boletim crítica da masculinidade n.3

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8/2/2019 Boletim Crítica da Masculinidade N.3 http://slidepdf.com/reader/full/boletim-critica-da-masculinidade-n3 1/8 03 Publicação do projeto Homem com h: Articulando Subalternidades Masculinas , AFRO – Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Candido Mendes (Ceab) a b r 2 0 0 4 Homossexualidade masculina e violência SILVIA RAMOS Homem só tem nome!!! PROJETO “DECOMPONDO DIVISAS”

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8/2/2019 Boletim Crítica da Masculinidade N.3

http://slidepdf.com/reader/full/boletim-critica-da-masculinidade-n3 1/8

03

Publicação do projetoHomem com h: Articulando

Subalternidades Masculinas ,AFRO – Centro de Estudos

Afro-Brasileiros da UniversidadeCandido Mendes (Ceab)

a b

r 2 0 0 4

Homossexualidade masculina e violênciaSILVIA RAMOS

“ Homem só tem nome!!!”

PROJETO “DECOMPONDO DIVISAS”

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2 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004

Oficina do Projeto Homem com h com o Grupo 28 de Junho emNova Iguaçu, RJ. 2004.

E D I T O R I A L

Mundos MasculinosO Projeto Homem com h: Articulando Subalternidades Masculinas foioriginalmente proposto como uma iniciativa voltada para favorecer, de modoprospectivo e experimental, a interlocução criativa e o diálogo crítico einformado de diferentes experiências de masculinidades subalternizadas emfunção da posição de classe, raça e orientação sexual. Foi desenhado comoum conjunto de estratégias estruturadas tanto para favorecer a criação deespaços de discussão e reflexão da experiência e ação política, como parahabilitar o bolsista para a interação e mediação entre os campos diversosdessas identidades masculinas em suas conexões com outros “mundos” degênero, raça e sexualidade.

As atividades propostas desenvolveram-se de modo diferenciado e com êxitos variados, desdeo interesse crescente e entusiasmado com que tem sido recebido o Grupo de Estudos Raça eGênero, que entra no ano de 2004 em sua segunda edição, até as dificuldades encontradas paraa realização das oficinas com homens ativistas do movimento negro. Parece ser importantedestacar que as atividades que obtiveram maior êxito foram aquelas para as quais estávamosmais preparados por nossa formação anterior, e mais amparados pela estrutura institucionaldo AFRO. Por outro lado, aquelas atividades em que encontramos maiores dificuldades foramaquelas nas quais tínhamos menor experiência, e que dependiam do apoio e articulação comoutras instituições. É óbvio que se o Grupo de Estudos, e este próprio boletim “Crítica daMasculinidade”, representaram estratégias bem-sucedidas e se mostraram importantes por isso,as oficinas, de resultado mais irregular, também se constituíram em experiências extremamenteimportantes. Porque, ainda que irregulares, nos permitiram uma interação fecunda comgrupos sociais organizados em bases populares, tais como os jovens do Projeto DecompondoDivisas ou o grupo homossexual 28 de Junho, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Assim é que o processo de execução do projeto revelou-se profundamente rico nas diferentesdimensões que produziu: diversos momentos de discussão e troca sobre raça, gênero esexualidade com grupos sociais de base; uma série de par ticipações em eventos acadêmicos,seminários, palestras, discutindo com públicos diversificados as questões relativas ao

projeto; o aprofundamento reflexivo através de leituras e debates no Grupo de Estudos; aincorporação progressiva e consistente de parte da agenda política e intelectual do projetonas preocupações institucionais do AFRO.

Com relação a este último ponto, pareceimportante destacar que a partir de 2003 oAFRO institucionalizou como uma de suasáreas de atuação a temática interseccional daraça, do gênero e da sexualidade. No âmbitodessa área estamos iniciando projetos que setornaram estruturantes de nossa atuaçãoinstitucional. Um destes é o projeto “Raça,Gênero e Sexualidade na Periferia”, que fazparte do projeto integrado “AfroRio Século XXI:Modernidade, Agência Afrodescendente e Anti-

Racista no Rio de Janeiro” apoiado pelo CNPq.Estamos focando, com o subprojeto supracitado,performances juvenis de sexualidade, gênero

e raça num contexto de privação material relativa e “modernização seletiva”. Além desteprojeto, estamos iniciando agora, graças a um apoio do CNPq, uma parceria com instituiçõesacadêmicas da Argentina e da Colômbia para a formação de uma rede de pesquisadores emraça, gênero e sexualidade. Esta rede implica a realização de publicações, cursos e seminários.

