boccaccio em movimento imagens e seu público no palácio spannocchi (siena, 1491)

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193 Revista de História, São Paulo, n. 165, p. 193-215, jul./dez. 2011 BOCCACCIO EM MOVIMENTO: IMAGENS E SEU PÚBLICO NO PALÁCIO SPANNOCCHI (SIENA, 1494) * Diogo Rodrigues de Barros Mestre em História, École des Hautes Études en Sciences Sociales Resumo Neste artigo, estudamos dois objetos produzidos na Toscana em 1494 para o duplo casamento dos irmãos Giulio e Antonio Spannocchi. Trata-se de uma série de painéis para spalliera, oferecidos como presente de casamento, e de uma peça teatral escrita para as festividades. Procuramos, por meio da análise desses objetos, compreender sua recepção pelos Spannocchi e por seus contemporâneos. Palavras-chave Recepção • imagem • teatro. Contato: Avenida Clavásio Alves da Silva, 820, bloco 4, ap. 92. CEP: 02722-030 – São Paulo –SP E-mail: [email protected] * Este artigo é uma versão condensada e reduzida da introdução e do segundo capítulo da minha dissertação de mestrado, intitulada Molte storie di figure piccole: la famille Spannocchi et la culture matérielle entre Sienne et Rome (1494-1513), defendida em setembro de 2009, na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), sob a orientação de Jérôme Baschet. ** Todas as imagens mencionadas neste artigo estão reproduzidas no Caderno de imagens.

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Boccaccio em movimento: imagens e seu público no palácio Spannocchi (Siena, 1491)

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  • 193Revista de Histria, So Paulo, n. 165, p. 193-215, jul./dez. 2011

    Boccaccio em movimento: imagenS e Seu PBlico no Palcio SPannoccHi

    (Siena, 1494)*

    Diogo Rodrigues de BarrosMestre em Histria, cole des Hautes tudes

    en Sciences Sociales

    ResumoNeste artigo, estudamos dois objetos produzidos na Toscana em 1494 para o duplo casamento dos irmos Giulio e Antonio Spannocchi. Trata-se de uma srie de painis para spalliera, oferecidos como presente de casamento, e de uma pea teatral escrita para as festividades. Procuramos, por meio da anlise desses objetos, compreender sua recepo pelos Spannocchi e por seus contemporneos.

    Palavras-chaveRecepo imagem teatro.

    Contato:Avenida Clavsio Alves da Silva, 820, bloco 4, ap. 92.CEP: 02722-030 So Paulo SPE-mail: [email protected]

    * Este artigo uma verso condensada e reduzida da introduo e do segundo captulo da minha dissertao de mestrado, intitulada Molte storie di figure piccole: la famille Spannocchi et la culture matrielle entre Sienne et Rome (1494-1513), defendida em setembro de 2009, na cole des Hautes tudes em Sciences Sociales (EHESS), sob a orientao de Jrme Baschet.

    ** Todas as imagens mencionadas neste artigo esto reproduzidas no Caderno de imagens.

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    Boccaccio in movement: imageS and tHeiR PuBlic in tHe SPannoccHi Palace

    (Siena, 1494)

    Diogo Rodrigues de BarrosMaster in History, cole des Hautes tudes

    en Sciences Sociales

    abstractThis article studies two objects produced in Tuscany, in 1494, for the double wedding of brothers Giulio and Antonio Spannocchi: a series of spalliera panels, offered as wedding gifts, and a play written for the celebrations. Through the analysis of these objects, we propose an approach to the study of their reception by the Spannocchi and their contemporaries.

    KeywordsReception image theatre.

    Contact:Avenida Clavsio Alves da Silva, 820, bloco 4, ap. 92.CEP: 02722-030 So Paulo SPE-mail: [email protected]

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    diogo Rodrigues de BaRRoS. Boccaccio em movimento...

    Pierre Francastel afirma que a imagem no um duplo do real, mas uma etapa, algo intermedirio. Ela no idntica ao objeto nem rede de signos, ela est no campo do imaginrio. E, para cada um de ns, a viso, ativa, alimentada por experincias e por lembranas nunca coincidentes, um ato de confron-tao entre os fatos atuais e os fatos da memria, isto , entre a percepo e o conhecimento.1 Como alcanar esse imaginrio de que fala Francastel? O prprio autor sugere um caminho: podemos atingir o imaginrio por meio de um estudo que abarque tanto a percepo como o conhecimento daqueles que veem a imagem que nos interessa. preciso, portanto, em primeiro lugar, estabelecer que o sentido de uma imagem no existe a no ser no momento do seu encontro com um espectador.

    nessa perspectiva que nos propomos a estudar aqui a recepo histrica de dois objetos produzidos para o duplo casamento da famlia Spannocchi, em Siena, em 1494. Em janeiro daquele ano, casaram-se, em festa conjunta e suntuosa, os irmos Antonio e Giulio Spannocchi. Os Spannocchi eram uma importante famlia de banqueiros sieneses que se tornaram atores fundamentais de sua poca, sobretudo por terem exercido por muito tempo o controle das finanas do papado. Para a celebrao desses casamentos, foram encomendados diversos objetos, dentre os quais uma srie de painis da histria da paciente Griselda, ltima novela do Decameron,2 e uma pea teatral, a Virginia,3 uma reelaborao de outra novela da mesma obra de Boccaccio.4

    No se pode, evidentemente, conhecer a percepo particular precisa que os Spannocchi tiveram dos painis da histria de Griselda ou da pea teatral Virgi-nia quando das npcias de 1494. O que ns tentaremos compreender, portanto, so as possibilidades de recepo desses objetos tendo em vista as convenes formais a partir das quais eles foram produzidos e compreendidos poca dos Spannocchi e de seus convidados.

    Chamamos aqui de objetos tanto os painis da histria de Griselda como a Virginia, pea teatral de Bernardo Accolti. O que um objeto nessa concepo? Um objeto toda existncia material percebida por homens graas a sua forma, a sua existncia material, em pedra, em madeira, em ondas sonoras etc. A produo de um sentido a partir desses objetos faz-se no tempo e nas relaes sociais; ela

    1 FRANCASTEL, Pierre. La figure et le lieu: lordre visuel du Quattrocento. Paris: Gallimard, 1967, p. 37 e 38.

    2 BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Turim: Giulio Einaudi, 1980 (Edio de Vittore Branca), v. 2, p. 1232-1248.

    3 ACCOLTI, Bernardo. La Virginia. Bolonha: Arnaldo Forni, 1983 [1519, edio anasttica].4 BOCCACCIO, Giovanni. Decameron, op. cit., v. 1, p. 429-442.

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    , portanto, necessariamente ligada a um evento. Esse objeto-evento no uma constante, mas uma eterna dialtica entre objeto e seus espectadores em meio s alteraes do espao e do tempo da percepo.

