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BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em Educação: fundamentos, métodos e técnicas. In: Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto Editora, 1994, p. 15-80. Página 15.  Um investigador de trinta e poucos anos de idade encontrava-se no pátio de recreio de uma escola primária a observar a chegada, para o primeiro dia de aulas, de um autocarro cheio de crianças afro-americanas. Tratava-se do primeiro grupo de afro-americanos a frequentar esta escola. O investigador estava a desenvolver um estudo exploratório sobre o processo de integração. O estudo obrigava-o a visitar a escola regularmente, com o objectivo de observar as experiências de alunos e professores. Adicionalmente, entrevistou professores, o director, as crianças e os pais, tendo igualmente assistido a reuniões. Este tipo de trabalho prolongou-se ao longo de todo um ano, resultando num registo escrito no qual foi anotado, de forma não intrusiva, aquilo que observara (Rist, 1987). Noutro local dos Estados Unidos, alguns investigadores estudaram o significado que os itens dos testes tinham para as crianças que as eles se submetiam. Interrogaram crianças da primeira classe sobre as suas respostas. Por exemplo, uma das questões do teste solicitava às crianças que escolhessem, de entre três gravuras, aquela que melhor se relacionava com determinada palavra que as acompanhava. Muitas das crianças responderam à palavra mosca, que acompanhava gravuras representando um elefante, um pássaro e um cão, assinalando simultaneamente o pássaro e o elefante ou mesmo só o elefante (a resposta "certa" era o pássaro). Quando questionados relativamente às suas respostas, as crianças disseram aos investigadores que o elefante era o "Dumbo", o elefante voador de Walt Disney. As crianças tinham compreendido o conceito que a questão do teste tentava evocar, mas responderam baseando-se numa perspectiva diferente daquela que os criadores do teste tinham em mente. Este estudo pretendia investigar o raciocínio das crianças (Mehan, 1978). Numa grande cidade, determinada investigadora entrevistou um grupo de professoras, na tentativa de compreender das relações entre as suas vidas privadas e as suas vidas profissionais.  A amostra era reduzida, menos de dez sujeitos. Acabou por conhecer bem estas mulheres, dado que as entrevistas eram longas e em profundidade, tendo sido conduzidas ao longo de todo um ano nas próprias casas e salas de aulas das professoras. A investigadora analisou os dados deste estudo de caso com o objectivo de identificar padrões relativos às perspectivas das professoras face às suas vidas profissionais (Spencer, 1986). Página 16. Todos os exemplos anteriores são ilustrações de investigação qualitativa em educação. É óbvio que não esgotam nem a diversidade de estratégias de investigação, nem os tópicos possíveis. Outros autores que conduzem investigação qualitativa estudam os contos de fadas e os livros escolares para identificar as formas como são representadas as pessoas com deficiências físicas (Biklen e Bogdan, 1977); analisam fotografias de crianças em álbuns familiares para identificar as formas como a família se representa (Musello, 1979); e visionam vídeos de estudantes a executar trabalhos escolares com o objectivo de compreender os conceitos que as crianças têm sobre ordem (Florio, 1978; McDermotl, 1976). As experiências educacionais de pessoas de todas as idades (bem como todo o tipo de materiais que contribuam para aumentar o nosso conhecimento relativo a essas experiências), tanto em contexto escolar como exteriores à escola, podem constituir objecto de estudo. A investigação qualitativa em educação assume muitas formas e é conduzida em múltiplos contextos. Ainda que os investigadores em antropologia e sociologia tenham vindo a utilizar a abordagem descrita no presente livro desde há um século, a expressão "investigação qualitativa" não foi utilizada nas ciências sociais até ao final dos anos sessenta. Utilizamos a expressão investigação qualitativa como um termo genérico que agrupa diversas estratégias de investigação que partilham determinadas características. Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas. locais e conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos em toda a

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BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em Educação: fundamentos, métodos etécnicas. In: Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto Editora, 1994, p. 15-80.

Página 15. 

Um  investigador de trinta e poucos anos de idade encontrava-se no pátio de recreio de uma

escola primária a observar a chegada, para o primeiro dia de aulas, de um autocarro cheio decrianças afro-americanas. Tratava-se do primeiro grupo de afro-americanos a frequentar estaescola. O investigador estava a desenvolver um estudo exploratório sobre o processo deintegração. O estudo obrigava-o a visitar a escola regularmente, com o objectivo de observar asexperiências de alunos e professores. Adicionalmente, entrevistou professores, o director, ascrianças e os pais, tendo igualmente assistido a reuniões. Este tipo de trabalho prolongou-se aolongo de todo um ano, resultando num registo escrito no qual foi anotado, de forma não intrusiva,aquilo que observara (Rist, 1987).

Noutro local dos Estados Unidos, alguns investigadores estudaram o significado que os itens dostestes tinham para as crianças que as eles se submetiam. Interrogaram crianças da primeira classesobre as suas respostas. Por exemplo, uma das questões do teste solicitava às crianças queescolhessem, de entre três gravuras, aquela que melhor se relacionava com determinada palavraque as acompanhava. Muitas das crianças responderam à palavra mosca, que acompanhava

gravuras representando um elefante, um pássaro e um cão, assinalando simultaneamente opássaro e o elefante ou mesmo só o elefante (a resposta "certa" era o pássaro). Quandoquestionados relativamente às suas respostas, as crianças disseram aos investigadores que oelefante era o "Dumbo", o elefante voador de Walt Disney. As crianças tinham compreendido oconceito que a questão do teste tentava evocar, mas responderam baseando-se numa perspectivadiferente daquela que os criadores do teste tinham em mente. Este estudo pretendia investigar oraciocínio das crianças (Mehan, 1978).

Numa grande cidade, determinada investigadora entrevistou um grupo de professoras, natentativa de compreender das relações entre as suas vidas privadas e as suas vidas profissionais.

 A amostra era reduzida, menos de dez sujeitos. Acabou por conhecer bem estas mulheres, dadoque as entrevistas eram longas e em profundidade, tendo sido conduzidas ao longo de todo um anonas próprias casas e salas de aulas das professoras. A investigadora analisou os dados desteestudo de caso com o objectivo de identificar padrões relativos às perspectivas das professorasface às suas vidas profissionais (Spencer, 1986).

Página 16.

Todos os exemplos anteriores são ilustrações de investigação qualitativa em educação. É óbvio quenão esgotam nem a diversidade de estratégias de investigação, nem os tópicos possíveis. Outrosautores que conduzem investigação qualitativa estudam os contos de fadas e os livros escolarespara identificar as formas como são representadas as pessoas com deficiências físicas (Biklen eBogdan, 1977); analisam fotografias de crianças em álbuns familiares para identificar as formascomo a família se representa (Musello, 1979); e visionam vídeos de estudantes a executar trabalhosescolares com o objectivo de compreender os conceitos que as crianças têm sobre ordem (Florio,1978; McDermotl, 1976). As experiências educacionais de pessoas de todas as idades (bem comotodo o tipo de materiais que contribuam para aumentar o nosso conhecimento relativo a essasexperiências), tanto em contexto escolar como exteriores à escola, podem constituir objecto de

estudo. A investigação qualitativa em educação assume muitas formas e é conduzida em múltiploscontextos.

Ainda que os investigadores em antropologia e sociologia tenham vindo a utilizar a abordagemdescrita no presente livro desde há um século, a expressão "investigação qualitativa" não foi utilizadanas ciências sociais até ao final dos anos sessenta. Utilizamos a expressão investigação qualitativacomo um termo genérico que agrupa diversas estratégias de investigação que partilhamdeterminadas características. Os dados recolhidos são designados por  qualitativos, o que significaricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas. locais e conversas, e de complexotratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalizaçãode variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos em toda a

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sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivíduos que fazem investigação qualitativapossam vir a seleccionar questões específicas à medida que recolhem os dados, a abordagem àinvestigação não é feita com o objectivo de responder a questões prévias ou de testar hipóteses.Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dossujeitos da investigação. As causas exteriores são consideradas de importância secundária.Recolhem normalmente os dados em função de um contacto aprofundado com os indivíduos, nosseus contextos ecológicos naturais.

 As estratégias mais representativas da investigação qualitativa, e aquelas que melhor ilustram ascaracterísticas anteriormente referidas, são a observação participante e a entrevista em

 profundidade.O investigador que observou as crianças afro-americanas a sair do autocarro estava arealizar um estudo de observação participante. O investigador introduz-se no mundo das pessoasque pretende estudar, tenta conhecê-las, dar-se a conhecer e ganhar a sua confiança, elaborandoum registo escrito e sistemático de tudo aquilo que ouve e observa. O material assim recolhido écomplementado com outro tipo de dados, como registos escolares, artigos de jornal e fotografias.

O caso da investigadora que estudou o grupo de professoras trata-se de um exemplo do recurso àentrevista em profundidade. Por vezes, este tipo de entrevista é designada por 

Página 17.

"não-estruturada" (Maccoby e Maccoby, 1954) ou "aberta" (Jahoda, Deutsch e Cook, 1951), "não-

directiva" (Meltzer e Petras, 1970) ou, ainda, entrevista "de estrutura flexível" (Whyte, 1979). Oobjectivo do investigador é o de compreender, com bastante detalhe, o que é que professores,directores e estudantes pensam e como é que desenvolveram os seus quadros de referência. Esteobjectivo implica que o investigador passe, frequentemente, um tempo considerável com os sujeitosno seu ambiente natural, elaborando questões abertas do tipo "descreva um dia típico" ou "de que éque mais gosta no seu trabalho?", registando as respectivas respostas. O carácter flexível destetipo de abordagem permite aos sujeitos responderem de acordo com a sua perspectiva pessoal, emvez de terem de se moldar a questões previamente elaboradas. Na investigação qualitativa não serecorre ao uso de questionários. Ainda que se possa, ocasionalmente, recorrer a grelhas deentrevista pouco estruturadas, é mais típico que a pessoa do próprio investigador seja o únicoinstrumento, tentando levar os sujeitos a expressar livremente as suas opiniões sobre determinadosassuntos. Dado o detalhe pretendido, a maioria dos estudos são conduzidos com pequenasamostras. Nalguns estudos o investigador limita-se a traçar uma caracterização minuciosa de um

único sujeito. Nestes casos, onde o objectivo é o de captar a interpretação que determinada pessoafaz da sua própria vida, o estudo designa-se por história de vida.Se bem que utilizemos a expressão investigação qualitativa, outros autores recorrem a expressões

diferentes e conceptualizam o tipo de investigação descrito no presente livro de modo algo diverso.Investigação de campo é uma expressão utilizada por antropólogos e sociólogos, devendo-se a suautilização ao facto dos dados serem normalmente recolhidos no campo, em contraste com osestudos conduzidos em laboratório ou noutros locais controlados pelo investigador (ver Junker,1960). Em educação, a investigação qualitativa é frequentemente designada por naturalista, porque oinvestigador frequenta os locais em que naturalmente se verificam os fenómenos nos quais estáinteressado, incidindo os dados recolhidos nos comportamentos naturais das pessoas: conversar,visitar, observar, comer, etc. (Guba, 1978: Wolf, 1978a). A expressão etnográfica é igualmenteaplicada a este tipo de abordagem. Enquanto que alguns autores a utilizam num sentido formal, parase referirem a uma categoria particular de investigação qualitativa, aquela a que a maioria dos

antropólogos se dedica e que tem como objectivo a descrição da cultura, ela também é utilizada deforma mais genérica - algumas vezes como sinónimo - da investigação qualitativa tal como aestamos a descrever (Goetz e LeCompte, 1984).

Existem igualmente outras expressões associadas com a investigação qualitativa. Referimo-nos a:interaccionismo simbólico, perspectiva interior, Escola de Chicago, fenomenologia, estudo de caso,etnometodologia, ecologia e descritivo. A utilização e definição exactas destas expressões, bemcomo de trabalho de campo e de investigação qualitativa, têm variado ao longo do tempo e entrediferentes utilizadores. Isto não significa que todas estas expressões queiram dizer a mesma coisa,nem que algumas delas não tenham um significado preciso quando utilizadas por determinadosautores (Jacob, 1987).

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Escolhemos privilegiar a expressão investigação qualitativa como englobando todo o conjunto deestratégias que designamos por "qualitativas". Iremos clarificar algumas das expressõesanteriormente mencionadas no decorrer da exposição.

Até ao momento, limitámo-nos a introduzir o tópico de estudo. Voltaremos, no presente capítulo, adiscutir mais detalhadamente as características da investigação qualitativa, bem como os seusfundamentos teóricos. Mas, antes do mais, contextualizemos historicamente o nosso objecto deestudo.

Página 19.

Capítulo 1: A tradição da investigação qualitativa em educação

Os historiadores da investigação educacional tradicional citam o ano de 1954 como um ponto deviragem (Travers, 1978; Tyler, 1976). O Congresso aprovou legislação que, pela primeira vez,permitia a atribuição de bolsas a instituições com programas de investigação educacional. Tomandoos subsídios federais como indicador, a investigação educacional tinha sido finalmente reconhecida.Contudo, o reconhecimento dos investigadores que trabalhavam com metodologias qualitativas cujo

trabalho, à época, era considerado marginal, ainda teria de aguardar algum tempo. Para estesinvestigadores o ano de 1954 foi um ano como outro qualquer. Por razões sobre as quais nosdebruçaremos nas próximas páginas, o desenvolvimento da investigação qualitativa em educação sóse veio a verificar no final dos anos sessenta.

Ainda que a investigação qualitativa no campo da educação só recentemente tenha sidoreconhecida, possui uma longa e rica tradição. As características desta herança auxiliam osinvestigadores qualitativos em educação a compreender a sua metodologia em contexto histórico. Asorigens da investigação qualitativa encontram-se em várias disciplinas, donde que a nossa resenhahistórica ultrapasse as fronteiras disciplinares. Propomos uma perspectiva relativa aodesenvolvimento dos métodos de investigação qualitativa em educação.

ORIGENS NO SÉCULO DEZANOVE

Algumas das características da vida quotidiana do século dezanove nos Estados Unidos estiveramna base da investigação social. A urbanização e o impacto da imigração em

Página 20.

massa deram origem a vários problemas nas cidades: sanitários, de saúde pública, bem-estar eeducação. O fotógrafo Jacob Riis (1890) expôs a vida dos pobres urbanos nas páginas de How theOther Half Lives. Jornalistas de investigação, como Lincoln Steffens (1904, 1931) e outros,denunciaram nos seus artigos a corrupção na gestão da cidade, a "vergonha das cidades" e outrascalamidades. Entre 1870 e 1890, o papel tomou-se mais barato, a distribuição dos jornais expandiu-se enormemente e o "jornalismo sensacionalista" floresceu (Taylor, 1919).

Este tipo de publicidade chamou a atenção para as condições degradadas da vida urbana nasociedade americana. A denúncia jornalística dos problemas sociais exigia resposta, uma delas foi o

"movimento dos levantamentos sociais", constituído por um conjunto de estudos comunitárioscoordenados, relativos aos problemas urbanos, e levados a cabo próximo do início do século vinte.Estes levantamentos revestiram-se de determinada forma, dado o nascimento das ciências naturaister estimulado o entendimento de disciplinas. tais como a sociologia, como científicas e nãosimplesmente filosóficas (Harrison, 1931; Riley, 1910-1911). Foram igualmente antecedidos por levantamentos relativos aos pobres, conduzidos na Europa e na Inglaterra.

Nos finais do século dezenove, o francês Frederick LePlay estudou famílias da classetrabalhadora, recorrendo ao método designado por "observação participante" pelos cientistas sociaisdos anos trinta (Wells, 1939). Por seu lado, LePlay designava o método meramente por "observação" (Zimmerman e Frampton, 1935), utilizando-o na tentativa de encontrar um remédio

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para o sofrimento social. Enquanto observadores participantes. LePlay e os seus colegas viveramcom as famílias que estudaram; participavam nas suas vidas, observando cuidadosamente o quefaziam no trabalho, no tempo de Jazer, na igreja e na escola. Este trabalho foi publicado sob o títuloLês Ouvriers Europeans (o primeiro volume surgiu em 1879), e descreve detalhadamente a vida defamília da classe trabalhadora na Europa.

Por sua vez, a obra de Henry Mayhew, London Labour and the London Poor,publicada em quatrovolumes entre 1851 e 1862 (Fried e Elman, 1968; Stott, 1973), consiste no registo, ilustração edescrição das condições de vida dos trabalhadores e dos desempregados. Mayhew apresentahistórias de vida e os resultados de entrevistas exaustivas com os pobres.

A investigação de Charles Booth, um estatístico que começou a fazer levantamentos sociaisrelativos aos pobres de Londres em 1886 (Webb, 1926), seguiu a tendência da literatura urbanaemergente. O empreendimento de Booth revestiu-se de dimensões incríveis, prolongando-se por dezessete anos e dando origem a igual número de volumes escritos. O seu principal objectivo era ode descobrir quantos pobres existiam em Londres e quais as suas condições de vida. Ainda que asua principal preocupação fosse documentar quantitativamente a extensão e natureza da pobrezaem Londres, o seu trabalho contém descrições exaustivas e detalhadas das pessoas que estudou.Tais descrições foram recolhidas durante os períodos de tempo em que Booth viveu,anonimamente, entre as pessoas que observou, com o objectivo de ter experiência directa das vidasdos seus sujeitos (ver Taylor, 1919; Webb. 1926; Wells. 1939).

Página 21.

Nota da transcritora: Figura ilegível. Legenda: Professora e alunos, cidade de Nova Iorque, 1890.Fim de nota.

Um dos colaboradores do projecto colossal de Booth foi Beatrice Webb (nome de solteira, Potter)que, juntamente com o marido, se tornou uma figura destacada do movimento socialista Fabiano.Com toda uma vida dedicada ao estudo das instituições sociais e do sofrimento dos pobres, odespertar do interesse, dedicação e empenho de Webb pela temática, ficou a dever-se à suaprimeira experiência de trabalho de campo. Compreendeu em primeira mão aquilo que Roy Stryker,outro estudioso dos pobres, viria mais tarde a escrever, "o povo é constituído por indivíduos" (Stott,1973):

"Nunca tinha visto o trabalho como composto por homens e mulheres individuais, de diferentesformas e feitios. Até ao momento em que me comecei a interessar pelas ciências sociais e a receber formação como investigador social, o trabalho não era mais do que uma abstracção que pareciadenotar uma massa de seres humanos aritmeticamente calculável (cada indivíduo como repetição doindivíduo anterior), de forma muito semelhante ao facto do capital das empresas do meu pai consistir,presumo, em soberanos de ouro idênticos a todos os outros soberanos de ouro, em forma, peso, cor e também em valor." (Webb, 1926, p. 41)

Aquilo que não passava de mera abstracção ganhou carne e osso para Beatrice Webb, mediante oseu contacto em primeira mão com os seus sujeitos de investigação. Posteriormente, o casal Webbpublicou uma descrição da sua metodologia, obra que foi objecto de

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Nota da transcritora: figura ilegível. Legenda: Escola nocturna numa modesta pensão da Sétima Avenida, começos de 1890. Fim de nota.

ampla leitura nos Estados Unidos (Wax, 1971)5, e que parece constituir a primeira discussãoprática da abordagem qualitativa (Webb e Webb, 1932).

Por sua vez, nos Estados Unidos, foi W. E. B. Ou Bois que procedeu ao primeiro levantamentosocial. Publicado em 1899 com o título de The Philadelphia Negro, consistia num trabalho levado acabo durante cerca de um ano e meio de estudo apurado, recorrendo a entrevistas e observações desujeitos que habitavam essencialmente no Sétimo Bairro da cidade. O objectivo da investigação era

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o de examinar "as condições de vida dos mais de quarenta mil indivíduos de raça negra quehabitavam na cidade de Filadélfia" (Du Bois. 1899 [1967], p. 1).

Um dos levantamentos sociais mais significativos foi o de Pittsburgh, conduzido em 1907. O grupoque o conduziu tentou aplicar o "método científico" ao estudo dos problemas sociais. Ainda que osestudiosos ligados ao movimento dos levantamentos sociais tendam a acentuar a naturezaestatística destes (ver, por exemplo, Devine 1906-1908; Kellog, 1911-1912), os resultados doInquérito de Pittsburgh, por exemplo, sugeriram que esta ênfase se podia dever mais aos valorescontemporâneos inerentes à quantificação como símbolo da abordagem científica do que aoconteúdo dos registos propriamente ditos. Ainda que o Inquérito de Pittsburgh apresentequantificações estatísticas, relativamente a questões que vão desde o número de acidentessemanais e valor dos salários, até aos tipos e localizações dos sanitários e a frequência escolar,

Página 23.

apresenta igualmente descrições detalhadas, entrevistas, desenhos (executados em carvão por vários artistas) e fotografias.

