africana e o
ECOWAS, como acima mencionado.
Potências internacionais e regionais,
como Estados Unidos, África do Sul e a
Liga Árabe em geram também expressam
repúdio à nova divisão.
Estranha-se também o relativo
silêncio do governo brasileiro com
relação ao novo panorama observado no
norte africano. O Ministro das Relações
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 16
Exteriores, Antonio Patriota, resumiu-se
a manifestar apoio, caso necessário, às
atividades da União Africana no intuito
de restaurar a ordem constitucional e a
democracia no país por meio da
moderação e do repúdio à força. A
mesma indiferença foi tomada por
Burkina Faso, Chad e Benin, que juntos
e Mali e apoiados pelo Brasil formam o
Cotton-4 (C-4), recente programa de
apoio ao desenvolvimento do setor
cotonícola nestes países, com o objetivo
de enfrentar os subsídios dos Estados
Unidos e da União Europeia a seus
produtores, considerados “injustos” pelos
membros do C-4.
O cenário mostrado ilustra o
problema genérico causado pelo golpe de
Estado maliano; entretanto, pouco se
lembra de que o desafio maior paira
justamente na resposta internacional à
situação. A Human Rights Watch assinala
que ambas as regiões caminham para
uma nova crise humanitária, em
consequência da falta de suprimentos
alimentares, somada aos altos índices de
violência no país. A imposição de
embargo e o corte de fornecimentos
básicos ao país contribuíram não para
estabilizar politicamente o país, mas, sim,
para acentuar o caos humanitário no país.
Como esperado, o número de refugiados
malianos para a Argélia aumentou em
níveis preocupantes, como constam
relatórios do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR). Tal situação recoloca em tela
a “Primeira Revolução Tuaregue”, entre
os anos de 1962 e 1964, a qual se
traduziu na fuga de milhares de malianos.
Num cenário no qual cálculos de
ganho neutros sobressarem a cultura de
segurança humana, a prospecção mais
viável é a de uma negociação bilateral
para a reintegração da região de Azawad
no sistema de Mali, assim como antes.
Devido à relutância em reconhecimento
e às sansões transnacionais e, ao mesmo
tempo, a indiferença internacional
imposta, as chances de uma manutenção
do novo status quo na região são
improváveis. A falta de comércio
internacional, instituições políticas e,
ainda, apoio consensual da própria
população traduzem-se em
reversibilidade da dinâmica atual. Assim,
acredita-se que o próprio curso dos fatos
responsabiliza-se por reunificar a região.
Por outro lado, teme-se que tal rearranjo
ocorra de forma tardia e, ainda, violenta.
Desta maneira, a divisão de Mali não
resultará tão cedo em uma remodelação
do continente africano, adicionando em
sua geografia mais um Estado. Contudo,
deve-se sublinhar que a instabilidade dos
interesses políticos é tão incerta quanto o
futuro maliano, podendo assumir novas
rotas de forma repentina e
incompreensível.
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 17
The mány Sudáns: wár, ethnic nátionálisms ánd citizenship
por Victória Monteiro da Silva Santos
Over six hundred ethnicities and
sub-ethnicities. More than a hundred
languages and dialects. That is the
miscellaneous which composes the two
countries we now call Sudan and South
Sudan. Even after Sudanese
independence from the Anglo-Egyptian
domination in 1956, the history of former
Sudan has been marked by more or less
violent attempts of cultural imposition
and assimilation, leading to an untenable
situation. Since 2011, the referendum in
South Sudan and the establishment of the
new state, followed by its international
reconnaissance, contributed to
multiplying hopes around the future of
the countries. However, recent violent
developments between the two states, as
well as the continuing crisis in other
Sudanese regions such as South
Kordofan, demonstrate that the problems
in the region are far from solved.