Por fim, poderíamos dizer que esta experiência representou para nós uma oportunidadeexcepcional de abertura intelectual e política em relação a diversos “mundos masculinos”.Mundos estruturados pela pobreza, pela desigualdade, pela homofobia, pelo racismo e pelosexismo. Mas, também, pela criatividade, alegria, sensualidade, vontade de transformação erebeldia. O projeto nos permitiu, além do mais, abrir algumas janelas, propor conexões eestimular a conversão sobre e entre esses mundos. Ora, esses mundos e seus espaçostambém são os nossos, e nosso compromisso com eles é mais do que intelectual e político,

já que está baseado na comunidade de experiência e na insubordinação , elementos quetalvez favoreçam a emergência de novas linguagens da emancipação.

Osmundo Pinho Antropólogo, Coordenador do Projeto e

Diretor do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Candido Mendes

CRÍTICA DAMASCULINIDADEUma publicação do projeto Homem com h: Articulando Subalternidades Masculinas,sediado no Afro – Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade CandidoMendes (Ceab) –, e apoiado peloPrograma GRAL (Gênero, Reprodução,Ação e Liderança) da Fundação CarlosChagas/John D. and Catherine T.MacArthur Foundation.

Praça Pio X, 7/7º Andar – CentroRio de Janeiro-RJ - CEP 20040-020Tel: (21)2516-2916Fax: (21) 2516-3072E-mail: [email protected]: www.ceab.ucam.edu.br

Coordenador do Projeto e Diretor do AfroOsmundo Pinho

ColaboraçãoCarla dos Santos Mattos

EstagiárioHerculis Toledo

RevisãoBeth Cobra

Projeto Gráfico e DiagramaçãoMais Programação Visual

CapaTravestis na Boate Caverna em Salvador,BA. 2000.[arte sobre foto de Osmundo Pinho]

Fotolito

Ace DigitalImpressãoGrafitto Gráfica e Editora

Tiragem1.500

Oficina do Projeto Homem com h com o Grupo28 de Junho em Nova Iguaçu, RJ. 2004.

O S M U N D O P I N H O

O S M U N D O P I N H O

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CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004 3

Política, Direitos, Violência eHomossexualidade é o resultado dapesquisa com os(as) participantes da8ª Parada do Orgulho GLBT, Rio 2003.

segunda metade dos anos 1990 produziunovos panoramas na cena homossexual bra-sileira. Uma série de iniciativas, não articu-ladas entre si, foi responsável por alteraçõesconsideráveis no quadro essencialmentedefensivo em que a temática homossexualse manteve durante as décadas de 70 e 80.Entre os acontecimentos mais importantes

que começam a se desenrolar a partir de 1995, desta-cam-se: as experiências de políticas públicas em segu-rança e cidadania; as iniciativas de legislação antidis-criminação e de ampliação dos direitos civis; a literatura

homoerótica e o cinema gay e lésbico; a proliferação desites na internet e a criação de um mercado homosse-xual ligado a bares, boates, revistas e turismo; o surgi-mento de novos formatos de militância e, finalmente,as marchas de orgulho gay capazes de reunir milharesde pessoas nas principais capitais do país, constituindoa maior manifestação política urbana de afirmação deidentidade. Ao mesmo tempo, se aprofundou, na déca-da passada, o reconhecimento da homossexualidadecomo objeto de investigação relevante para pesquisa-dores, universidades e financiadores.

A homofobia de cada dia: os crimes espetacularese a violência que não sai no jornal

Os conhecimentos sobre vitimização de homossexuaise a caracterização da violência homofóbica no Brasileram, até recentemente, isto é, até fim dos anos 90,baseados principalmente em notícias sobre crimescontra homossexuais publicadas em jornais. Na maioriadas vezes, a mídia noticiava assassinatos cometidoscom requintes de crueldade contra gays e travestis.O antropólogo Luiz Mott e o Grupo Gay da Bahia (GGB)foram responsáveis, a partir do início dos anos 80,pela coleta, análise e divulgação de arquivos de jornais,tendo publicado dossiês que se tornaram célebres e aju-daram a conhecer e a denunciar crimes violentos contrahomossexuais no Brasil. A abordagem quase sempre