Esta articulação entre o quantitativo e o qualitativo está bem patente na revista Charily and theCommons (que posteriormente se transformou na The Survey), que publicou resultados do Inquéritode Pittsburgh em três números que lhe foram dedicados em 1908-1909. Os relatos vão desde oplaneamento educacional - "nesta cidade, os edifícios escolares", afirmou um experiente responsável

escolar de Allengheny, "são primeiro construídos e só depois é que se reflecte sobre eles" (North,1909), até às questões levantados pelos estudantes mais "débeis" na escola, devido àscaracterísticas da abordagem dos professores do ensino elementar ao problema. Determinadaprofessora:

"teve 128 alunos num ano e 107 no seguinte. Dividiu as crianças cm duas turmas. As crianças maisinteligentes vinham pela manhã e era-lhes permitido proceder segundo o seu próprio ritmo, acabandopor 'cobrir' entre seis e nove livros por ano; os com maiores dificuldades, em menor número, vinhampela tarde. Dedicavam-se essencialmente a brincar, e as sessões da tarde não duravam mais deduas horas; consequentemente, estas crianças não 'cobriam' mais de um livro por ano."

Estes últimos alunos acabavam por desistir, engrossando a "coluna de trabalhadores industriaisiletrados" (North, 1909). Além deste, abundam os registos semelhantes.

A variedade dos dados dos levantamentos sociais devia-se à natureza interdisciplinar dainvestigação: cientistas sociais, assistentes sociais, líderes cívicos, o investigador exterior culto(equivalente aos consultores modernos) e jornalistas, todos eles deram o seu contributo.

 Adicionalmente, os diferentes materiais eram discutidos em reuniões públicas e expostos àcomunidade (Taylor, 1919).

Os levantamentos sociais têm uma importância particular para a compreensão da história dainvestigação qualitativa em educação, dada a sua relação imediata com os problemas sociais e a suaposição particular a meio caminho entre a narrativa e o estudo científico. Por exemplo, em 1904,Lincoln Steffens apresentou a sua obra Shame of lhe Cities, com os seguintes comentários:

"Nada disto é muito científico, mas eu não sou um cientista. Sou um jornalista. Não recolhi todos osfactos com indiferença, nem os ordenei pacientemente com o objectivo de serem preservados elaboratorialmente analisados. Não os quis preservar, quis destruir os factos. O meu intuito foi tão

científico como o espírito da minha investigação e dos meus registos; foi, como já referi, ver se osfactos vergonhosos se apresentavam em toda a sua crueza, agitando a indiferença cívica eincendiando o orgulho americano. Era este o componente jornalístico, a intenção de convencer e deprovocar reacções." (Steffens, 1904, em Harrison, 1931, p. 21 )

Página 24.

Steffens tinha esperança de, com os seus escritos, desencadear acções que contribuíssem paraaliviar o sofrimento humano. Vinte e cinco anos mais tarde, em 1929, após inúmeros levantamentossociais por todos os Estados Unidos, William Ogburn faria os seguintes comentários, na conferência

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de abertura da Sociedade Americana de Sociologia. Quão diferentes pareciam os métodos científicose jornalísticos, à data. Do ponto de vista profissional, a sociologia tinha de desenvolver novos hábitospara se tornar científica:

"Um destes novos hábitos será a escrita de artigos totalmente desapaixonados e o abandono dohábito corrente de tentar transformar os resultados da ciência em literatura... Os artigos necessitamsempre de ser acompanhados pelos dados em que se baseiam; desta forma, o texto será maispequeno e o espaço ocupado pelos dados maior... É óbvio que o sociólogo trabalhará com o tipo deproblemas que tendem a transformar a sociologia num corpo de conhecimentos organizado esistemático, escolherá, igualmente, para objecto de investigação, os problemas cuja soluçãobeneficiará a espécie humana e a sua cultura... Mas, o sociólogo científico atacará os problemasescolhidos com uma só ideia em mente: a construção de novos conhecimentos." (Harrison, 1931, p.21)

Nota da transcritora: figura ilegível. Legenda: Rapazes do carvão da mina de Ewen em S. Pittston,Pensilvânia, 10 de Janeiro de 1911. O trabalho fotográfico de Hine contribuiu para a aprovação dasleis relativas ao trabalho infantil. Fim de nota.

Página 25.

O levantamento social encontrava-se a meio caminho entre estes dois mundos: era conduzido como objectivo de encorajar mudanças sociais, com base na investigação, e os seus métodosapresentavam os problemas em termos humanos.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA

As origens antropológicas da investigação qualitativa em educação estão convincentementedocumentadas (ver, particularmente, Roberts, 1976). Franz Boas, fundador do primeiro departamentouniversitário nos Estados Unidos, terá possivelmente sido o primeiro antropólogo a escrever sobreantropologia e educação, num artigo publicado em 1898 e dedicado ao ensino da antropologia anível universitário. Boas e os seus colaboradores foram igualmente dos primeiros antropólogos aresidir nos contextos naturais dos sujeitos, ainda que durante curtos espaços de tempo, e a basear-se em informadores competentes que falavam inglês, dado não terem conhecimento da língua

nativa.Para o nosso propósito, o desenvolvimento da investigação qualitativa em educação, o contributomais significativo de Boas foi a sua participação no desenvolvimento da antropologia interpretativa,bem como o seu conceito de cultura. Em contraste com os antropólogos anteriores. Boas era um"relativista cultural", acreditando que cada cultura estudada devia ser abordada de forma indutiva.Caso os etnógrafos abordassem uma determinada cultura na expectativa de a compreender segundoa perspectiva ocidental, acabariam necessariamente por distorcer aquilo que observavam. Boaspensava que os antropólogos deviam estudar as culturas com o objectivo de aprender a forma comocada uma delas era vista pelos seus próprios membros (ver Case, 1927).

Igualmente em 1898, o ano do artigo de Boas, Nina Vandewalker, que Roberts (1976) descreveucomo uma "académica desconhecida", aplicou, pela primeira vez, a antropologia à educação, noartigo "Some Demands of Education upon Anthropology", publicado no  American Journal of Sociology. No artigo abordava as relações entre a educação e a cultura (Vandewalker, 1898).

Relativamente ao desenvolvimento das técnicas de trabalho de campo é necessário, em primeirolugar, considerar os estudos antropológicos das culturas nativas. Ao contrário de Boas, que sebaseou mais em documentos e informadores do que em observações directas e aprofundadas,Bronislaw Malinowski foi o primeiro antropólogo cultural a passar longos períodos de tempo numaaldeia nativa, para observar o seu funcionamento (Wax, 1971). Foi igualmente o primeiro antropólogoprofissional a descrever o modo como obteve os seus dados e a experiência do trabalho de campo.Estabeleceu as bases da antropologia interpretativa, ao enfatizar a importância de apreender "oponto de vista do nativo" (Malinowski, 1922, p. 25).

Malinowski insistia que a teoria da cultura se devia basear em experiências humanas particulares ena observação, e ser construída indutivamente (Malinowski, 1960). É interessante o facto de a sua

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abordagem de campo se ter desenvolvido acidentalmente.

Página 26.

Quando chegou à Nova Guiné, dispondo de meios financeiros muito limitados, verificou-se o inícioda Primeira Grande Guerra. Deste modo, a sua viagem foi negativamente afectada, sendo obrigadoa permanecer na Austrália e nas ilhas até ao fim da guerra, em 1918. Tal facto contribuiu para afutura delineação do "trabalho de campo".

Possivelmente, a primeira aplicação concreta da antropologia à educação nos Estados Unidos foiefectuada pela antropóloga Margaret Mead (ver, particularmente, Mead, 1942 e 1951).Essencialmente preocupada com o papel do professor e com a escola enquanto organização,recorreu às suas experiências de campo em sociedades menos tecnológicas, para ilustrar o quadroeducativo em rápida mudança dos Estados Unidos da época. Mead estudou a forma como contextosparticulares - os tipos de escola que categorizou como a "pequena escola vermelha", a "escola decidade" e a "academia" - necessitavam de professores específicos, e a forma como estesprofessores interagiam com os alunos. Defendeu que os professores necessitavam de estudar,através de observações e experiências em primeira mão, os contextos cambiantes dos processos desocialização dos seus alunos, para se tornarem melhores professores. Ainda que não tenhaconduzido trabalho de campo formal nos Estados Unidos, reflectiu sobre a educação americana,focando-se nos conceitos antropológicos mais do que no método.

Uma das figuras principais no desenvolvimento do método qualitativo foi Robert Redfield, umantropólogo que estudou na Universidade de Chicago no período de desenvolvimento da sociologia.Era genro de Robert Park, outro sociólogo que, como teremos oportunidade de ver posteriormente,foi um pioneiro no desenvolvimento da investigação qualitativa nesta disciplina. O trabalho de campodos antropólogos constituiu um fundamento importante do modelo que ficou conhecido como asociologia de Chicago (Douglas, 1976). Os estudos etnográficos de Redfield tiveram muita influênciana investigação de campo sobre as comunidades (Faris, 1967), Na perspectiva de Wax, umantropólogo, os "sociólogos de Chicago" prosseguiram a tradição antropológica do trabalho decampo: "ao incidirem na 'observação participante', os sociólogos de Chicago denunciaram a sualigação à tradição etnográfica do trabalho de campo, iniciada por Malinowski" (Wax, 1971, p. 40).

A SOCIOLOGIA DE CHICAGO

Albion Small foi o fundador do departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, em 1892;foi igualmente o primeiro e o maior de todo o mundo (Odum, 1951). A "Escola de Chicago", rótuloaplicado a um grupo de sociólogos investigadores com funções docentes e discentes nodepartamento de sociologia da Universidade de Chicago, nos anos vinte e trinta, contribuíramenormemente para o desenvolvimento do método de investigação que designamos por qualitativo.

Ainda que os sociólogos de Chicago diferissem uns dos outros em aspectos importantes,partilhavam algumas noções teóricas e metodológicas. Do ponto de vista teórico,

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todos eles entendiam os símbolos e as personalidades como emergentes da interação social (Faris,1967). Do ponto de vista metodológico, todos se baseavam no estudo de caso, quer se tratasse deum indivíduo, de um grupo, de um bairro ou de uma comunidade (Wiley, 1979).

De entre as numerosas características da metodologia da Escola de Chicago, algumas sãoessenciais para a compreensão da investigação qualitativa em educação. Em primeiro lugar, ossociólogos de Chicago baseavam-se nos dados recolhidos em primeira mão para as suasinvestigações. Esta técnica estabeleceu-se a partir do trabalho de dois autores: W. I. Thomas eRobert Park. Thomas foi um dos primeiros alunos de pós-graduação do departamento de sociologia.O seu trabalho, juntamente com Florian Znaniecki, The Polish Peasant in Europe and America(Thomas e Znaniecki, 1927), é reconhecido como um "ponto de viragem na história da investigaçãosociológica", porque se concentrava "na análise qualitativa de documentos pessoais e públicos", e"introduzia novos elementos na investigação e novas técnicas para estudar esses elementos,técnicas não características das investigações empíricas, no sentido tradicional" (Bruyn, 1966).

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Thomas não entendia os dados em termos quantitativos. Interessante é o facto de ter sido acidental-mente que começou a utilizar as cartas como dados de investigação. Conta-se que um dia,passeando pelo gueto polaco de Chicago, se desviou para não ser atingido por lixo atirado de uma

 janela. Encontrou, entre o lixo, um maço de cartas e, como sabia ler polaco, começou a lê-las.Deparou-se com uma descrição em primeira mão da vida de um imigrante (Collins e Makowsky,1978, p. 184). Este incidente, tal como o de Malinowski ter ficado retido durante a Primeira GrandeGuerra, teve uma influência profunda no delinear da investigação social. Thomas partilhava com oantropólogo Boas o realçar da importância da compreensão dos pontos de vista e percepções darealidade de diferentes pessoas.

Depois de ter travado conhecimento com Thomas, numa conferência sobre as relações entre asraças, Robert Park foi para a Universidade de Chicago, em 1916 (Hughes, 1971). Apesar de Park seter tornado numa das figuras principais da Escola de Chicago, esta não foi a sua primeira carreira. Játinha sido um repórter jornalístico, além de ter trabalhado como relações públicas para a Booker T.Washington. Muitos historiadores da Escola de Chicago associam o encorajamento dado pelodepartamento aos estudantes de pós-graduação, para penetrarem nos mundos sociais que queriamestudar, à experiência jornalística de Park (ver, por exemplo, Douglas, 1976; Faris, 1967; Matthews,1977; Wax. 1971). Park enviava os seus alunos para as ruas de Chicago, nos anos vinte, para quepudessem observar pessoalmente o que se passava.

A ênfase na vida da cidade constitui a segunda característica importante dos sociólogos deChicago. O que quer que estudassem, faziam-no sempre tendo como pano de fundo a comunidade

como um todo, abordagem que Becker designou por "o mosaico científico" (Becker, 1970b). Park"encorajava regularmente os seus alunos a fazerem estudos gerais, mas exaustivos, relativos acomunidades particulares, com o objectivo de

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as entender como um todo" (Faris, 1967). Os trabalhos destes alunos, posteriormente publicados,ilustram tanto o interesse por diferentes aspectos da vida comum, como uma preocupação com oestudo da etnicidade. Foram objecto de estudo o gueto judeu (Wirth, 1928), os bailes dos taxistas(Cressy, 1932), o gang dos rapazes (Thrasher, 1927), o ladrão profissional (Sutherland, 1937), ovagabundo (Anderson, 1923), The Gold Coast and the Slum (Zorbaugh, 1929) e o delinquente(Shaw, 1966; publicado inicialmente em 1930). É na ênfase da intersecção entre o contexto social ea biografia que residem as origens das descrições contemporâneas da investigação qualitativa como

"holística". Como afirmou um dos sociólogos de Chicago, "o comportamento pode ser estudado,vantajosamente, tomando em consideração a situação em que surge" (Wells, 1939).Os sociólogos de Chicago, como afirmámos anteriormente, assumiram uma abordagem

interaccionista relativamente à investigação (Carey, 1975), enfatizando a natureza social einteractiva da realidade. Park, por exemplo, na sua introdução à metodologia de um estudo sobre asrelações raciais entre orientais e ocidentais na Califórnia, sugeriu que ele era importante peloreconhecimento que fazia de que "todas as opiniões, públicas ou privadas, são um produto social"(Bogardus, 1926). Com efeito, os investigadores pretendiam captar as perspectivas daqueles queeram entrevistados. Muitos dos sujeitos partilharam as suas perspectivas relativas às dificuldadesque experimentavam como americanos de origem oriental:

"Pensava que era americano. Tinha ideais americanos, lutaria pela América, venerava Washingtone Lincoln. Depois, no liceu, descobri que me chamavam ‘Jap’, me tratavam mal e me punham de

lado. Afirmei que não conhecia o Japão, não sabia falar a língua nem conhecia heróis ou a históriado Japão. Contudo, diziam-me constantemente que eu não era americano, não podia ser americanoe não podia votar. Sinto-me profundamente triste. Não sou japonês e não me é permitido ser americano. Pode dizer-me, ao fim de contas, aquilo que sou?" (Bogardus, 1926, p. 164)

Os investigadores não só enfatizavam a dimensão humana, mas envolviam-se igualmente emquestões políticas importantes.

Ainda que os sociólogos de Chicago tenham estudado os problemas sociais e conduzidoinvestigações relativas à vida na cidade, aos problemas comunitários e a carreiras desviantes, elesnão eram, na sua grande maioria, defensores da reforma. O primeiro movimento dos levantamentos

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sociais verificou-se numa altura em que a sociologia ainda não se encontrava suficientementediferenciada do "movimento organizado de caridade" (que posteriormente veio a ser conhecido comoassistência social). Quando a sociologia se diferenciou claramente da assistência social, abandonoua sua vertente reformista e reteve exclusivamente a influência do método de estudo de casos. Estaabordagem não se limitava a ser um método de campo, implicava igualmente o reconhecimento dasinter-relações existentes entre os diversos problemas sociais (Taylor, 1919). A sociologia

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tinha efectivamente alcançado o estatuto de ciência, contudo, aquilo que o grupo dos sociólogos deChicago escrevia não era o material árido que Ogburn apresentava nos encontros da Associação

 Americana de Sociologia.

A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Dado que o campo da sociologia da educação se desenvolveu numa altura em que o Departamentode Sociologia de Chicago tinha atingido o seu zénite, poderíamos esperar que as estratégias deinvestigação qualitativa se reflectissem claramente nos planos de investigação da sociologia daeducação. Contudo, não foi isto que se verificou.

O início oficial da sociologia da educação, como campo individualizado, verificou-se em 1915,

aquando da inauguração do primeiro curso de "Sociologia da Educação" (Snedden, 1937), mas oJournal of Educational Sociology só surgiu em 1926. Inicialmente, dois em cada três dos seusresponsáveis vinham da Escola de Chicago: Harvey Zorbaugh de The Gold Coast and the Slum eFrederick Thrasher, autor de The Gang. Entre os responsáveis pela revista encontravam-se trêsprofessores do Departamento de Sociologia de Chicago: Emory S. Bogardus, Ellsworth Faris eRobert Park. De facto, no início do primeiro volume, um determinado editorial sugeria que o Journal of Educational Sociology representava a "perspectiva de Chicago" (1927, 1:4, p. 177).

Vários números do volume 1 sugeriam que a perspectiva de Chicago se encontrava presente:alguns artigos fizeram revisões de The Gang de Trasher, seguiram o desenvolvimento profissional doProfessor Bogardus, mencionaram a publicação próxima de The Jack Roller de Shaw e registaramum discurso de Faris. Ainda que esta perspectiva não tenha dominado a revista, estava, sem dúvida,representada.

Durante o período relativo ao volume 2 (1928-1929), contudo, a preocupação constante com as

ciências naturais e com a avaliação quantitativa subiu de tom. No terceiro número, por exemplo, oeditorial debruçava-se sobre as discussões dos últimos anos relativas à questão "será a sociologiada educação uma ciência ou poderá vir a transformar-se em ciência"? Para se tornar ciência,explicava o editorial, a investigação em sociologia da educação tinha de ser experimental.

Esta perspectiva, defendida pelo "movimento de medida da escola científica", reflecte aspreocupações essenciais da educação à época. Era o "reinado do empirismo" (Cronbach e Suppes,1969). O "método científico" em educação identificou-se com a quantificação. A sociologia daeducação em geral (sempre parente pobre da psicologia da educação) e a Revista, em particular,afastaram-se da perspectiva de Chicago, encaminhando-se para uma abordagem quantitativa eexperimental.

Esta indisponibilidade para a Revista considerar outros materiais que não os dados estatísticosreflecte-se em artigos tais como ''The Validity of Life Histories and Diaries" (Bain, 1929). O autor apresentava várias razões para considerar as histórias de vida e os diários como adequados ao

trabalho social, mas não à sociologia: estes documentos não eram

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suficientemente científicos: não era possível aos investigadores tratar documentos tais como ashistórias de vida. estatisticamente: e eles não podiam ser padronizados. "Podem ser ‘interessantes eimpressionantes’”, comentava Bain, "mas também o cinema o é...".

À medida que os educadores foram aumentando a sua preocupação com a mensuração,quantificação e predição, as estratégias qualitativas tais como a "investigação em primeira mão", autilização de documentos pessoais e a preocupação do investigador de campo com o contexto social

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tornaram-se menos relevantes para os educadores (Peters, 1937). Além do mais, como já referimosanteriormente, os psicólogos dominaram a investigação educacional, e estes eram decididamenteexperimentalistas (Becker, 1983).

Existe, possivelmente, uma outra razão para que a sociologia de Chicago tenha tido pouco impactono desenvolvimento da sociologia da educação. Vamos mencioná-la brevemente, na esperança deque os historiadores venham a investigá-la com mais cuidado. Entre 1893 e 1935, mais de umacentena de dissertações de doutoramento foram realizadas no Departamento de Sociologia deChicago. Contudo, só duas delas se relacionavam com a educação (Faris, 1967). Se bem que ummaior número de dissertações de mestrado incidissem sobre a educação", estas constituíam só umapequena percentagem dos tópicos. Assuntos mais representados foram a socialização, a vidacomunitária, a juventude, o trabalho e a família. Ainda que estes tópicos possam reflectir a educação,no sentido mais amplo do termo, a sua componente mais profissional passou quase despercebida.