As mentioned, the state of Sudan
has become independent from Great
Britain and Egypt in 1956. The newly
constituted central Sudanese state has
then established the Arab as official
language in the country, and the Islam as
official religion. Less than a decade later,
in 1964, riots have gained dimension at
the “October Revolution”. At the
revolution, demonstrators protested
against the process of forced Islamization
of regions where other beliefs, such as
Christianity and Animism, prevailed. The
next decades have been marked by claims
of various Sudanese regions for more
autonomy and for a more fair distribution
of national resources. The oppression of
the central government on other regions
has fueled the ascension of the Sudan
People‟s Liberation Movement/Army
(SPLM/A), since 1983. SPLM/A has
played a major role in South Sudanese
independence and in its current politics,
and continues to pressure the Sudanese
state in certain regions, such as South
Kordofan.
One of the Sudanese regions
claiming for autonomy was Darfur, in
Western Sudan, where Omar al-Bashir‟s
government has been accused of
negligence and of financing the Janjaweed militias to systematically murder the
Darfuri population. Al-Bashir‟s
condemnation by the International
Criminal Court (ICC) in 2005 has
contributed to bringing international
attention to the region. However, the
impunity in the case – as al-Bashir not
only walks freely but continues to be the
president of Sudan – compromises the
role of the ICC in bringing hope and
justice to the region.
Another „rebel‟ region was the
South, with which the Sudanese central
government has signed agreements
regarding political and cultural autonomy
which culminated at the 2005 Naivasha
Treaty. This treaty determined the
execution of the Januray 2011
referendum, in which over 98% of the
population in South Sudan has voted for
the constitution of a new country. Rapidly
recognized by the international
community, the new state has been
officially established in July 2011, with the
support of the United Nations Mission in
South Sudan (UNMISS). Many issues,
though, were still to be solved, such as the
delimitation of boundaries, distribution of
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 18
oil profits, and citizenship issues. This last
problem has become more urgent on
April 9, when a Sudanese law was passed
considering any Southerners in the
country as “foreigners”; and on the next
day, when South Sudan passed a similar
law regarding Northern persons. With
the major influx of returnees to South
Sudan – over 370,000 since October
2010 – reconnaissance as citizens
becomes an urgent issue which has been
challenging the authorities in the newly-
formed country, putting thousands under
risk of statelessness. Besides, the
increasing tensions between the two states
regarding the extraction of oil in South
Sudan and its transport through Sudan
has contributed to spreading fear and
despair among those living along the
border, or crossing it.
Difficulties in obtaining
citizenship rights have also been an issue
for other minorities in the Sudanese
country, especially those living closer to
the border with South Sudan. That is the
case of the inhabitants of the Nuba
Mountains, in South Kordofan. The
Nubans have fought alongside South
Sudanese rebels in their secession
conflicts, but after the new country was
formed, South Kordofan has gone back
to being a forgotten part of Sudan. The
oil reserves in the region fuel violent
attacks perpetrated by al-Bashir‟s
government on the region‟s civilians,
leading to an overflow of Nubans to the
contested territory where the Yida
refugees‟ camp is located. Rising levels of
orphanage and hard access to documents
have increased the levels of statelessness
in this region as well, depriving Sudanese
people of their right to a nationality.
Those many conflicts in the
region have an undeniable material basis,
as most of the oil reserves from former
Sudan were concentrated in the South or
in other periphery regions, such as
Darfur or the Nuba mountains. The way
the two states have been dealing with the
problem, however, clearly reflect their
specific view on the meaning of
nationalism. Al-Bashir‟s government
struggles to keep its legitimacy in spite of
territorial losses, which motivates the
oppression of remaining rebel regions.