    Estudando a recepo da Virginia e dos painis da histria de Griselda juntos buscaremos compreender quais eram os sentidos possveis para esses objetos no interior do sistema de percepo no qual eles se inseriam. Tentaremos identificar os traos gerais desse sistema por meio do estudo de cada objeto e da busca de padres na comparao entre eles. Procuraremos entender a maneira como o evento, isto , o encontro entre espectador e objeto condicionado por um sistema de percepo especfico no tempo e no espao.

    os painis da histria de griselda5

    A histria da paciente Griselda, dcima novela do dcimo dia do Decameron, de Boccaccio, fala de uma camponesa que vive com sua famlia no territrio do marqus Gualtieri di Saluzzo. O marqus escolhe Griselda como esposa sob a condio de que ela lhe seja em tudo obediente. Aps o casamento, ele comea a test-la em sua promessa, privando-lhe, inicialmente, de seus filhos e dando-lhe a entender que eles haviam sido mortos. Em seguida, Gualtieri a expulsa do palcio, afirmando que o papa consentira com a anulao do casamento. Anos mais tarde, o marqus ordena a volta de Griselda para que ela prepare a casa para uma festa em que o marqus voltaria a se casar. Griselda, sempre obediente e sem nenhum questionamento, prepara a casa para as festividades. Ao final, revelado protagonista que tudo no passara de um teste. Seus filhos esto vivos, a noiva com que o marqus supostamente se casaria sua filha e Griselda pode ser finalmente aceita como esposa e verdadeira marquesa de Saluzzo.

    A novela de Griselda fez grande sucesso por toda a Europa e diversas foram as suas verses at ao menos o sculo XVIII. A histria de suas reescritas comea j poca de Boccaccio com uma verso latina da narrativa, ela mesma clebre, escrita por Petrarca e inserida nas Res Seniles.6 Em uma carta a Boccac-cio, que precede a traduo/verso de Petrarca, este expe seu objetivo: tornar conhecida a um pblico mais amplo no exterior versado em latim, mas no ne-cessariamente em italiano a histria de Griselda. A essa verso contempornea, sucederam-se muitas outras, tanto na Itlia como em outros pases da Europa.7

    5 Imagens de alta qualidade e com mecanismo de zoom podem ser encontradas online no site da National Gallery de Londres.

    6 PETRARCA, Francesco. Res Seniles. Florena: Le Lettere, 2009, XVII, 3.7 Para as vrias verses da histria de Griselda no Quattrocento e para uma transcrio da verso

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    Dentre as verses, poderamos mencionar a de Jacopo Foresti, publicada no Su-pplementum Chronicarum, edio de 1485, o que mostra o interesse despertado por essa narrativa poca do casamento dos irmos Spannocchi.8 Essa obra seria traduzida do latim para o italiano j em 1491, testemunhando o intenso trnsito entre lnguas vernaculares e o latim que ocorria nos crculos letrados italianos naquele momento.

    A srie de painis com esse tema, que hoje pertence National Gallery de Londres, foi produzida por um nico mestre annimo, conhecido precisamente como mestre da histria de Griselda, para decorar o quarto de um dos casais das bodas de 1494, no palcio Spannocchi. A literatura que busca identificar esse annimo bastante extensa e considera-se, em geral, surpreendente que, dada a qualidade do trabalho e a importncia da encomenda, no existam informaes precisas sobre ele. Assim sendo, a maior parte dos trabalhos busca identific-lo como uma fase de juventude de um pintor mais conhecido.9

    A prpria origem da encomenda da srie da paciente Griselda foi um tema de amplo debate. A sugesto de Vilmos Ttrai, em um artigo de 1979, de atribuir os painis a uma encomenda para o duplo casamento Spannocchi de 1494 no foi inicialmente aceita, sendo que a maior parte dos especialistas acreditava numa provvel encomenda de membros da famlia Piccolomini.10 Pesquisas recentes parecem, no entanto, confirmar as concluses de Ttrai. Esse o caso de um estudo publicado recentemente no National Gallery Technical Bulletin, volume 27, que confirma a conexo dos painis aos Spannocchi por meio de comparao com um painel de Alexandre, o Grande, hoje no Victoria and Albert Museum.11 Nos dois casos, veem-se serviais vestidos com calas com as cores dos Span-nocchi em uma perna e dos Piccolomini em outra. Ambrigio Spannocchi, pai dos noivos, antigo banqueiro do papa Pio II, Piccolomini, recebera o direito de incorporar as cores e o braso dessa famlia a suas prprias cores e a seu braso. Essa conexo plstica da srie da Griselda com um painel mais seguramente

    latina de de Jacopo Foresti, ver MORABITO, Raffaele. Una sacra rappresentazione profana: fortune di Griselda nel Quattrocento italiano. Tbingen: Max Niemeyer Verlag, 1993 (Beheifte zur Zeitschrift fr romanische Philologie).

    8 FORESTI, Jacopo. Supplementum chronicarum. Brescia: Boninus de Boninis de Ragusia, 1485.9 Para uma lista de diversas tentativas de identificao desse mestre, ver DUNKERTON, Jill,

    CHRISTENSEN, Carol e SYSON, Luke. The master of the story of Griselda and paintings for Sienese palaces. The National Gallery Technical Bulletin: Renaissance Siena and Perugia 1490-1510, 27, 2006, p. 62, nota 5.

    10 TTRAI, Vilmos. Il maestro della storia di Griselda e una famiglia senese di mecenati dimen-ticata. Acta Historiae Artium Academiae Scientiarum Hungaricae, 25, 1979, p. 27-66.

    11 DUNKERTON, Jill, CHRISTENSEN, Carol e SYSON, Luke. The master, op. cit.

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    atribudo aos Spannocchi, somada a outros levantamentos de Ttrai, confirma, ento, a encomenda por parte dessa famlia.

    A srie da paciente Griselda composta de painis para spalliera, isto , painis historiados situados altura dos olhos ou dos ombros, seu nome sendo derivado do termo italiano spalla, em portugus, ombro.12 Esse nome indica menos o tipo de objeto de que se trata do que o local a que ele se destinava, o que confirmado pelo emprego do mesmo termo para tecidos, tapearias e de-coraes de armrios que, nos palcios toscanos do Quattrocento, eram presos parede mesma altura.

    As pinturas para spalliera decoravam as paredes de antecmaras ou de quartos de dormir. Esses painis eram frequentes na Toscana, especialmente em Florena e em Siena, entre 1470 e 1520. Cada painel ou srie de painis podia aparecer isoladamente sobre a parede ou acima de um lettucio (espcie de leito) ou cassone (ba tambm ligado celebrao de casamentos), sempre integrados arquitetura, emoldurados por estruturas de madeira. Sobre a instalao desses painis nas casas do Renascimento, a quantidade de testemunhos , infelizmente, bastante reduzida. Entre os documentos mais interessantes est a obra Le vite, de Giorgio Vasari, em que o autor menciona alguns painis que ele pudera ver in loco, ainda que eles fossem j a essa poca considerados como fora de estilo.13

    A encomenda desses painis fazia parte das preparaes tradicionais feitas para os casamentos toscanos poca. Enquanto famlia da noiva cabia oferecer o dote, a famlia do noivo deveria oferecer noiva uma srie de presentes, dentre os quais, jias, roupas e mveis para o quarto do casal. Esse contexto de produo dos painis era determinante para a escolha das narrativas. Escolhiam-se sempre histrias ditas edificantes ou moralizantes, que deveriam servir como modelos de virtude aos noivos por meio de mensagens de amor, lealdade e tradio familiar. Essa suposta funo das imagens aparece em tratados de moral que versavam sobre o bom funcionamento da famlia. Desses tratados, sabemos, portanto, que

    12 O nico estudo dedicado exclusivamente s pinturas para spalliera como gnero especfico na pintura italiana do Renascimento BARRIAULT, Anne B.. Spalliera paintings of Renaissance Tuscany: fables of poets for patrician homes. Pensilvnia: University Park, 1994. Outros estudos que abordam o tema so: CANTELLI, Giuseppe. La vita sociale e la nuova dimensione dellabi-tare. In: RESTUCCI, Amerigo (org.). Larchitettura civile in Toscana: il Rinascimento. Milo: Silvana, 1997, p. 300-329. MOTTURE, Petta e SYSON, Luke. Art in the casa. In: AJMAR-WOLLHEIM, Marta e DENNIS, Flora (org.). At home in Renaissance Italy. Londres: V & A Publications, 2006, p. 268-283.