Em parte, esta falta de interesse podia reflectir o carácter neófito da sociologia da educação. No jantar anual da Sociedade Americana de Sociologia, em 1927, Ellsworth Faris "aproveitou a ocasiãopara chamar a atenção dos membros presentes para a importância do campo da sociologia daeducação, solicitando-lhes apoio na tarefa de alertar os sociólogos para os vários problemasinerentes a este campo" (Journal of Educational Sociology. 1927, 1:7). Só recentemente é que aspalavras educação e sociologia tinham surgido juntas.

Ainda que a quantificação representasse a tendência dominante no tocante à sociologia daeducação (Peters, 1937; Snedden, 1937), apareceram algumas excepções, particularmente o

trabalho de Willard Waller (Willower e Boyd, 1989). Waller obteve o seu mestrado com EllsworthFaris no Departamento de Sociologia de Chicago, sendo a sua abordagem da sociologia daeducação empírica mas "antiquantitativa", baseando-se num contacto directo com o mundo social, epreocupado com as relações entre as partes e o todo. A importância de Waller para a investigaçãoqualitativa deve-se essencialmente à actualidade da sua obra clássica Sociology of Teaching (Waller,1932).

Na Sociology of Teaching, Waller baseou-se em entrevistas em profundidade, em histórias de vida,na observação participante, no registo de casos, em diários, cartas e outros documentos pessoais,para descrever o mundo social dos professores e seus alunos. Para Waller, a ideia base do livro eraa crença de que "as crianças e os professores não constituem inteligências incorpóreas, nemmáquinas de ensino e de aprendizagem, mas sim seres humanos integrais, enlaçados num labirintocomplexo de interconexões sociais.

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 A escola é um mundo social por ser habitada por seres humanos" (Waller, 1932, p. 1). Waller recorreu aos métodos da "antropologia social", do "conto realista" e daquilo que hoje em diadesignaríamos por investigação qualitativa. O seu objectivo era o de auxiliar os professores atomarem consciência das realidades sociais da vida escolar, sentindo que, para alcançar esteobjectivo, tinha de ser realista e concreto:

"Ser concreto significa apresentar os materiais de forma a que os personagens não percam a suaqualidade de pessoas, nem as situações a sua realidade humana intrínseca. A sociologia realista temde ser concreta. No meu caso pessoal, esta preferência pelo concreto levou a uma descrençarelativa nos métodos estatísticos, que me pareceram de pouca utilidade para os meus propósitos.Possivelmente, a compreensão da vida humana avançará tanto pelo estudo directo dos fenômenos

sociais como pelo estudo dos símbolos numéricos que são abstraídos desses mesmos fenómenos."

Para Waller era o "tomar consciência" que devia orientar o método científico, e não o contrário(Waller, 1934).

A importância do trabalho de Waller sobre a vida social das escolas e dos seus intervenientesreside não só na força e rigor das suas descrições, mas também nos conceitos sociológicos queutilizou. Entre estes era proeminente o conceito de W. I. Thomas de "definição da situação" (Thomas,1923), um conceito claramente interactivo, que sugere que as pessoas examinem e "definam" assituações antes de agirem sobre elas. Estas "definições" são exactamente o que toma as situaçõesreais para nós. Outra base importante do trabalho de Waller foi a ideia de Coolley de que eram as

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"inter-relações dramáticas" que constituíam o traço distintivo do conhecimento social. Recorrendo àmetáfora do jogo de ténis, Cooley escreveu que um jogador necessita sempre de alguém do outrolado da rede para devolver a bola; não é possível jogar ténis sozinho (Cooley, 1927). O mesmo sepassa com o crescimento pessoal e com a dialéctica da compreensão social.

DOS ANOS TRINTA AOS ANOS CINQUENTA

Com poucas excepções de peso, e mesmo que os antropólogos culturais americanos tivessemcontinuado o seu trabalho (Marcus e Fisher, 1986), alguns académicos vêem a investigaçãorealizada entre os anos trinta e os anos cinquenta como um hiato da abordagem qualitativa. Podemassumir-se diversas perspectivas relativamente a esta posição, dependendo do modo como sedefine investigação, dos enviesamentos académicos e políticos de cada um e das fontes históricasque se utilizam. É sempre possível fazer inclusões e exclusões. Por exemplo, os historiadores dainvestigação qualitativa nunca incluíram Freud e Piaget entre os criadores da abordagem qualitativa,contudo, ambos se basearam em estudos de caso, observações e entrevistas em profundidade.

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Há qualquer coisa no trabalho destes dois homens que leva os historiadores da abordagemqualitativa a excluí-los deste domínio. Porém, os académicos de um campo diferente, a psicologia,

poderiam incluir estes personagens numa discussão da psicologia qualitativa. Do nosso ponto devista, não obstante os métodos qualitativos não terem constituído instrumentos populares deinvestigação durante estas décadas, eles desenvolveram-se e melhoraram. De certa forma, atradição floresceu; aquilo que essencialmente se modificou foram as pessoas que a utilizavam e oslocais onde era utilizada (pelo menos durante os anos trinta e quarenta). À medida que relatamos osacontecimentos desses anos tentaremos permanecer conscientes dos aspectos históricos que sãotradicionalmente tomados em consideração pelos sociólogos e antropólogos, bem como aqueles quenão o são. O que aconteceu à investigação qualitativa durante algumas décadas, antes de voltar asurgir em força nos finais dos anos sessenta?

A influência do departamento de sociologia de Chicago declinou durante os anos trinta, por umavariedade de razões. A Grande Depressão afectou o financiamento dos projectos de investigação e odinheiro de Laura Spelman Rockefeller, que tinha sido utilizado no financiamento dos estudos dacomunidade de Chicago, deixou de estar disponível. A Depressão teve igualmente outro efeito:

transferiu a preocupação dos sociólogos pelos imigrantes americanos c outras questões étnicas,preocupação até então dominante na escola de Chicago, para os problemas do desemprego maciço.Desacordos significativos entre os sociólogos americanos relativamente a questões políticas emetodológicas, bem como a reforma ou morte de muitas das figuras principais de Chicago,desempenharam um papel importante neste hiato. (Para uma discussão interessante destasquestões, ver Wiley, 1979.) Apesar de tudo isto, os alunos da Escola de Chicago continuaram adesempenhar um papel importante. Particularmente, Everett C. Hughes desenvolveu o campo dasociologia das profissões, tendo os seus alunos se transformado nos líderes da investigaçãoqualitativa durante os anos cinquenta, muitos deles dedicando-se ao estudo de questõeseducacionais (Becker, Geer, Hughes e Strauss, 1961; Becker, Geer e Hughes, 1968; Geer, 1973).Herbert Blumer criou o termo interaccionismo simbólico em 1937, desenvolvendo-o de formasignificativa. A Escola de Chicago também influenciou os antropólogos sociais.

Um campo amplamente reconhecido da utilização continuada de abordagem qualitativa foi o

trabalho desenvolvido pelos antropólogos sociais, que transportaram os métodos de campo quetinham utilizado no estrangeiro para os estudos conduzidos na cultura americana. Um destesprimeiros casos foi o famoso Yankee City Series, conduzido sob a orientação de W. Lloyd Warner,após ter regressado de estudar os aborígenes na Austrália (Warner e Lunt, 1941). Um estudo demonta, este que tentou penetrar na cultura e vida de uma comunidade moderna. A investigaçãoiniciou-se em 1930, se bem que os resultados, publicados em seis volumes, só tivessem sido dadosà estampa em 1941. Os investigadores de Yankee City reconheceram a sua dívida para com ossociólogos de Chicago

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(Warner e Lundt, 1941, p. 4), explicando que tinham seleccionado como objecto de estudo umacomunidade pequena, para que não fossem necessárias várias gerações de investigadores para sealcançar os objectivos: compreender o efeito da comunidade no indivíduo, explorar a forma como acomunidade se manifesta através dos seus membros individuais e descrever detalhadamente anatureza da comunidade. Uma parte deste estudo debruçou-se sobre a educação em Yankee City,particularmente sobre os aspectos sociais da escolaridade.Outros estudos importantes sobre a comunidade que foram conduzidos durante este período, e que

recorreram total ou parcialmente aos métodos qualitativos, foram os estudos dos Lynds sobreMiddletown (Lynd e Lynd, 1929, 1937), que tinham partes significativas sobre educação, e o Street Corner Society de Whyte, um estudo sobre a vida entre os homens italianos pobres de Boston(Whyte, 1955). O estudo de Whyte, publicado originalmente em 1943, foi reeditado em 1955,incluindo uma descrição extraordinária da metodologia utilizada.

Estes esforços, bem como outros estudos etnográficos da época (Davis e Dollard, 1940; Davis,Gardner e Gardner, 1941; Davis e Havighurst, 1947; Dollard, 1937: Hollingshead, 1949),empreenderam aquilo que Charles Horton Cooley considerou o objectivo último das ciências sociais:"Temos como objectivo, presumo, alcançar o significado humano dos processos inerentes às nossasinstituições, na medida em que eles se reflectem nas vidas de homens, mulheres e crianças" (emStott, 1973). Contudo, não foram só os sociólogos académicos e os antropólogos que se dedicaramà investigação qualitativa durante este período.

A Depressão nos Estados Unidos deu origem a problemas de monta para a maioria dos cidadãos,e muitas pessoas, incluindo aquelas que trabalhavam para as agências governamentais, voltaram-separa a abordagem qualitativa com o objectivo de documentar a natureza e extensão destesproblemas. Por exemplo, a Work Projects Administration (WPA) produziu narrativas informativas.These Are Our Lives era composto por biografias orais e por histórias de vida de trabalhadoresnegros e brancos de três Estados do Sul (Federal Writers' Project, 1939). Os seus autores não eramcientistas sociais; eram escritores que necessitavam de emprego, mas o método utilizado ésociológico. Outros exemplos daquilo que hoje em dia designamos por história oral são: uma históriapopular da escravatura, uma série de entrevistas com indivíduos que tinham sido escravos,recolhidas em meados dos anos trinta (Botkin, 1945), e ainda um panfleto obscuro. "The Disinherited Speak: Leers from Sharecroppers",publicado, em 1937, pela Southern Tenant Farmers' Union (Stott,1973). Este documento consistia num conjunto de cartas escritas por membros do sindicato edirigidas aos respectivos delegados, baseando-se no mesmo tipo de documentos que Thomas e

Znaniecki (1927) utilizaram no seu monumental estudo. The Polish Peasant in Europe and America.De igual modo, o documentarismo fotográfico incidindo sobre as dimensões do sofrimento dos

americanos sem posses também se desenvolveu (ver. por exemplo, Evans. 1973; Gutman, 1974; eHurley, 1972). Durante este período, os americanos sentiam-se

Página 34.

Nota da transcritora: figura ilegível. Legenda: Primeira classe, perto de Montezuma, Geórgia. Fim denota.

atraídos pela abordagem naturalista na literatura, no jornalismo, na fotografia e na investigação nãoacadêmica, porque esta documentava de forma personalizada e detalhada o que a Depressãosignificava para um grande número de americanos - o trabalhador rural do Sul, o trabalhador do

Norte e os sem-abrigo de Okie.Nos anos quarenta, Mirra Komarovsky, uma socióloga que tinha publicado um dos dois estudosqualitativos mais conhecidos sobre a Família e a Depressão (Komarovsky, 1940; ver igualmente

 Angell, 1936), terminou um estudo sobre as mulheres no ensino superior, que viria a constituir umdocumento importante para o movimento feminista, no início dos anos setenta. Recorrendo a umaabordagem qualitativa, conduziu oitenta entrevistas em profundidade com mulheres que estudavamno Barnard College e estudou o efeito dos valores culturais nas atitudes das mulheres face aospapéis psicossexuais, sublinhando a dificuldade por elas encontrada na conciliação do "feminino"com o "bem-sucedida" (Komarovsky, 1946).

Para a investigação qualitativa, os anos cinquenta pareciam, à primeira vista, continuar negros;

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contudo, não foi a investigação qualitativa em educação que beneficiou com o CooperativeResearch. Ainda assim, verificaram-se alguns desenvolvimentos que promoveram e fizeram avançar a investigação qualitativa em educação. Mesmo que a abordagem qualitativa nos anos cinquenta nãopossa, de modo algum, ser considerada dominante, um conjunto de desenvolvimentos aliaram-separa lhe dar uma alma nova.

O trabalho dos antropólogos culturais pode já ser identificado ao longo dos anos cinquenta. Ointeresse dos antropólogos pela educação aumentou. De novo, recorrendo aos métodos qualitativos,os antropólogos estudaram a educação no início da década de

Página 35.

Nota da trancritora: figura ilegível. Legenda: Uma mãe negra ensinando, em casa, os números e oalfabeto aos seus filhos, 1939. Fim de nota.

cinqüenta e escreveram sobre o que Philip Jackson (1968) viria a designar, uma década mais tarde,"o currículo escondido" - as mensagens implícitas sobre socialização, para além das explícitas, que aescola transmite às crianças. Jules Henry importou os métodos que tinha utilizado no Brasil,

 Argentina e México para as escolas primárias de Chicago (Henry, 1955b, 1957), articulando-os como seu interesse relativo ao modo como as pessoas comunicam (Henry, 1955a). É esta a investigaçãoque se encontra na base do seu conhecido e popular livro Culture Against Man (Henry, 1963).

Durante este período, os antropólogos dedicaram-se a explorar as relações entre as duas disciplinas:realizaram conferências sobre elas (Spindler, 1955), dedicaram-lhe números especiais de revistas eleccionaram sobre tais relações (Mead, 1951; Redfield, 1955; Spindler. 1959).

Nos anos cinquenta verificaram-se igualmente desenvolvimentos significativos dos métodosqualitativos e de trabalho de campo, tanto a nível conceptual como metodológico. Durante o períododa "Sociologia de Chicago", as experiências individuais de investigação raramente merecerampublicação. Os próprios procedimentos de trabalho de campo tornaram-se objecto de estudo, àmedida que os investigadores qualitativos se tomaram mais introspectivos relativamente às questõesmetodológicas (ver Becker, 1958; Becker e Geer, 1960; Junker, 1960; Whyte, 1955). A HumanOrganization, publicação da Society for Applied Anthropology, voltou a publicar, em 1957, os artigossobre métodos de campo que tinham aparecido na revista nos últimos dezoito anos (Adams e Preiss,1960). Os desenvolvimentos de carácter conceptual avançaram significativamente com a publicação,em 1959, do livro de Erving Goffman, The Presentation of Self in Everday Life,que examinava os

Página 36.

modos como as pessoas tentam manipular a forma como os outros as vêem e como estasmanobras afectam a realidade social (Goffman, 1959). Goffman designou a sua perspectiva por "dramatúrgica".

Outra evolução metodológica importante foi o desenvolvimento da entrevista como uma estratégiacentral de investigação qualitativa. O American Journal of Sociology devotou-lhe um número especialem 1956 (ver, por exemplo, Benney e Hughes, 1956; Dexter, 1956). Eram descritos os seusdiferentes modos de utilização, as vantagens e inconvenientes que oferecia e as diferentes formasde que se revestia (ver Hyman, 1954; Jahoda, Deutsch e Cook, 1951; Maccoby e Maccoby, 1954).

 Além do mais, os sociólogos começaram a tomar em consideração a "entrevista não-directiva",criada pelo psicólogo Carl Rogers para a terapia centrada no cliente (Rogers, 1945, 1951; Whyte,

1960).A mais significativa investigação qualitativa em educação, levada a cabo na década de cinquenta,foi realizada por Howard S. Becker, um aluno de Everett C. Hughes, no departamento de sociologiade Chicago. Becker entrevistou professores de Chicago, com o objectivo de compreender com maior clareza as características das suas carreiras e as perspectivas relativas ao seu trabalho. Três artigosmuito conhecidos, e ainda frequentemente citados, tiveram origem nesta investigação dedoutoramento (Becker, 1951), e foram publicados no Journal of Educational Sociology (Becker,1925b e 1953) e no American Journal of Sociology (Becker, 1925a). Um estudo de educação médicaque estava destinado a transformar-se num clássico da abordagem qualitativa, Boys in White (Becker et al., 1961), foi igualmente realizado na década de cinquenta. No retrato que traçava da cultura

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estudantil médica, os investigadores tomaram seriamente em consideração a noção de perspectiva,uma expressão que faz parte do léxico de palavras-chave dos investigadores qualitativos. Estainvestigação era uma tentativa para compreender aquilo que caracterizava a perspectiva dosestudantes de medicina relativamente à escola.

Ainda que não se possa afirmar que a abordagem qualitativa fosse "popular" entre osinvestigadores educacionais da época, ela estava viva e de boa saúde.

OS ANOS SESSENTA:UMA ÉPOCA DE MUDANÇA SOCIAL

Os anos sessenta chamaram a atenção nacional para os problemas educativos, reavivaram ointeresse pela investigação qualitativa e tornaram os investigadores educacionais mais sensíveis aeste tipo de abordagem. Até à época, a maioria dos investigadores que utilizavam a abordagemqualitativa no esclarecimento das questões educativas eram académicos treinados em, epertencentes, outras disciplinas, como a sociologia e a antropologia. Nos anos sessenta, os própriosinvestigadores educacionais começaram a manifestar interesse por estas estratégias, ao mesmotempo que as agências estatais começaram a subsidiar a investigação que utilizava métodosqualitativos.

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Em 1968 já existia um conjunto formalizado de investigadores interessados nas abordagensantropológicas aplicadas à investigação educacional, que se materializava no Council on

 Anthropology and Education (Erickson, 1986).Os anos sessenta foram igualmente uma época de tumulto e mudança social. A atenção dos

educadores voltou-se para a experiência escolar das crianças pertencentes a minorias. Uma dasrazões para este interesse era política: enquanto se verificavam tumultos nas cidades e asautoridades procuravam formas de evitar futuros protestos, associava-se o desempenho escolar deficiente com a afirmação de que os negros recebiam serviços inadequados. Os porta-vozes domovimento dos direitos civis insistiam que era necessário dar a palavra àqueles que eramdiscriminados.

Queria-se saber como eram as escolas para as crianças que não tinham rendimento e muitoseducadores queriam ver o tema discutido. Concomitantemente, surgiram vários relatos

autobiográficos e jornalísticos relativos à vida nas escolas dos guetos (por exemplo, Decker, 1969;Haskins, 1969; Herndon, 1968; Kohl, 1967; Kozol, 1967). Estes escritores falavam baseados emconhecimentos em primeira mão, tentando captar a essência da vida quotidiana das crianças queensinavam. Reconhecendo o pouco que se sabia sobre o processo de escolarização de diferentesgrupos de crianças, os programas federais começaram a subsidiar a investigação relativa a estasquestões e que recorria ao que hoje designamos genericamente por métodos etnográficos. Osmétodos qualitativos de investigação começavam a ganhar terreno.

Um dos maiores projectos subsidiados federalmente foi o Project True, levado a cabo em 1963, noHunter College, e cujo objectivo era o de compreender diferentes aspectos da vida nas salas de aulaurbanas. Os investigadores basearam-se em entrevistas com directores, professores, pais, membrosdo conselho escolar e membros da comunidade, para avaliarem o processo de integração na escola(Fuchs, 1966). Recorreram igualmente a entrevistas em profundidade para examinar as experiênciade novos professores em escolas urbanas (Eddy, 1969; Fuchs, 1969). Utilizaram a observação

participante para avaliar experiências individuais na sala de aula (Roberts, 1971), em escolasprimárias (Moore, 1967) e em escolas urbanas integradas no contexto comunitário (Eddy, 1967).Este grupo de sociólogos e antropólogos entendia o seu trabalho como exploratório. Enquanto grupo,mantinham a atitude de que a educação tinha fracassado para as crianças mais pobres, de que ascidades estavam em crise e de que estes problemas antigos tinham de ser estudados de formasnovas.