Kiir‟s government in South Sudan tries to
construct a national identity from scratch,
unifying people who pertain to different
tribes around a common hatred towards
the Sudanese Other. Struggles related to
the reconnaissance of citizenship in both
countries reflect the attempts of
constructing ethnic national identities,
departing from the rejection of the
foreigner. At the same time, difficulties in
defining who should be a citizen from
each country, alongside the internal
problem of accommodating ethnic
groups in both states, demonstrate the
failure of such nationalism model for
strengthening identities in the region. The
continuation of such efforts may only lead
to the expansion of the current
humanitarian crisis to unstoppable levels,
turning the current „chicken game‟
between al-Bashir and Kiir into no more
than a no-win situation.
Only when authorities in both
countries start perceiving their respective
national identities in civic terms, there will
be a possibility of true dialogue between
the two and with representatives of
minority ethnicities. In such nationalism
paradigm, people have the possibility of
acquiring a nationality, since this is not
defined around primordial characteristics.
Such right is especially crucial in times of
transition, where large groups have
reasons to identify to more than one
state. More than the granting of
citizenship rights, the promotion of a civic
nationalism requires the strengthening of
democratic institutions, which are
inclusive of different ethnic groups, and
not oppressive to those. We are certainly
speaking of a process which does not take
place overnight. Such process, however,
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 19
has to be increasingly faced as a goal,
since the continuing promotion of
xenophobic nationalisms in the region,
through the use of violence, can only
bring more suffering and destruction to
populations who have already had more
than enough of it.
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 20
Pártnership Among Equáls
por Stefanos G. C. Drakoulakis
The recent movements observed in the
Brazil-United States relations could raise
a wide range of questions. One of the
recent events, The VI Summit of the
Americas, is critical when we wonder how
the government of Dilma Roussef
conceptualizes such relations. Even
though the stated “partnership among
equals” could mean nothing but a wish,
this skeptical vision does not fully
correspond to the facts. On the other
hand it is expected that the Brazilian
movement aiming consolidating its global
position will lead the country inevitably to
some sort of clash with the United States.
In this brief analysis what is sought is to
reach a middle ground in between too far
pessimistic and optimistic views. Also it‟s
formed a third option to this complex
movement. Brazil is not necessarily
rivaling with the United States, instead it
is competing.
Concerning Brazilian relations
with the rest of the world, United States
have been regarded as a major partner.
The Americanism paradigm has been
one of the paths that Brazil has used to
enhance its position in the global context.
The “Barão do Rio Branco” has seen the
centralism that the relations with the
United States would assume in the long
run. With some setbacks the United
States remained until the government of
Jânio Quadros (1961) the central
fundament of the Brazilian foreign policy.
But even in the 70s and 80s, especially
with the Ecumenical and Responsible
Pragmatism (Pragmatismo Responsável e
Ecumênico) the relations with United
States were taken as central. The major
point here is to state that neither with
changes during the Brazilian foreign
policy history, the bid for global insertion,
nor when the national interest assumes
greater importance in Brazil, the relations
with the United States were regarded as
unnecessary, nor that openly facing the
United States were an option.
So if the relations with the United
States are extremely important to the
Brazilian government, what could this
movement, that has been taking place not
only for this government but since the
Lula‟s administration, mean? In this
article, what it‟s pursued is to show a
continuous movement in the Brazilian
foreign policy that does not break up with
the history of such relations. On the
contrary, it reaffirms the central position
of the United States in our foreign policy,
but also shows that independence in
movements is also highly valued. First it is
needed to dedicate some part of the
argument analyzing the most common
positions about the Brazilian global
insertion concerning its relations with the
United States of America.
To illuminate the skeptical
position it is necessary to look the way
they do. Brazil has resorted to speech for
striving for its interests. In most of cases,
the Brazilian argumentation was bolstered
by the international law and morality. In a
realistic view, these are the weapons of
the weak. Therefore, the phrase of Dilma
Roussef would likely fit into this kind of
discourse, even though it‟s acknowledged
that Brazil has relatively gained
importance in the recent scenario. Brazil
does not possess the same bargaining
powers that had had with Getúlio Vargas
and in the end of the day the diplomacy
would just cover another failed
movement that has struggled for
PET-REL
Análise de Conjuntura
Junho de 2012 21
constructing a reserved space in South
America for Brazilian influence.