    13 VASARI, Giorgio. Le vite (edizioni giuntina e torrentiniana). Edio eletrnica de Sig-num (Centro di ricerche informatiche per le discipline umanistiche) e Scuola Normale Superiore di Pisa, 1999: http://biblio.cribecu.sns.it/vasari/consultazione/Vasari/indice.html

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    a educao moral dos espectadores era a funo declarada desses painis. Parece-nos, no entanto, que preciso estar atento ao perigo de colar-se excessivamente ao discurso contemporneo, posto que ele apenas um dos componentes da ex-perincia de interao com as imagens, sendo que as condies de visualizao, a forma plstica e outros elementos no devem ser negligenciados.14

    Otto Pcht acusou Ernest Gombrich de reduzir as pinturas a mensagens. Segundo ele, nos trabalhos de Gombrich, a arte um procedimento de emba-lagem, que consiste em transportar certas informaes que teriam, no fosse isso, evidentemente, dificuldade de alcanar seus destinatrios informaes que estes devem retirar de seus envelopes.15 Parece-nos que reduzir a funo das pinturas para spalliera ou sua recepo transmisso de mensagens moralizantes sem levar em conta a especificidade da linguagem pictrica seria cometer esse mesmo erro.

    Buscando definir as pinturas para spalliera como gnero pictural, Anne Bar-riault levanta alguns elementos formais que seriam comuns a todas as pinturas do gnero: 1) tamanho caracterstico; 2) escala e nmero de figuras; 3) construo do espao em cada imagem; 4) escolha da continuidade dos enquadramentos para criar uma experincia visual de circundamento; 5) motivos com cores en-trelaadas; 6) temas e os modos narrativos constantes. A inteno da autora , sobretudo, criar uma diferenciao clara entre os painis para spalliera e aqueles para cassone, mais conhecidos pelos historiadores da arte.16

    Os painis para spalliera so maiores que os de cassone; suas figuras, sempre de tamanho reduzido, no so muito numerosas e se distribuem em um espao regulado pela perspectiva albertiana; as figuras ocupam dois quintos da altura e so bem integradas ao enquadramento da pintura; o tamanho das figuras dimi-nui de um plano a outro por meio de uma organizao matemtica do espao. A paisagem de cada uma das imagens sempre contnua, sendo que todas as cenas de uma mesma narrativa so dispostas em um mesmo espao unificado, sem cortes ou enquadramentos, um mesmo personagem podendo aparecer diversas vezes ao longo desse espao em momentos diferentes da narrativa. Esse tipo de organizao narrativa no espao chama-se narrao contnua ou narrao

    14 Anne Bariault, por exemplo, analisa a dimenso plstica geral das pinturas para spalliera, na segunda parte de seu livro, e faz uma anlise dos temas dos painis que completamente centrada na ideia de moralizao, na terceira parte. Em nenhum momento, a autora considera a materialidade das imagens como elemento importante para a sua recepo. BARRIAULT, Anne B.. Spalliera paintings of Renaissance Tuscany, op. cit.

    15 PCHT, Otto. Questions de mthode en histoire de lart. Paris: Macula, 2000, p. 77.16 BARRIAULT, Anne B.. Spalliera paintings of Renaissance Tuscany, op. cit., p. 56-94.

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    de espao contnuo e foi muito popular no Quattrocento. No que diz respeito s relaes entre espao e tempo da narrativa, preciso atentar tambm para a distino entre narrativa linear e no-linear. Alguns painis para spalliera apre-sentam um ordenamento claro das cenas da esquerda para a direita, enquanto outros dispem as cenas ao longo do espao sem ordem aparente, cabendo aos espectadores estabelecer a ordem de visualizao de cada uma.

    Vistas as caractersticas gerais do gnero, passemos s caractersticas espe-cficas da srie da histria de Griselda [fig. 1, fig. 2, fig. 3, pgs. 266 e 267]. Os trs painis possuem, cada um, caractersticas bastante particulares do ponto de vista formal. Isso no quer dizer, no entanto, que inexista unidade no conjunto. A arquitetura clssica arcos e arcadas onipresente na srie, sendo que o espao ocupado pelas estruturas arquitetnicas aumenta progressivamente de um painel para o outro, passando de um plano mais recuado a planos cada vez mais prximos. Essa progresso conclui-se no ltimo painel, em que a grande loggia sob a qual ocorre o banquete das npcias ocupa toda sua extenso. Esse avano da arquitetura em direo ao primeiro plano um dos elementos mais importantes para localizar no tempo a progresso da narrativa, o passado distante correspondendo arquitetura recuada, e o passado prximo, a uma arquitetura dominante no espao pictrico.

    As arcadas no so os nicos elementos arquitetnicos presentes nos pai-nis. A casa dos pais de Griselda tambm uma constncia. A dinmica de sua apresentao , entretanto, inversa quela das estruturas clssicas: a cada painel, a casa pobre da famlia de Griselda torna-se menor. Vale notar que a localizao dessa casa nos trs painis mostra que no h um espao plstico contnuo ou contguo entre os trs painis da srie, j que a localizao da casa no espao no segue nenhuma lgica geogrfica em sua relao com as outras estruturas. Os nicos elementos que nos permitem ver tratar-se, de fato, da casa dos pais de Griselda so a constncia cromtica sua cor salmonada caracterstica e o fato de no ser uma construo em estilo clssico, como todas as associadas ao marqus de Saluzzo.

    Alm dos elementos arquitetnicos, os painis da srie da paciente Griselda tm em comum o que nos parece ser um princpio central para a sua recepo, a instabilidade como elemento (des)ordenador. Nada na srie, nem a relao entre os painis nem a estrutura interna de cada um, permite descansar o olhar, isto , no mais desloc-lo. O princpio da instabilidade obriga a um movimento cons-tante em busca de uma simetria ou de uma centralizao que permita o repouso, o que no encontramos em momento nenhum. Um elemento fundamental desse fenmeno o fato de que nenhuma dessas imagens apresenta figuras perfeitamente

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    centralizadas, que possam servir de ponto de referncia a partir do qual passar a outros elementos da composio. H sempre um pequeno deslocamento, que torna toda centralizao falsa: 1) no primeiro painel, a cena do casamento no est centralizada em relao abertura do arco no plano mais recuado; 2) no segundo, Gualtieri, no centro da composio, projeta-se em direo a Griselda quando da anulao do casamento; 3) h uma coluna no centro do terceiro painel, enquanto as cenas importantes se passam direita e esquerda.

    Nos painis 2 e 3, nos quais as cenas mais importantes ocorrem no interior das estruturas arquitetnicas, h sempre personagens que atravessam essas estruturas seja com o olhar, seja com o corpo o que evita a criao de enquadramentos materiais para as cenas. Sob o mesmo princpio da instabilidade, consegue-se, ao mesmo tempo, manter a unidade do espao pictrico no interior do painel e, uma vez mais, estimular o movimento do olhar do espectador.