Dois importantes estudos subsidiados iniciaram-se nos anos sessenta e utilizaram uma abordagemqualitativa. Um deles incluía um estudo comparativo das escolas urbanas e foi realizado pela famosaantropóloga Eleanor Leacock (1969). Este trabalho, que viria a transformar-se num clássico sobre osefeitos da escola e das expectativas dos professores nas vidas das crianças, constitui, tal como o

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trabalho de Becker na década anterior, uma referência tanto para os sociólogos como para osantropólogos. O outro estudo que utilizou métodos de trabalho de campo incidiu sobre questõesraciais na educação, em escolas

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primárias de St. Louis, e foi dirigido por Jules Henry (ver Gouldner, 1978; Rist, 1970, 1973). Foi emfunção da sua participação neste projecto que Ray Rist, um importante investigador qualitativo emeducação, iniciou as suas investigações.

A audiência para a investigação qualitativa em educação cresceu na década de sessenta. Não seencontrando ainda firmemente estabelecido como um paradigma legítimo de investigação, o seuestatuto causou múltiplos problemas aos alunos que o pretendiam utilizar no seu trabalho. Mas asabordagens qualitativas provocavam entusiasmo. Quais as razões para a abordagem qualitativa emeducação ter começado a sair de um longo período de hibernação neste preciso período histórico?Podemos apreciar algumas delas.Em primeiro lugar, os tumultos sociais da época indicavam claramente que não se sabia o suficiente

sobre o modo como os alunos experimentavam a escola. Diversos relatos expunham publicamente,em termos de educação, o mesmo que o jornalismo de investigação tinha exposto, no séculodezanove, relativamente às condições de vida sociais: desconhecemos o modo como vive grandeparte da população. Eram necessárias descrições esclarecedoras. Alguns investigadores pretendiam

começar por observar a vida quotidiana nas escolas e entrevistar os professores de melhor reputação (McPherson, 1972). A descrição qualitativa estava na ordem do dia.

Em segundo lugar, os métodos qualitativos ganharam popularidade devido ao reconhecimento queemprestavam às perspectivas dos mais desfavorecidos e excluídos socialmente - os que seencontravam "do outro lado". A ênfase qualitativa na importância das perspectivas de todos osintervenientes num contexto desafia o que tem sido designado por "hierarquia de credibilidade"(Becker, 1970c): a ideia de que as opiniões e perspectivas daqueles que se encontram em posiçõesde comando são mais valiosas do que as dosoutros. Como parte integrante de um processo de investigação típico, os investigadores qualitativosque estudam a educação solicitavam a opinião daqueles que nunca eram valorizados ourepresentados. Os métodos de investigação qualitativa representavam o espírito democrático emascendência na década de sessenta. O clima da época era propício ao renovar do interesse pelosmétodos qualitativos, assim, surgiu a necessidade de professores experientes neste tipo de

metodologia de investigação, abrindo-se caminho a inovações e desenvolvimentos metodológicos.Não era exclusivamente o clima político da época que era propício. A sociologia e a antropologia.enquanto disciplinas académicas, também se encontravam em modificação. Os antropólogosconstataram que um menor número de comunidades do Terceiro Mundo estavam na disposição dese submeterem a ser investigadas; consequentemente, os financiamentos diminuíram. O número depovos que não tinham sido afectados de forma significativa pelos contactos com o mundo ocidentaltinha diminuído, sabotando o empreendimento de descrever as diferentes culturas do mundo antesde serem "estragadas". Progressivamente, os antropólogos viraram-se para o estudo das áreasurbanas na sua própria cultura.

Na década de sessenta, o campo da sociologia, que tinha sido dominado pelas ideias da teoriaestrutural-funcional durante vinte anos, começou a virar-se para os escritos dos

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fenomenologistas. Grupos de investigadores começaram a praticar o que viria a ser conhecido por etnometodogia. Outros autores organizaram-se à volta da tradição já estabelecida da interacçãosimbólica. O interesse pelos métodos qualitativos foi estimulado pela publicação de um conjunto delivros sobre teoria e métodos. The Human Perspective in Sociology (Bruyn, 1966) apresentava asbases filosóficas e metodológicas da observação participante, enquanto que The Discovery of Grounded Theory (Glaser e Strauss, 1967) apresentava o processo de recolha e análise de dadosdescritivos como base para elaborar teoria, esforços que ilustravam claramente o facto dainvestigação qualitativa não se limitar a ser uma actividade meramente descritiva. Foram igualmentepublicadas colectâneas de artigos detalhados, relativos a questões mais específicas (Filstead, 1970;

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McCall e Simmons. 1969). Desenvolveu-se uma audiência para aqueles que escreviam com base naabordagem qualitativa, tendo aumentado significativamente o número de artigos qualitativos (Bogdane Taylor, 1975; Carini, 1975; Denzin, 1987; Georges e Jones, 1980: Schwartz e Jacobs, 1979; Wolf,1979).

OS ANOS SETENTA:INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA EM EDUCAÇÃO, A DIVERSIDADE

Mesmo que a investigação qualitativa ainda não tivesse atingido a idade adulta, já estava a sair daadolescência. Menos suspeitas para os investigadores educacionais, a observação participante e,particularmente, a etnografia ganhavam um número crescente de adeptos. Na década de sessenta, aperspectiva qualitativa era ainda marginal em educação, só praticada pelos mais heterodoxos. Noinício dos anos setenta, ainda que os métodos qualitativos não fossem, de modo algum, osdominantes, já não podiam ser vistos como marginais. As agências federais de financiamento, taiscomo o National Institute of Education, manifestaram um enorme interesse por propostas quefizessem uso das abordagens qualitativas, apoiando investigações qualitativas de carácter avaliativo.

Verificou-se, nas comunicações apresentadas em associações profissionais, como a AmericanEducational Research Association, um aumento das que recorriam aos métodos qualitativos, tendoestes métodos obtido um reconhecimento crescente em campos como a investigação avaliativa (ver Guba, 1978; Patton, 1980).

Contudo, prosseguiam os debates metodológicos entre os investigadores quantitativos equalitativos. Defensores de todas as perspectivas participaram nas discussões: "qualitativos" versus"quantitativos", "jornalismo" versus "investigação" e "científico" versus "intuitivo". Verificou-se umamudança de atitude dos investigadores quantitativos relativamente à investigação qualitativa, quepassou de desdém para "détente" (Rist, 1977). As tensões entre os investigadores qualitativos equantitativos diminuíram na sua expressão. De facto, instaurou-se um clima de diálogo entre os doisgrupos. Alguns investigadores que ocupavam posições de grande proeminência nos círculosquantitativos começaram a explorar a abordagem qualitativa e a defender a sua utilização (i.e.,Bronfenbrenner, 1976;

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Campbell, 1978; Cronbach, 1975; Glass, 1975). Grande número de investigadores educacionais

começaram a sentir que as promessas da investigação quantitativa relativamente às suaspossibilidades (os problemas que conseguia resolver) tinham atingido o limite. Os métodosquantitativos, baseados no paradigma científico tradicional, não tinham cumprido. Com aflexibilização das atitudes, as abordagens qualitativas apoderaram-se da imaginação das pessoas(ver Scriven, 1972). Desta forma, a investigação qualitativa explodiu em educação. Efectuar revisõesde literatura, até à data uma tarefa relativamente simples, tomou-se cada vez mais complexo, devidoparcialmente à diversidade crescente de métodos, estilos e assuntos.

Alguns investigadores qualitativos em educação efectuaram "trabalho de campo" observaçãoparticipante, entrevistas em profundidade ou etnografia - despendendo grandes quantidades detempo nos locais de investigação e com os sujeitos ou documentos de investigação. Registaram osseus apontamentos por escrito como modo de preservar os dados a analisar, incluindo grandequantidade de descrições, registos de conversas e diálogos. A investigação educacional possuimuitos exemplos deste tipo. As observações em escolas deram origem, por exemplo, a estudos

sobre integração racial (Metz, 1978; Rist, 1978), a vida de um director de escola (Wolcott, 1973), aexperiência de professores em escolas rurais (McPherson, 1972) e inovações na escola (Sussmann,1977; Wolcott, 1977). Os investigadores educacionais também utilizaram a entrevista emprofundidade para estudar as crianças excluídas da escola (Cottle, 1976a), o sistema de transportesescolares (Cottle, 1976b ), e os papéis das mulheres como dirigentes educativos (Schmuck, 1975).

Contudo, alguns investigadores educacionais sentiram que os estudos de campo convencionaiseram "demasiadamente descritivos" (Mehan, 1978) ou que a investigação etnográfica deveriaassumir uma atitude mais "empírica" nos estudos sobre a escola (McDermott, 1976). Estesinvestigadores pertenciam a um grupo que defendia o que pode ser designado como umaabordagem mais empirista ao estudo das interacções humanas. Consequentemente, a "etnografia

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constitutiva" utilizava o vídeo e o filme como suportes de registo dos actos e gestos das pessoas(Mehan, 1978, 1979). Os investigadores que utilizavam este tipo de abordagem estavampreocupados com o facto de, frequentemente, as descrições dos observadores reflectirem mais asnoções destes do que as dos participantes, e também com o facto dos participantes não seremcapazes de comunicar suficiente informação ao investigador (Florio, 1978). Portanto, tomava-semais adequado a gravação mecânica dos acontecimentos. Investigadores que trabalharam nesteregisto foram Erickson (1975) e o sociolinguista Shuy (Shuy e Griffin, 1978; Shuy, Wolfram e Riley,1967). Ainda assim, estas abordagens variavam no respectivo grau de intrusão e no modo comoeram estruturadas.

Variava igualmente o modo como a investigação era conduzida e apresentada. Uma diferençaestilística residia na tensão entre as abordagens à investigação, cooperativa versus conflituosa. Osautores que defendiam a perspectiva cooperativa defendiam que os investigadores de campodeveriam ser o mais autênticos possível com os sujeitos que

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estudavam. Agarravam-se à crença básica e optimista de que as pessoas facilitariam a investigaçãosempre que lhes fosse possível. Os seguidores desta perspectiva eram aqueles que seconsideravam herdeiros da Escola de Chicago (ver Bogdan e Taylor, 1975). Por sua vez, osdefensores da perspectiva conflituosa entendiam que muitos sujeitos teriam vontade de encobrir os

seus comportamentos reais; os defensores da autenticidade e da investigação aberta obteriammenos informação. Particularmente se pretendesse penetrar no mundo dos grandes negócios, docrime organizado ou de grupos considerados desviantes, o investigador deveria ser circunspecto enão ser autêntico na justificação da sua presença. Esta perspectiva era claramente defendida por Douglas (1976).

Outra diferença estilística residia na atitude do investigador relativamente aos informadores ousujeitos a investigar. Determinado grupo, igualmente herdeiro da Escola de Chicago, pode afirmar-seter tido uma perspectiva "empática"; ou seja, defendia a simpatia e a compreensão face às pessoasestudadas. Deste modo, muitas das suas publicações patenteavam a humanidade de vidas que, àprimeira vista, pareciam destituídas de sentido. Os defensores desta perspectiva eram, de facto,acusados de se identificarem excessivamente com aqueles que estudavam, quer se tratasse deindivíduos desviantes, marginais ou pessoas influentes. No outro extremo deste contínuoencontravam-se aqueles cuja posição parecia reflectir a noção de que "a sociologia do que quer que

fosse era ridícula". Esta perspectiva é claramente reflectida no grupo designado por etnometodólogos (ver, por exemplo, Gartinkel, 1967; Mehan e Wood, 1975). Os etnometodólogosestudavam o modo como as pessoas geriam os rituais diários das suas vidas, deixando, com algumafrequência, os sentimentos delas de lado.

 A etnometologia é uma abordagem relativamente nova à investigação qualitativa, cujas basespodem ser atribuídas aos filósofos fenomenologistas. Harold Garfinkel (1967) e os seus colegasutilizaram esta metodologia e cunharam o termo, em meados da década de cinquenta. Durante asdécadas de sessenta e de setenta, tanto a abordagem como a expressão cresceram empopularidade, mas as pessoas não tinham a certeza de estarem a falar da mesma coisa. Garfinkel,referindo-se às confusões sobre a expressão em 1968, afirmou: "Penso que, na realidade, o termopode ser errado. Adquiriu uma vida própria" (Hill e Crittenden, 1968). Apesar de estar a aumentar empopularidade, não deixava de estar igualmente sob ataque. Os académicos discutiam se se tratavade algo verdadeiramente diferente das outras abordagens, tal como a interacção simbólica. Os auto-

res que escreviam dentro desta orientação eram criticados por serem obscuros nos seus escritos eutilizarem um estilo esotérico (Coser, 1979). Além do mais, alguns dos seguidores daetnometodologia tinham tendência para utilizar técnicas de recolha de dados que eram consideradasirreverentes em termos éticos, manifestando falta de preocupação com o sofrimento das pessoas.Tal facto levou a uma atitude de antagonismo por parte dos praticantes mais tradicionais dainvestigação qualitativa, muitos dos quais utilizavam uma abordagem humanista na investigação etinham uma posição política de carácter liberal.

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Nota da transcritora: figura ilegível. Legenda: Margarel Mead em Samoa, 1925, com 24 anos deidade, acompanhada pela filha de um chefe local. Estava no início dos seus famosos trabalhos decampo. Fim de nota.

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OS ANOS OITENTA E NOVENTA:COMPUTADORES, FEMINISMO E A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA PÓS-MODERNA

Muitas das questões debatidas pelos investigadores educacionais na década de setentapermaneceram como tópicos fulcrais na década de noventa. Os teóricos da educação aindadiscutem sobre as diferenças entre a investigação quantitativa e qualitativa e se as duas podem edevem ser articuladas (Smith, 1983; Stainback e Stainback, 1985; Howe, 1988; Firestone, 1987;Smith e Heshusius, 1986). Permanecem, de igual modo, algumas tendências. Nos anos oitenta, onúmero de publicações para artigos qualitativos aumentou. Também na década de oitenta e,presentemente, na de noventa, se verificou o aumento desta tendência. Surgiu uma nova revista,exclusivamente dedicada à publicação de investigação qualitativa em educação (International Journa/ for Qualitative Studies in Education) e várias editoras livreiras iniciaram séries de livros comuma preocupação semelhante (Transaction Press, Falmer Press, Sage Publications). Desde oacadémico  American Educationa/ Research Journa/ até à revista de grande tiragem Phi Delta

Kappan, os responsáveis pelas publicações periódicas de educação solicitam activamente aapresentação de manuscritos baseados em investigação qualitativa. Persiste a tendência de algunsautores que praticam investigação qualitativa em educação para tomar mais formal a análise dedados (e.g., Miles e Huberman, 1984), ainda que esta esteja em conflito com a posição de algunspós-modernos que defendem uma abordagem mais criativa, aberta e "experimentalista" na escrita eanálise de dados.

Para além deste prolongamento de questões das décadas passadas, observaram-se nos últimosquinze anos modificações importantes e novos desenvolvimentos na investigação qualitativa emeducação. Uma inovação significativa, de carácter mais técnico do que conceptual, foi a utilização docomputador na recolha, gestão e análise dos dados qualitativos ("Computers and Qualitative Data",1984; Clarck, 1987; Pfaffenberger, 1988; Shelly e Sibert, 1986; ver igualmente os escritos de Gersonsobre computadores nos números 1985-1988 de Qualitative Sociology). Antes da década de oitentamuito pouco se tinha feito neste domínio. Hoje em dia, os investigadores qualitativos registam os

seus apontamentos em processadores de texto, muitos deles utilizando um dos vários bonsprogramas existentes (Ethnograph, TAP, Qualpro; QUALOG é um conjunto de programas demainframe utilizados para análise) para ordenar os muitos parágrafos de dados produzidos numestudo qualitativo. Sendo este tipo de tecnologia particularmente importante para projectos de largaescala, também não o deixa de ser para muitos esforços individuais, para os quais as capacidadesde muitos programas são essenciais. Discutiremos este tipo de inovações mais detalhadamente nocapítulo sobre análise de dados.

A teoria e prática feministas também influenciaram, de várias formas, a investigação qualitativa nadécada de oitenta. Em primeiro lugar, o feminismo influenciou o tipo de sujeitos que osinvestigadores qualitativos (feministas) estudaram. Os papéis psicossexuais emergiram como umtópico central em muitos projectos qualitativos de investigação (Warren, 1988). Recorrendo àobservação participante, à análise de documentos, à inves-

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Nota da transcritora: figura ilegível. Legenda: Rosalie Wax na reserva de Pine Ridge, Dakota do Sul,1963, com os membros da família Sioux de que fala em Doing Fieldwork. Fim de nota.

tigação sobre histórias de vida e às entrevistas em profundidade, os investigadores qualitativostomaram seriamente em consideração actores sociais e categorias de comportamento previamenteignorados. O feminismo afectou o conteúdo das investigações à medida que os investigadores iamestudando a forma como os papéis psicossexuais influenciavam a construção do mundo, enquantoprofessoras do sexo feminino (Biklen, 1987, 1985, no prelo; Middleton, 1987; Acker, 1989; Weiler,

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1988), providenciadoras de sustento (De Vault, 1990), estudantes em subculturas femininas  punk (Roman, 1988), leitoras de novelas (Radway. 1984) e consumidoras e intérpretes de conhecimentomédico sobre o corpo e a reprodução (Martin, 1987). As feministas tiveram um papel importanteenquanto impulsionadoras da investigação sobre as emoções e os sentimentos (Hochschild, 1983).

 As investigadoras feministas nas ciências sociais foram atraídas pelos métodos

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qualitativos porque estes possibilitavam que as interpretações das mulheres assumissem umaposição central.

Em segundo lugar, o feminismo afectou igualmente as questões metodológicas. Alguns destesefeitos surgiram do questionar geral sobre a natureza dos métodos de investigação feministas nasciências e nas ciências sociais (e.g., Harding, 1987), mas a prática também promoveu mudanças.Por exemplo, Oakley (1981) centrou-se sobre a questão do poder na relação de entrevista. Smith(1987) desenvolveu a "etnografia institudonal" como uma estratégia feminista de investigação, paradesenvolver uma sociologia para as mulheres em vez de uma sociologia de homens. Para muitos. aquestão mais importante era a de saber se as modificações traz idas pelo feminismo à metodologiaeram tão absolutas e significativas que tinham modificado o método ao ponto de ser mais adequadodesigná-lo por feminista e já não qualitativo. Para outros. a questão mais importante tinha que ver com a prática metodológica: ou seja, como é que o feminismo influencia o modo como a investigação

é feita. Discutiremos algumas destas questões no capítulo III.Independentemente da forma que utilizemos para abordar a intersecção do feminismo com a

investigação qualitativa, as influências mútuas são sempre muito significativas. As feministascontribuíram para que no campo se se passasse a preocupar mais com as relações que osinvestigadores estabelecem com os seus sujeitos (DeVault, 1990), bem como para um aumento doreconhecimento das implicações políticas da investigação.

Rivalizando em importância com os contributos do feminismo para a investigação qualitativa nasdécadas de oitenta e noventa - nalguns casos como aliado e noutros como opositor - encontram-seos contributos dos sociólogos c antropólogos pôs-modernos (Marcus e Cushman, 1982; Marcus eFisher, 1986; Clifford, 1983, 1988; Clifford e Marcus, Van Maanen, 1988; Denzin, 1989). O pós-modernismo (também designado por pôs-estruturalismo e desconstrucionismo) representa umaposição intelectual que reivindica o facto de vivermos num período "pós"-moderno, um tempohistórico real que difere do modernismo. Durante o modernismo, tentava-se explicar a condição

humana e o progresso pela crença nas virtudes do racionalismo e da ciência, pela ideia de um "eu"estável, consistente e coerente e pelo recurso a abordagens positivistas do conhecimento crençasque se tinham mantido firmes no Ocidente desde a "época das luzes", Por sua vez, os pós-modernistas defendem que este tipo de fundamentos já não faz sentido. A era nuclear afastou apossibilidade do progresso humano baseado no racionalismo e levou as pessoas, em muitas áreasda vida humana, a questionar a integridade do progresso. A arquitectura, a arte, a moda e asproduções académicas, todas elas foram tocadas pelo pós-modernismo.

Os pós-modernistas defendem só ser possível conhecer algo tendo como referência umadeterminada perspectiva. Tal posição desafia a possibilidade de alcançar a verdade através doadequado, ou seja, científico uso da razão. Não é possível raciocinar ou conceptualizar para além dalocalização do eu num contexto histórico-social específico; desta forma, esta perspectiva enfatiza ainterpretação e a escrita como características centrais da

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investigação. Por exemplo, Clifford e Marcus (1989) chamaram à sua colectânea sobre a poética epolítica da etnografia Wriring Culture. Uma das principais intluências do pós-modernismo nasmetodologias qualitativas foi a modificação no entendimento da natureza da interpretação e no papeldo investigador qualitativo como um intérprete. Ao invés de entenderem o material escrito - textos,manuscritos, artigos e livros - pelo seu valor facial, os investigadores qualitativos pós-modernostomaram-no como objecto de estudo. Os pós-modernos tomam problemático o entendimento dedeterminado trabalho como "científico", reflectindo sobre quais as convenções e atitudes que fazemdeterminada forma de entender um trabalho, o discurso da ciência, científico. Examinaremos, as

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implicações desta posição em maior detalhe, no capítulo VI. O pós-modernismo comenta e critica àmedida que o conhecimento se constrói.

