boccaccio. decamerão - proêmio e pimpinela.pdf

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  • Tem incio aqui o livro chamado Decamero, conhecido por Prn-cipe Galeotto, no qual esto contidas cem novelas, narradas em dez jor-nadas, por sete mulheres e por trs homens jovens.

    PROMIO

    prprio do homem ter compaixo dos aflitos. Tal sentimento fica bem a qualquer um; contudo, exige-se que dele dem mais provas as criaturas que j precisaram de socorro, e o tenham recebido da parte de algum. Eu estou entre estas criaturas, se que algum j precisou de compaixo se tal sentimento j foi caro a alguma pessoa , se dele algum ser j auferiu prazer. E isto pela razo de que, desde a minha primeira mocidade, at hoje, sempre me senti arder por um amor muito elevado e nobre. Ao narr-lo, posso despertar a impresso de que le foi mais ardente do que o devera, tendo em vista a minha humilde posio na sociedade. Entretanto, eu fui elogiado por pessoas que eram discretas, e que tomaram conhecimento do fato.

    Embora tivesse adquirido fama por causa desse amor, mesmo assim sofri demais por t-lo alimentado. verdade que no sofri em razo de crueldade da mulher amada. Padeci por via do muito amor concebido em esprito, em razo de uma angstia desproporcionada. Esta angstia no me permitia ficar dentro dos limites convenientes; e.por causa disto, trazia-me, com frequncia, mais desgostos do que o razovel. Para tais desgostos, muita paz e elogivel consolo me deram os raciocnios de algum amigo; tanto isto verdade, que estou firmemente convicto de que foi em virtude desses raciocnios que eu no sucumbi.

    quele que determinou, por lei irrevogvel, infinito que , que tenham fim todas as coisas terrenais, aprouve, contudo, que o meu amor, mais ardente do que outro qualquer, por si mesmo reduzisse a prpria inten-sidade, com o simples passar do tempo. Era amor que nenhuma fora de argumentao, nem de conselho, nem de vergonha, nem sequer de perigo, tinha podido vencer, e muito menos dissipar.

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    winsCaixa de textoBOCCACCIO, Giovanni. Decamero. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p 9-26

  • De si este amor apenas me deixou, no esprito, o prazer que a paixo costuma ofertar pessoa que, velejando, no imerge demais nos plagos sombrios. Tendo-se tornado penoso, e j que se dissipou, aquele amor apenas deixou em mim uma sensao de prazer.

    Mesmo assim, terminado embora o sofrer, nem por essa razo se esfumou a lembrana dos benefcios recebidos daqueles aos quais, pela benevolncia que por mim demonstraram, minhas inquietudes fizeram, injustamente, sofrer. Nem essa lembrana se apagar em tempo algum, ao que suponho, seno com a morte.

    Pelo que eu entendo, a gratido deve ser includa entre as virtudes; e lamentada a ingratido. Para no ser ingrato, a mim mesmo propus, agora que posso considerar-me livre, o trabalho de ofertar algum consolo, na medida de minhas possibilidades, em troca do que eu recebi. Se no o presto aos que me auxiliaram e que, por sorte deles, ou por eu bom senso, ou sua boa fortuna, no necessitam dele, pelo menos presto-o queles aos quais possa ter valor. No obstante seja muito nfimo o alvio, ou o conforto, ou seja l o que fr, aos que necessitam disso, mesmo assim me parece que le deve ser ofertado queles cuja necessidade maior, ou porque mais bem lhes far, ou porque, desse modo, mais carinhosamente ser entendido.

    E haver quem negue, por importante que seja, que conveniente ofertar este alvio, este conforto, mais s mulheres belas do que aos homens? Mantm elas, escondidas, em seu delicado seio, as chamas do amor. Receiam envergonhar-se; retraem-se. As chamas ocultas possuem mais fora do que as que se ostentam; e disto sabem aqueles que j as experimentaram. Tanto mais que elas, as mulheres, constrangidas pelos desejos, pelos caprichos e pelas ordens paternas, maternas, fraternas e dos maridos, conservam-se a maior parte do tempo encerradas em seus aposentos; mantm-se ali, sem nada fazer, sentadas, querendo e no querendo; numa hora s, nutrem pensamentos vrios, e no possvel que sejam sempre alegres esses pensamentos. Se, em razo desses pen-sares, certa melancolia nascida de anseios ardorosos advm ao esprito delas, convm se trate, com muito cuidado, de seu esprito, se a melan-colia no o deixa por novos raciocnios. Sem isto, so as mulheres muito menos fortes do que os homens, e necessitam de amparo.

    Tais coisas no sucedem aos homens que se enamoram, como fran-camente podemos constatar. Os homens, sentindo-se acuados pela melan-colia ou pelo desnimo, acham inmeras maneiras de aliviar-se, ou de entreter-se. Se o quiserem, no lhes faltam ocupaes, como a de deslo-car-se de um lugar para outro, a de escutar, a de ver coisas, a de armar armadilhas aos pssaros, a de caar, a de pescar, a de cavalgar, a de jogar, a de fazer trocas. Em tais atividades, cada um tem a fora de prender, no todo ou parcialmente, o pensamento, afastando-o da preo-cupao mais penosa, mesmo que no seja seno por curto espao de tempo. Depois deste interregno, de um modo ou de outro, ou chega o consolo, ou se torna menor o sofrer.

    Assim sendo, para que se corrija, para mim, o pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fbulas, ou parbolas, ou estrias, sejam l o que forem. A Sorte mostrou-se menos propcia, como vemos, para as frgeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo. Em socorro e refgio das que amam, que escrevo (pois, para as demais, so sufi-cientes a agulha, o fuso e a roca). O que escrevo so as coisas contadas, durante dez dias, por um honrado grupo de sete mulheres e trs moos, na poca em que a peste causava mortandade. Ajuntam-se algumas cantigas das mulheres j mencionadas, cantadas sua vontade. Nas 10

  • ditas novelas surgiro casos de amor. Uns agradveis, outros escabrosos, Sero registrados outros eventos felizes, passados tanto nos tempos atuais, como nos antigos.

    As j referidas mulheres, que estas novelas lerem, podero obter prazer e til conselho das coisas reconfortantes que as narrativas mos-tram. Sabero aquilo de que conveniente fugir e, do mesmo modo, aquilo que deve ser seguido. No acredito que prazer, conselho e exemplo sejam obtidos sem sofrer-se aborrecimentos. Se forem obtidos sem abor-recimentos (e apraza a Deus que assim ocorra), aquelas mulheres ren-dam graas ao Amor, que, por me libertar dos prprios laos, permitiu que eu atendesse aos prazeres delas.