sensacionalista da im-prensa que noticiavaesses assassinatos,contudo, se, por umlado, contribuía pararomper o silêncio quereinava quase absolu-to sobre o tema, poroutro lado tendia aconfirmar uma repre-sentação vigente, damorte de homens ho-mossexuais como re-sultante do desejoincontrolável da víti-ma por sexo com ho-mens violentos, rei-terando as matrizes“vítimas da própriapromiscuidade”, “vítimas dos próprios instintos”. O quese produzia nessa mídia era um personagem indefeso,mas em parte culpado pelo próprio destino trágico,numa operação simbólica semelhante à da mulher víti-ma de estupro, co-responsável por produzir e atrair odescontrole sexual de seu agressor.

Uma nova fonte sistemática de denúncias sobreviolências contra homossexuais surgiu em 1999, coma criação da primeira experiência brasileira de política pú-blica na esfera da segurança, o Disque Defesa Homos-sexual (DDH). Criado na Secretaria de Segurança do Riode Janeiro, o DDH foi pensado como um programa dedefesa (e não apenas de denúncia). O projeto foi umatentativa de estabelecer uma parceria direta entre polí-cia e movimento homossexual, no sentido de fazer agircom rapidez tanto dispositivos de prevenção de crimes(acionando a polícia em locais e situações de incidênciade violência), como de atendimento das vítimas doscrimes já ocorridos (mobilizando a polícia a investigaragressores e golpistas e mobilizando redes de apoiopsicológico e jurídico por par te das ONGs).

Homossexualidade masculina e

violênciaSILVIA RAMOS

A

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4 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004

A diferença crucial nos dados gerados pelo DDH es-tava no fato de que a própria vítima – e não a imprensa– relatava as agressões. A análise dos primeiros 500casos atendidos pelo DDH revelou a intensidade de dinâ-micas cotidianas e silenciosas de homofobia. A maioriadas denúncias era constituída de casos de ofensas,ameaças, extorsões, agressões físicas e uma grandequantidade de queixas de “discriminações” (na escola,no trabalho, no comércio e também na família e na vizi-nhança), além dos conflitos de natureza interativa entreparceiros. Nada menos que um terço dos casos rela-tados ao DDH se davam na esfera da casa ou da vizi-

nhança, indicando a intensidade de crimes não espeta-culares e não letais, gerados e vividos em escala micro,na esfera da família e de conhecidos, numa criminali-dade em geral sem fins lucrativos, em que vítimas eagressores partilham as mesmas redes sociais.

Pesquisa de vitimização na Parada do Orgulho de 2003

No ano passado, uma pesquisa conduzida pelo CentroLatino-Americano de Sexualidade e Direitos Humanos(CLAM), do Instituto de Medicina Social da UERJ e peloCESeC, em parceria com o Grupo Arco-Íris de Conscienti-zação Homossexual (GAI), trouxe novas e importantes evi-dências sobre a violência contra homossexuais *. Em umestudo que abordou questões sobre sociabilidade, afeti-vidade, sexualidade, política e direitos, criamos um blocosobre violência, usando uma estratégia denominada pes-quisa de vitimização. Perguntamos a uma amostra departicipantes da Parada do Orgulho GLBT (Gay, Lésbico,Bissexual e Transgênero) do Rio de Janeiro se algumavez haviam sido vítimas de agressões físicas, verbais,sexuais, extorsões, golpes e discriminações, pelo fato deserem homossexuais. É importante assinalar que essaestratégia de investigação não se restringe às vítimas,tendo como base e referência o universo total de pessoas.Os resultados ajudaram a caracterizar aspectos dahomofobia como sendo altamente variáveis por gênero,por orientação homossexual e por idade, segundo o tipode agressão. Além disso, permitem concluir que mesmoem uma cidade cosmopolita como o Rio, algumas expe-riências de agressão são extraordinariamente freqüen-tes e independem de gênero, idade, cor, classe social ouorientação homossexual, sendo o fator desencadeantea própria homossexualidade. Também verificamosque, em contraste com o número alto de agressõesrelatadas, um número muito reduzido de denúnciasdas agressões são comunicadas aos órgãos públicos.