Esta grande diversidade entre os investigadores qualitativos que se dedicam a estudar as questõeseducacionais reflecte a maturidade e sofisticação crescentes da abordagem. Contudo, apesar dasdiferenças serem reais, existem pontos comuns nos diferentes registos qualitativos. Na secçãoseguinte procedemos à listagem destas características comuns.

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Capítulo 2: Características da investigação qualitativa

Alguns investigadores movimentam-se nas escolas munidos de blocos de apontamentos pararegistarem os dados. Outros recorrem ao equipamento vídeo na sala de aula e não seriam capazesde conduzir uma investigação sem ele. Outros ainda elaboram esquemas e diagramas relativos aospadrões de comunicação verbal entre alunos e professores. No entanto, todos eles têm em comum oseguinte: o seu trabalho corresponde à nossa definição de investigação qualitativa e incide sobrediversos aspectos da vida educativa. Na presente secção vamos reflectir sobre os pontos comuns emostrar que, apesar das diferenças, todas esta investigações caem na rubrica da investigaçãoqualitativa.

Tal como a definimos, a investigação qualitativa possui cinco características. Nem todos os estudos

que consideraríamos qualitativos patenteiam estas características com igual eloquência. Algunsdeles são, inclusivamente, totalmente desprovidos de uma ou mais das características. A questãonão é tanto a de se determinada investigação é ou não totalmente qualitativa: trata-se sim de umaquestão de grau. Como referimos anteriormente, os estudos que recorrem à observação participantee à entrevista em profundidade tendem a ser bons exemplos.

I. Na investigação qualitativa a fonte directa de dados é o ambiente natural, constituindo oinvestigador o instrumento principal. Os investigadores introduzem-se e despendem grandesquantidades de tempo em escolas, famílias, bairros e outros locais tentando elucidar questõeseducativas. Ainda que alguns investigadores utilizem equipamento vídeo ou áudio, muitos limitam-seexclusivamente a utilizar um bloco de apontamentos e um lápis. Contudo, mesmo quando se utiliza oequipamento, os dados são recolhidos em situação e complementados pela informação que seobtém através do con-

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tacto directo. Além do mais, os materiais registados mecanicamente são revistos na sua totalidadepelo investigador, sendo o entendimento que este tem deles o instrumento-chave de análise. Por exemplo, num importante estudo sobre educação médica, os investigadores trabalharam numaescola médica, na qual seguiam os alunos para as aulas, laboratórios, enfermarias e outros locaisutilizados para situações de encontros sociais: refeitórios, lares e salas de estudo (Becker  et al.,1961). Num estudo sobre estratificação educacional na Califórnia (Ogbu, 1974), foram necessários21 meses para que o autor fosse capaz de completar o trabalho de campo: visitas, observações eentrevistas a professores, alunos, directores, famílias e diferentes membros da gestão escolar.

Os investigadores qualitativos frequentam os locais de estudo porque se preocupam com ocontexto. Entendem que as acções podem ser melhor compreendidas quando são observadas noseu ambiente habitual de ocorrência. Os locais têm de ser entendidos no contexto da história das

instituições a que pertencem. Quando os dados em causa são produzidos por sujeitos, como no casode registos oficiais, os investigadores querem saber como e em que circunstâncias é que eles foramelaborados. Quais as circunstâncias históricas e movimentos de que fazem parte? Para oinvestigador qualitativo divorciar o acto, a palavra ou o gesto do seu contexto é perder de vista osignificado. Como escreveu determinado antropólogo:

"Se a interpretação antropológica consiste na construção de uma leitura dos acontecimentos, então,divorciá-Ia do que se passa - daquilo que em determinado momento espácio-temporal pessoasparticulares afirmam, fazem, ou sofrem, de entre a vastidão de acontecimentos do mundo - é omesmo que divorciá-Ia das suas aplicações, tornado-a oca. Uma boa interpretação do que quer que

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seja - um poema, uma pessoa, uma história, um ritual, uma instituição, uma sociedade - conduz-nosao coração daquilo que pretende interpretar." (Geertz, 1973)

Quer os dados sejam recolhidos sobre interacções na sala de aula, utilizando equipamento vídeo(Florio, 1978; Mehan, 1979), sobre educação científica, recorrendo à entrevista (Denny, 1978a), ouainda sobre a desagregação, mediante observação participante (Metz, 1978), os investigadoresqualitativos assumem que o comportamento humano é significativamente influenciado pelo contextoem que ocorre, deslocando-se, sempre que possível, ao local de estudo.

2. A investigação qualitativa é descritiva. Os dados recolhidos são em forma de palavras ouimagens e não de números. Os resultados escritos da investigação contêm citações feitas com basenos dados para ilustrar e substanciar a apresentação. Os dados incluem transcrições de entrevistas,notas de campo, fotografias, vídeos, documentos pessoais, memorandos e outros registos oficiais.Na sua busca de conhecimento, os investigadores qualitativos não reduzem as muitas páginascontendo narrativas e outros dados a símbolos numéricos. Tentam analisar os dados em toda a suariqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma em que estes foram registados ou transcritos.

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Os relatórios e artigos qualitativos têm sido classificados por alguns autores como "anedóticos". Istoporque contêm frequentemente citações e tentam descrever, de forma narrativa, em que consiste

determinada situação ou visão do mundo. A palavra escrita assume particular importância naabordagem qualitativa, tanto para o registo dos dados como para a disseminação dos resultados.Ao recolher dados descritivos, os investigadores qualitativos abordam o mundo de forma minuciosa.

Muitos de nós funcionamos com base em "pressupostos", insensíveis aos detalhes do meio que nosrodeia e às presunções que nos guiam. Não é raro passarem despercebidas coisas como os gestos,as piadas, quem participa numa conversa, a decoração de uma sala e aquelas palavras especiaisque utilizamos e às quais os que nos rodeiam respondem.

A abordagem da investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideia de quenada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer umacompreensão mais esclarecedora do nosso objecto de estudo. O investigador coloca constantementequestões como: Por que é que estas carteiras estão arrumadas desta maneira? Por que é quealgumas salas estão decoradas com gravuras e outras não? Por que é que determinadosprofessores se vestem de maneira diferente dos outros? Há alguma razão para que determinadas

actividades ocorram em determinado local? Por que é que há uma televisão na sala se nunca éutilizada? Nada é considerado como um dado adquirido e nada escapa à avaliação. A descriçãofunciona bem como método de recolha de dados, quando se pretende que nenhum detalhe escapeao escrutínio.

3. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelosresultados ou produtos. Como é que as pessoas negoceiam os significados? Como é que secomeçaram a utilizar certos termos e rótulos? Como é que determinadas noções começaram a fazer parte daquilo que consideramos ser o "senso comum"? Qual a história natural da actividade ouacontecimentos que pretendemos estudar? Por exemplo, em estudos relativos ao ensino integradonas escolas, os investigadores estudam primeiro as atitudes dos professores para com determinadascrianças, estudando posteriormente o modo como tais atitudes eram traduzidas nas interacçõesdiárias e como estas representavam as atitudes iniciais (Bruni, 1980; Rist, 1978). Em entrevistas comadministradores escolares e candidatos a posições administrativas, determinado investigador 

mostrou o modo como as atitudes que reflectiam baixas expectativas, medos sexuais e outrosestereótipos relativamente às mulheres se traduziam no processo de contratação (Schmuck, 1975).A ênfase qualitativa no processo tem sido particularmente útil na investigação educacional, ao

clarificar a "profecia auto-realizada", a ideia de que o desempenho cognitivo dos alunos é afectadopelas expectativas dos professores (Rosenthal e Jacobson. 1968). As técnicas quantitativasconseguiram demonstrar, recorrendo a pré e pós-testes, que as mudanças se verificam. Asestratégias qualitativas patentearam o modo como as expectativas se traduzem nas actividades,procedimentos e interacções diários. Um

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exemplo particularmente significativo da "profecia de auto-realização" numa sala de aula de um jardim-escola é-nos dado por um estudo de observação participante realizado com crianças afro-americanas, em St. Louis. Nos primeiros dias de aulas, as crianças foram divididas em gruposestabelecidos essencialmente com base em critérios socioeconómicos. A professora interagia maiscom o grupo de nível mais elevado, dava-Ihes mais privilégios e até Ihes permitia disciplinarem ogrupo mais desfavorecido. O processo de interacção diária encontra-se detalhadamente descrito(Rist, 1970). Este tipo de estudo foca-se no modo como as definições (as definições que osprofessores têm dos alunos, as definições que os alunos têm de si próprios e dos outros) se formam.4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva.Não recolhemdados ou provas com o objectivo de confirmar ou infirmar hipóteses construídas previamente: aoinvés disso, as abstracções são construídas à medida que os dados particulares que foramrecolhidos se vão agrupando.

Uma teoria desenvolvida deste modo procede de "baixo para cima" (em vez de "cima para baixo"),com base em muitas peças individuais de informação recolhida que são inter-relacionadas. É o quese designa por teoria fundamentada (Glaser e Strauss, 1967). Para um investigador qualitativo queplaneie elaborar uma teoria sobre o seu objecto de estudo, a direcção desta só se começa aestabelecer após a recolha dos dados e o passar de tempo com m sujeitos. Não se trata de montar um quebra-cabeças cuja forma final conhecemos de antemão. Está-se a construir um quadro que vaiganhando forma à medida que se recolhem e examinam as partes. O processo de análise dos dados

é como um funil: as coisas estão abertas de início (ou no topo) e vão-se tornando mais fechadas eespecíficas no extremo. O investigador qualitativo planeia utilizar parte do estudo para perceber quais são as questões mais importantes. Não presume que se sabe o suficiente para reconhecer asquestões importantes antes de efectuar a investigação.

5. O significado é de importância vital na abordagem qualitativa.Os investigadores que fazem usodesse tipo de abordagem estão interessados no modo como diferentes pessoas dão sentido às suasvidas. Por outras palavras, os investigadores qualitativos preocupam-se com aquilo que se designapor  perspectivas participantes (Erickson, 1986; ver Dobbert, 1982, para uma perspectiva ligeiramentediferente). Centram-se em questões tais como: Quais as conjecturas que as pessoas fazem sobre assuas vidas? O que consideram ser "dados adquiridos"? Por exemplo, em determinado estudoeducacional o investigador centrou parte do seu trabalho sobre as perspectivas parentais sobre aeducação dos seus filhos. Pretendia saber quais as opiniões dos pais sobre as razões para os filhosnão terem bom rendimento escolar. Descobriu que os pais que faziam parte do campo de estudo

sentiam que os professores não valorizavam as suas opiniões sobre os seus próprios filhos, dada asua pobreza e a sua falta de escolaridade. Os pais acusavam igualmente os professores queconsideravam que estes factores significavam necessariamente que os seus filhos não iam ser bonsalunos (Ogbu, 1974). Estudou igualmente as perspectivas dos professores e dos alunos sobre asmesmas questões, na

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esperança de encontrar pontos comuns, com o objectivo de explorar as suas implicações para aescolarização. Ao apreender as perspectivas dos participantes, a investigação qualitativa faz luzsobre a dinâmica interna das situações, dinâmica esta que é frequentemente invisível para oobservador exterior.

Os investigadores qualitativos fazem questão em se certificarem de que estão a apreender as

diferentes perspectivas adequadamente. Alguns investigadores que fazem uso do vídeo mostram asgravações feitas aos participantes para compararem as suas interpretações com as dosinformadores (Mehan, 1978). Outros investigadores podem mostrar rascunhos de artigos outranscrições de entrevistas aos informadores principais. Ainda outros podem conferir verbalmente assuas perspectivas com as dos sujeitos (Grant, 1988). Ainda que se verifique alguma controvérsiarelativamente a estes procedimentos, eles reflectem uma preocupação com o registo tão rigorosoquanto o possível do modo como as pessoas interpretam os significados.

Os investigadores qualitativos em educação estão continuamente a questionar os sujeitos deinvestigação, com o objectivo de perceber "aquilo que eles experimentam, o modo como elesinterpretam as suas experiências e o modo como eles próprios estruturam o mundo social em que

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vivem" (Psathas, 1973). Os investigadores qualitativos estabelecem estratégias e procedimentos queIhes permitam tomar em consideração as experiências do ponto de vista do informador. O processode condução de investigação qualitativa reflecte uma espécie de diálogo entre os investigadores e osrespectivos sujeitos, dado estes não serem abordados por aqueles de uma forma neutra.

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Capítulo 3: Fundamentos teóricos

A preocupação que os investigadores qualitativos têm com o "significado", bem como com as outrascaracterísticas que descrevemos como típicas da investigação qualitativa, Ievam-nos à discussãodos fundamentos teóricos da abordagem. A palavra teoria é utilizada de muitas maneiras. Entre osinvestigadores qualitativos em educação o seu uso é por vezes limitado a um conjunto de asserçõessistemáticas e testáveis sobre o mundo empírico. O modo como utilizamos o conceito está muitomais de acordo com a utilização que lhe é dada em sociologia e antropologia, sendo semelhante aotermo  paradigma (Ritzer, 1975). Um paradigma consiste num conjunto aberto de asserções,conceitos ou proposições logicamente relacionados e que orientam o pensamento e a investigação.Quando nos referimos a "orientação teórica" ou a "perspectiva teórica", estamos a falar de um modode entendimento do mundo, das asserções que as pessoas têm sobre o que é importante e o que éque faz o mundo funcionar. Seja ou não explícita, toda a investigação se baseia numa orientação

teórica. Os bons investigadores estão conscientes dos seus fundamentos teóricos, servindo-se delespara recolher e analisar os dados. A teoria ajuda à coerência dos dados e permite ao investigador ir para além de um amontoado pouco sistemático e arbitrário de acontecimentos. Na presente secçãoprocedemos a uma breve análise dos fundamentos teóricos das abordagens qualitativas.A maioria das outras tradições de investigação encontra as suas origens no positivismo e no grande

teórico social, Augusto Comte. Enfatizam os factos e as causas do comportamento. Ainda que sepossam encontrar diferenças teóricas entre as abordagens qualitativas e mesmo dentro de umaúnica escola (Gubrium, 1988; Meltzer, Petras e Reynolds, 1975), a maioria dos investigadoresqualitativos identificam-se, de uma ou de outra forma, com a

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  perspectiva fenomenológica. Há muitos debates relativos ao uso da palavra fenomenologia,

escolhemos, contudo, utilizá-Ia no seu sentido mais amplo. Iniciámos a discussão sobre fundamentosteóricos apresentando a perspectiva fenomenológica e clarificando algumas das questões que elalevanta. Seguidamente, discutimos o interaccionismo simbólico, uma forma típica e bem estabelecidada perspectiva fenomenológica. A "cultura" enquanto orientação, cuja interpretação é o trabalho demuitos antropólogos, é o tópico de discussão seguinte. Seguidamente, apresentámos de forma breveuma abordagem qualitativa recente, a etnometodologia. Descrevemos também um paradigma teóricoalternativo, os estudos culturais. Este conjunto de tópicos não esgota o universo. Seleccionámos osmais amplamente utilizados e que mais próximos se encontram da fenomenologia.

A ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA

No local de um acidente automóvel verificou-se um diálogo que ilustra duas das abordagens que aspessoas utilizam para compreender o que se passa it sua volta. Num cruzamento em que todas as

ruas tinham sinais de stop, verificou-se a colisão de dois automóveis. Os condutores estavam adiscutir o que se tinha passado quando chegou um polícia ao local. Um dos condutores afirmou queo outro não tinha parado no stop, ao que o segundo retorquiu que não só tinha parado como tinhamesmo prioridade. Uma testemunha relutante foi chamada a depor por um dos intervenientes e, aoprestar testemunho, afirmou que era muito difícil relatar aquilo que se tinha exactamente passado dosítio em que se encontrava. Ouviram-se frases tais como “como é possível que diga isso?”, “passou-se mesmo à frente dos seus olhos”, “factos são factos, você não parou!”, “você estava mas era aolhar para o outro lado”. Perguntou-se ao polícia como é que costumava resolver estes relatosconflituosos. A sua resposta foi a de que a contradição está sempre a verificar-se e que as pessoasenvolvidas na discussão não estavam necessariamente a faltar à verdade, porque "tudo depende do

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ponto em que nos encontramos, da nossa perspectiva". A abordagem que o polícia assumiu paralidar com a situação reflecte as abordagens qualitativas que se baseiam na perspectivafenomenológica. Fazem uso de um conjunto de asserções que diferem das que se utilizam quandose estuda o comportamento humano com o objectivo de descobrir "factos" e "causas".

Os investigadores fenomenologistas tentam compreender o significado que os acontecimentos einteracções têm para pessoas vulgares, em situações particulares. A sociologia fenomenológica foiparticularmente influenciada pelos filósofos Edmund Husserl e Alfred Schutz. Coloca-se igualmentena tradição weberiana, que enfatiza a "verstehen", a compreensão interpretativa das interacçõeshumanas. Os fenomenologistas não presumem que conhecem o que as diferentes coisas significampara as pessoas que vão estudar (Douglas, 1976). "A investigação fenomenológica começa com osilêncio" (Psathas, 1973). Este "silêncio" é uma tentativa para captar aquilo que se estuda. Destemodo, aquilo que os fenomenologistas enfatizam é o componente subjectivo do

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comportamento das pessoas. Tentam penetrar no mundo conceptual dos seus sujeitos (Geertz,1973), com o objectivo de compreender como e qual o significado que constroem para osacontecimentos das suas vidas quotidianas. Os fenomenologistas acreditam que temos à nossadisposição múltiplas formas de interpretar as experiências, em função das interacções com os outrose que a realidade não é mais do que o significado das nossas experiências (Greene, 1978).

Consequentemente, a realidade é "socialmente construída" (Berger e Luckmann, 1967).Ainda que existam diversas formas de investigação qualitativa, todas partilham, até certo ponto, o

objectivo de compreender os sujeitos com base nos seus pontos de vista. Contudo, quandoexaminamos esta afirmação cuidadosamente, a frase "com base nos seus pontos de vista"apresenta-nos um problema. Trata-se da questão fundamental relativa ao facto de "os seus pontosde vista” não ser uma expressão que os próprios sujeitos utilizem; pode não representar o modocomo eles pensam sobre si próprios. "Os seus pontos de vista" é um modo como estesinvestigadores abordam o seu trabalho. Portanto, "ponto de vista" é um construto de investigação.Entender os sujeitos com base nesta ideia pode, consequentemente, forçar a experiência que ossujeitos têm do mundo a algo que Ihes é estranho. Contudo, esta forma de intrusão do investigador no mundo do sujeito é inevitável em investigação. Para todos os efeitos, o investigador fazinterpretações, devendo possuir um esquema conceptual para as fazer. Os investigadoresqualitativos pensam que o facto de abordarem aa pessoas com o fito de compreenderem o seu ponto

de vista ainda que não constitua algo de perfeito é o que menos distorce a experiência dos sujeitos.Verificam-se diferenças no grau em que os investigadores qualitativos se preocupam com estesproblemas metodológicos e conceptuais, bem como no modo como os resolvem. Algunsinvestigadores tentam realizar "descrições fenomenológicas imaculadas"; outros mostram menor preocupação e tentam construir abstracções, interpretando os dados sobre os "seus pontos de vista".Independentemente da posição que se tome, a análise qualitativa tem de estar ciente destasquestões teóricas e metodológicas.

Ainda que os investigadores qualitativos tendam a ter uma orientação fenomenológica, a maioriadeles não é constituída por idealistas radicais. Enfatizam o subjectivo, mas não negamnecessariamente a existência de uma realidade "exterior" que se equaciona contra os sereshumanos numa resistência tenaz (Blumer, 1980), Determinado professor pode pensar ser capaz deatravessar uma parede de tijolos, mas pensar não chega para ser capaz de o fazer. A natureza daparede é inultrapassável, mas o professor não tem de perceber a "realidade" em toda a sua crueza.