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  • PAMPINIA

    Primeira Jornada

    Principia a primeira jornada do Decamero. Nela h, em primeiro lugar, a demonstrao que o autor faz da razo pela qual as pessoas indicadas adiante estiveram reunidas e juntas passaram a palestrar sob o reinado de PAMPINIA. Em se-guida, vem a palestra sobre o que mais deleita a cada uma.

    Inmeras vezes, minhas adorveis mulheres, pensando eu com os meus botes, considero o quanto vocs so piedosas por natureza. Co-nheo muitas mulheres para as quais, no seu entender, esta obra ter um incio triste e maante. Triste e aborrecida a penosa lembrana da mortandade que a peste causou h pouco tempo. A cada um, e a todos que a viram, ou souberam de'a, ela prejudicou. E esta lembrana que esta obra inscreve em seu promio. No quero, porm, que isto as assuste e induza-as a desistir de ler at mais para frente, quase que entre suspiros e lgrimas, este promio. Que este horrvel comeo no seja, para vocs, seno igual a uma montanha inspita e ngreme, para os viandantes; ao p da montanha, suponha-se uma bela e encantadora plancie; esta ser, aos seus olhos, tanto mais agradvel quanto maior tiver sido a aspereza da ascenso e da descida pelas encostas.

    Como a dor se localiza no extremo oposto quele em que se acha a alegria, fica evidenciado que os sofrimentos terminam quando se inicia a satisfao superveniente. A este breve desgosto digo breve porque pode ficar restrito a poucas palavras se seguem, com toda solicitude, a doura e o prazer. Isto o que h pouco lhes prometi. Se no o tivesse afirmado, ta) prazer no seria qui aguardado, por via do men-cionado comeo.

    A bem da verdade, se eu, honestamente, pudesse levar vocs ao que eu desejo, por uma via diferente, que no fosse trabalhosa, como esta o , t-lo-ia feitc. Contudo, qualquer que seja a causa pela qual suce-deram as coisas que se lero mais adiante, tal causa jamais poder ser demonstrada sem rememorao. Por esta razo que me vejo quase forado pela necessidade a escrever a respeito dela.

    Afirmo, portanto, que tnhamos atingido j o ano bem farto da Encar-nao do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florena, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itlia, sobreveio a mortfera pestilncia. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razo de nossas iniquidades, a peste, atirada sobre os homens por justa clera divina e para nossa exemplificao, tivera incio nas re-gies orientais, h alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansvel, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miservel, para o Ocidente.

    Na cidade de Florena, nenhuma preveno foi vlida ; nem valeu a pena qualquer providncia dos homens. A praga, a despeito de tudo, comeou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ficou purificada de muita sujeira, graas a funcionrios que foram admi-

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  • tidos para esse trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proi-bida. Muitos conselhos foram divulgados para a manuteno do bom estado sanitrio. Pouco adiantaram as splicas humildes, feitas em nmero muito elevado, s vezes por pessoas devotas isoladas, s vezes por procisses de pessoas, alinhadas, e s vezes por outros modos diri-gidas a Deus.

    A peste, em Florena, no teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saa pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitvel. Em Florena, apareciam no comeo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchaes. Algumas destas cresciam como mas; outras, como um vo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o popu-lacho de bubes. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doena comeou a alterar-se; comeou a colocar manchas de cr negra ou lvidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braos, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princpio, o bubo fora e ainda era indcio inevitvel de morte futura, tambm as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas.

    Nem conselho de mdico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tais doenas. Ao contrrio. Fosse porque a natureza da enfermidade no aceitava nada disso, fosse que a ignorncia dos curandeiros no lhes indicasse de que ponto partir e, por isso hiesmo, no se dava o remdio adequado. Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lio de medicina. Assim como era certo que poucos se curavam, tambm certo que, ao contrrio desses, quase todos, aps o terceiro dia do surgi-mento dos sinais referidos acima, faleciam. Sucumbiam uns mais cedo, outros mais tarde; a maioria ia-se para o tmulo sem qualquer febre, nem outra complicao.

    Esta peste foi de extrema violncia; pois ela atirava-se contra os sos, a partir dos doentes, sempre que doentes e sos estivessem juntos. Ela agia assim de modo igual quele pelo qual procede o fogo: passa s coisas secas, ou untadas, estando elas muito prximas dele. A enfer-midade ainda fz mais. No apenas o conversar e o cuidar de enfermos contagiavam os sos com esta doena, por causa da morte comum, porm mesmo o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada, ou utilizada por aqueles enfermos, parecia trans-ferir, ao que bulisse, a doena referida.

    de causar espanto o ouvir aquilo que preciso dizer. No fosse visto pelos olhos de muitos, assim como pelos meus, aquilo que se passou, dificilmente me atreveria a acreditar no que sucedera, e ainda menos a escrever, por mais merecedora de f a pessoa pela qual eu o ouvisse contar. Garanto que foi de tal poder a peste mencionada, no capricho de transferir-se de um a outro mortal, que no passava apenas de homem para homem; muitas vezes chegou a fazer, de modo visvel, o que se diz mais frente, e que muito mais: a coisa do homem doente, ou que morrera de tal doena, quando tocada nor outro ser, animal, fora da espcie do homem, no apenas o contaminava como tambm o ma-tava dentro de muito pouco tempo. Deste fato tiveram os meus olhos (como h pouco se afirmou), certo dia, entre outras vezes, a seguinte experincia: as vestes rotas de um pobre sujeito, morto por essa doena, 14

  • foram jogadas rua. Dois porcos, de incio, segundo costumam fazer, sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na prpria cara. Apenas uma hora depois, aps umas convulses, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caram mortos por terra, sobre os trapos em t m hora jogados rua.

    De tais circunstncias e muitas outras idnticas a estas, ou mesmo piores, nasciam muitos terrores e muitos lances de imaginao, naqueles que ainda estavam vivos. E quase tudo era dirigido para um fim bas-tante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a sade para si mesmo.

    Pessoas havia que julgavam que o viver com moderao e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam para se resistir ao mal. For-mando o seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera. No procuravam viver melhor. Moderadamente faziam uso de alimen-tos simples, assim como de vinhos muito bons. Fugiam a qualquer ato de luxria. No ficavam a palestrar com ningum, nem queriam ouvir falar de nenhum caso de morte, ou de doena, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com a msica e com os prazeres que pudessem ter.

    Outras pessoas, levadas a uma opinio diversa desta, declaravam que, para to imenso mal, eram remdios eficazes o beber abundante-mente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troar do que acontecesse, ou pudesse suceder. Como diziam, assim procediam, do modo como lhes fosse possvel, dia e noite. Iam ora a uma tasca, ora a outra; bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia, obrigan-do os donos a escutar o que lhes desse na telha de dizer. E podiam agir assim sem grandes preocupaes, porque cada um quase como se no houvesse mais viver j deixara ao lu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dar a prpria pessoa. Por isso, a maior parte das casas ficou sendo de moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o prprio dono. E, com este proceder inteiramente bestial, as pessoas punham-se sempre longe dos doentes, tanto quanto possvel.