Homossexualidades masculinasTer sofrido agressões por ser homossexual foi uma expe-riência vivida intensamente pelos entrevistados, espe-cialmente por gays, transgêneros (travestis e transe-xuais) e bissexuais do sexo masculino. Neste universode homossexuais masculinos, 7,2% relataram terem sidovítimas de “Boa Noite, Cinderela”, 7,9% de violênciasexual, 19,4% de chantagem ou extorsão, 20,1% deagressão física, 58,3% de agressão verbal e um percen-tual semelhante, 59%, afirmaram terem sido vítimas dediscriminação (Gráfico 1). Observe-se que um mesmoentrevistado pode ter sido vítima de mais de um tipode agressão, o que ocorre com grande frequência.

Além das proporções muito altas de algumas moda-lidades de violência, um primeiro resultado que cha-mou a atenção foram as diferenças experimentadaspor homens e mulheres homossexuais, especialmenteem alguns tipos de violência. Casos de “Boa Noite,Cinderela”, violência sexual e violência física são tipica-mente masculinos, sendo, em todos os casos, mais de80% das vítimas homens homossexuais (Gráfico 2).As experiências de chantagem ou extorsão, agressãoverbal e discriminação são também majoritariamentemasculinas, mas com uma participação de aproximada-mente um terço de mulheres (lésbicas e bissexuais).

Outro aspecto importante é a variação por orienta-ção homossexual nos casos de violência física. Mesmotomando apenas o universo homossexual masculino,verificamos que 42,3% dos travestis e transexuais en-trevistados já foram vítimas de agressões físicas, emcontraste com 19,5% de gays e 7,3% de bissexuais.Quando olhamos o universo das mulheres homos-sexuais, as agressões físicas ocorreram com 8,9%das entrevistadas.

* A íntegra do trabalho encontra-se publicada em Política, Direitos, Violência e Homossexualidade. Carrara, S.; Ramos, S. e Caetano, M. (coord). Rio de Janeiro,Pallas, Arco 2003 e no site www.cesec.ucam.edu.br

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CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004 5

Em algumas modalidades de agressão as variaçõespor idade são decisivas. Por exemplo, a vitimização por“Boa Noite, Cinderela” é tipicamente gay, não tendo sidoregistrado nenhum caso entre travestis ou transexuais,nem entre mulheres. Mas a experiência nesse tipo degolpe é, sobretudo, sensível à faixa etária, sendo a gran-de maioria das vítimas gays com mais de 40 anos.

“ Viado, vou te bater, vou te matar! ”

Talvez o resultado mais surpreendente da pesquisa devitimização tenha sido o grande número de agressões

verbais (ofensas, xingamentos e ameaças) sofridas porhomossexuais de ambos os sexos, uma experiênciavivida por quase 60% dos entrevistados. Há indicaçõesde que ser xingado ou ameaçado pelo fato de ser homos-sexual é, possivelmente, uma experiência corriqueirae amplamente difundida no Rio de Janeiro. Se compa-rarmos isto ao fato de que, graças às ações do movi-mento negro e de outras forças na luta contra o racismono Brasil, as ofensas raciais foram virtualmente bani-das da esfera pública dos centos urbanos, especial-mente na última década, é chocante e contraditório ofato de que, em plena era das marchas do orgulho gaye lésbico, e diante do “novo panorama” homossexual,as experiências de humilhação verbal sejam tão fre-qüentes. O dado é tão surpreendente que deverá semanter como objeto de investigações e de análisesqualitativas no futuro.

A homossexualidade masculina e o direito à pegação

As imagens do marinheiro Querelle, de Jean Genet,eternizadas pelas lentes de Fassbinder e inspiradas nosdesenhos de Tom of Finland, são amplamente consti-tutivas de um imaginário homossexual masculino oci-dental, associando erotismo a risco, perigo e violência.As figuras de soldados, marinheiros, trabalhadores ru-des ou policiais são mais do que um patrimônio icono-gráfico do universo gay; elas se incorporaram ao acervode imagens da sexualidade contemporânea. No seu beloromance, Cinema Orly , Luís Capucho descreve a culturada pegação (o namoro entre homens em cinemas, mastambém em lugares públicos, como banheiros ou emespaços abertos, como no Aterro do Flamengo ou noArpoador) como sendo tipicamente urbana e fazendoparte da cidade. Um dos desafios da nova cena homos-sexual é responder à presença da violência associadaà homossexualidade sem cair no dilema assépticoe conservador da segurança versus sexualidade;sem dissociar as ações de defesa homossexual à afir-mação da cultura gay, da irreverência transexual e do

orgulho lésbico. Em oposição à imagem dos anos 80, dohomossexual indefeso vítima de algozes cruéis, umasíntese da atualidade, talvez, seja a imagem do jovemgay ou travesti que não apenas denuncia a violência jáocorrida, mas que mobiliza dispositivos de segurançaa seu favor e exige que a polícia, os órgãos públicos e asredes de proteção homossexual assegurem seu direitoà liberdade sexual em espaços de sociabilidade e sexua-lidade gays e lésbicos, livres da extorsão policial, daintolerância e dos crimes de ódio.