Therefore, Brazil would just be acting as
a rational actor that finds ideas the only
way to create an atmosphere that can
favor its interests.
A sort of “chicken fly” (it doesn‟t
stay long in the air) would best describe
this kind of skepticism. But the recent
exchange of visits between the Brazil and
United States, the signature of few
understandings shows that more
importance is given to these relations, not
only by Brazil (as this vision would
certainly expect), but also by the United
States. The header of the State
Department has made clear the position
of the United States. The country wishes
to take a greater hole in the Brazilian
economy. It could be inferred that the
United States also wants to regain the
position of primacy that once has held.
So the notorious importance given to the
Brazilian economy could mean that
Brazil actually has some sort of influence
in the path of these relations. Nothing
like the automatic alignment is observed
these days. Liking or not, when faced by
these facts, it doesn‟t matter the
interpretation of the skeptics, it has to be
recognized that Brazil has changed and so
does their relations. What it is very useful
of this kind of view is the possibility of
questioning the boundaries of the
Brazilian position. There are
containments that make the “partnership
among equals” to be an idealistic type of
such relations. Whenever the United
States firmly decides to hold its ground,
it‟s unlikely that the relations among them
hold any equality.
Now the second proposition is
taken under scrutiny. Will Brazil actually
clash with United States? This can be a
tricky question. Depending on how we
expect to see the clash, there are multiple
interpretations. Here the argument aims
to restrict the most radical views which
see that the confrontation will be open
and vast. These fraught views carry with
them some sort of misinterpretation both
of movements of the United States and
the history of Brazilian foreign policy.
First, the United States is seeking to
guarantee the maximum of support it can
to regain socially and economically the
South American region. As their
leadership is being constantly questioned,
the necessity of the Obama
administration giving another face to the
United States foreign policy is one of the
biggest issues of his government. On the
other hand, United States desires to fix an
impression of its new features as the
leader of the continent. The Obamas
administration since its beginning has
sought to get out of the traditional hard power way of conducting politics. So a
United States interested in cooperation
(even if it‟s for selfish reasons) has to have
a more flexible policy. On the other
hand, Brazilian foreign policy is walking
on no new path. The same principles, the
same view and most important, the same
position is given to United States in our
foreign policy. But as the national interest
has achieved a greater role in the
definition of how Brazil will behave at the
international arena, then we could see
some minor clashes in the long run.
United States is way too important to the
Brazilian policy. So identifying a
confrontation policy in the planning of
Brazilian foreign policy is unlikely to
happen. Brazilian government seeks to
cooperate with the United States.
However there‟s a big difference between
cooperation and bandwagoning, and the
Brazilian government won‟t just be a
follower of the United States, instead
Brazilian government seeks the place of a
partner.
Finally, when both positions were
questioned, it‟s possible to take advantage
of the strong points of them and indicate
the variables that will certainly have some
impacts in the future of these relations.
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 22
To say that Brazil will move
independently from the United States
position it is equivocal. But stating that
Brazil will in some point turn to the
United States desires, even if those
collides with the Brazilian ones, it‟s
childish. The major point is to see the
phrase of the Brazilian states woman not
as a radical change, but as the
confirmation of a broader historical
movement. Affirming this is to say that,
depending on results of the American
elections we should see the continuity
conversation in different points of view.
The difficulties will inevitably rise and
there will be no compromise. But United
States is consolidating in the Brazilian
view not as a target, or a hated hegemon,
but as good chance to promote Brazilian
interests. And everything indicates that
the vision is reciprocal.
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Junho de 2012 23
Trádiçá o, descontinuidáde e o futuro dá Coreiá do Norte
por Patrícia Nabuco Martuscelli
O lançamento do foguete norte-coreano
Taepodong-2 no dia 13 de abril e sua
queda após cerca de um minuto no Mar
Amarelo poderiam ser considerados
como uma outra tentativa fracassada da
Coreia de Norte de defender seu lugar
como “potência mundial” a ser temida,
mas a repercussão desse caso foi maior.