    Entre tanta aflio e tanta misria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissol-vera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim no podiam exercer nenhuma funo. Em consequncia de tal situao, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

    Inmeras pessoas preferiam o caminho do meio, entre os dois acima assinalados. No evitavam os bons acepipes, como os primeiros, nem, igual aos segundos, entregavam-se bebida e a outras formas de disso-luo. Ao contrrio. Usavam todas as coisas, com suficincia e modera-damente, de acordo com o apetite. No viviam fechados. Vagavam de um lugar a outro, levando, uns, flores nas mos, ervas odorferas outros, e outros, ainda, diferentes tipos de especiarias; levavam as ervas ao nariz, considerando excelente coisa o confortar o crebro com o seu perfume. Era como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenas e dos remdios.

    Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porventura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que no havia remdio

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  • melhor, nem to eficaz, contra as pestilncias, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pestilncias ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, no se importando fosse com o que fosse, a no ser com eles mesmos, inmeros homens e mulheres deixaram a prpria cidade, as prprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a outrem per-tencia, ou, pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a clera de Deus estivesse destinada no a castigar a iniquidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, como-vido, somente os que teimassem em ficar dentro dos muros de sua cidade. Ou como se essa clera fosse apenas um aviso para que ningum permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opinadores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, calam enfermos e, quase abandonados prpria sorte, definhavam inteiramente. Eles mesmos, quando estavam sos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal.

    Vam^s pr de lado a circunstncia de um cidado ter repugnncia de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro; de os parentes, juntos, pouqussimas vezes ou jamais se visitarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim s o fazerem de longe. Tal inquietao entrara, com tanto estardalhao, no peito dos homens e das mulheres, que um irmo deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irm, a irm; e, frequentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mes sentiam-se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos, como se o no foram (e esta a coisa pior, difcil de se crer).

    Em decorrncia de tais condies, queles para os quais a multido era inestimvel, aos homens e mulheres que ficavam doentes, no restava outro recurso seno a caridade dos amigos (e destes poucos res-tavam), ou da avareza dos empregados domsticos. A estes eram pagos fabulosos salrios, e tinham tratamento superior ao devido, ainda que, apesar disto, muitos patres no enfermassem. Grande parte dos patres era formada por homens e mulheres de elevado talento, e a maioria desses servios no era usada. Os empregados quase no serviam para outra coisa seno apresentar algo que fosse pedido pelos doentes, ou para os fitar, quando eles faleciam. Quando prestavam esses servios, frequentemente eles mesmos se perdiam, junto com o ganho alcanado.

    Pelo fato de serem os enfermos abandonados pelos vizinhos, pelos parentes e amigos, tanto quanto pela circunstncia de escassearem os criados, apareceu um hbito talvez nunca praticado antes. O hbito foi que nenhuma mulher, por mais pudica, bela ou nobre que fosse, se sentia incomodada por ter a seu servio, caso adoecesse, um homem, ainda que desconhecido; no importava que tipo fosse de homem, jovem ou no. A le, sem nenhum pudor, ela mostrava qualquer parte do prprio corpo, do mesmo modo que o exporia a outra mulher, quando a necessidade de sua enfermidade o exigisse. Para as mulheres que escaparam com vida, isto foi, qui, motivo de desiizes e de desonesti-dades, no perodo que se seguiu peste.

    Alm disto, sobreveio a morte de inmeras pessoas, que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrncia da escassez de servios no momento azado, que os doentes precisavam mas no alcanavam, e tambm em vista da violncia da peste, era to grande o nmero dos que faleciam, de dia e de noite, na cidade, que provocava estupefao escutar, e ainda mais ver, o que ocorria. Por-

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  • que por fora das circunstncias, muitas coisas, que contrariavam os costumes bsicos de qualquer cidado, comearam a existir entre os que permaneciam vivos.

    Costumava-se (como ainda hoje o vemos) reunirem-se as mulheres, parentes e vizinhas na residncia do que morria. Ali, em companhia das mulheres mais aparentadas ao defunto, elas choravam. De outro lado, diante da casa do morto, vizinhos e inmeros cidados reuniam-se com os seus achegados; de acordo com a categoria do morto, apresen-tava-se o padre. Desse modo, o falecido era conduzido igreja que es-colhera momentos antes de morrer. Os seus pares levavam-no aos om-bros, com pompa fnebre, de velas e de cantos. Tais cerimnias quase se extinguiram, no todo ou parcialmente, quando principiou a crescer o furor da peste. E muitas novidades vieram substitu-las. No apenas faleciam as pessoas sem que houvesse grande nmero de mulheres volta, como tambm eram incontveis as que partiam desta vida sem nenhuma testemunha. Eram em nmero reduzidssimo aqueles aos quais eram concedidos os prantos piedosos e as lgrimas sentidas de seus prprios parentes. Em vez de prantos e de lgrimas, passaram a usar-se, para a maior parte, os risos, as pilhrias, e as festas em boa parceria. Tal costume foi, gostosamente, aceito pelas mulheres, na sua maioria, aps terem elas postergado a piedade feminina; e afirmavam que o faziam para salvao da alma dos que haviam partido. Fazia-se raro o caso daqueles cujos corpos tinham, indo para a igreja, o cortejo de dez ou doze de seus vizinhos. O fretro destes era carregado no por honrados e prestimosos cidados, porm por uma espcie de padioleiros, que se originaram da gente mais humilde, que recebiam o ttulo de coveiros, e que apenas usavam seus prstimos por um preo combinado com antecedncia. Tais padioleiros carregavam os caixes, a passos apressados, no igreja que os defuntos haviam escolhido antes da passamento, porm, com frequncia, ao templo mais prximo. Os pa-dioleiros caminhavam atrs de quatro ou de cinco clrigos, com raras velas; as mais das vezes iam mesmo sem nenhum clrigo. Estes, quando os havia, no perdiam muito flego em seus ofcios solenes; ajudados pelos tais coveiros, depositavam os caixes, de preferncia, na primeira cova vazia que encontravam.

    O tratamento dado s pessoas mais pobres, e maioria da gente da classe mdia, era ainda de maior misria. Em sua maioria, tal gente era retida nas prprias casas, ou por esperana, ou por pobreza. Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobre-viviam ficavam doentes aos milhares por dia; como no eram medica-dos, nem recebiam ajuda de espcie alguma, morriam todos quase sem redeno. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de noite. Inmeros outros, mesmo morrendo em suas residncias, levavam os seus vizinhos a no se manifestarem, mais por causa do mau cheiro dos prprios corpos em decomposio, do que por outro motivo. De pessoas assim e de outras, que faleciam em toda parte, as casas estavam cheias.