Silvia Ramos Coordenadora da Área Minorias, Movimentos Sociais e Cidadania do

Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes.

Homossexualidade masculina e violência

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6 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004

No dia 13 de março de2004, o projeto “ Homem

com h” esteve no CIEPCésar Perneta, no Parque

União, Complexo da Maré,no Rio de Janeiro,

conversando com jovens

ligados ao projeto“ Decompondo Divisas” (verBox) sobre raça, gênero,

sexualidade. Abaixo,trechos da conversa.

Cleiton: (...) mas o negro tem umadificuldade muito grande de acessoà escola e já é discriminado desdepequenininho. Então, quando chegaa uma certa idade, entrar na facul-

dade pra ele é uma coisa mais difícildo que se fosse branco. Apesar de que também lá nopré-vestibular teve até uma discussão contra preto e amenina até falou assim “ ah, hoje em dia essa raça de preto tá se dando muito bem porque agora tudo é cota,o governo está se redimindo aí, pediu desculpa igual à Igreja Católica, que pediu desculpa pelos erros e tá dando vaga para os pretos, e os brancos estão se sen- tindo tudo discriminados ”. Aí até esse negócio de cotasgerou uma grande confusão, criou uma rivalidade umpouquinho maior entre brancos e negros. Todo mundovê aí, por exemplo, no jogo do Flamengo, todo mundo

fala “ah, a maioria na torcida do Flamengo, a maioria é negro, é preto ”.

Diogo: E até tem preconceito de negro contra negro.Tem pagodeiro aí famoso que não namora com umanegra, mas só com uma loira.

Cleiton: Acho que a discriminação é coisa do sistemamesmo, entendeu? O sistema nacional e o sistemamundial colocam o negro sempre em segundo plano,até nas novelas a gente vê isso mesmo: o negro nuncaé patrão, ele sempre tá na cozinha. Até no Sítio do Pica-Pau a gente vê, os dois negros são a Tia Anastácia eaquele outro que esqueci o nome, ele é quem cuida doSítio e ela tá na cozinha e quem é a dona do Sítio?

Pergunta: Vocês acham que a mulher negrasofre maior preconceito que o homem negro?Cleiton: Muito mais. Duas vezes por ser mulher e

por ser negra. Porque por ser mulher ela é oprimida,né, por mais que ela consiga algum status, ela consi-ga ter um trabalho melhor do que o homem, mas pramulher... vai ser difícil mudar isso, não é de hoje, mas

já vem de muito tempo, a mulher é sempre oprimida epra reverter isso tem que ter uma conscientizaçãomuito grande (...) hoje em dia tem muitas mulheresfazendo musculação pra quê? Às vezes até pra inti-midar, pra demonstrar que a mulher não é só aquelacoisinha frágil, que chora à toa.

Ubirajara: Mas cuidar de uma casa, estudar, traba-lhar fora e cuidar de filho... pô, quando eu arrumo a

“Homem só

Oficina do “ Mapa Afetivo” na Maré

M A R I A J O S

É F R E I R E

M A R I A J O S

É F R E I R E

Participantes do projeto na oficina do “ Mapa Afetivo” , marcando e descrevendo seus percursos pela Maré

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CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004 7

tem nome!!!”

casa eu fico morto, não sei como a minha mãeagüenta, seis filhos, chegava da casa de família eainda arrumava a casa.

Gilberto: Homem só tem nome!!!Cleiton: Na sociedade total a visão é essa: as mu-

lheres lá e os homens aqui. São diferentes. Você vêque nas rodas de homens quase não pára mulheres,e quando pára já diz logo que não presta. Eu estavauma vez lá na UFF e um pessoal estava bebendo e aíparou umas mulheres e todo mundo ficou olhando edizendo: “Alá, duas, três mulheres no meio de um mon- tão de homens, com certeza vai rolar alguma coisa ”.