Como em ocasiões anteriores, o país
anunciou suas intenções (colocar em
órbita o satelite Kwangmyongsong-3)
rompendo com compromissos
previamente assumidos (no caso, um
acordo com os Estados Unidos da
América) e aumentando a tensão entre
seus vizinhos. O Conselho de Segurança
das Nações Unidas condenou essa
atitude. Japão, Coreia do Sul e Estados
Unidos apresentaram suspeitas quanto às
intenções pacíficas do país. A Coreia do
Norte por sua vez alegou que era seu
direito soberano desenvolver um
programa espacial pacifico. Por fim, com
o fracasso do lançamento, o que poderia
ter levado a maiores questões foi
percebido pela comunidade internacional
como uma vergonha para o governo
norte-coreano.
Não é a primeira vez que uma
tentativa norte-coreana falha, contudo
algumas posturas do país frente a isso
podem sinalizar possíveis mudanças em
suas estruturas internas. A Coreia do
Norte é um país extremamente fechado
com uma forte ideologia que legitima os
atos governamentais e garante o apoio
populacional ao regime. A região das
Coreias foi dominada de maneira brutal
pelos japoneses de 1910 a 1945. Nesse
período, foram reprimidas a cultura, o
idioma e as identidades coreanas. Kim Il-
Sung (avô de Kim Jong-Un) participou da
guerra que levou à expulsão japonesa e
fundou o país em 1948. Por isso, Kim Il-
Sung é considerado o salvador e pai da
pátria. Frente a esse histórico colonizador
é interessante perceber a importância
dada pelo governo de parecer um país
forte que pode usar a força contra seus
inimigos a qualquer momento,
principalmente se for atacado.
Os norte-coreanos são ensinados
desde pequenos que sua raça é a mais
pura e superior, que os outros países são
maus e que eles precisam de uma figura
poderosa para liderá-los. Além disso, eles
acreditam que seu líder supremo tem
todas as qualidades essenciais para
governar e possui conhecimento sobre
todos os assuntos. Para garantir tal
ideologia, o governo conta com um
aparato para exaltar o clã dos Kim
composto por propaganda, disciplina e
repressão, inseridos em uma estrutura
social. Contudo o grande número de
mercados negros que estão se espalhando
pelo país e os mecanismos para burlar a
censura (como o uso de aparelhos
celulares perto da fronteira da Coreia do
Sul que realizam chamadas para a
mesma) estão mostrando para uma parte
da população como vivem as pessoas fora
do regime. Diferentemente do que é
defendido pelo governo, alguns norte-
coreanos passam a perceber a melhor
qualidade de vida e as vantagens (tais
como respeito às liberdades
fundamentais) existentes em outros
países, o que inspira questionamentos
contra o governo e tentativas, muitas
vezes bem-sucedidas, de ir para esses
lugares.
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Análise de Conjuntura
Junho de 2012 24
A população sofre com os efeitos
da crise de fome que atingiu o país e
matou cerca de 1 milhão de pessoas na
década de 1990. O Programa Mundial de
Alimentos das Nações Unidas acredita
que dois terços da população do país
vivem com o equivalente a cerca de 400
gramas de grãos diários, distribuídos pelo
Estado em um sistema de cupons, a
metade do mínimo necessário. Contudo,
de junho de 2011 até a nova colheita, a
população deve receber 380 gramas por
adulto, e durante os meses de entressafra
no verão do Hemisfério Norte 150
gramas. Por essas razões, um em cada
três coreanos tem baixo desenvolvimento
físico e mental e aproximadamente
metade das crianças tem desnutrição
crônica, sendo que 23% estão abaixo
peso.