    Do movimento do olhar, passamos aos movimentos dos personagens. Esses dois movimentos, um do espectador e o outro um movimento plstico, so ne-cessariamente conectados um ao outro: porque o olhar apreende a passagem de uma cena a outra que os personagens se deslocam nos painis. Isso porque o olhar que deve isolar as diferentes cenas no tempo, tornando, dentro da narrativa de espao contnuo, certa imagem de Griselda, por exemplo, nica.

    No poderamos, no entanto, atribuir o movimento das personagens unica-mente ao movimento do olhar dos espectadores. O movimento dos personagens se d tambm por mecanismos plsticos. A tenso presente nos corpos das figuras humanas e mesmo dos animais ser, por exemplo, fundamental para instaurar uma necessidade de movimento. Nos painis de que tratamos, a toro dos corpos sempre bastante intensa. Essa deformao fora a antecipar o movimento lgico que parece estar em curso. esquerda da figura nua da Griselda, por exemplo, um homem coloca seu brao sobre os ombros de outro de uma maneira muito pouco usual. Sua cabea est virada para a esquerda em uma forte toro. A Griselda nua, ao lado, produz uma impresso bastante diferente, posto que ela tenta, pudicamente, reduzir a extenso de seu corpo. Tudo ao redor dela se move, ao passo que ela est imvel. Pernas bastante tensionadas produzem esse mesmo efeito de movimento em curso, tenso de movimento. Vemos isso, por exemplo, observando os cavalos, Gualtieri na cena da Griselda nua, e os empregados de Gualtieri ao lado do poo, todos exemplos do primeiro painel. Os movimentos do olhar e os movimentos sugeridos pelas tores colocam dialeticamente, por-tanto, a composio em movimento. Essas tenses de movimentos tm estreita relao com a organizao da narrativa, pois nos ajudam a visualizar a narrativa em movimento e, consequentemente, a passagem do tempo. A composio conta

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    com o espectador para completar o movimento indicado pelas formas plsticas, ao mesmo tempo em que depende de movimentos de seu olhar.

    Ainda no tocante relao entre painis e espectadores, parece-nos impor-tante observar a presena de mltiplas formas de existncia de figuras animadas. Vemos animais e pessoas que participam da histria de Griselda, animais e figuras humanas esculpidos e figuras em relevo sobre a arquitetura. Esse jogo de iconografia no interior da iconografia poderia muito bem estender-se para os espectadores, que se tornam assim outro nvel de existncia nesse conjunto proposto pelos painis. Os espectadores no so externos aos painis, posto que so um dos elementos de uma cadeia de existncias que integra o interior da composio ao espao real de onde so vistas as imagens.

    Vistos alguns aspectos gerais da srie da paciente Griselda, detemo-nos agora brevemente sobre cada um dos painis. Dado o espao reduzido de que dispo-mos, ressaltaremos, em cada painel, alguns dos seus mecanismos plsticos mais especficos, ainda que vrios desses mecanismos se repitam em mais de um ou nos trs. No primeiro painel [fig. 4, pg. 267], os espaos dos grupos humanos, situados na metade inferior da imagem, so sempre circulares. Esses crculos, assim como aquele formado pelo arco de triunfo do centro da composio, produ-zem um efeito de eco que fundamental para a articulao visual da composio e, consequentemente, essencial para conduzir o olhar dos espectadores. A for-mao de crculos feita a partir das formas, sobretudo aquelas produzidas pelo posicionamento dos corpos, combinadas a uma disposio estratgica das cores. Identificamos, da esquerda para a direita, trs grupos circulares principais:

    1) Circulo formado por Griselda, Gualtieri, seus servidores e os cavalos. As formas circulares se constroem graas a uma oposio fundamental entre, de um lado, o marqus, dois servidores a sua esquerda e os cavalos, que se inclinam para a direita; e, do outro, Griselda e o servidor imediatamente a sua esquerda, os dois inclinados para a esquerda.

    2) Griselda e Gualtieri na cena da troca dos anis, no centro do painel. As cabeas dos noivos, inclinadas uma em direo outra, formam um crculo reforado pela repetio das cores vermelha e dourada.

    3) A Griselda nua e Gualtieri a sua direita. O crculo se forma quando um se inclina em direo ao outro, fechando-se embaixo pela posio das pernas dos dois.

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    instabilidade do conjunto, produzida pelo efeito de eco das formas circula-res, contrapem-se, no entanto, elementos de ordenamento. A disposio das cenas principais cria uma diagonal, da esquerda para a direita, da metade superior para a inferior. Essa tenso entre a progresso para a direita e sua interrupo pelos movimentos internos a cada grupo parece-nos ditar o funcionamento elementar de conduo do olhar dos espectadores. A narrativa disposta ao longo do painel exige um deslocamento continuo do olhar, e o que impede os espectadores de repousar o olhar sobre certas figuras ou sobre um grupo especfico so preci-samente as formas circulares, as passagens entre os grupos e a centralizao no-centralizada do casal na troca de anis.

    Essas oposies entre movimento ordenado e instabilidade so tambm or-ganizadoras do tempo no interior da imagem. O movimento interno aos grupos circulares produz o tempo de cada cena, o tempo dos dilogos, das trocas entre as diferentes personagens no interior do grupo-evento, enquanto as passagens de um grupo a outro e a progresso da esquerda para a direita criam a progresso da narrativa, isto , a conexo entre os diferentes eventos, a passagem de uma cena outra da narrativa. Os movimentos promovidos pelas formas circulares no permitem, insistimos, repousar o olhar sobre uma figura isolada, mas antes favorecem um movimento contnuo de idas e vindas que, na ausncia do movi-mento oposto de passagem ao grupo seguinte imediatamente direita, tenderia ao infinito, a um continuum.

    Algumas figuras secundrias tm um papel importante no esquema de conduo do olhar dos espectadores. Trata-se de figuras que chamaremos de figuras de transio narrativa, cuja funo enquadrar as cenas principais, criando, ao mesmo tempo, uma transio entre elas. H dois tipos de figuras de transio narrativa, aquelas que nos observam diretamente e aquelas que esto de costas para ns. As figuras de costas mimetizam a posio dos espectadores diante do painel, espectadores que, convertidos em personagens por meio dessa identificao, conversam com a figura colocada de frente e adentram, dessa maneira, o espao pictrico.

    Esse mecanismo especialmente claro no segundo painel da srie, em que os pares de figuras de frente e de costas em primeiro plano so essenciais para posicionar os espectadores diante dos ou nos painis. As figuras de costas assumem claramente uma posio que a mesma dos espectadores que obser-vam o interior da imagem. Eles so, portanto, nosso ponto de acesso ao espao pictrico, uma projeo dos espectadores que se tornam eles mesmos parte daquilo que observam. O ponto de vista dos espectadores no , portanto, livre, sendo evidentemente condicionado por essas figuras que so nossa existncia

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    na pintura. Um exemplo dessa predeterminao o fato de que as figuras olham para a direita, o que refora o direcionamento do olhar nessa direo, guiando assim uma vez mais o nosso olhar.

    Nossos alteregos no esto ss, no entanto, pois formam pares com figuras de frente, s quais se sobrepem parcialmente. Esses encontros, que nos do a impresso de duas pessoas que conversam talvez sobre as cenas que ocorrem atrs deles, nos planos mais recuados reforam nossa adeso imagem, uma vez que, identificados s figuras que imitam nossa posio diante da pintura, ns tambm acompanhamos as cenas e conversamos sobre aquilo que observamos.