Cleiton: Igual aquele filme da Cidade de Deus, ogaroto falava “hoje eu tenho quatro pra apanhar ”, aí ooutro fala “caraca, esse é o tal ”. Agora vai a garota falarisso. Vai pegar mal. A garota lá na rua essa semana foidifamada, porque os moleque fizeram uma lista (...) e

o comentário da semana é “aquela galinha lá (...) elacata todo mundo”, pô, só porque a garota tem 18 anose saiu com 10 e tá mal falada. E todo mundo fala: “ eu não vou sair com aquela ali, já saiu com montão ” Etodo mundo fala: “ih, já panhei, já panhei, já panhei ”.

Diego: Também tem uns casos assim que eu achoa maior idiotice, no ponto de ônibus, aí passa umamulher bonita, aí os caras quebram pescoço...

Cleiton: Faz exibição de braço.Diego: É, começa a falar mais alto.Cleiton: Começam a se exibir e começa a querer

demonstrar o seu poder.

Pergunta: É, e o que seria melhor no corpo dohomem pra ele mostrar?Cleiton: Braços e pernas.Diego: Ou então, um celular bem pequenininho.

Decompondo divisasMuitos discursos são enunciados sobre a violência das gran-des cidades. Várias conseqüências são analisadas, mas umadimensão a respeito dos jovens moradores de áreas classifi-cadas como favelas vem sendo negligenciada. Existe um medodifuso impeditivo do trânsito, principalmente de jovens homens,na cidade. Esse sentimento inviabiliza a experimentação tão

necessária neste momento da vida, desfaz redes sociais pré-preexistentes e limita a constituição de novas. Esse medo édefinido localmente nestes espaços como neurose .

A par tir de etnografia, também construída na experiênciadocente, um grupo de profissionais das ciências sociais en-volvidos com as temáticas da educação, violência e manifes-tações culturais em espaços populares, passou a conversarsobre o conhecimento produzido, em suas pesquisas, comalunos de duas escolas públicas de áreas “dominadas” pordiferentes grupos que comerciam drogas consideradas ilí-citas pelo Estado.

A experiência se justifica dentro de uma perspectiva dofor talecimento da escola pública como um lugar de tolerânciae também viabilizador de encontros, dada a legitimidade de

que este lugar e seus profissionais ainda gozam. Por contadesta legitimidade, tem sido possível conversar sobre a neu- rose, e outras questões relevantes para os jovens envolvi-dos no projeto que se mostram importantes para a cidade,que a estrutura de ensino materializada na escola negli-gencia ou impede.

O projeto Decompondo Divisas busca, portanto, enfren-tar esses desafios: aproximar o conhecimento acadêmico aoconhecimento escolar e municiar iniciativas locais que enten-dam a escola como lugar privilegiado para as discussões que

afetam seu público. Busca-se, assim, for talecer a escolapública como espaço de articulação política que não negueos conflitos e promova a tolerância.

Inicialmente, procurava-se a tolerância entre jovens divi-didos pelo que se convencionou chamar de “facções rivais”.No decorrer do projeto, que acontece no âmbito do Programa

Escola de Paz da Unesco, percebeu-se que outras divisas toma-vam conta da vida destes jovens: professor/aluno, escola/universidade, homem/mulher. Aliás, a iniciativa seduziu funda-mentalmente jovens homens. Este fato confirmou duas hipó-teses não excludentes: ainda permanece na sociedade brasi-leira a idéia de que o espaço da fala e da política é masculinoe a neurose tem força, sobretudo, entre homens negros nafaixa dos 12 a 25 anos, submetidos mais fortemente aosestereótipos que viabilizam reações ao medo “neorótico”.

Esta articulação possibilitou não só o trânsito dos alunosdas escolas pela Maré e pelo Rio de Janeiro, mas também oefetivo aumento de seu capital social, rompendo estereótipose construindo novas redes sociais. Boas surpresas surgi-ram: quatro participantes fazem estágio no Arquivo Geral da

Cidade e o projeto hoje é acompanhado por uma bolsista deextensão da UFF. Agora o grupo formado encara o desafio dese preparar para andar com pernas próprias e sair da condi-ção de beneficiário para executor do programa. Empreende-se,então, uma segunda fase em que se pretende produzir umdocumentário sobre tipos de opressão pelos quais nossos jo-vens passam e pelos quais muitos de nós “passamos batido”.