Sobre esse assunto, o acordo
assinado com os Estado Unidos da
América (EUA), em troca de 240 mil de
toneladas de um mingau de milho e soja
misturado com óleo vegetal para
alimentar crianças abaixo de 10 anos e
mulheres grávidas, pode ser visto como
uma inflexão do governo norte-coreano e
uma certa preocupação com as condições
de sua população interna. O acordo, que
poderia ter ajudado 2,4 milhões de
pessoas, foi amplamente celebrado pela
comunidade internacional visto que a
Coreia do Norte se comprometia a
suspender lançamentos de mísseis de
longo alcance e testes nucleares, além de
aceitar inspetores da Agência
Internacional de Energia Atômica em seu
território.
Contudo, o novo governante
preferiu desconsiderar o compromisso
firmado em 29 de fevereiro e lançar o
foguete. Essa reviravolta no discurso de
Kim Jong-Un pode ser entendida como
uma forma de seguir as diretrizes de seu
pai (Kim Jong-Il) que priorizava as forças
armadas e o programa nuclear para
construir uma nação poderosa e
próspera. Isso pode ser visto devido ao
modo como a população e o partido
veem o novo líder de pouco idade,
experiência e falta de autoridade se
comparado com seu antecessor. Assim, a
decisão do governante pode ser uma
tentativa de legitimar seu poder para a
população e o próprio partido além de
mascarar a fraqueza do Estado para o
plano interno e para comunidade
internacional, visto que a Coreia do
Norte passa por uma estagnação
econômica e uma crise alimentar.
Ao se tratar da Coreia do Norte
muitas são as contradições e mudanças
que podem ser vistas nessa transição de
poder. A primeira delas é o fato de as
mídias estatais norte-coreanas terem
avisado o fracasso do lançamento do
foguete para a população, coisa nunca
antes observada na história do regime. A
segunda é o próprio acordo alimentar
com os EUA que mostrou para a
comunidade internacional a fraqueza e
situação precária do país. Além disso, foi
priorizado, nesse momento, a população
civil em detrimento de questões militares.
Essa consideração poderá vir a ser
observada em próximas ações
governamentais. Contudo, Kim Jong-Un
necessita se firmar no cargo como líder
supremo, principalmente para o partido,
dessa forma resolveu voltar atrás e
retomar o discurso proferido por seu pai
até então.
Muitas ações contraditórias da
Coreia do Norte poderão ser percebidas
no futuro. Isso porque o regime interno
do país na pessoa da Kim Jong-Un está
oscilando entre desenvolver sua própria
política voltada para aspectos que ele
considere importante e a necessidade de
justificar e legitimar seu poder para seus
pares do partido com uma continuação
da política de seu pai. Nessa balança,
deverão ser considerados ainda outros
fatores como a entrada cada vez maior de
informações que vão contra e
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descaracterizam o regime norte coreano e
a possibilidade de mais uma onda
significativa de mortes causadas pela
fome. Frente a esse cenário não é
provável que a ideologia apenas consiga
manter o sistema sociopolítico norte
coreano.
Nesse momento, o regime
devesse talvez primar o plano interno,
especialmente as condições de vida de
sua população, do que tentar se firmar
como potência ameaçadora no plano
internacional. Mesmo porque o fracasso
do lançamento do último foguete revelou
as limitações tecnológicas da Coreia do
Norte, o que não elimina as
preocupações do mundo quanto às
intenções e o poder nuclear norte
coreanos. Mas mostra as fraquezas de um
país que não consegue alimentar sua
população por priorizar questões
militares e nem nessas obter pleno êxito.
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Instábilidáde e militárizáçá o crescentes ná A siá: mudánçás e continuidádes ná Coreiá do Norte
por Lucas Santiago Brasileiro
Há mudanças na Coreia do Norte. Desde
a morte de Kim Jong-il, em 17 de
dezembro de 2011, seu filho, Kim Jong-
un assumiu o governo do país. Há dois
pontos-chave que se pretendem
desenvolver aqui: a relação contraditória
entre o culto da imagem e a condução da
política externa no país. Pretende-se
também traçar brevemente a viabilidade
de reformas de cunho político-
econômico no país, e repercussões
futuras.