Pode continuar a acreditar que é capaz de atravessar a parede, excepto desta vez, ou porquealguém lhe lançou uma maldição, impedindo-o de executar a façanha. Deste modo, a realidade só sedá a conhecer aos humanos da forma como é percebida. Os investigadores qualitativos enfatizam opensamento subjectivo porque, tal como o entendem, o mundo é composto por objectos menosobstinados do que as paredes. Os seres humanos vivem sob o lema "crer é poder". Vivemos naimaginação, contexto bem mais simbólico do que concreto.

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A INTERACÇÃO SIMBÓLICA

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Revendo a história, pode-se concluir que a interacção simbólica existe há bastante tempo. Estavapresente na abordagem à investigação da Escola de Chicago, no início deste século. John Dewey, ofilósofo e educador pragmático, encontrava-se em Chicago nos anos de formação desta perspectivateórica, contribuindo bastante para o seu desenvolvimento os contactos que manteve com autorescomo Charles Horton Cooley, Robert Park, Florian Znaniecki e, principalmente, com George HerbertMead. A perspectiva apresentada por Mead em Mind, Seelf, and Society (Mead, 1934) constitui afonte original mais citada daquilo que ficou conhecido por interacção simbólica. Não existe acordoentre os cientistas sociais sobre a utilização e importância dos diversos conceitos que o termoimplica. Muitos utilizam-no como sinónimo da investigação qualitativa, mas só um pequeno númerodos cientistas que se designam por interaccionistas simbólicos é que efectua investigação qualitativa(i.e., a Escola de Iowa de interacção simbólica). Na nossa exposição socorremo-nos essencialmentedos estudiosos do trabalho de Mead: Herbert Blumer e Everett Hughes, bem como dos seus alunos,Howard S. Becker e Blanche Geer.

Na base desta abordagem, compatível com a perspectiva fenomenológica, encontram-se aasserção de que a experiência humana é mediada pela interpretação. Nem os objectos, nem aspessoas, situações ou acontecimentos são dotados de significado próprio: ao invés, o significado é-Ihes atribuído. Por exemplo, onde o tecnólogo educacional define um projector de dezasseismilímetros como um instrumento a ser utilizado pelo professor para passar filmes cujo conteúdo sejarelevante para os objectivos educativos, o professor pode, por sua vez, defini-Io como um objecto

para entreter os estudantes quando se acaba o trabalho planeado ou quando está cansado. Ouainda se se apresentar o projector a uma tribo não-ocidental este pode ser entendido como um íconea ser venerado (até ao momento em que chegam os especialistas em audiovisual trazendo,possivelmente, com eles, novas percepções que vão influenciar as definições). O significado que aspessoas atribuem às suas experiências, bem como o processo de interpretação, são elementosessenciais e constitutivos, não acidentais ou secundários àquilo que é a experiência. Paracompreender o comportamento é necessário compreender as definições que está subjacente àconstrução destas. Os seres humanos criam activamente o seu mundo: a compreensão dos pontosde intersecção entre a biografia e a sociedade torna-se essencial (Gerth e Mills, 1953). As pessoasnão agem com base em respostas predeterminadas a objectos predefinidos, mas sim como animaissimbólicos que interpretam e definições cujo comportamento só pode ser compreendido peloinvestigador que se introduza no processo de definição através de métodos como a observaçãoparticipante.

A interpretação não é um acto autónomo, nem é determinada por nenhuma força particular, humanaou não. Os indivíduos interpretam com o auxílio dos outros - pessoas do passado, escritores, família,figuras da televisão e pessoas que se encontram nos seus locais de trabalho e divertimento -, masestes não o fazem deliberadamente. Os significados são construídos através das interacções. Aspessoas, em situações particulares (por exemplo, os

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alunos numa sala de aula), desenvolvem frequentemente definições comuns (ou "partilhamperspectivas", na terminologia do interaccionismo simbólico) porque interagem regularmente epartilham experiências, problemas e passados comuns; mas o consenso não é inevitável. Ainda quealguns entendam que as "definições comuns" são sinónimo da "verdade", o significado está sempresujeito a negociação. Pode ser influenciado pelas pessoas que vêem as coisas de modo diferente.

Quando se age com base numa definição particular as coisas podem não correr bem. As pessoastêm problemas e estes podem levá-Ias a construir novas definições, abandonando as anteriores -resumindo, a mudar. O objecto da investigação é o modo como estas definições se desenvolvem.

Assim sendo, a interpretação é essencial. A interacção simbólica assume o papel de paradigmaconceptual, ocupando o lugar dos instintos, dos traços de personalidade, dos motivos inconscientes,das necessidades do estatuto socioeconómico, das obrigações inerentes aos papéis, das normasculturais, dos mecanismos sociais de controlo ou do meio ambiente físico. Estes factores são algunsdos construtos em que os cientistas sociais se baseiam, na tentativa de compreender e prever ocomportamento. O interacionista simbólico não nega a utilidade destes construtos teóricos; contudo,eles só são relevantes para compreender o comportamento, na medida em que estejam presentes e

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afectem o processo de definição. Por exemplo, um proponente da teoria não negaria nem aexistência de um instinto alimentar nem a existência de certas definições culturais relativas ao quecomer, ao modo como comer e a quando comer. Negaria, contudo, que o facto de nos alimentarmospossa ser compreendido exclusivamente em termos de instintos e de definições culturais. Aalimentação pode ser compreendida tomando em consideração as inter-relações entre comosurgiram as definições de comer e as situações específicas em que se encontram. A alimentação édefinida de formas diferentes: o processo é experimentado de modo diferente e as pessoasmanifestam comportamentos diferentes quando comem em situações igualmente diferentes. Osprofessores de uma escola definem as alturas adequadas para comer, o que comer e como comer,de modos muito diversos dos alunos dessa mesma escola. Almoçar pode ser um intervalo notrabalho, uma intrusão indesejada, uma oportunidade para negociar, tempo de dieta ou umaoportunidade para obter as respostas às questões de um exame. (Não estamos a sugerir que setratem de definições mutuamente exclusivas.) Por exemplo, as refeições de algumas pessoasfuncionam como critério do trabalho realizado durante o dia. Neste caso, a alimentação ganhasignificado ao proporcionar um acontecimento através do qual se pode avaliar aquilo que já foi feito,o que é que falta fazer ou com que brevidade seremos forçados a pôr termo a um excelente dia.

Almoçar reveste-se de significados simbólicos que não são explicados por conceitos tais como osinstintos e os rituais. A teoria não nega a existência de regras e regulamentos, normas e sistemas decrenças sociais. Sugere, contudo, que estes só são importantes para a compreensão docomportamento, caso as pessoas os tomem em consideração. Além do mais, sugere-se que não são

concretamente as regras, regulamentos, normas ou o que quer que seja que é crucial para acompreensão do comportamento, mas sim o modo como

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estes são definidos e utilizados em situações específicas. Determinada escola secundária pode ter um sistema de avaliação, um quadro organizativo, um horário de aulas, um currículo e um lemaoficial sugerindo que o seu objectivo primordial é a educação da "pessoa total". Contudo, as pessoasagem não de acordo com aquilo que a escola é suposta ser ou aquilo que a administração diz que é,mas sim de acordo com as suas percepções pessoais. Para alguns alunos, o liceu é essencialmenteum local para encontrar os amigos ou mesmo um local para "curtir"; para a maioria trata-se de umlocal para estudar, passar de ano e conseguir o diploma - tarefas que consideram ser necessáriaspara ir para a universidade ou para obter um emprego. O modo como os alunos definem a escola e

os seus componentes determina as suas acções, ainda que as regras e o sistema de avaliaçãoestabeleçam certos limites e imponham custos, afectando assim o comportamento. As organizaçõesvariam no grau em que fornecem significados fixos e no grau em que facultam a criação designificados alternativos.

Outra componente importante da teoria da interacção simbólica é o construto do self. O self não évisto como residindo no interior do indivíduo, como um ego ou um conjunto organizado denecessidades, motivações e normas ou valores internos. O self  é a definição que as pessoasconstroem (através da interacção com os outros) sobre quem são. Ao construir ou definir o self, aspessoas tentam ver-se como os outros as vêem, interpretando os gestos e as acções que Ihes sãodirigidas e colocando-se no papel da outra pessoa. Resumindo, as pessoas acabam por se ver,parcialmente, como as outras as vêem. Deste modo, o seIf  também é uma construção social, oresultado do facto das pessoas se perceberem e desenvolverem uma definição através do processode interacção. Este nexo permite que as pessoas se modifiquem e cresçam, à medida que vão

aprendendo mais sobre elas próprias através deste processo interactivo. Esta forma deconceptualizar o self conduziu a estudos sobre a "profecia auto-realizável", proporcionando as basespara o que viria a ser conhecido pela "abordagem da rotulação" ao comportamento desviante(Becker, 1963; Erickson, 1962; Rist, 1977).

A CULTURA

Muitos antropólogos operam com base na perspectiva fenomenológica nos seus estudos sobreeducação (ver, por exemplo, Wolcott, 1973). Essencial para estes estudos antropológicos é oconceito de cultura. A tentativa de descrição da cultura ou de determinados aspectos dela designa-se

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por etnografia. Ainda que os antropólogos discordem frequentemente sobre a definição de cultura,utilizam-na sempre como base teórica de trabalho. Algumas das definições ajudam-nos acompreender melhor o modo como ela determina a investigação. Alguns antropólogos definem acultura como "o conhecimento acumulado que as pessoas utilizam para interpretar a experiência einduzir o comportamento" (Spradley, 1980, p. 6). Nesta acepção, a cultura abarca aquilo que as

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pessoas fazem, aquilo que sabem e ainda os objectos que manufacturam e utilizam (Spradley,1980,p. 5). Ao descrever a cultura com base nesta perspectiva, um investigador pode pensar sobre osacontecimentos da seguinte forma: "Na sua forma mais perfeita, a etnografia deve explicar ocomportamento das pessoas recorrendo à descrição daquele conhecimento que estas possuem eque Ihes permite comportarem-se de forma adequada, dadas as normas de senso comum nasrespectivas comunidades" (McDermott, 1976, p. 159). Os investigadores desta tradição entendemque a etnografia é bem sucedida quando consegue ensinar aos leitores o modo de comportamentoadequado em diferentes contextos culturais, quer se trate de famílias numa comunidade afro-americana (Stack, 1974), do gabinete de um director escolar (Wolcott, 1973) ou de uma turma de

 jardim infantil (Florio, 1978).Outra definição de cultura enfatiza o componente semiótico, o estudo dos sinais da língua,

defendendo que existe uma diferença entre conhecer os comportamentos e jargão de determinado

grupo de pessoas e ser, de facto, capaz de os pôr em prática (Geertz, 1973). Nesta perspectiva, acultura aparenta ser mais complexa e algo diferente: "Sistemas co-construídos de signos (a que,ignorando a linguagem mais técnica, eu chamaria símbolos), a cultura não é um poder, algo a quepossam ser causalmente atribuídos os acontecimentos, comportamentos, instituições ou processossociais; trata-se antes de um contexto, algo no interior do qual estes fenómenos se tornaminteligíveis, ou seja, susceptíveis de serem descritos com consistência" (Geertz, 1973, p. 14). Nestesentido, existe uma interacção entre a cultura e os significados que as pessoas atribuem aosacontecimentos. O tom fenomenológico desta definição é evidente.

Geertz tomou de empréstimo ao filósofo Robert Ryle a expressão "descrição profunda" paradescrever a tarefa da etnografia. Geertz utiliza o exemplo dado por Ryle de uma pessoa a piscar umolho, examinando os diferentes níveis de análise a que tal comportamento pode ser submetido.Piscar o olho pode ser visto como um tique, uma piscadela, o fingir de uma piscadela (tornando-se,assim, cúmplice de um auditório) ou um treino de piscadela. Como e a que nível se analisa o

comportamento ilustra as diferenças entre as descrições profundas e superficiais:

“É entre a... descrição superficial' daquilo que o actor (comediante, pestanejador, e pessoa comtiques...) faz ('contrair rapidamente a sua pestana direita') e a 'descrição profunda' do mesmo acto('ensaiar com um amigo uma piscadela de olho com o objectivo de levar o ingénuo a pensar queexiste uma conspiração') que reside o objecto da etnografia: uma hierarquia estratificada deestruturas de significado, nos termos da qual tiques, piscadelas, falsas piscadelas, paródias eensaios de paródias são executadas, percebidas e interpretadas, e sem a qual não poderiam (nemmesmo os tiques de ordem zero que, enquanto categoria cultural, constituem tanto uma não-piscadela como as piscadelas constituem não-tiques), de facto, existir independentemente daquiloque as pessoas fizessem ou deixassem de fazer com as suas pestanas." (Geertz, 1973, p, 7)

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Assim, a etnografia consiste numa "descrição profunda". Quando se examina a cultura com basenesta perspectiva, o etnógrafo depara-se com uma série de interpretações da vida, interpretações dosenso comum, que se toma difícil separar umas das outras. Os objectivos do etnógrafo são os deapreender os significados que os membros da cultura têm como dados adquiridos e, posteriormente,apresentar o novo significado às pessoas exteriores à cultura. O etnógrafo preocupa-seessencialmente com as representações.

Uma terceira forma de entender a cultura é apresentada pela antropóloga Rosalie Wax (1971).Numa exposição relativa aos pressupostos teóricos do trabalho de campo. Wax apresenta as tarefasda etnografia em termos de compreensão. Segundo Wax, a compreensão não é uma instância de

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"empatia misteriosa" entre as pessoas: trata-se, antes, de um fenómeno de "significado partilhado".Deste modo, o antropólogo parte sempre do exterior, tanto no sentido literal, em termos dasquestões relativas à sua aceitação social, como figurativamente, em termos da compreensão:

"Um investigador de campo que começa a trabalhar com pessoas que não conhece apercebe-serapidamente que estas pessoas dizem e fazem coisas que compreendem, mas que ele não. Umadestas pessoas pode fazer determinado gesto que põe todos os outros a rir. Elas partilham umacompreensão do significado do gesto, mas o investigador não. Quando o começa a partilhar, começaa 'compreender'. Passa a deter parte da 'perspectiva daqueles que estão por dentro'." (Wax, 1971. p.11)

Determinado estudo etnográfico de uma turma de jardim infantil (Florio, 1978) examina o modocomo as crianças que para ele entram se vão tornando "conhecedoras", ou seja, como aprendem acultura própria e vão desenvolvendo respostas apropriadas às expectativas do professor e da turma.

Os sociólogos também utilizam a cultura para basearem teoricamente os seus estudos qualitativos. A descrição que Becker (1986) faz da cultura baseia-se igualmente nos significados partilhados.Recorrendo à metáfora de uma orquestra de dança, Becker sugere que se um grupo de músicosindividuais são convidados para tocar integrados numa orquestra de dança, num casamento, e se,nunca se tendo encontrado antes, conseguem interpretar as músicas no tom que o maestro sugere(sem que os presentes se apercebam que eles nunca tocaram em conjunto), é na cultura que se

baseiam para serem capazes de tal feito. Becker sugere que é a cultura que permite às pessoasagirem conjuntamente.

É o recurso ao conceito de cultura, independentemente da sua definição específica, como principalinstrumento organizativo e conceptual de interpretação de dados que caracteriza a etnografia. Osprocedimentos etnográficos, ainda que semelhantes ou quase idênticos aos utilizados na observaçãoparticipante, baseiam-se, de facto, num vocabulário diferente, tendo-se desenvolvido igualmente emespecialidades académicas diferentes. Recentemente, os investigadores educacionais utilizaram otermo etnografia para se referirem a qualquer tipo de estudo qualitativo, mesmo no campo dasociologia.

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Ainda que não se verifique acordo relativo à adequabilidade da utilização da expressão etnografia

como a palavra genérica para designar os estudos qualitativos (ver, por exemplo, Wolcott, 1975,1990), existem algumas provas sugerindo que os sociólogos e os antropólogos se estão a aproximar no modo como conduzem investigação e na orientação teórica que subjaz ao seu trabalho. Umetnógrafo famoso declarou que "o conceito de cultura enquanto conhecimento adquirido tem muitode comum com a interacção simbólica" (Spradley, 1980).

A ETNOMETODOLOGIA

A etnometodologia não se refere aos métodos que os investigadores utilizam na recolha de dados:refere-se, outrossim, à matéria substantiva a ser investigada. Como Harold Garfinkel conta a história,o termo surgiu-lhe quando trabalhava em Yale, com ficheiros relativos a estudos transculturais quecontinham palavras tais como etnobotânica, etnofísica, etnomúsica e etnoastronomia. Estasexpressões referem-se ao estudo do modo como os indivíduos constroem e compreendem as suas

vidas quotidianas - os seus métodos de realização da vida de todos os dias. Para osetnometodólogos os sujeitos não são os membros de tribos primitivas; são pessoas que seencontram em várias situações na sociedade moderna.

Garfinkel, dando aquilo a que chama uma definição breve do trabalho dos etnometodólogos,declara: "Diria que empreendemos estudos sobre o modo como as pessoas, enquanto organizadorasdo seu quotidiano, utilizam os aspectos mais salientes deste mesmo quotidiano para o fazer funcionar" (Garfinkel, em Hill e Crittenden, 1968, p. 12). Os etnometodólogos tentam compreender omodo como as pessoas percebem, explicam e descrevem a ordem no mundo que habitam. Por exemplo, os etnometodólogos estudaram a forma como as pessoas "constroem" o seu género sexual(West e Zimmerman, 1987).

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Um número significativo de autores na área da educação foi influenciado por esta perspectiva.Mesmo que, por vezes, seja difícil diferenciar o seu trabalho do de outros investigadores qualitativos,ele tende a lidar mais com microquestões, com conteúdos específicos de conversas e vocabulário ecom detalhes relativos à acção e à compreensão. Estes investigadores utilizam frases como"compreensão de senso comum", "vida quotidiana", "realizações práticas", "bases rotineiras de acçãosocial" e "relatos". Os investigadores descritos nas primeiras páginas do presente livro, quequestionaram crianças sobre as suas respostas a testes, podem associar-se à abordagemetnometodológica (ver Mehan e Wood, 1975; Turner, 1974).

É demasiado cedo para comentar os contributos da etnometodologia para a investigaçãoeducacional. Uma das questões para a qual os etnometodólogos sensibilizaram os investigadores éa de que a própria investigação não constitui exclusivamente um empreendimento científico; podeser melhor entendida como "uma realização prática". Sugeriram que tomássemos seriamente emconsideração os pressupostos de senso comum

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que subjazem à actividade dos investigadores. Exortam os investigadores que trabalham numaperspectiva qualitativa a serem mais sensíveis à necessidade de "pôr entre parênteses" oususpender os seus pressupostos de senso comum, as suas visões do mundo, ao invés de operaremsem consciência deles.

OS ESTUDOS CULTURAIS

Muitos investigadores que não se consideram fenomenologistas também realizam investigaçãoqualitativa, situando o seu trabalho em quadros conceptuais diferentes. Estes incluem oneomarxismo, o materialismo feminista e o feminismo pós-estruturalista. Habitualmente utiliza-se aexpressão "estudos culturais" para classificar estas abordagens.

A diferença mais significativa entre estas perspectivas e a fenomenológica é a de que elas rejeitama noção de que o mundo é "susceptível de ser conhecido directamente"; ele "não se pode apresentar empiricamente", como sugeririam os relatos fenomenológicos (Willis, 1977, p. 194). Em primeirolugar, a perspectiva dos estudos culturais insiste que todas as relações sociais são influenciadas por relações de poder que devem ser entendidas mediante a análise das interpretações que os sujeitosfazem das suas próprias situações. Em segundo lugar, defendem que toda a investigação se baseia

numa perspectivação teórica do comportamento humano e social. Deste modo, não é adequadodescrever o processo de análise como indutivo. Por exemplo, Roman e Apple (1990) sugerem que as"convicções teóricas e políticas prévias" do investigador se "baseiam e são transformadas pelasexperiências vividas pelo grupo que investiga" (p. 62). Os estudos sociais enfatizam a importânciados métodos qualitativos para apreenderem a intersecção entre a estrutura social e a acção humana.

UMA HISTÓRIA

Resumimos a nossa exposição teórica com uma história. Se tivéssemos de Ihe dar um título,chamar-lhe-íamos "Para todo o sempre".