    Um modo nico de proceder, o mesmo sempre, era praticado pela maioria dos vizinhos. Procediam estes levados no menos pelo terror de que fossem afetados pela corrupo dos corpos, do que pela caridade que alimentavam quanto aos falecidos. Ss, ou auxiliados por alguns portadores, quando logravam ach-los, retiravam das residncias os cadveres; colocavam os corpos frente da porta da casa, onde, sobre-tudo na parte da manh, eram vistos em quantidade inumervel pelos

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  • que perambulavam pela cidade e que, vendo-os, adoravam medidas para o preparo e remessa dos caixes.

    To grande era o nmero de mortos que, escasseando os caixes, os cadveres eram postos em cima de simples tbuas. No foi um s o caixo a receber dois ou trs mortos simultaneamente. Tambm no sucedeu uma vez apenas que esposa e marido, ou dois e trs irmos, ou pai e filho, foram encerrados no mesmo fretro. Muitssimos destes fatos poderiam ter sido narrados. E infinitas vezes se viu que, indo dois clrigos, com uma cruz, por algum, atrs do primeiro se colo-carem trs ou quatro caixes, carregados por seus respectivos porta-dores; assim sendo, onde supunham os padres ter um morto para en-terrar, havia sete ou oito; com frequncia, at mais. Tais mortos exce-dentes eram, por esta razo, homenageados com alguma lgrima, as vezes, ou alguma vela, ou alguma companhia.

    A tal estado chegou a coisa, que no mais se tratava, quanto aos homens que morriam, com mais carinho do que se trata agora das ca-bras. Porque, com clara evidncia pareceu ter de se passar, paciente-mente, pelo que o curso natural dos eventos no conseguira mostrar, aos mais cultos, com prejuzos pequenos e esquisitos. Geralmente, a grandeza de um mal costuma transmudar os simples, ao que parece, em peritos e negligentes.

    Para dar sepultura grande quantidade de corpos que se encami-nhava a qualquer igreja, todos os dias, quase a toda hora, no era suficiente a terra j sagrada; e menos ainda seria suficiente se se de-sejasse dar a cada corpo um lugar prprio, conforme n antigo costume. Por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitrios, pois todos os luga-r".s estavam repletos, ainda que alguns fossem muito grandes; punham-

    se nessas igrejas, s centenas, os cadveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios; cada caixo era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra; sobre le, outro era posto, o qual, por sua vez, era recoberto, at que se atingisse a boca da cova, ao rs do'cho. E, para que no se remexa em cada mincia de nossas antigas misrias, acontecidas no interior da cidade, afirmo que, mesmo tendo um perodo adverso passado por ela, nem por isso deixou a peste de poupar algo ao condado.

    No condado vamos pr de parte os castelos, que, em sua peque-nez, eram parecidos s cidades , os operrios, mseros e pobres, fa-leciam. Tombavam sem vida, pelas vilas isoladas e pelos campos, com suas famlias, sem nenhuma ajuda de mdico, nem auxlio de servidor; faleciam no como homens, e sim como animais, nas ruas, nas planta-es, nas casas, dia e noite, ao deus-dar. Em decorrncia disto, os trabalhadores do campo, conturbados em seus hbitos e parecendo trans-formados em moradores lascivos da cidade, no se importavam com nada, nem desejavam fazer coisa alguma. Como se aguardassem o dia em que seriam levados pela morte, todos se esforavam, diligente-mente, ao mximo, no em auxiliar a produo dos frutos futuros dos animais e das terras, assim como das antigas canseiras, mas sim em dar cabo dos frutos que estavam mo. Sucedeu, pois, que os bois, os muares, as ovelhas, as cabras, os porcos, as galinhas, e mesmo os cachorros, to fiis sempre aos homens, passaram a perambular pelos campos, indiferentemente, por se verem expulsos da moradia de seus donos. As forragens, deixadas ao abandono nos campos, no apenas no tinham sido apanhadas, como nem sequer foram cortadas. Muitos animais, parecidos a seres pensantes, engordavam, pois pastavam bem

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  • no decorrer do dia, passavam a noite em suas casas, e no sofriam restries da parte de nenhum pastor.

    O que se poder dizer ainda pondo-se de parte o condado, para se tornar a tratar da cidade , a no ser que a crueza do cu foi de tal monta e tanta, e qui tambm o tenha sido, em parte, a crueldade dos homens, que, no perodo que vai de maro a julho, mais de 100 000 pessoas certo que foram arrebatadas da vida, no circuito dos muros da cidade de Florena? Nesse nmero esto includos tanto aqueles que foram levados pela fora da pestfera doena, como aqueles que, doentes, foram mal atendidos, ou abandonados s contingncias, em razo do medo que os sos alimentavam.

    Antes que sobreviesse este mortal evento, ningum suporia existir tan-ta gente dentro da cidade. Quantos vastos palcios, quantas casas magn-ficas, quantas residncias nobres, antes cheias de famlias, de senhores e de senhoras, ficaram vagos, perdendo at o derradeiro servial! Quantas linhagens memorveis, quantas heranas importantes, quantas riquezas famosas foram despojadas de sucessor legtimo! Quantos valorosos ho-mens, quantas mulheres belssimas, quantos galantes moos que Galeno teria considerado mais do que sadios, assim como Hipcrates, Esculpio e outrcs tomaram o seu almoo de manh com os seus parentes, colegas, amigos, e, em seguida, na tarde desse mesmo dia, jantaram no outro mundo, em companhia de seus antepassados!

    A mim mesmo desgosta-me o ato de tanto me revolver em misria tanta. Querendo, contudo, neste instante, deixar de lado a parte dessas misrias, que, com decoro, posso abandonar, afirmo que, nestes termos, a nossa cidade estava quase vazia de moradores. E sucedeu (como ouvi de-pois, de pessoa merecedora de f) que, na venervel Igreja de Santa Maria Novela, em dia de tra-feira, na parte da manh, acharam-se sete jovens mulheres. Quase ningum mais estava no templo. Tinham elas terminado de ouvir, vestidas com roupas lgubres, como era indi-cado para aqueles tempos, os ofcios religiosos. Estavam todas ligadas umas s outras, seja por amizade, seja por vizinhana ou por parentesco. Nenhuma delas passara o vigsimo oitavo ano de idade, nem era menor de dezoito. Eram todas bem comportadas e de sangue nobre; bonitas de formas, costumes prendados, e de comportamento honesto.