    Na srie de Griselda, este segundo painel aquele em que a perspectiva mais cuidadosamente construda, como comprovam as linhas do desenho de base visveis sob a pintura [fig. 5, pg. 268]. Alm disso, o fato de que as figuras sob a loggia estejam de p sob uma estrutura cuja profundidade bem definida permite a disposio das figuras humanas de modo que umas se sobreponham s outras de maneira bastante lgica para as regras de perspectiva. Esse efeito reforado pela presena de planos mais recuados esquerda e direita, o que inclui uma passagem narrativa, o(s) beb(s) retirado(s) de sua me, esquerda. No mesmo sentido, deve-se notar a presena de personagens no primeiro plano, prximos ao limite da imagem, ao enquadramento, e a figura de Griselda, que avana em dire-o ao canto inferior direito, alargando assim o espao para alm da pintura em si.

    Quanto direo da narrativa, como no primeiro painel, h um movimento diagonal da esquerda para a direita e de cima para baixo. Este movimento criado em razo de: 1) uma sequncia de figuras douradas, composta sobretudo por uma sequncia de Gualtieris e Griseldas. As cores so um recurso frequentemente empregado no conjunto dos painis para conectar as diferentes partes de cada painel, estabelecendo um caminho a ser seguido pelo espectador tal como vemos no esquema a seguir: 2) O desenvolvimento das cenas de um plano recuado esquerda retirada dos bebs em direo a um plano mais prximo a partida de Griselda aps a anulao do casamento na extrema esquerda da compo-sio. Esse deslocamento segue a ordem cronolgica da narrativa, de maneira que as cenas que esto mais distantes no tempo correspondam quelas que esto mais distantes no espao. O tempo da narrativa neste painel torna-se, portanto, o prprio tempo do deslocamento do olhar do espectador do plano recuado da esquerda para o plano prximo da direita.

    O movimento da esquerda para a direita no , no entanto, o nico a orientar o olhar do pblico. H elementos importantes de conteno ou de dinamiza-o desse movimento, principalmente os olhares dos convivas para as mais diversas direes e a presena de colunas, que isolam algumas cenas da narra-

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    tiva, impondo assim cortes progresso. Tambm em oposio ao movimento dominante da esquerda para a direita, podemos notar outra linha cromtica, que cria um movimento constante frente-trs e composta por vrias figuras vestidas inteiramente ou parcialmente de vermelho [figura 6, pg. 268]:

    Do ponto de vista formal, o terceiro painel marcadamente diferente dos outros dois. A ausncia de cenas narrativas centrais e uma ocupao importante da metade superior da composio, dominada pela grande loggia, altera substan-cialmente a disposio das figuras nesse painel. Alm da arquitetura, preciso ressaltar a presena importante do cortejo sobre a linha do horizonte, com seus estandartes e as rvores que avanam para o limite superior da pintura, preen-chendo o espao do cu acima dos convivas sentados sob a loggia. Por causa do nmero reduzido de planos e da perspectiva pouco expressiva, a ocupao das metades superior e inferior do painel bastante homognea. Abaixo, pode-se notar que o espao livre diante da construo arquitetnica bem mais estreito que nos outros painis. Por fim, as colunas dividem a imagem em vrias partes como em um retbulo, mas, como nos retbulos da mesma poca, a imagem ultrapassa os limites arquiteturais. Ultrapassam os limites dos enquadramentos: o cortejo da noiva (na realidade a filha de Gualtieri e Griselda), a mesa do banquete, e os olhares dos serviais em p sob a loggia.

    Quanto direo do olhar dos espectadores sobre esse painel, um primeiro elemento que deve ser levado em considerao a posio das figuras humanas (de frente e de costas), que nos remetem sem cessar a diferentes pontos do painel. Em uma imagem em que as colunas so numerosas e em que nenhuma cena narrativa central, essas figuras funcionam como pontos de referncia. Entre elas, os dois primeiros serviais da esquerda para a direita esto no mesmo plano e, olhando o primeiro para a direita e o segundo para a esquerda, remetem ao beijo entre Gualtieri e Griselda. As duas figuras funcionam, assim, como enquadramento desta cena. O terceiro servial, de costas, olha em diagonal para a direita e nos conduz ao encontro de Griselda com sua filha, enquanto o quarto, em posio inversa de frente, olhando para a esquerda , reconduz ao centro da imagem. O mesmo papel desempenhado pela conviva vestida de escarlate, que est em p no primeiro plano esquerda.

    As figuras de p tm, portanto, a funo de dizer aos espectadores a direo para a qual devem olhar, indicando quais so os elementos fundamentais da narrativa. Posto que no h ordem narrativa a narrativa no-linear o papel formal das figuras de p tambm fundamental para o estabelecimento de uma sequncia de cenas: no movimento constante de um lado a outro da imagem que os espectadores, orientados pelos olhares das diferentes figuras, conseguiro fazer

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    o percurso narrativo desejado. Para isso, necessrio considerar-se tambm que os espectadores conhecem a histria contada e buscaro, portanto, reconstituir sua sequncia lgica conhecida. Trata-se de um verdadeiro jogo, uma vez que os direcionamentos no so ordenados e no impem, pois, do ponto de vista formal, uma sequncia narrativa predeterminada.

    virginia, de Bernardo accoltiA Virginia, nica pea escrita pelo poeta florentino Bernardo Accolti, uma

    comdia em cinco atos, introduzida por um argumento e um promio, que conta a histria da personagem-ttulo, a qual, filha de um mdico, consegue curar o rei de uma doena terrvel e, como recompensa, pede para ter o prncipe de Salerno como marido. O prncipe, obrigado a tom-la como esposa, vai embora logo aps o casamento, abandonando-a e partindo para Milo para participar da guerra contra os franceses. Ele no retornar a no ser que Virginia consiga realizar algumas tarefas que ele julga impossveis. Por meio de sua inteligncia, no entanto, Virginia faz o que o prncipe lhe pede e finalmente aceita como es-posa. Essa histria uma verso da novela de Giletta di Narbona, do Decameron (nona novela do terceiro dia), sem que haja, no entanto, simples transposio da novela ao teatro.

    Uma diferena fundamental em relao histria de Boccaccio so, por exem-plo, as alteraes geogrficas feitas por Accolti: enquanto na novela de Giletta di Narbonna, Gilette e o prncipe so ambos franceses e, aps o casamento, o prncipe parte a Florena para unir-se a essa cidade na guerra contra os sieneses, na verso de Accolti, os personagens so de Salerno, e o prncipe parte a Milo para participar, ao lado do duque dessa cidade, da batalha contra os franceses. O motivo dessa mudana no de difcil compreenso: um prncipe que parte a Florena para se aliar a essa cidade contra os sieneses no seria visto com bons olhos pelos Spannocchi de Siena.

    Uma edio moderna da Virginia foi preparada como tese de doutoramento na Universidade de Harvard por Adele Giada Calise, em 1984.17 A autora faz tambm uma introduo baseada em alguns testemunhos da poca para traar uma curta biografia de Accolti e apresenta parcialmente uma fortuna moderna da Virginia. A edio de Calise baseada na edio florentina de 1513, que Calise,

    17 CALISE, Adele Giada. La Virginia di Bernardo Accolti (una comedia inedita del XV secolo): edizione critica. Tese de doutorado. Department of Romance Languages and Literatures, Harvard University, 1984.