Mário Miranda Neto e Rodolfo Lo-Bianco [email protected], [email protected]

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8 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 3 | ABRIL DE 2004

F I Q U E S A B E N D O . . .As comunidades urbanas territorializadas, conhecidas como favelas,invasões, morros, quebradas etc., formam uma parte fundamental darealidade social brasileira. Ocupam espaço na mídia e no imagináriosocial como lugares da violência, da precariedade, da promiscuidadesocial e de outros traços deletérios da modernidade desigual brasileira.Apesar de serem, de fato, uma fratura exposta das injustiças e violênciasestruturais que fazem o Brasil ser o que é, são também espaços deresistência e criatividade, espaços de alegria e de formas solidárias desociabilidade. Nesta edição do Fique Sabendo apresentamos algumasinformações sobre as favelas brasileiras, lembrando que estes territóriostambém são lugares de construção e contestação de identidadesmasculinas em ambientes de exclusão e violência que caracterizam oprocesso social brasileiro.

Em 2001, 18,9% das moradias não eram atendidas por rede geral deabastecimento de água e 33,2% não dispunham de esgotamento sanitárioadequado (existente quando a instalação sanitária é ligada à rede coletora deesgoto ou a fossa séptica). Em 1999, estes percentuais estavam,respectivamente, em 20,2% e 35,3%.

O Estado de São Paulo possui omaior número de favelas do país,1.548, seguido do Rio de Janeiro,com 811. Em termos nacionais, ocrescimento do número de favelas

no período 1991-2000 foi de22,5%. Em números, isso significaque das 3.905 favelas existentesno Brasil, no final de 2000, 717surgiram na última década.

O Rio de Janeiro é o estado mais favelizado do país: 10% de sua populaçãovivem em favelas, o que representa 1,4 milhão de pessoas. Entre 1991 a2000, mais 150 mil pessoas passaram a viver nas favelas fluminenses.

Um levantamento da ONU afirma que até 2030 o número de pessoas vivendoem favelas no mundo todo vai dobrar e baterá a casa de dois bilhões deindivíduos. As causas apontadas são as mais óbvias: urbanização aceleradae o aumento da pobreza. Já o estudo do IBGE – a Pesquisa de InformaçõesBásicas Municipais (Munic) 2001 – revela que 70% das favelas estão nos32 maiores municípios (com mais de 500 mil habitantes) do país. No total,2.362.708 domicílios estão em áreas favelizadas no país todo.

Em 1998, 13,9 % da população brasileira era classificada como indigentee 32,7 % como pobres.

Em São Paulo, 20% dos moradores habitam favelas; destas 49,3% estãolocalizadas à beira de córregos, 32,2% estão sujeitas a enchentes etc.

Fontes: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2001; Iets/Atlas de Desenvolvimento Humano; IPEA;MARICATO, Ermínia. A Bomba-relógio das Cidades Brasileiras. Democracia Viva, n° 11, jul/out 2001. pp. 3-7.

J Á L E U?Racismo àBrasileira. UmaNova PerspectivaSociológicaTELLES, Edward. Rio de Janeiro.Relume Dumará. 2003.

O norte-americanoEdward Telles é pro-fessor de Sociologiada Universidade daCalifórnia e tem pro-fundo conhecimentosobre o Brasil e sobre

as relações raciais bra-sileiras. Entre 1997 e2000 foi assessor doPrograma de Direitos

Humanos da Fundação Ford no Rio deJaneiro, além de ter lecionado emdiversas universidades brasileiras.Neste livro, denso, atual e muito bemdocumentado, o autor apresenta umainterpretação abrangente para aquestão das desigualdades raciais noBrasil. E apresenta soluções, dentreestas, ações afirmativas para o acessoao ensino superior.

Violência e Estilosde MasculinidadeCECCHETTO, Fátima Regina. Rio de Janeiro, FGV Editora. 2004.

Adaptação da tese dedoutorado da autora, olivro discute, a par tirde ampla revisão dabibliografia especiali-

zada sobre o tema, di-ferentes “estilos” demasculinidade e suasconexões com o siste-ma discursivo e as prá-ticas violentas. Utili-

zando a metodologia etnográfica, aantropóloga nos apresenta três gruposdistintos no Rio de Janeiro que se rela-cionam com a violência, e com as pró-prias identidades de gênero, de ma-neiras diferentes: jovens funkeiros,praticantes de jiu-jitsu e freqüentado-res dos bailes charme. O livro chama aatenção para os riscos de se pressu-por uma identificação automática en-tre pobreza, masculinidade e violência.

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