O culto à personalidade na
Coreia existe desde 1972. Bradley
Martin, jornalista que visitou o país em
1979, notou que quase todo tipo de arte
glorificava o chamado Grande Líder,
Kim Il-sung. Até hoje, a situação no país
aparenta não ter se modificado muito.
Seu filho Kim Jong-il propagou um culto
à imagem diferenciado. A imagem que
transmitia à população era diferente: mais
reservado, mal fazia aparições, e deu
apenas um discurso público durante seus
vinte anos no poder. Com sua morte, no
fim do ano passado, características novas
são perceptíveis no culto à imagem dos
Kim. O novo líder, Kim Jong-un, é
frequentemente é visto sorrindo em fotos,
próximo aos militares e seus
subordinados. Esse tipo de atitude seria
impensável por seu pai. A postura de
Kim Jon-un, por sua vez, é similar à de
seu avô, que também se mostrava como
uma figura paternalista, sempre
abraçando e protegendo a nação norte-
coreana.
Apesar da modificação na forma
como é conduzido o culto à imagem, a
continuidade na política externa do país é
notável. De maneira similar como ocorre
há anos, Kim Jong-un dá sinais de que a
Coreia da Norte continuará com sua
política de chantagem. Em termos curtos,
essa política consiste em promessas
políticas à comunidade internacional,
como desmilitarização e reformas
econômicas e sociais, em troca de auxílio
externo, principalmente alimentos. Com
essas promessas, que nunca são
compridas, a Coreia do Norte assegura
auxílio, principalmente dos Estados
Unidos e das Nações Unidas.
No entanto, a política acima
descrita dá sinais de desgaste: os Estados
Unidos recentemente suspenderam o
envio de 240 mil toneladas de alimento
ao país. Isso ocorreu devido à insistência
da Coreia do Norte em lançar um
satélite, em abril desse ano, no
aniversário de 100 anos da nascimento de
Kim Il-sung. Por sinal, o lançamento do
satélite foi um fracasso, e foi notório o
fato do governo de Pyongyang divulgar
essa informação em rede pública.
Reforçando a noção de rompimento com
a imagem do pai, Kim Jong-un, nesse dia,
deu seu primeiro discurso público.
O fato de Kim Jong-un se mostrar
mais próximo da população do país, e a
mídia, ao contrário de previsões, divulgar
o fracasso do satélite, não representam
uma nova política de abertura. Não é,
como podem afirmar alguns, o início de
uma Perestroika norte-coreana – a Coreia
do Norte não irá passar por reformas tão
cedo. A continuidade do programa
nuclear e do lançamento de mísseis é
necessária para relembrar à comunidade
internacional: apesar da imagem sátira
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que muitas vezes tem-se da Coreia do
Norte e de seus líderes, o país continua
sendo a ditadura mais fechada do
planeta. Apesar de grave crise econômica
e da fome que o país enfrenta, a
habilidade dos Kim de se manter no
poder é inquestionável. Não há brechas
para contestação do regime: calcula-se
que entre 150 e 200 mil pessoas
continuam nas prisões do país.
Caso ocorressem, reformas
econômicas e políticas certamente teriam
duas consequências claras. A primeira,
mais notória, é a de que algumas delas
poderiam diminuir a gravidade de
problemas socioeconômicos. Um
exemplo claro é a crise de fome no país,
que jamais deixou de assolar a Coreia do
Norte desde a década de 1990.