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    seguindo autores do sculo XIX, acredita ser a princeps h, na verdade uma edio sienesa de 1512 e no manuscrito Palatino 277 da Biblioteca Nazionale Centrale, em Florena, datado do final do sculo XV, mas que a autora cr ser posterior edio de 1513, a qual ela privilegia em sua transcrio.18

    O nico objetivo da edio de Calise estabelecer o texto original da Virgi-nia. Sua abordagem ignora completamente o hbito da poca, isto , a produo de cpias manuscritas destinadas a grandes senhores, enquanto as cpias impressas, frequentemente produzidas revelia do autor, eram destinadas a um pblico mais amplo.19 Assim sendo, no , portanto, a data que explica as variaes formais, mas as particularidades da circulao e dos suportes. As variaes lingusticas que Calise tenta identificar so, em nossa opinio, variaes de ocasio de acordo com os destinatrios do manuscrito ou com a cidade de impresso de cada edio. Essa abordagem cronolgica em busca da obra original parece-nos anacrnica em uma poca em que as relaes entre autor, texto e pblico organizavam-se de maneira bastante diversa.

    Os estudos sobre Bernardo Accolti e, especificamente, sobre a Virginia so bastante raros. O estudo mais detalhado aquele de Elvira Guarnera, Bernardo Accolti: saggio biografico-critico, no qual, alm da biografia do autor, encontra-se um estudo da Virginia. Trata-se, no entanto, de um trabalho de 1901 que, do ponto de vista terico, bastante datado. Guarnera deseja mostrar a originalidade da obra e a audcia de seu autor, que transpusera a forma das sacre rappresentazioni para o teatro profano, deixando de lado o que, segundo ela, eram personagens fossilizados pelo dogma, para criar personagens vivazes por meio dos quais se exprimiria a personalidade do artista, em que ela identifica at mesmo o incio do elemento romntico do mundo de Shakespeare.20

    No existe nenhuma referncia a como foi encenada essa pea durante as bodas Spannocchi de 1494, nica montagem dessa obra de que se tem notcia. No se conhecem, portanto, descries de cenrios, figurinos ou da movimentao dos personagens em cena. Que possibilidade temos, ento, de estudar a recepo dessa

    18 Para amplo estudo das edies da Virginia, sua circulao e as lgicas sociais em que elas se inserem, ver BARROS, Diogo Rodrigues de. Molte storie di figure piccole: la famille Spannocchi et la culture matrielle entre Sienne et Rome (1494-1513). Disserao de mestrado. cole des Hautes tudes em Sciences Sociales, programa de master em Histria, 2009, captulo 3.

    19 Para a circulao e os suportes dos textos poticos na Itlia do Renascimento, ver BULLOCK, Walter Ll. Some notes on the circulation of lyric poems in sixteenth-century Italy. In: Essays and studies in honor of Carleton Brown. Nova Iorque e Londres: New York University Press e Oxford University Press, 1940, p. 220-41.

    20 GUARNERA, Elvira. Bernardo Accolti: saggio biografico-critico. Palermo: A. Giannitrapani, 1901, p. 127 e 128.

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    pea? Acreditamos que a prpria forma da composio da Virginia, isto , sua mtrica, a construo do espao e do tempo da ao e outros elementos formais, traz traos bastante contundentes da encenao em si. Nesse sentido, o conceito de ocasio formal, de Otto Pcht, parece-nos til. Tratando da metodologia de estudo de imagens, ele afirma que a obra de arte pronta deve ser vista como uma tarefa que foi completada. Toda imagem seria, assim, produzida de acordo com a funo a que ela se destina, de acordo com exigncias da encomenda para um lugar especfico em que a imagem seria coerente com seu lugar de visualizao e uso.21 A mesma ideia parece-nos aplicar-se ao texto da Viginia. A prpria cons-truo do texto leva sem dvida em conta o espao da performance, os cenrios e os movimentos dos atores.

    Passemos agora ao texto da comdia, dividido em argumento, promio e cinco atos. A Virginia quase inteiramente os momentos de exceo sero importantes escrita em oitava rima, isto , em versos endecassilabi 22 dispostos em estrofes de oito versos, cada uma com um esquema de rimas ABABABCC. O argumento (assunto, em portugus) que abre a comdia um resumo da histria que ser representada. Trata-se de um soneto com esquema de rimas ABBA ABBA CDC DCD, isto , composto de rimas interpoladas. O argumento um momento anterior pea, que a anuncia, mas no faz parte dela. Isso poderia explicar o emprego da forma do soneto no lugar da oitava rima que, como vere-mos, dominante nas outras partes do texto.

    O promio que se segue ao argumento emprega, no entanto, a oitava rima e, mesmo se no ainda constitutivo da narrativa, faz a ela uma introduo for-mal. aqui que se fala diretamente ao espectador, caracterizando-o fala-se s mulheres, belas e castas, e aos homens, glria e honra do nosso Estado. Em seguida, anuncia-se a funo do espetculo que ser apresentado:

    21 Para o conceito de ocasio formal, ver PCHT, Otto. Questions de mthode, op. cit,. p. 48-52.22 Em italiano, o nmero de slabas de um verso sempre estabelecido em relao aos versos

    piani, isto , os versos em que a ltima slaba tnica a penltima. Em um verso endecasillabo, a ltima slaba tnica a dcima, mas h onze slabas no total quando o verso piano, da o nome endecassilabo e no decasslabo, como na mtrica portuguesa. BELTRAMI, Pietro G. La metrica italiana. Bolonha: Il Mulino, 1991, p. 22-25.

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    E piatosi accidenti di costeisol son representati a questo effetto

    che ne casi sinistri, acerbi & reimai si disperi uno spirto perfetto& per mostrar che dhuomini & di dei

    Puo vincer lira un prudente intelletto

    & chardir, tempo, ingegno, oro & parole

    Fanno otenere al fin cio che lhuom vuole

    (Os piedosos acidentes desta

    So apresentados apenas com essa intenoDe que nos casos sinistros e acerbos e maus

    Nunca se desespere um esprito perfeitoE para mostrar que de homens e deuses

    Pode vencer a ira um intelecto prudenteE que ardidez, tempo, engenho, ouro e palavras

    Fazem obter ao final aquilo que o homem deseja)

    A funo declarada do espetculo , portanto, como no caso dos painis para spalliera, a instruo dos presentes uma funo moralizante , a histria de Virginia servindo para promover certo comportamento ou estilo de vida. Uma vez mais utilizamos a expresso funo declarada posto que no se deve neces-sariamente tomar essa funo como sendo vlida ou, ao menos, a nica funo dessa pea. Entretanto, o fato de que se declare aos espectadores que a histria a seguir traz uma lio de comportamento essencial para a compreenso da construo do texto e, evidentemente, de sua recepo.

    Aps o promio, apresenta-se uma sequncia de cinco atos. Esse nmero de atos no escolhido ao acaso, mas segue as edies humanistas de peas clssicas de Plauto que, respeitando os preceitos de Horcio, adotaram essa diviso apesar de ela no figurar nos manuscritos a partir dos quais foram preparadas.23 A exten-so desta pea teatral impede-nos, no espao de que dispomos, de acompanh-la cena a cena, ato a ato. Optaremos, pois, por analisar unicamente o primeiro ato, ressaltando, em algumas passagens, elementos estruturantes da narrativa que julgamos fundamentais construo de uma percepo do espao e do tempo por parte dos espectadores.