    Eu daria a conhecer, na forma devida, os seus nomes, se um motivo justo no me obstasse de o fazer. O motivo este: no desejo que, pelas coisas que se vo seguir, e que por elas foram narradas, ou ouvidas, algu-ma delas deva, no futuro, envergonhar-se. Hoje, so limitadas as leis sobre o prazer; naquele tempo, pelos motivos antes apontados, tais leis eram extremamente liberais, seja para a idade delas, seja para idades muito mais maduras; no quero, igualmente, dar motivo para que os invejosos, prestes a difamar toda existncia digna de elogios, diminuam, em qualquer aspecto, com maledicncia, a honestidade das dignas mu-lheres. Assim sendo, para poder-se compreender, sem confuso, o que cada uma disse, quero nome-las, mais adiante, com nomes fictcios, contudo apropriados, no todo ou parcialmente, s qualidades de ca-da uma.

    primeira delas, a mais idosa, denominaremos PAMPIN1A; se-gunda, FIAMMETTA; FILOMENA, terceira; quarta, EMLIA; de-signaremos depois por LAURINHA a quinta; a sexta, por NEfFILE; e ltima, com razo, chamaremos ELISA.

    Agrupadas ali, no por prvia combinao, mas por acaso, em uma das dependncias da igreja, sentaram-se formando quase um crculo. Aps inmeros suspiros, e finda a recitao dos padres-nossos, entabu-

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  • laram conversa entre si, a respeito das condies do tempo e outras coi-sas. Depois de certo intervalo, vendo calarem-se as demais, Pampinia principiou a falar assim:

    Minhas caras mulheres, podem vocs ter ouvido afirmar, como eu, que a pessoa que usa honestamente o seu direito no causa prejuzo a ningum. Direito natural de todo ser nascido o de auxiliar a sua prpria existncia; de mant-la e de defend-la tanto quanto possvel. Isto se reconhece. Tanto certo que, por vezes, j sucedeu que, para conservar a existncia, muitos homens se mataram sem nenhuma culpa. As leis reconhecem isto, e na sua observncia est o viver honrado de qualquer mortal. Com justia maior, e sem ofender a quem quer que seja, cabe-nos, a ns, assim como a quaisquer outras pessoas honestas, o direito de adotarmos as providncias que estiverem ao nosso alcance para a preservao de nossa existncia. Sempre que reflito bem a res-peito de nossos modos desta manh, assim como sobre os de outras manhs j decorridas sempre que medito em quantas e quais so as nossas trocas de ideias , percebo, tanto quanto vocs podero perce-ber, que cada uma de ns tem dvidas a respeito de si mesma. No me causa isto admirao. Contudo, fico admirada, e muito certa que estou de que cada uma de ns possui sentimepfos femininos , de que no recebamos para i.s nenhuma recompensa pelo que cada uma de ns receia, e com razo. Permanecemos aqui segundo parece como se desejssemos, ou quisssemos, testemunhar o nmero de corpos sem vida que so levados cova, ou que os frades daqui de dentro (cujo nmero decresceu a quase nada) entoem o seu ofcio nas horas apro-priadas. Ou, ento, como se desejssemos mostrar, pelas nossas vestes, a quem quer que nos surja frente, as condies e a quantidade de nossas misrias. Se deixarmos este recinto, em toda parte veremos cor-pos mortos, ou doentes, no ato de serem levados; ou, ento, estaremos diante daqueles que, pelos seus desmandos, j foram condenados ao exlio pela autoridade das leis pblicas; essas pessoas, parecendo ridi-cularizar as leis, porque sabem que aqueles que as executavam esto mortos, ou enfermos, perambulam pela nossa regio, praticando os seus impulsos mais desagradveis; ou, mesmo, toparemos com a ral de nossa cidade; os elementos que a compem, transtornados pelo nosso sangue, a si mesmos chamam-se coveiros; cavalgam e correm por todo lado, para nossa aflio; e fazem censura s nossas dores com suas can-es desonestas. No escutamos outra notcia seno que "Fulanos e fulanos faleceram" e "Sicranos e sicranos esto porta da morte". Ouviramos prantos em toda parte, se existissem pessoas que choras-sem. Se retorno minha casa. fico apavorada de no achar, nela, ne-nhuma outra pessoa de minha numerosa famlia, a no ser a minha aia. (Ignoro se ocorre com vocs o mesmo que se passa comigo.) Mesmo agora, sinto que quase todos os meus cabelos se arrepiam. Para qualquer lado que eu v, ou me demore, em casa, como se vivesse a sombra dos que se foram; elas do-me susto, no com as faces que eu conheci, porm com outros rostos, horrveis, que ignoro de onde venham. Por essas razes, parece-me incmodo permanecer por aqui, fora, daqui, ou mesmo em casa. E parece-me tanto mais incmodo, quanto mais se me afigura que nenhuma pessoa, dentre aquelas que tenham algu-ma coragem e para onde se dirigir, como ns temos, tenha ficado por aqui alm de ns mesmas. Ouvi contar e fiquei sabendo, mais de uma vez, que essas pessoas (considerando-se que existam algumas), sem fazer qualquer distino entre os atos honestos e os que no o sejam, visto que apenas se orientam pelas exigncias do prprio apetite, 20