Determinadas reformas provavelmente
tornariam a distribuição de alimentos
essenciais mais igualitária e eficiente,
inclusive de recursos advindos de auxílio
externo, como aqueles enviados pelas
Nações Unidas. A segunda consequência
de reformas econômicas e políticas seria,
por outro lado, admitir a falha no sistema
político que vem sendo conduzido há
décadas e, nesse sentido, admitir também
o sucesso da rival Coreia do Sul. Dessa
maneira, a criação de reformas
implicaria, necessariamente, em perda de
legitimidade do regime em relação ao
ambiente interno, algo impensável para o
atual governo norte-coreano.
Dessa maneira, é possível chegar
em algumas conclusões a respeito do
futuro da Coreia do Norte. Tudo o mais
constante, não se pode inferir que
reformas ocorrerão a curto prazo. A
probabilidade de que o regime acabe por
ruir por dentro nos próximos anos, por
sua vez, é baixa, admitindo-se que o
mesmo manteve-se razoavelmente estável
por décadas de crise. O culto à imagem,
apesar de apresentar aspectos diferentes,
continua, assim como a política de
chantagem do país. Entretanto, não se
pode dizer que tudo o mais pode ser
mantido constante em relação ao
ambiente externo. As atitudes da Coreia
do Norte geram reações diferentes dos
países da região, reações essas que
mudam perceptivelmente em curto
espaço de tempo.
A necessidade da Coreia do
Norte de insistir na política nuclear e no
envio de lançamentos e satélites está
estritamente relacionada com a
necessidade de legitimar-se como uma
ameaça e uma potência militar na região.
Em relação a suas políticas, o Japão já
afirmou que caso algum objeto norte-
coreano se aproxime de seus territórios,
usará da força para se proteger. O país
tem até falado em reconstruir seu
exército, uma instituição que não existe
desde sua derrota na Segunda Guerra. A
China também vem demonstrando uma
mudança em seu discurso em relação a
Coreia do Norte – de apoiadora, a China
passa a ver com cada vez mais
desconfiança as atitudes de seu vizinho na
península. Tal fato pode ser observado
pela posição chinesa de condenar o
lançamento do satélite norte-coreano no
Conselho de Segurança. A China possuía
a tradição de abster-se, ou ser contrária a
condenações a Pyongyang.
A relação entre as Coreias, por
sua vez, é a que está mais deteriorada.
Desde que Kim Jong-un subiu ao poder,
a agência de notícias da Coreia do Norte
– Korean Central News Agency of DPRK
– tem feito várias ameaças ao presidente
sul-coreano, Lee Myung-bak.
Comparando o líder a um rato, as sátiras
e provocações da agência, que muitas
vezes parecem infantis, devem ser levadas
a sério. Não se deve esquecer que o país
é o mais militarizado do mundo. Lee
Myung-bak já admitiu que a política do
governo anterior, de aproximação entre
as Coreias, foi extremamente mal
sucedida. Kim Dae Jung, o formulador
da Sunshine Policy, acreditava que
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concessões e auxílio poderiam impedir a
política nuclear da Coreia do Norte, ou
ao menos tornar mais amistosa a
percepção de sua vizinha. Os resultados
não foram positivos. Caso a Coreia do
Sul não lide com seriedade com as
provocações, as relações podem se
deteriorar muito mais, levando a Coreia
do Norte a fazer outras demonstrações de
poder, ou pior, a quebrar o armistício
assinado em 1953.
Uma conclusão é certa: a política
de chantagem não irá parar tão cedo.
Essa política sempre teve custos
baixíssimos para a Coreia do Norte. É
quase certo, também, que em breve o
país fará seu terceiro teste nuclear – a
legitimidade perante a comunidade
internacional, e também interna, depende
disso. E caso a política de chantagem se
mostre realmente desgastada, tal
performance será necessária para
manutenção da imagem que a Coreia do
Norte possui como ameaça. A volta à
guerra continua uma aposta alta. Mas a
ausência de reformas e de mudanças
estruturais em instituições e política
externa preveem maus sinais: a
militarização do Extremo Oriente, e sua
crescente instabilidade.
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