    23 STUBLE, Antonio. La comedia umanistica del Quattrocento. Florena: Istituto Nazionali di Studi Sul Rinascimento, 1968, p. 155.

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    O primeiro ato comea com um monlogo da personagem-ttulo, na qual ela exprime todo o seu sofrimento de amor pelo prncipe de Salerno. Este inter-rompido pela chegada do mensageiro da corte, de quem ela receber a notcia de que o rei est muito doente e de que nenhum mdico conseguira at aquele momento cur-lo. Virginia, filha do mdico Hipcrates, lembra-se de que seu pai j havia curado uma rainha da mesma doena que afligia ento o rei. Ela decide, pois, em posse do medicamento miraculoso, ir ao encontro do monarca para tentar, como recompensa por ter restabelecido a sua sade, receber o prncipe de Salerno como marido. Uma vez na presena do rei e diante de sua incredulidade, Virginia aceita um acordo: se ele estiver curado em oito dias, ela receber um nobre da corte em casamento, mas, se ele ainda estiver sofrendo depois de esse tempo ter passado, ela morrer na fogueira.

    Feito esse acordo, apresenta-se claramente o problema da passagem do tempo na pea preciso esperar oito dias para conhecer o destino de Virgi-nia. O modelo clssico, em grande medida adotado pela tradio humanista no Renascimento italiano, no permitia narrativas que se estendessem por longo perodo de tempo.24 Trata-se de um princpio proposto por Aristteles na Potica, de acordo com o qual o teatro deveria sempre respeitar trs unidades: tempo, espao e ao. O tempo da histria narrada no deveria estender-se por vrios dias, o espao no deveria mudar e apenas as cenas que fazem avanar de fato a narrativa seriam bem-vindas.25

    A unidade de ao, a mais importante segundo Aristteles, no tampouco respeitada por Accolti. Uma vez que Virginia aceita o acordo com o rei, as per-sonagens principais desaparecem de cena e nos vemos, ento, na presena de dois servos da corte, Iulio e Sylvio. O dilogo entre eles servir para preencher o tempo de espera que a narrativa impe e caber a eles nos conduzir do ponto inicial at o momento de revelao da sorte de Virginia. Trata-se, na verdade, do que chamaremos de figuras de transio narrativa. Eles no possuem nenhum papel ativo no desenvolvimento da ao, mas tm por funo conduzir o espec-tador atravs do tempo e do espao at a retomada da narrativa.

    H, de certa maneira, um rompimento articulado dos princpios aristotlicos de unidade de tempo e ao, em que uma ao desnecessria para o desenvolvi-mento narrativo serve para fundar a passagem de um longo perodo de tempo na

    24 Idem, ibidem, p. 154.25 ARISTOTE. Potique. Paris: Les Belles Lettres, 2002. Para uma interpretao desses preceitos da

    Potica no Renascimento italiano, ver ANDREWS, Lew. Story and space in Renaissance art: the re-birth of continuous narrative. Cambridge e Melbourne: Cambridge University Press, 1995, p. 22 e 23.

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    percepo dos espectadores. O dilogo entre os dois personagens secundrios e um longo monlogo lamentando o possvel destino trgico de Virginia criam, materialmente, a passagem do tempo. Somos confrontados, de incio, com uma lamentao de Iulio, em quatro estrofes o comprimento sendo importante para criar uma impresso de passagem do tempo. Em seguida, Sylvio chega e tenta acalmar seu colega que, nesse momento, manifesta inteno de suicidar-se para no ter de testemunhar a morte de Virginia. Sylvio lhe diz, ento, que no deve se desesperar, porque Virginia conseguiu curar o rei e est, portanto, salva de um destino cruel. Por fim, diante da incredulidade de Iulio, Sylvio o convida a segui-lo para ver com os prprios olhos o que se passa. evidente que, com Iulio, os espectadores so tambm convidados a reencontrar os personagens principais, a continuao das aes e do desenvolvimento da narrativa.

    Na sequncia, Virginia pede, ento, para a surpresa do monarca, a mo do prncipe de Salerno em casamento. Aps certa hesitao, o rei acata o pedido de sua salvadora e vai ao prncipe comunicar-lhe de sua deciso. O dilogo entre o rei e o prncipe ser o primeiro conflito verbal da pea:

    Arme non sposa vuo seguire. Re. La sposa Princ.Non impedisce armarti & stare in sellaNon di regal sangue. Re. virtuosa. Princ.Nobil non . Re. Ell casta & bella Princ.Mia casa infamo. Re. Tanto gloriosa Princ.Que non bisogna aggiunger gloria a quella

    Dota non ha. Re. Da me la dota harai Princ.Mai non consento. Re. Si consentirai Princ.

    Esse primeiro conflito verbal do texto tambm a primeira apario de versos quebrados, isto , versos divididos entre duas personagens ou mais. Parece-nos claro que a diviso do verso um mecanismo de produo de tenso no interior dos dilogos. Vemos aqui a importncia da mtrica para a recepo: todos os versos so endecassilabi, e a constncia dessa medida faz com que esperemos sempre que o verso se complete nessa unidade sonora. O fato de que a reao de um personagem esteja no mesmo verso da fala qual ele reage refora a ideia de reao dura e urgente, uma vez que contida na mesma unidade mnima o verso. como se a reao fosse to obrigatria para a narrativa quanto a continuidade do verso para a concluso sonora do verso. A interrupo dos versos quebrados marca o fim do conflito quando o prncipe, conformado, diz: Sou teu servo e podes obrigar-me, rei / Mas no serei nunca mais feliz.

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    Os versos quebrados sero empregados em vrios momentos de conflito ao longo da pea, seja para criar um efeito de tenso, seja para dar efeito cmico, como no caso dos dilogos do prncipe com seu empregado Ruffo, no segundo ato. Tanto o drama como o humor beneficiam-se dessa acelerao do ritmo que retm a ateno do espectador.

    O prncipe tendo aceitado o seu destino, o casamento ocorrer na sequncia. Imediatamente aps, o ato encerrado com uma estrofe de trs versos endecas-silibi e rima ABA. a primeira vez que a oitava rima ser interrompida, o que, parece-nos, cria um efeito de suspenso que joga uma vez mais com as expecta-tivas do pblico. Espera-se por uma continuidade da estrofe, mas ela no vir.

    Hor andian drento alla famosa cenaSia in questa note fatto festa & gioco

    Che veramente felice & serena.

    Poderamos supor que essa suspenso da oitava rima mais um artifcio de passagem do tempo, a unidade da estrofe que era esperada sendo completada no tempo da celebrao que se anuncia, mas que no ser vista em cena.

    virginia e griselda: objetos, espectadores e convenoA comparao entre os mecanismos narrativo-visuais dos painis da histria

    de Griselda e aqueles da histria de Virginia permite-nos inferir uma parte das condies nas quais, nas relaes sociais estabelecidas em Siena no final do sculo XV, o encontro entre objeto e espectadores produziu sentido. A comparao dos mecanismos de duas mdias diferentes torna possvel destacar os mecanismos que comandavam, nesse momento, a apresentao desses objetos ao pblico. As mesmas pessoas que assistiram Virginia colocaram-se diante dos painis da paciente Griselda. Com isso, certamente, a experincia de recepo do espetculo ter contribudo para a conduo do olhar do espectador sobre os painis assim como o conhecimento do funcionamento narrativo dos painis ter influenciado a percepo que se teve do espetculo teatral. Obviamente, no se trata aqui apenas destes objetos especificamente, mas de todos os painis de casamento conhecidos poca e dessa tradio teatral a que esse pblico est acostumado.