Certa noite, num jantar de professores universitários, estando presentes o director da Faculdade deDireito, um professor de Física e outro de Geologia, todos bastante famosos nos seus campos,discutia-se o conceito de "para todo o sempre". A conversa iniciou-se com um deles referindo o facto

de se efectuarem alugueres de propriedades por períodos de noventa e nove anos. Alguémperguntou ao professor de Direito se a expressão não era uma convenção da profissão legal parareferir a noção de "para sempre". Este respondeu, "sim, é mais ou menos essa a ideia". Por sua vez,o professor de Geologia referiu que no seu campo, "para sempre", significava algo completamentediferente - o conceito tinha mais a ver com o tempo presumível de duração da Terra. O professor deFísica comentou alto e em bom som que, no seu campo, "para sempre" queria mesmo dizer "parasempre".

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Muitas histórias infantis terminam com a frase "e viveram felizes para sempre" - outra dasinterpretações possíveis. Por vezes, quando as crianças estão à espera que os pais as levem aqualquer lado, queixam-se de ter esperado "séculos/para sempre", Não esgotámos todas aspossibilidades, mas a ideia é clara. A expressão é rica em conotações, daí a diversidade deperspectivas possíveis. Cada uma das pessoas mencionadas utiliza a expressão, "para sempre",com base em diferentes visões do mundo. A criança que afirma "estou à espera há séculos/parasempre" manifesta ser-lhe difícil ver o mundo com os olhos de um físico, tal como o físicodesqualifica o uso que a criança faz da expressão com um sorriso paternalista.

É possível tentar resolver a discrepância entre as perspectivas dos vários utilizadores da expressãoexigindo uma definição mais exacta, ou seja, obter consenso optando por uma definição "real" daexpressão. Em grupos de discussão ou reuniões de direcções, é possível que um tal método possaimpedir falhas de comunicação, mas o objectivo dos investigadores qualitativos é o de expandir enão o de limitar a compreensão. Não se tenta resolver a ambiguidade entendendo as diferençascomo um "erro" que se tenta ultrapassar mediante a elaboração de uma definição. Outrossim, tenta-se estudar os conceitos da forma como eles são entendidos por todos os que os utilizam. De modosemelhante, ao estudar determinada organização, não se tenta resolver as ambiguidades inerentesao facto de surgirem várias definições da palavra objectivo, ou mesmo quando as pessoas têmdiferentes objectivos. O objecto de estudo consiste, exactamente, no modo como as diferentespessoas envolvidas entendem e experimentam os objectivos. São as realidades múltiplas e não umarealidade única que interessam ao investigador qualitativo.

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Capítulo 4 - Nove questões frequentes sobre a investigação qualitativa

O contacto inicial com a investigação qualitativa leva a que normalmente se coloquem algumasquestões. Consideramos nove das questões mais frequentes.

1. Será possível a utilização conjunta das abordagens qualitativa e quantitativa? Alguns autoresutilizam-nas conjuntamente (Cronbach et aI.. 1980: Miles e Huberman, 1984; Reichardt e Cook,1974). Por exemplo, tal é prática comum quando inicialmente se constroem questionários paraentrevistas abertas. Pode utilizar-se a observação em profundidade para descobrir por que é queduas variáveis estão estatisticamente relacionadas. Existem estudos que integram componentesqualitativos e quantitativos. Frequentemente, a estatística descritiva e os resultados qualitativos têm

sido apresentados conjuntamente (Mercúrio, 1979). Ainda que seja possível, e nalguns casosdesejável, utilizar as duas abordagens conjuntamente (Fielding e Fielding, 1986), tentar conduzir umestudo quantitativo sofisticado ao mesmo tempo que um estudo qualitativo aprofundado pode causar grandes problemas. Particularmente os investigadores inexperientes que tentem combinar um bomplano experimental quantitativo com outro qualitativo deparam-se com sérios problemas. Ao invés deconseguirem um produto híbrido de características superiores acabam, normalmente, com algo quenão preenche os requisitos de qualidade para nenhuma das abordagens (Locke, Spirduso eSilverman, 1987, p. 96). As duas abordagens baseiam-se em pressupostos diferentes (Smith eHeshusus, 1986). Ainda que seja conveniente verificar-se uma interacção entre dados competitivos.

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frequentemente, tais estudos acabam por ser estudos mais sobre método do que sobre o tópico que

o investigador queria originalmente estudar.2. Será que a abordagem qualitativa é verdadeiramente científica?No passado, os investigadoreseducativos baseavam o seu trabalho nas investigações feitas pelos "colegas das ciências exactas".

 Alguns autores entendiam medida como sinónimo de ciência, e tudo o que saísse deste registo eraconsiderado suspeito. A ironia reside no facto dos cientistas das ciências exactas (por exemplo, afísica e a química) não definirem ciência de uma forma tão estreita como aqueles que tentam imitar oseu trabalho. O físico Nobel P. W. Bridgeman afirma o seguinte sobre o método científico: "O métodocientífico não existe como tal. A característica mais importante dos procedimentos do cientista temsido meramente o utilizar a sua mente da melhor forma possível, sem quaisquer restrições" (Dalton,1967, p. 60). Dalton (1967) afirma que "muitos físicos, químicos e matemáticos eminentes

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questionam a existência de um método susceptível de replicação, que todos os investigadorespossam ou devam adoptar. As suas investigações têm mostrado que utilizam formas muito diversase, por vezes, de difícil explicitação, de descoberta e resolução de problemas" (p. 60).

Alguns autores podem utilizar definições muitos estritas de ciência, apenas considerando científicaa investigação dedutiva e de teste de hipóteses. Contudo, parte significativa da atitude científica,como a entendemos, passa por uma mente aberta no respeitante ao método e às provas. Ainvestigação científica implica um escrutínio empírico e sistemático que se baseia em dados. Ainvestigação qualitativa preenche estes requisitos e, no presente livro, procedemos à descrição dealgumas das convenções desta tradição científica, que explicitam aquilo que implica a investigaçãorigorosa e sistemática.

3. Em que é que a investigação qualitativa difere daquilo que pessoas como os professores, jornalistas e artistas fazem? Consideremos primeiramente os professores. Muitas pessoasinteligentes e leigas são bons observadores do mundo que as rodeia, procedem a formassistemáticas de questionação e chegam a conclusões. Os bons professores fazem-no de formaconsistente. O que eles fazem é, de certo modo, investigação qualitativa, mas difere nalgunsaspectos. Em primeiro lugar, o dever principal do observador é o de conduzir investigação; não temde perder tempo a elaborar currículos, a dar aulas e a disciplinar os alunos. O investigador pode,pois, devotar-se à investigação de alma e coração. De igual modo, os investigadores procedem comrigor no que diz respeito ao registo detalhado daquilo que descobrem. Conservam os seus dados. Osprofessores também têm registos, mas este são muito menos detalhados e de tipos diferentes. Além

do mais, os investigadores não têm tanto interesse pessoal nas observações que fazem e nosresultados que obtêm. A vida, carreira e autoconceito do professor estão sempre intimamente ligadosao modo particular como ele desempenha as suas tarefas. Isto não significa que os professores nãopossam ultrapassar estas questões, de modo a poderem conduzir investigação, ou que osinvestigadores não tenham qualquer 

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interesse pessoal nos estudos que realizam. Contudo, para os investigadores o sucesso é definidopor realizarem o que se caracteriza por boa investigação, e não por conteúdos ou resultadosespecíficos. Outro aspecto em que o investigador e o professor diferem é que o investigador foitreinado no uso de um conjunto de procedimentos e técnicas, desenvolvidos ao longo dos anos, como objectivo de recolher e analisar dados. Muitos destes procedimentos e técnicas encontram-se

descritos ao longo do presente livro. Finalmente, o investigador baseia-se em teorias e resultadosanteriores de investigação, que funcionam como um pano-de-fundo que fornece pistas para dirigir oestudo e permite contextualizar os novos resultados. E relativamente aos jornalistas? Alguns autoresassociam a investigação qualitativa ao jornalismo com objectivos depreciativos. Não é este o nossocaso. Como sugere a resenha histórica que apresentámos, algumas das tradições da investigaçãoqualitativa estão associadas ao jornalismo. Os jornalistas partilham alguns dos objectivos e normasdos cientistas sociais, chegando mesmo, alguns, deles, a efectuarem investigações de maior valor para a ciência social do que aqueles que exibem os seus certificados e títulos académicos (Levine,1980a). Mesmo assim, acreditamos que os investigadores académicos, de uma forma geral,trabalham de modo diferente dos jornalistas (Grant, 1979). Os jornalistas tendem a interessarem-semais por acontecimentos e questões particulares e a duvidarem das pessoas que fazem as notícias.Os jornalistas trabalham constrangidos por prazos. Ao invés de passarem anos a recolher e aanalisar cuidadosamente os dados, escrevem, normalmente, com base num menor número de

provas - "a pressão da notícia". Escrevem também, geralmente, para uma audiência diferente,preocupando-se mais em contar do que em analisar uma história. Os jornalistas também não sebaseiam numa teoria social. Sendo assim, não existe uma relação entre o que escrevem e asquestões teóricas. É evidente que os jornalistas também estão interessados em vender jornais, o quecoloca algumas restrições ao que escrevem e ao modo como escrevem. Contudo, por vezes, é muitodifícil, se não impossível, traçar a linha entre a investigação em ciências sociais e o bom jornalismode investigação (ver Douglas 1976; Levine, 1980a).

E os artistas? Alguns novelistas e poetas são excelentes observadores do palco humano. Tambémeles podem não ser tão formais e rigorosos como os investigadores qualitativos no tocante àstécnicas de recolha de dados, permitindo-se mais liberdade relativamente aos dados que recolhem.

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Contudo, muito do que dizem tem interesse para os cientistas sociais. Algumas pessoas encontram-se na interface da ciência social e da arte. Escrevem com um estilo muito envolvente, baseando-se,para escrever, na tradição da ciência social (Coles, 1964; Coule, 1976a). Possivelmente, oscientistas sociais têm muito a aprender com os novelistas e os ensaístas. Fariam melhor se não osignorassem e tentassem aprender com eles (ver Eisner, 1980).

4. Será que os resultados qualitativos são generalizáveis? Quando os investigadores utilizam otermo generalização estão normalmente a referir-se ao facto de os resultados de um estudoparticular serem aplicáveis a locais e sujeitos diferentes. Por exemplo, se se

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estudar uma turma particular, é importante saber até que ponto as outras turmas são semelhantes àque roi estudada. Nem todos os investigadores qualitativos se preocupam com as questões dageneralização, tal como a definimos. Os que se preocupam, fazem questão em explicitá-Io. Por exemplo, caso conduzam um estudo de caso em determinada turma, isto não significanecessariamente que tenham intenção, ao relatarem os resultados do estudo, de sugerir que todasas turmas se lhe assemelham.

Outros autores que se preocupam com a generalização, tal como a apresentámos até ao momento,podem basear-se noutros estudos para determinarem a representatividade do que encontraram, oumesmo conduzir um maior número de estudos mais pequenos para mostrar o carácter não

idiossincrático do seu trabalho. Por exemplo, num estudo de centros de dia, após ter realizadoobservações exaustivas num deles durante quatro meses, um investigador que conhecemospessoalmente efectuou visitas a três outros centros, com o objectivo de perceber as semelhanças ediferenças entre o centro estudado e os outros (Freedman. 1980).

Alguns investigadores qualitativos não pensam na questão da generalização em termosconvencionais. Estão mais interessados em estabelecer afirmações universais sobre processossociais gerais do que considerações relativas aos pontos comuns de contextos semelhantes comoturmas. Neste caso, a ideia é a de que o comportamento humano não é aleatório ou idiossincrático.Deste modo, a preocupação central não é a de se os resultados são susceptíveis de generalização,mas sim a de que outros contextos e sujeitos a eles podem ser generalizados.

Num estudo que efectuámos numa unidade de cuidados intensivos de um hospital universitário,estudámos o modo como o pessoal e os pais comunicavam sobre a situação das crianças. À medidaque o estudo prosseguia, fomos chegando à conclusão que o pessoal não só diagnosticava as

crianças, como também classificava as famílias. Estas avaliações dos pais funcionavam como critériopara os profissionais decidirem que informação Ihes prestar e como a prestar. Ao reflectir sobre osencontros entre pais e professores em escolas públicas e outras situações em que os profissionaisdetêm informações sobre as crianças a que os pais podem desejar ter acesso, começámos aidentificar paralelos. Resumindo, começámos a centrar-nos num processo social geral que surgiaclaramente num contexto particular. Uma das vias que nos encontramos presentemente a prosseguir é a possibilidade de generalização dos resultados da unidade de cuidados intensivos, não a outroslocais semelhantes, mas a outros contextos, tais como as escolas, nos quais os profissionaisinteragem com os pais. A abordagem à generalização que acabámos de descrever é adoptada pelosinvestigadores que se interessam pelo desenvolvimento do que se designa por uma teoriafundamentada.

Por sua vez, ainda outros investigadores qualitativos pensam sobre as questões da generalização,entendendo que o seu trabalho é o de documentar cuidadosamente um determinado contexto ou

grupo de sujeitos e que é tarefa dos outros aperceber o modo como isto se articula com o quadrogeral. Mesmo uma descrição de algo particular tem valor, porque as

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teorias necessitam de saber explicar todos os acontecimentos. Entendem o seu trabalho comotendo o potencial para criar anomalias que cabe aos outros investigadores explicar. Parte daexplicação pode implicar a necessidade de alargar a noção que temos do fenómeno estudado.

Antes dos gorilas terem sido estudados mediante uma observação detalhada, no seu ambientenatural, agindo como Ihes é próprio, eram considerados extremamente agressivos e perigosos para

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os humanos e outros animais. George Schaller foi estudar os gorilas no seu ambiente natural edescobriu que o modo como se comportavam não se assemelhava ao perfil estabelecido, com basenos gorilas em cativeiro. Constatou que eram tímidos e envergonhados, preferindo fugir ou evitar aspessoas em vez de as atacar. Contudo, erguer-se-iam e bateriam no peito de forma ritual quandodesafiados. As questões relativas ao modo como os gorilas são e em que circunstâncias eles secomportam da forma descrita não podem ser respondidas por uma investigação de estudo de casotão limitada, mas os gorilas de Schaller têm necessariamente de ser tomados em consideração emquaisquer discussões futuras sobre o comportamento desta espécie (Schaller. 1965; Waldorf eReinarman, 1975).

5. E os efeitos nos dados das opiniões, preconceitos e outros enviesamentos do investigador?Osinvestigadores qualitativos, tanto no âmbito da sociologia como no da antropologia, têm sidoacusados ao longo dos anos do facto de ser excessivamente fácil que os seus preconceitos eatitudes influenciem os dados. Particularmente quando os dados têm de ser "processados" pelamente do investigador antes de serem postos no papel, surgem as preocupações relativas a riscosde subjectividade. Será que o observador se limita a registar aquilo que pretende ver e não o que defacto se passa? Os investigadores qualitativos preocupam-se com os efeitos que a suasubjectividade possa ter nos dados que produzem (LeCompte, 1987).

Contudo, aquilo que os investigadores qualitativos tentam fazer é estudar objectivamente osestados subjectivos dos seus sujeitos. Ainda que a ideia de que os investigadores sejam capazes deultrapassar alguns dos seus enviesamentos possa, inicialmente, ser difícil de aceitar, os métodos que

eles utilizam auxiliam neste processo. Por um lado, os estudos qualitativos não são ensaiosimpressionísticos elaborados após uma visita rápida a determinado local ou após algumas conversascom uns quantos sujeitos. O investigador passa uma quantidade de tempo considerável no mundoempírico recolhendo laboriosamente e revendo grandes quantidades de dados. Os dados carregam opeso de qualquer interpretação, deste modo, o investigador tem constantemente de confrontar assuas opiniões próprias e preconceitos com eles. Além do mais, muitas das opiniões e preconceitossão bastante superficiais. Os dados recolhidos proporcionam uma descrição muito mais detalhadados acontecimentos do que mesmo a mente mais criativamente preconceituosa poderia ter construído, antes do estudo ser efectuado.

Adicionalmente; o objectivo principal do investigador é o de construir conhecimento e não o de dar opiniões sobre determinado contexto. A utilidade de determinado estudo é a capacidade que tem degerar teoria, descrição ou compreensão. O facto de determinado

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estudo conduzir à acusação de alguém por determinado estado de coisas ou à rotulagem de umadeterminada escola como "boa" ou "má", ou, ainda, à apresentação de uma análise prejudicial, podelevar a considerá-Io como superficial. Os investigadores qualitativos acreditam que as situações sãocomplexas, e, deste modo, tentam descrever muitas dimensões e não restringir o campo deobservação.

Além do mais, como vamos discutir detalhadamente no capítulo III, os investigadores qualitativosprotegem-se dos seus enviesamentos registando notas de campo detalhadas que incluem reflexõessobre a sua própria subjectividade. Alguns investigadores qualitativos trabalham em equipa esujeitam as suas notas de campo às críticas dos colegas como forma de se protegerem dosenviesamentos. Deve ser acentuado que nos estamos a referir ao limitar dos enviesamentos dosinvestigadores, não à sua total eliminação. Os investigadores qualitativos tentam identificar os seus

estados subjectivos e o efeito destes nos dados, mas não acreditam que possam ser 100% bemsucedidos. Todos os investigadores são presa dos enviesamentos inerentes ao observador.Quaisquer questões ou questionários, por exemplo, reflectem os interesses daqueles que osconstroem, o mesmo se passando nos estudos experimentais. Os investigadores qualitativos tentamreconhecer e tomar em consideração os seus enviesamentos, como forma de lidar com eles.

6. Será que a presença do investigador não vai modificar o comportamento das pessoas que pretende estudar?  A resposta é afirmativa e tais modificações são designadas por "efeito doobservador". Praticamente todas as investigações são afligidas por este problema. Por exemplo, osinquéritos que pretendem obter a opinião das pessoas. O facto de pedir às pessoas que se sentem eque preencham um questionário modifica o seu comportamento. Será que perguntar às pessoas a

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sua opinião não pode levar à elaboração de uma opinião? Alguns estudos experimentais criam ummundo totalmente artificial (no laboratório) para observar o comportamento das pessoas. O facto dasoutras abordagens à investigação também padecerem do mesmo problema não significa que osinvestigadores qualitativos tomem o "efeito do observador" de ânimo leve. A história dos métodosqualitativos mostra-nos que os seus proponentes têm tomado o problema em consideração edesenvolvido procedimentos com o objectivo de o minimizar.

Os investigadores qualitativos tentam interagir com os seus sujeitos de forma natural, não intrusivac não ameaçadora. Quanto mais controlada e intrusiva for a investigação, maior a probabilidade dese verificarem "efeitos do observador" (Douglas, 1976, p. 19). Se as pessoas forem tratadas como"sujeitos de investigação", comportar-se-ão como tal, o que é diferente do modo como normalmentese comportam. Como os investigadores qualitativos estão interessados no modo como as pessoasnormalmente se comportam e pensam nos seus ambientes naturais, tentam agir de modo a que asactividades que ocorrem na sua presença não difiram significativamente daquilo que se passa na suaausência. De modo semelhante, como os investigadores neste tipo de investigação se interessampelo modo como as pessoas pensam sobre as suas vidas, experiências e situações particulares, asentrevistas que efectuam são mais semelhantes a conversas entre dois confidentes

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do que a uma sessão formal de perguntas e respostas entre um investigador e um sujeito. Esta é a

única maneira de captar aquilo que é verdadeiramente importante do ponto de vista do sujeito.Nunca é possível ao investigador eliminar todos os efeitos que produz nos sujeitos ou obter uma

correspondência perfeita entre aquilo que deseja estudar e - o "meio ambiente natural" - e o que defacto estuda - "um meio ambiente com a presença do investigador". Pode, contudo, compreender osefeitos que produz nos sujeitos, mediante um conhecimento aprofundado do contexto, utilizando-opara construir uma consciência mais ampla da natureza da vida social. Os investigadores aprendema interpretar alguns dos seus dados em função do contexto (Deutscher, 1973). É frequente que ossujeitos tentem manipular as impressões e actividades dos investigadores, particularmente nas fasesiniciais do projecto (Douglas, 1976). Os professores, por exemplo, podem não gritar com os alunosna presença do investigador e, em geral, terem um comportamento mais reservado. É importantetomar em consideração o facto de que existe um observador exterior. Os directores podem agir domodo que pensam ser mais consentâneo com o seu papel, modificando as suas rotinas habituais. É,pois, muito conveniente saber aquilo que os directores consideram ser consentâneo com o seu papel

(ver Morris e Hurwitz, 1980). As pessoas revelam tanto de si próprias nas suas reacções aos quehabitualmente as rodeiam, como aos estranhos, desde que estejamos cientes das diferenças.7. Será que dois investigadores que estudem independentemente o mesmo local ou os mesmos

sujeitos chegarão às mesmas conclusões?Esta questão está associada com o conceito de garantia.Nalgumas abordagens de investigação existe a expectativa de que se verificará consistência entre osresultados de observações feitas por diferentes investigadores ou pelo mesmo investigador ao longodo tempo. Os investigadores qualitativos não partilham totalmente esta expectativa (Agar, 1986, pp.13-16; Heider, 1988).