  • fazem, seja quando esto sozinhas, seja acompanhadas, de dia e de noite, somente as coisas que mais prazeres lhes do. No apenas as pessoas livres, assim como as que esto encerradas em conventos, deixam entender que isso lhes conveniente, e apenas causa desdouro s demais. Assim sendo, pecam contra as leis da obedincia e entregam-se a pra-zeres carnais. Agindo desta maneira, elas admitem que adquirem con-dies para a sobrevivncia. Fazem-se lascivas e dissolutas. Sendo assim (e que assim est-se vendo claramente), que estamos fazendo aqui? O que esperamos? O que estamos sonhando? Por que razo somos mais indolentes e morosas do que todos os demais cidados que restam, ao defender a nossa sade? Ser que nos julgamos menos queridas do que todas as demais? Ou ser que consideramos que nossa existncia est presa ao nosso corpo com prises mais fortes do que a dos cjtros nos corpos deles e que, sendo assim, no temos que nos preocupar com nada, mesmo que algo tenha fora para a destruir? Estamos erra-das. Ns nos enganamos. Que estupidez a nossa, se cremos que assim! Sempre que quisermos lembrar quantos e quais foram as moas e os rapazes que caram com esta cruel peste, acharemos timos argu-mentos a nosso favor. Por isto, e a fim de que ns, por nojo ou negli-gncia, no venhamos a cair naquilo de que poderemos escapar, de uma maneira ou de outra, se o quisermos, acho excelente a ideia de deixarmos esta terra, assim mesmo como nos achamos, e do mesmo modo como muitas outras o fizeram, antes de ns, ou esto fazendo. Jgnoro se a vocs parece o que se afigura a mim. Escapando aos exem-plos desonestos dos demais, como se foge da morte, vamos honesta-mente instalar-nos em nossos lugares, nas cercanias da cidade, onde, para cada uma, existe em abunda;.;ia tudo que possa ser indispensvel. Teremos ali aquele divertimento, aquela alegria, aquela satisfao que pudermos obter, sem ir alm, em nenhum ato, dos limites da razo. Ouvem-se ali os passarinhos cantando; v-se espalhar o verde pelas colinas e plancies; contemplam-se os campos, plantados de cereais, que ondulam da mesma maneira que o mar o faz; ali h rvores de mil formas; v-se o cu mais abertamente; mesmo enfurecido ainda, o cu nem por isso nos nega as suas belezas eternas; tais belezas so muito mais merecedoras de contemplao do que os muros despidos de nossa urbe. Alm disso, ali o ar muito mais agradvel; existe l maior quantidade das coisas necessrias existncia, nestes tempos; e o nmero de aborrecimentos muito menor. Pois que, ainda que l tambm fale-am os trabalhadores do campo, como morrem aqui os moradores da cidade, tanto menor o desprazer ali, quanto mais raro so, do que na cidade, as casas e seus moradores. Por outro lado, no estaremos abandonando, ao que vejo, nenhuma pessoa por aqui. Pelo contrrio. Podemos afirmar, com verdade, que ns que fomos abandonadas. Pois os nossos, ou por terem morrido, ou por terem escapado morte, nos deixaram sozinhas, e em to grande aflio, como se deles no fssemos. No pode haver nenhuma censura ao ato de se seguir o meu conselho. No o seguindo, podero sobrevir-nos dor, aborrecimento e, qui, a morte. Assim sendo, quando melhor parecer a vocs, tomar cada uma a sua aia; faremos com que nos sigam as coisas mais indis-pensveis. Hoje, iremos a este stio; amanh, quele; desfrutaremos a alegria e a festa que este tempo puder propiciar-nos; julgo que ser prudente ter o que fazer. Ficaremos em tal estado o tempo suficiente para constatarmos (se no formos antes atingidas pela morte) que fim o cu reservar a estas circunstancias. Lembro-lhes que o ato de nos afastarmos honestamente desta cidade no nos traz nenhum desdouro

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  • mais do que maioria das demais mulheres o de aqui ficarem deso-nestamente.

    As demais mulheres da companhia, aps escutarem Pampinia, no apenas teceram elogios ao conselho que lhes dava, como tambm informa-ram que, ansiosas por segui-lo, j tinham comeado a tratar entre elas, com mais pormenores, do modo de o fazer; era como se, elevando-se da posio de sentadas, uma a uma, todas tivessem de pr-se imediatamente a caminho. Filomena, contudo, que era por demais discreta, exclamou:

    Moas, ainda que tenha sido dito, de modo timo, o que Pampinia pensa, nem assim caso de a gente pr-se a correr, como parece ser o desejo de vocs. Recordo-lhes que somos todas mulheres. Nenhuma mu-lher h to tola, que no saiba bem como as mulheres, quando se juntam, so pouco providas de juzo, e mal sabem governar-se sem o auxlio de algum homem. Somos volveis, briguentas, desconfiadas, covardes cheias de medo; por esta razo, se no contarmos com outra orientao, mais do que a nossa, duvido muito que nosso grupo deixe de dissolver-se logo, com menos honra para ns do que fora justo. Em decorrncia disto, de boa prudncia providenciar, antes de principiar seja l o que fr.

    Elisa, ento, disse: Realmente, so os homens a cabea das mulheres; sem a ordem

    deles, raramente chega alguma obra nossa a um fim digno de elogio. De que modo, entretanto, poderemos ter esses homens? Sabe, cada uma de ns, que a maior parte dos seus est morta. Os demais, que ainda vivem, alguns aqui, outros ali, em vrios grupos, vo fugindo, sem que saibamos para onde, da mesma coisa de que tambm procuramos fugir. Alm disso, no seria recomendvel suplicarmos a estranhos. Sendo assim, portanto, se desejarmos correr procura de nossa salvao, ser conveniente que achemos a maneira de nos preparar de forma tal que no sobrevenha o tdio, nem aparea escndalo, no lugar para onde nos dirigirmos, por falta de outro, e mesmo para o nosso descanso.

    Desenrolando-se ainda estas palestras entre as mulheres, eis que en-traram trs moos na igreja. No eram assim to jovens a ponto de que o mais jovem deles tivesse menos de 25 anos. Neles, os estragos do tempo, a perda dos amigos, a morte dos parentes, o temor de si mes-mos, no tinham podido, no digo j apagar, mas sequer esfriar, os impulsos do amor. Dos moos, chamava-se um PNFILO; FILSTRA-TO era o segundo; e DIONIO, o ltimo. Era, cada um deles, agra-dvel e bem educado; os trs procuravam, para seu derradeiro refri-grio, em meio a tal transtorno de todas as coisas, as suas respectivas amadas; por acaso, estavam as trs entre as sete j indicadas. Como eram algumas pertencentes mesma famlia de outras, essas eram parentes de um ou de outro dos rapazes. Foram eles vistos pelas mulheres, antes que os olhos deles recassem sobre elas. Por este motivo, Pampinia comeou ento a falar, entre sorrisos:

    Vocs bem vem que a boa sorte propcia aos nossos desgnios. Tanto isto certo que ela ps, nossa frente, moos discretos e cheios de valor, qi>e sero, de boa vontade, nossos guias e servidores nossos, se no acharmos inconveniente em que os tomemos para essa finalidade.

    Nefile, ento, o rosto inteiramente ruborizado de pudor, pois que era uma das amadas por um dos moos recm-chegados, preveniu:

    Pampinia, por Deus! Preste ateno naquilo que est dizendo! No conheo nenhuma coisa que no seja boa e que se no possa ex-pressar francamente, a respeito de qualquer um destes moos. Conside-ro-os capazes de proezas ainda mais altas do que esta. Igualmente,

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  • esclareo que eles faro boa e honesta companhia, no apenas a ns, porm da mesma forma a mulheres mais lindas e mais queridas do que o somos. Contudo, como fato notrio e evidente que eles esto apaixonados por algumas das que se acham aqui, temo que, levando-os conosco, advenham infmia e censura, sem culpa possa, nem deles.

    Ento, Filomena expendeu seu argumento: Isto no vem ao caso. Em qualquer parte em que eu esteja viven-

    do com honestidade, sem que nada me pese na conscincia, fale quem quiser o contrrio. Deus e a verdade teraro armas por mim. Oxal eles estivessem j dispostos a marchar conosco! Se assim fosse, a sim poderamos afirmar que, realmente, a Sorte favorvel nossa viagem.