    Na literatura mais tradicional da histria da arte, o Renascimento italiano um momento de aproximao da pintura com o real, em que toda imagem torna-se, consequentemente, representao, isto , uma cpia do real. Essa noo apresenta o grave problema de remeter a uma exterioridade a vida da imagem, que deixa de ser ela mesma para tornar-se a retomada de algo que lhe externo. Isso vai,

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    evidentemente, na direo oposta ao que se prope aqui, isto , compreender a imagem como elemento ativo da sociedade de que ela faz parte.

    A forma mesma do espetculo, sua mtrica, os lugares comuns do gnero e outros, tudo isso comunica uma conveno que deve ser entendida e respei-tada, e isso e no a promoo da verossimilhana que, em geral, se atribui ao Renascimento que tem um papel fundamental na organizao das relaes entre espetculo e pblico. Da mesma maneira, das pequenas figuras da histria de Griselda no se esperar que elas respeitem a verossimilhana, que seus cor-pos estejam de acordo com as propores de corpos humanos ou que o espao seja ocupado de maneira a respeitar as leis da fsica. Esses corpos so tambm dispostos de acordo com esses mesmos lugares comuns, as mesmas regras de organizao que nos permitem compreender a histria que narrada. somente porque compreendemos como a histria contada (sua forma) e este o caso dos Spannocchi e de seus convidados que somos capazes de compreender o que nos contado, ou seja, o contedo da narrativa.

    Nos painis pintados, vimos que as figuras com corpos disformes ou torcidos conduziam-nos a imaginar a concluso de movimentos. Diante de uma cabea virada fortemente para a direita, por exemplo, imaginamos que o corpo dever acompanhar esse direcionamento para que o movimento esteja completo. Esses movimentos so percebidos como sendo necessrios ou obrigatrios de acordo com as convenes que esto na base dessa tenso. Joga-se com a forma e com as convenes, e a conveno, e no o real, que informa o espectador de como deve ser a imagem de uma figura humana. Toda deformao dessa forma esperada produz uma tenso, um desejo de atingir a forma convencional, a forma conhe-cida, na qual poderemos relaxar tendo atingido nossa expectativa. Da mesma maneira, na Virginia, toda frustrao de expectativa produz tenso e conduz-nos a buscar a concluso de movimentos que so percebidos como obrigatrios para que se mantenham as regras gerais de funcionamento do conjunto. Se o que es-peramos uma estrofe em ottava rima, mas encontramos uma terzina, torna-se necessrio, de alguma maneira, preencher essa falta. No caso do primeiro ato, essa falta constri o tempo da festa que se anuncia para a sequncia, mas que no ser encenada. Nos dois casos, nos painis e na pea, porque os autores partilham um mesmo cdigo com o pblico, que o respeito a esse cdigo ou a sua perverso so eficazes.

    Tanto os painis quanto a Virginia possuem mecanismos de forjamento do espao-tempo com participao ativa dos espectadores. Nos painis, os espec-tadores so responsveis pela prpria ordem da narrativa, enquanto na Virginia estabelecem a correlao entre o tempo da performance e o tempo dos eventos

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    contados. Na srie da Griselda, a passagem do tempo se d a partir de uma mul-tiplicidade de mecanismos plsticos, numerosos em cada um dos painis, mas variveis de um painel a outro. Poderamos mencionar, por exemplo, a progresso da esquerda para a direita, a passagem dos planos mais recuados para os planos mais prximos, as tenses de movimento que remetem o espectador em direo a uma cena adjacente e as formas circulares que no nos permitem a permanncia do olhar sobre uma nica figura. O fato mesmo de que haja tantas formas de orga-nizao da narrativa no tempo cria uma multiplicidade de temporalidades que no se organizam a no ser sob o olhar de algum que busque dar-lhes uma ordem.

    Os mecanismos de tempo na Virginia visam, sobretudo, indicar a passagem do tempo durante a ausncia de aes visveis em cena. A imaterialidade do tempo tambm ganha concretude por meio da voz de um personagem que, em seu mo-nlogo, anuncia que um ano se passou. Tanto a como nos painis, o tempo no existe a no ser que seja instaurado na percepo dos espectadores, seja durante o ato de observao da pintura, seja quando durante a performance da pea teatral.

    Se o movimento, como j se afirmou anteriormente, fundamental para a instaurao do tempo, evidente que dele tambm depende a criao do espao. O espao contnuo dos painis encontra paralelo no espao da performance da Virginia, em que, muito provavelmente, a separao entre os diferentes espaos nos quais se desenvolvem as aes depende fortemente de indicaes textuais, o que nos mostra que o cenrio era mnimo ou pouco especfico. Cabe, portanto, ao espectador, para alm das informaes visuais, fazer a separao dos espaos e localizar assim cada uma das cenas. Aqueles que veem os painis devem com-preender que a casa dos pais de Griselda no ao lado do palcio do marqus e que o cortejo, no terceiro painel, no est passando logo atrs das arcadas sob as quais se d o banquete. Da mesma maneira, na Virginia, so os personagens que nos contam onde estamos, na casa de quem, se estamos em rea interna ou externa. Cabe a ns organizar os espaos e compreender como a narrativa, o espao e o movimento articulam-se a cada momento.

    Tanto para a constituio do espao e do tempo como para conectar as aes que fazem avanar a narrativa na Virginia e nos painis da Griselda, emprega-se aquilo que chamamos aqui figuras de transio narrativa. Essas figuras huma-nas, que preenchem espaos entre cenas nos painis e so personagens sem ao transformadora da narrativa, servem para conduzir o espectador em direo a outro lugar seja no espao, seja no tempo. A presena dessas figuras , de fato, o melhor exemplo dos limites da ideia de representao, posto que elas no se limitam a re-presentar ou re-tomar uma existncia que lhes externa. Antes de serem figuras humanas, esses personagens so prioritariamente formas, isto

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    , elementos formais que atuam na organizao da narrativa. Eles possuem, por exemplo, a mesma funo da pontuao nas lnguas modernas ou da mtrica e da diviso em estrofes no texto potico. Dizer que essas figuras so representaes de figuras humanas ignorar sua existncia formal no interior seja dos painis da histria de Griselda seja na Virginia.

    O que esperamos ter mostrado com a anlise dos painis e da Virginia e com esta breve comparao entre os dois que os objetos, ao mesmo tempo que se inserem em uma lgica mais geral determinada pelas convenes de gnero, no ganham sentido a no ser no ato da recepo por um certo pblico. O sentido no est, portanto, contido no objeto; ele se encontra na dialtica entre objeto e espectador. A recepo que se tinha desses objetos dependia, consequentemente, de um evento, do encontro entre objeto e espectador em um dado momento.

    Recebido: 20/05/2011 Aprovado: 05/08/2011.

  • 216 Revista de Histria, So Paulo, n. 165, p. 193-215, jul./dez. 2011

    diogo Rodrigues de BaRRoS. Boccaccio em movimento...