Os investigadores em educação são oriundos de uma diversidade de posições e têm interessesdiversos. Alguns estudaram psicologia, outros sociologia, outros desenvolvimento infantil e aindaoutros antropologia ou assistência social. O treino académico influencia as questões que oinvestigador coloca. Por exemplo, ao estudar determinada escola, os assistentes sociais podem estar interessados na origem social dos alunos, os sociólogos podem centrar a atenção na estrutura social

da escola e os psicólogos desenvolvimentistas podem desejar estudar o autoconceito dos alunosmais jovens. Deste modo, assistentes sociais, sociólogos e psicólogos, em função dos seusinteresses diferentes, podem passar períodos de tempo diferentes em diferentes locais da escola oua falar com diferentes pessoas. Recolherão diferentes tipos de dados e chegarão a conclusõesdiferentes. De igual modo, as perspectivas teóricas que os orientarão implicarão que os modos deestruturar o respectivo trabalho serão diferentes.

Nos estudos qualitativos os investigadores preocupam-se com o rigor e abrangência dos seusdados. A garantia é entendida mais como uma correspondência entre os dados que são registados eaquilo que de facto se passa no local de estudo do que como uma

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consistência literal entre diferentes observações. Como pode ser visto pela exposição feita, doisinvestigadores que estudem o mesmo local podem obter dados diversos e chegar a conclusõesdiferentes. Ambos os estudos podem ser consistentes. Só se poderiam levantar dúvidas sobre a suaconsistência se os resultados fossem contraditórios ou incompatíveis.8. Qual o objetivo da investigação qualitativa? Como sugerimos anteriormente, existe variedade notrabalho feito sob a designação de investigação qualitativa. Nem todos os investigadores qualitativospartilham o mesmo objectivo. Alguns entendem o seu trabalho como uma tentativa para desenvolver "teorias fundamentadas" (grounded theory). Outros acentuam a necessidade de construir conceitosheurísticos. A descrição é também outro dos objectivos. Se incluirmos a investigação qualitativaaplicada na discussão dos objectivos a diversidade destes será ainda maior. Ainda que existamdiferenças óbvias nas diferentes abordagens à investigação qualitativa, verifica-se algum acordoentre os investigadores no tocante aos objectivos do seu trabalho. Em contraste com osinvestigadores quantitativos, os qualitativos não entendem o seu trabalho como consistindo narecolha de "factos" sobre o comportamento humano, os quais, apôs serem articulados,proporcionariam um modo de verificar e elaborar uma teoria que permitisse aos cientistasestabelecer relações de causalidade e predizer o comportamento humano. Os investigadorespensam que o comportamento humano é demasiadamente complexo para que tal seja possível,considerando a busca de causas e predições negativamente, no sentido de que esta dificulta a

capacidade de apreender o carácter essencialmente interpretativo da natureza e experiênciahumanas. O objectivo dos investigadores qualitativos é o de melhor compreender o comportamento eexperiência humanos. Tentam compreender o processo mediante o qual as pessoas constroemsignificados e descrever em que consistem estes mesmos significados. Recorrem à observaçãoempírica por considerarem que é em função de instâncias concretas do comportamento humano quese pode reflectir com maior clareza e profundidade sobre a condição humana.Alguns investigadores qualitativos (incluindo investigadores feministas e de investigação-acção) que

se dedicam ao estudo de pessoas marginalizadas têm, também, como objectivo, a intenção decontribuir para as condições de vida dos seus sujeitos (Roman e Apple, 1990; Lather, 1988).Estabelecem diálogos com os sujeitos relativamente ao modo como estes analisam e observam osdiversos acontecimentos e actividades, encorajando-os a conseguirem maior controlo sobre as suasexperiências.

9. Em que é que diferem a investigação qualitativa e quantitativa?Muitos autores se debruçaram

sobre as diferenças teóricas, técnicas e estratégicas entre as abordagens qualitativa e quantitativa. Éfrequente a abordagem qualitativa ser apresentada como contrastando com a quantitativa (Bruyn,1966; Rist, 1977). Ainda que um certo número de comparações seja inevitável, tentamos, nopresente livro, concentrármo-nos nas questões referentes à descrição e condução da abordagemqualitativa. Sugerimos-lhe

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outras fontes relativas à discussão das diferenças entre as duas abordagens (ver Campbell, 1978;Eisner, 1980; Guba e Lincoln, 1982; Lincoln e Guba, 19X5; Smith e Heshusius, 1986).

Ainda que não tenhamos sido exaustivos na discussão de tais diferenças, a figura 1-1 (pp.72-74)sumaria as características de ambas as abordagens. A figura serve igualmente como um sumário útildas diferentes questões que fomos levantando ao longo do presente capítulo, muitas das quais

vamos desenvolver nas páginas seguintes.

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Figura 1-1

CARACTERÍSTICAS DAS ABORDAGENS QUALITATIVA E QUANTITATIVA

QUALITATIVA

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Expressões/frases associadas com a abordagem

- etnográfico- observação participante- trabalho de campo- fenomenológico- dados qualitativos- Escola de Chicago- interacção simbólica- documentário- perspectiva interior - história de vida- naturalista- estudo de caso- etnometodológico- ecológico- descritivo- émico

  Conceitos-chave associados com a abordagem

- significado- processo- compreensão de senso comum- ordem negociada- pôr entre parênteses- para todos os propósitos práticos- compreensão- definição da situação- construção social- vida quotidiana- teoria fundamentada

Afiliação teórica

- interacção simbólica- cultura- etnometodologia- idealismo- fenomenologia

Afiliação académica- sociologia- antropologia- história

Objectivos- desenvolver conceitos sensíveis

- teoria fundamentada- descrever realidades múltiplas- desenvolver a compreensão

Plano- progressivo, flexível. geral- intuição relativa ao modo de avançar Elaboração das propostas de investigação- breves- parcas em revisão de literatura

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- especulativas- descrição geral da abordagem- sugere áreas para as quais a investigação possa ser relevante- normalmente escritas após a recolha de alguns dados

Dados- descritivos- fotografias- documentos pessoais- o discurso dos sujeitos- notas de campo- documentos oficiais e outros.

Amostra- pequena- amostragem teórica- não representativa

Técnicas ou métodos- observação

- observação participante- estudo de documentos vários- entrevista aberta

Relação com os sujeitos- empatia- contacto intenso- ênfase na confiança- o sujeito como amigo- igualdade- ser neutral

Instrumentos

- gravador - transcrição(Frequentemente a pessoa do investigador é o único instrumento.)

Análise de dados- contínua- indução analítica- modelos, temas, conceitos- método comparativo constante- indutivo

Problemas com o uso da abordagem- demorada

- os procedimentos não são estandardizados- difícil a síntese dos dados- garantia- dificuldade em estudar populações de grandes dimensões

  QUANTITATIVA

Expressões/fr'ases associadas com a abordagem

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- experimental- positivista- dados quantitativos- factos sociais- perspectiva exterior - estatística- empírica- ética

Conceitos-chave associados com a abordagem- variável- validade- operacionalização- significância estatística- garantia- replicação- hipóteses- predição

Afiliação teórica

- funcionalismo estrutural- empirismo lógico- realismo, positivismo- teoria dos sistemas- comportamentalismo

  Afiliação académica- psicologia- sociologia- economia- ciência política

Objectivos

- teste de teorias- encontrar relações entre variáveis- encontrar factos- descrição estatística- predição

Plano- estruturado, predeterminado, formal, específico- plano detalhado de trabalho

Elaboração das propostas de investigação- extensas- longa revisão de literatura

- detalhadas e específicas nos objectivos- escritas antes da recolha de dados- detalhadas e específicas nos procedimentos- especificação de hipóteses

  Dados- quantitativos- variáveis operacionalizadas- codificação quantificável- estatística

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- contagens, medidas

Amostra- ampla- selecção aleatória- estratificada- controle de variáveis extrínsecas- grupos de controlo- precisa

Técnicas ou métodos- experimentos- inquéritos- entrevista estruturada- quase experimentos- observação estruturada- conjuntos de dados

Relação com os sujeitos- circunscrita

- distante- curta duração- sujeito-investigador 

Instrumentos- inventários- computadores- questionários- escalas- índices- resultados de testes

Análise de dados

- dedutiva- estatística- verifica-se após a conclusão dos dados

Problemas com o uso da abordagem- controlo de outras variáveis- intrusão- reificação- validade

Página 75.

Capítulo 5: A ética

Tal como as palavras sexo e cobras, a ética é uma palavra com uma forte carga emocional e plenade significados ocultos. Nada pode ser mais devastador para um profissional do que ser acusado deuma prática pouco ética. Ainda que a palavra sugira imagens de uma autoridade suprema, eminvestigação, a ética consiste nas normas relativas aos procedimentos considerados correctos eincorrectos por determinado grupo. A maioria das especialidades académicas e profissões têmcódigos deontológicos que estabelecem tais normas (ver, por exemplo, American Sociological

 Association, 1989). Alguns destes códigos são fruto de considerável reflexão e sensibilizam osrespectivos membros para dilemas e questões morais com as quais se podem defrontar; outros sãomenos ambiciosos e funcionam mais como forma de protecção do grupo profissional do que como

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repositórios de normas de conduta.Duas questões dominam o panorama recente no âmbito da ética relativa à investigação com

sujeitos humanos: o consentimento informado e a protecção dos sujeitos contra qualquer espécie dedanos. Tais normas tentam assegurar o seguinte:1. Os sujeitos aderem voluntariamente aos projectos de investigação, cientes da natureza do estudo

e dos perigos e obrigações nele envolvidos.2. Os sujeitos não são expostos a riscos superiores aos ganhos que possam advir.Estas directrizes são normalmente postas em prática mediante o recurso a formulários contendo a

descrição do estudo, o que será feito com os resultados e outras informações pertinentes. Aassinatura do sujeito aposta no formulário é prova de um consentimento informado. Hoje em dia,existem comissões relativas aos direitos dos sujeitos humanos na

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maioria das instituições, cujo objectivo é o de considerar as propostas de investigação, certificando-se que a investigação proposta assegura o consentimento informado e a segurança dosparticipantes.

Esta resposta burocrática à preocupação com a possível exploração e dano trazido aos sujeitosresultou da denúncia pública de projectos de investigação que eram perniciosos para os sujeitoshumanos de formas extremas. Por exemplo, descobriu-se que ao serem admitidos na Willowbrook

State School para deficientes mentais, estes eram injectados com o vírus da hepatite como parte deum estudo sobre vacinas. Noutra zona do país, foi denunciado que, sem o seu conhecimento, umgrupo de homens com sífilis não recebia tratamento. A outros sujeitos experimentais mentiu-sequando participavam num estudo e assistiam àquilo que pensavam ser a administração de choqueseléctricos a outros seres humanos que, na realidade, eram actores contratados pelo projecto. Éevidente que tem que se pôr cobro a tais abusos. Contudo, não são tão evidentes as relações entreas regulamentações existentes c aquilo que os investigadores qualitativos fazem (Duster, Matza eWellman, 1979; Thorne, 1980; Wax, 1980; Taylor, 1987).

Nos últimos anos surgiram propostas relativas a um código deontológico para os investigadoresqualitativos (CasseI, 1978; CasseI e Wax, 1980; Punch, 1986). Muitos investigadores qualitativos têmchegado à conclusão de que a relação entre sujeito e investigador é tão diferente nas abordagensqualitativa e quantitativa que o seguimento dos procedimentos habituais de consentimento informadoe protecção de danos pouco mais parece ser do que um ritual. No tipo de investigação para o qual

tais procedimentos foram estabelecidos os sujeitos têm uma relação muito limitada com oinvestigador; limitam-se a preencher questionários ou a participar em experimentos específicos. Épossível informar explicitamente os sujeitos relativamente ao conteúdo e possíveis danos inerentesao estudo. Por outro lado, na investigação qualitativa a relação é continuada; desenvolve-se ao longodo tempo. Conduzir investigação qualitativa assemelha-se mais ao estabelecimento de uma amizadedo que de um contrato. Os sujeitos têm uma palavra a dizer no tocante à regulação da relação,tomando decisões constantes relativamente à sua participação. Os procedimentos de controlo fazemmais sentido nos estudos em que é possível delinear o plano experimental completo antes do seuinício. Como já vimos, na investigação qualitativa estes planos não existem. Por exemplo, aosubmeter-se um projecto de investigação a determinada comissão sobre sujeitos humanos, só épossível incluir uma descrição esquemática do que se irá passar.

Mesmo que as considerações relativas ao consentimento informado e protecção dos sujeitoshumanos, tal como são tradicionalmente formuladas, não se adequem muito à abordagem

qualitativa, as questões éticas são obviamente de interesse (Burgess, 1984). Mesmo que osinvestigadores qualitativos não tenham escrito um código deontológico específico, existemconvenções de ordem ética para o trabalho de campo (Punch, 1986).

Como sugerimos no capítulo IV, diferentes estilos e tradições de trabalho de campo operam sobprincípios éticos igualmente diferentes. Vamos fazer sugestões específicas

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relativas aos princípios éticos noutros capítulos, mas, de momento, pretendemos explicitar algunsprincípios gerais que orientam a investigação da maioria dos investigadores qualitativos. Tais

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princípios aplicam-se mais às pessoas que conduzem investigação básica. Como iremos sugerir nocapítulo VII, os princípios éticos seguintes podem ser irrelevantes para algumas formas deinvestigação aplicada, particularmente naquilo que designamos por investigação-acção.

1. As identidades dos sujeitos devem ser protegidas, para que a informação que o investigador recolhe não possa causar-Ihes qualquer tipo de transtorno ou prejuízo. O anonimato deve contemplar não só o material escrito, mas também os relatos verbais da informação recolhida durante asobservações. O investigador não deve revelar a terceiros informações sobre os seus sujeitos e deveter particular cuidado para que a informação que partilha no local da investigação não venha a ser utilizada de forma política ou pessoal.

2. Os sujeitos devem ser tratados respeitosamente e de modo a obter a sua cooperação nainvestigação. Ainda que alguns autores defendam o uso da investigação dissimulada, verifica-seconsenso relativo a que na maioria das circunstâncias os sujeitos devem ser informados sobre osobjectivos da investigação e o seu consentimento obtido. Os investigadores não devem mentir aossujeitos nem registar conversas ou imagens com gravadores escondidos.

3. Ao negociar a autorização para efectuar um estudo, o investigador deve ser claro e explícito comtodos os intervenientes relativamente aos termos do acordo e deve respeitá-Io até à conclusão doestudo. Se aceitar fazer algo como moeda de troca pela autorização, deve manter a sua palavra. Seconcordar em não publicar os seus resultados, deve igualmente manter a palavra dada. Dado que osinvestigadores levam a sério as promessas que fazem, deve-se ser realista nas negociações.

4. Seja autêntico quando escrever os resultados. Ainda que as conclusões a que chega possam,

por razões ideológicas, não lhe agradar, e se possam verificar pressões por parte de terceiros paraapresentar alguns resultados que os dados não contemplam, a característica mais importante de uminvestigador deve ser a sua devoção e fidelidade aos dados que obtém. Confeccionar ou distorcer dados constitui o pecado mortal de um cientista.

Apesar de termos apresentado quatro princípios éticos, tal como se passa com todas as regras,existem excepções e problemas que levam a que, nalguns casos, estas possam parecer inadequadas ou de difícil implementação, ou mesmo impossíveis de pôr em prática. Por vezes,quando se efectua investigação, é difícil ou impossível proteger a identidade dos sujeitos. Além domais, os sujeitos envolvidos podem afirmar que Ihes é indiferente a divulgação das suas identidades.Nestas circunstâncias, a regra do anonimato pode ser ignorada. Algumas situações apresentamproblemas delicados, porque

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  colocam o investigador numa posição em que as suas obrigações como investigador podem colidir com as suas obrigações como cidadão. Pode acontecer-lhe, por exemplo, deparar-se com corrupçãoou uso indevido de fundos públicos, ao estudar determinada escola. Em estudos que realizámos eminstituições estatais para os deficientes mentais, assistimos a casos de abuso físico dos residentes.

Quais as responsabilidades éticas dos investigadores em casos semelhantes (Taylor, 1987)?Devem ignorá-Ios, em nome da investigação? No caso do abuso físico, a decisão pode, à primeiravista, parecer óbvia: seja-se ou não investigador, deve-se intervir para acabar com os abusos. Foiexactamente esta a nossa reacção inicial, mas viemos a saber que se tratava de uma práticageneralizada à maioria das instituições nacionais semelhantes e não a prerrogativa de uma únicainstituição. Terá o acto de denúncia pública sido uma forma responsável de lidar com o problema outerá antes constituído um modo de nos livrarmos do problema? O facto de intervir pode levar ao fimda investigação. Será que continuar a investigação, publicar os resultados, escrever relatórios a

denunciar este abuso nacional e proporcionar elementos de investigação a testemunhas em tribunal(ou depor como perito) não fariam mais para modificar a situação do que um acto isolado deintervenção? Não terá a denúncia funcionado como uma desculpa para evitar um envolvimentomaior? Os dilemas como este não se resolvem facilmente, em função de um conjunto de prescriçõesnormativas. Ainda que possam existir linhas de orientação para a tomada de decisão de carácter ético, as decisões éticas complexas são da responsabilidade do investigador, baseiam-se nosvalores deste e na sua opinião relativa ao que pensa serem comportamentos adequados. Enquantoinvestigador é importante que o leitor tenha consciência de si próprio, dos seus valores e crenças.Tem de saber definir a sua responsabilidade para com outros seres humanos quando estiver emcontacto com o sofrimento destes (Taylor, 1987). A investigação qualitativa possibilita tais contactos.

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Para muitos investigadores qualitativos as questões éticas não se restringem ao modo decomportamento durante o trabalho de campo. A ética é mais entendida em termos de uma obrigaçãoduradoira para com as pessoas com as quais se contactou no decurso de toda uma vida comoinvestigador qualitativo.

As questões éticas assumem diferentes formas consoante surjam em momentos diferentes dotrabalho de campo e do processo de investigação. Como discutiremos no capítulo III , por exemplo,as feministas têm vindo a demonstrar uma preocupação crescente com as questões éticasassociadas à entrevista.

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Capítulo 6: Em que consiste o presente livro

Após termos elaborado uma introdução geral aos fundamentos da investigação qualitativa, o nossoobjectivo para o resto do livro é o de apresentar Instruções relativas ao "modo de a efectuar". Aindaque os investigadores mais experientes o possam achar útil, servindo para relembrar diversasquestões e clarificar aspectos particulares que não foram apresentados de forma tão clara noutrasfontes, escrevemos essencialmente a pensar nos "noviços", as pessoas que se encontram a fazer uma cadeira introdutória de investigação qualitativa em educação.

O resto do livro foi elaborado com base nas cinco características que discutimos no presente

capítulo. Consideramos, em primeiro lugar, as questões do plano de investigação, acentuando anatureza indutiva da abordagem. O capítulo III contempla o trabalho de campo. O carácter naturalistada investigação, bem como a predominância da pessoa do investigador enquanto instrumento deinvestigação, será particularmente evidente ao longo da exposição. No capítulo IV, reserva-se umpapel central à natureza descritiva dos dados que o investigador qualitativo recolhe. Descrevemos asdiversas formas que os dados podem assumir e algumas sugestões para a sua recolha. Voltando aocarácter indutivo da abordagem, centramo-nos exaustivamente na análise dos dados, no capítulo V.No capítulo VI, a natureza narrativa e descritiva da análise qualitativa orienta a discussão sobre aescrita e divulgação dos resultados. Por sua vez, dadas as preocupações aplicadas da investigaçãoeducacional, o capítulo VII é dedicado à aplicação dos métodos qualitativos à avaliação, à mudançasocial e ao trabalho pedagógico.