    Ouvindo as outras que Filomena assim argumentava, no somente se calaram como tambm, por unnime consenso, concordaram em que deviam os moos ser chamados para a sua companhia; em que se deveria revelar-lhes a inteno delas; e em que se deveriam rogar-lhes que fizessem o favor de consentir em servir-lhes de companhia na tal fuga para fora da cidade.

    Por isso, sem mais delongas, Pampinia ergueu-se; era aparentada com algum deles, por consanguinidade; e foi em direo dos moos, os quais estavam parados, j agora olhando para todas, de longe. Aps saud-los, com fisionomia alegre, Pampinia ccntou-lhes as intenes que tinham, ela e as suas companheiras. Rogou-lhes, falando em nome de todas, que se dispusessem a acompanh-las, com esprito de fraternidade.

    A princpio, julgaram os rapazes que elas estavam fazendo troa de-les; porm, quando notaram que a mulher falava seriamente, retrucaram, com prazer, que estavam prontos para o que elas queriam. Sem delon-gas, e a fim de que elas de imediato se afastassem dali, eles ordenaram tudo quanto era necessrio para a partida. Todas as coisas de que se tinha mister foram preparadas, com mtodo, e remetidas, com antece-dncia, ao local para onde todos tencionavam ir.

    Na manh seguinte, isto , na quarta-feira, assim que raiou o dia, as mulheres, seguidas por algumas de suas criadas, e os trs homens, com outros trs de seus fmulos, deixaram a cidade, pondo-se a caminho. Apenas se tinham afastado 2 curtas milhas e logo se encontraram no local previamente avisado de sua ida. O tal lugar ficava numa pouco alta montanha, bem afastada, por todos os lados, das estradas. Vrios tipos de rvores e de arbustos enfeitavam a regio, com suas frondes verdes, muito agradveis vista. No alto da montanha, existia um palcio, com um ptio amplo e belo no centro. O palcio era dotado de balces, salas e quartos; cada dependncia, por si mesma, era muito linda, decorada com pinturas valiosas. Em volta do palcio, pequenos prados, enormes jardins de maravilhosa vista, e poos de gua muito fresca. No palcio, vinhos preciosos eram guardados em adegas de arcadas. Isto era mais indicado a bebedores curiosos do que a mulheres sbrias e recatadas.

    Tudo, ali, fora varrido. Nos quartos, as camas estavam arrumadas. Nos vasos, havia as flores que, naquela quadra do ano, se puderam conseguir; e as flores foram sustentadas com juncos. Tudo isto foi achado pronto pelos visitantes.

    Quando todos estavam j sentados na primeira sala, Dionio, moo muito agradvel e mais espirituoso do que se poderia supor, disse:

    Mulheres, o bom senso de vocs, mais do que nossa cautela, foi o que guiou nossos passos at aqui. Ignoro o que vocs desejam fazer, a respeito de suas preocupaes. No que diz respeito s que eu tinha, aban-donei-as porta da cidade, h pouco, quando sa de l na companhia de vocs. Por esta razo, ou vocs se dispem a aliviar o esprito, a rir

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  • e a cantar, comigo (certamente, na medida que se coadune com a sua dignidade), ou me permitiro regressar s preocupaes, continuando a viver na cidade atribulada.

    Como se tambm tivesse afastado do seu esprito qualquer preocupa-o pessoal, Pampinia retrucou a isto, com evidente satisfao:

    Dionio, voc falou com muita propriedade. necessrio, aqui, viver festivamente. No foi outra a razo que nos levou a abandonar as tristezas. Contudo, evidente que as iniciativas sem fim determinado no podem ser duradouras. Eu, que iniciei as conversaes das quais resultou este grupo to agradvel, penso no prosseguimento do nosso prazer. Acho necessrio convir que haja um chefe. Um chefe que hon-raremos, ao qual prestaremos obedincia, como nosso guia. Todas as preocupaes ficaro para le, quanto ao preparar tudo para que possamos viver com prazer. necessrio que cada um por sua vez experimente o peso das exigncias e o carinho do agrado da maioria. Aquele que no os experimentar, e no fr levado, por essas preocupa-es, de um lado para outro, no poder mostrar-se ressentido. Desse modo, fiquem as responsabilidades e as honras a cada um de ns, cada urn por sua vez, durante um dia. O primeiro chefe sair da escolha que todos ns fizermos. Para os que vierem depois, o processo de escolha ser o seguinte: quando se vier aproximando a hora do surgimento de Vnus, no cu, tarde, o chefe ser, vez de cada um, escolhido por aquele, ou aquela, que estiver comandando durante o dia. O escolhido dir, sua vontade, o tempo que a sua chefia durar; igual-mente, indicar o lugar e o modo como deveremos viver, dando, a esse respeito, as suas ordens, e tomando as suas providncias.

    Tais palavras causaram excelente impresso; e, de modo unnime, o grupo escolheu Pampinia como o chefe do primeiro dia. Filomena correu a um loureiro. Ouvira com frequncia dizer da honra que se em-prestava s folhas daquela planta, e como tais folhas honravam o ser que fosse per elas, com merecimento, coroado. Apanhou alguns ramos da rvore; com cies, elaborou uma grinalda, simblica e de grande efeito. Tal grinalda, colocada cabea, foi ento, pelo tempo que durou o grupo, sinal evidente, para um e para todos, da real senhoria, assim como da escolha da maioria.

    Eleita rainha, Pampinia chamou sua presena os criados dos trs homens, assim como as criadas das mulheres, que eram quatro. Mandou que os homens ficassem calados. E, assim que obteve o silncio de todos, disse:

    Primeiramente, quero dar o exemplo a vocs todos. Por esse exemplo, e agindo de modo cada vez melhor, o nosso grupo poder viver, ordeiramente, sem precisar envergonhar-se de si mesmo, durante quanto tempo desejar. Sendo assim, eu, inicialmente, constituo PAR-MENO, criado de Dionio, o meu mordomo. Dou-lhe o cuidado e a responsabilidade por toda esta nossa famlia. Em relao ao servio da sala, desejo que SIRISCO, criado de Pnfilo, seja pagador e tesou-reiro, obedecendo s ordens de Parmeno. TINDARO, que est a servio de Filstrato e dos outros dois, dar assistncia nos quartos deles, sempre que os outros criados, por acaso impedidos de desempenhar as suas funes, no o puderem fazer. MISIA, minha criada, e LICISCA, que o de Filomena, ficaro com os encargos da cozinha; executaro, com diligncia, os pratos que Parmeno lhes mandar. Quero que QUI-MERA, criada de Laurinha, e STRAT1LIA, criada de Fiammetta, fi-quem com a governana dos quartos das mulheres, assim como com o asseio dos locais onde estivermos. Ordeno, a cada qual e a todos em

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  • geral, pelo que possam desejar honrar a nossa graa, que tomem cui-dado para que, dos lugares para onde forem e de onde regressarem, assim como daquilo que escutarem ou virem, no nos tragam nenhuma nova que no seja agradvel.

    Dadas todas esfas ordens, resumidamente, as quais foram do agrado de todos, Pampinia, contente, ergueu-se e disse:

    Aqui h jardim; aqui existem prados; aqui se vem outros luga-res, muito agradveis todos; distraindo-se do modo que melhor lhe agrade, cada um pode passear por eles. Quando soe a hora terceira, todos voltem para a refeio ao ar livre.

    O grupo obteve, da nova rainha, ordem de se dispersar. A passos len-tos, os rapazes, em palestra com as moas, a respeito de coisas agrad-veis, penetraram num jardim. Teceram lindas grinaldas de ramos de rvores diferentes. Entoaram canes de amor. Aps gastarem nisto todo o tempo que lhes fora permitido pela rainha, retornaram casa. E ali notaram que Parmeno dera, com muito zelo, incio ao exerccio de suas funes. Efetivamente, penetrando numa sala trrea, acharam ali as mesas postas, com limpssimas toalhas e copos que pareciam de prata. Por toda parte, flores de giesta. Lavadas as mos com gua, ;orao ordenou a rainha, conforme a orientao de Parmeno, senta-ram-se todos s mesas. Preparados finalmente, os pratos foram servidos; vinhos de excelente qualidade foram distribudos. Os trs criados, em silncio, serviram os comensais. Tais coisas, belas e ordenadas que eram, proporcionaram alegria a todos; e comeram, em meio a frases espi-rituosas e a ar festivo.

    Ao deixarem as mesas, mandou a rainha que viessem os instrumentos musicais. (Foi como se as mulheres todas soubessem danar, e tambm os homens o soubessem, alm de alguns, dentre eles, saberem tocar e cantar primorosamente.) Obedecendo s ordens da rainha, Dionio to-mou de um alade; Fiammetta, de um violo; e ambos principiaram, com suavidade, a desenvolver o tema de uma dana.

    Pampinia ordenou que os criados fossem comer. Depois, com as de-mais mulheres e os dois moos, ela comeou um bailado, a passo lento. Terminado o bailado, comearam todos a cantar canes dolentes e suaves.

    Deste modo ficaram tanto tempo entretidos que, finalmente, pareceu rainha ser hora de se ir para a cama. Assim que todos tiveram permisso para isso, os trs homens encaminharam-se para seus res-pectivos quartos, afastados dos aposentos das mulheres. Acharam-nos to repletos de flores como a sala; assim tambm ocorreu com as mulhe-res, quanto aos seus aposentos. Desembaraando-se das roupas, todos foram repousar.

    A hora nona acabara de soar. E a rainha, ento, erguendo-se, man-dou que todas as demais mulheres deixassem os leitos; o mesmo ordenou em relao aos homens; e declarou que era prejudicial sade o ato de dormir demais durante o dia.

    Deste modo, o grupo encaminhou-se para um prado, de alta e verde grama, e onde o sol no batia. Desfrutando ali a delcia de uma brisa amena, sentaram-se todos, formando crculo, sobre a relva fofa, confor-me o desejo expresso da rainha. Assim ela falou aos membros do grupo:

    Como esto vendo vocs, o sol est a pino e o calor intenso; apenas se escuta o cantar das cigarras trepadas nas oliveiras. Seria, assim, uma tolice, certamente, que a gente fosse agora a alguma parte. delicioso ficar aqui, sombra. A esto, como vocs podem ver, tabu-

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  • leiros de xadrez; cada um pode alegrar-se conforme o que mais prazer lhe causa ao esprito. Entretanto, se nisto se quisesse acompanhar o meu pensamento, passaramos esta parte quente do dia tecendo narra-tivas. O jogo estaria vedado, pois, no jogo, o esprito de um parceiro forado a perturbar-se, sem grande alegria para o outro nem para quem est assistindo. Seriam narrados episdios (o que pode trazer prazer a todo o grupo que ouve enquanto um narra). Antes que cada um de ns termine a prpria narrativa, o sol j se ter escondido e o calor amainado. E ento poderemos ir buscar diverso onde acharmos me-lhor. Por isto, se do agrado de vocs, faamos o que digo (mas, de qualquer modo, estou pronta a seguir a preferncia que vocs indica-rem); e, no lhes agradando, cada um faa o que mais lhe agrade, at que a noite caia.

    Mulheres e homens elogiaram a ideia de tecerem narrativas, oral-mente.

    Ento disse a rainha , se do agrado de todos, quero que, neste primeiro dia, cada um tenha a liberdade de contar o que fr de sua preferncia.

    Voltando-se em direo de Pnfilo, sentado sua direita, pediu-lhe com amabilidade que, com uma de suas novelas, desse incio s demais. Obedecendo ordem, com solicitude, e sendo escutado por todos, Pnfilo principiou assim:

    PRIMEIRA NOVELA

    O Senhor Ciappelletto engana a um santo frade fazendo-lhe uma falsa confisso; e morre. Em vida tendo sido um homem muito mau, con-siderado santo aps a morte, passan-do a ser chamado So Ciappelletto.

    Convm, carssimas mulheres, que em tudo quanto o homem realiza se principie com o admirvel e santo nome daquele que foi o criador de tudo. Como eu devo principiar a nossa srie de narrativas, quero, como o primeiro que fala, principiar narrando uma de suas maravi-lhas. Assim, ouvida a novela, nele se fixar a nossa esperana, como firmada em algo intransfervel. E o seu nome ser sempre louvado, com carinho, pelo nosso grupo.

    evidente que, sendo as coisas temporais todas passageiras e mor-tais, elas tambm esto repletas de tdio, de sofrimento e de cansao; alm disso, esto sujeitas a perigos. Certamente, ns no poderamos suportar tudo isto, ns, que vivemos entre elas, e at participamos de-las, se uma especial graa divina no nos desse fora e descortino. No devemos acreditar que esta graa caia sobre ns por algum merecimen-to que tenhamos. Ela vem da prpria bondade sua, assim como dos rogos a le enviados por aqueles que, como ns agora somos, foram igualmente mortais. Durante a vida, seguiram as imposies do prazer; agora, na companhia dele, tornaram-se eternos e beatos. A eles, como intercessores bem cnscios, por experincia, de nossa fragilidade, nos entregamos, para o comrcio daquilo que consideramos oportuno. (Po-de ser que no tenhamos audcia bastante para levar nossas splicas presena de to supremo juiz, que Deus.) E mais ainda a le, to pleno de piedosa liberalidade a nosso respeito, ns nos entregamos. A

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