blimunda - do nome e dos olhos

1
1 Textos Informativos Complementares Expressões Português 12.° ano EXP12 © Porto Editora SEQUÊNCIA 4 Blimunda: Do nome e dos olhos Segundo uma larga tradição filosófica, filológica e mística, o nome reflete as qualidades essen- ciais da pessoa, pois encerra e reflete o poder mágico da palavra, que evoca e recorda. Em Blimunda ressoa essa estranha linhagem de mulheres de nomes gerúndios, conforme nos lembra Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Com efeito, a sua origem etimológica remete- -nos para o olhar (“Blenda” – legar, deslumbrar), e são os olhos que fazem o seu retrato de mulher excecional. Blimunda em O Memorial ritualiza o ato primordial, o momento mágico da criação, fazendo os seus olhos significar: “[…] olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver” – grita-lhe” a mãe, com os olhos, no momento da condenação. Da palavra para os olhos de Blimunda que leem o mundo às mãos de Baltasar que o (re)criam, a demanda, no romance, faz-se em torno do grande mistério: a criação e o seu sentido. É uma busca que promove a viagem de olhares cruzados: de Blimunda e o seu olhar, de Baltasar e o seu “fazer”, do saber de padre Bartolomeu Lourenço e da música de Domenico Scarlatti. Mas, o romance vinca, sobretudo, a enamorada atração que une olhos e mãos (de Blimunda e Baltasar), transfigurando-as nas ações de ver, moldar, nomear e criar, corporizadas na Passarola. Como se processa essa criação? […] Em Blimunda, deparamos com a apoteose da visão de abrangência e de profundidade. Com- pelida pela obsessão do olhar, Blimunda, repousando os olhos no corpo dos outros, capta as von- tades, isto é, a Sabedoria […]. É isso que Blimunda fará até à exaustão, nomeadamente, em dois momentos cruciais: a procis- são do Corpo de Deus e durante o tempo da epidemia de morte que grassou em Lisboa. Esses episódios evidenciam os contrastes entre religiosidade e superstição, sagrado e profano, dentro e fora, numa excedência do olhar, fazendo crescer aos nossos olhos os olhos eleitos de Bli- munda. Eleitos, porque marcados, estranhos: “Eu posso olhar por dentro as pessoas”, diz Blimunda a Baltasar num dos momentos de (re)conhecimento. […] José Saramago fez do olhar, neste romance, o motor do conhecimento que há de levar à construção da passarola. Blimunda, enfim preparada, começa a vincular, a fixar vontades, algoz e vítima de uma vio- lência suplementar imputada à experiência auroral e ingénua do olhar. É assim que ela, ladra de vontades, inicia uma peregrinação de quase morte […]. Repousando o seu olhar sobre o existente, o mundo é pesquisado. Se de um lado ela apreende o cosmos, do outro ela apreende as intrincadas relações que fazem interagir quer biológica, quer psicológica, quer sociologicamente, o homem, simbolizado na vontade. Apesar de a criação da passarola ser, como vimos, comprometimento dos vários sentidos, é a visão que orienta. A visão é a trajetória do olhar ingénuo ao olhar atento, que especula. E é neste ponto que a criação se inaugura, no desafio de figurar a filosofia da visão: logos viajante que busca expansão na mente criadora. Olhar que sentindo conhece, conhecendo exprime, exprimindo forma a passa- rola. Por isso, o olhar de Blimunda orienta-se magicamente, nos dois sentidos: depende das coisas e nasce lá fora, no proscénio do mundo, mas também depende do sujeito que vê, nascendo nele. Não esqueçamos que Blimunda viu, pela primeira vez, na barriga da mãe. MADRUGA, Maria da Conceição, 1998. A paixão segundo José Saramago. Porto: Campo das Letras

Upload: inescorreia

Post on 25-Sep-2015

221 views

Category:

Documents


9 download

DESCRIPTION

Exp12 PortuguêsTexto informativo sobre Blimunda

TRANSCRIPT

  • 1Textos Informativos ComplementaresExpresses Portugus 12. ano

    EXP1

    2 Porto Editora

    SEQUNCIA 4

    Blimunda: Do nome e dos olhosSegundo uma larga tradio filosfica, filolgica e mstica, o nome reflete as qualidades essen-

    ciais da pessoa, pois encerra e reflete o poder mgico da palavra, que evoca e recorda.Em Blimunda ressoa essa estranha linhagem de mulheres de nomes gerndios, conforme nos

    lembra Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Com efeito, a sua origem etimolgica remete--nos para o olhar (Blenda legar, deslumbrar), e so os olhos que fazem o seu retrato de mulher excecional. Blimunda em O Memorial ritualiza o ato primordial, o momento mgico da criao, fazendo os seus olhos significar: [] olha s, olha com esses teus olhos que tudo so capazes de ver grita-lhe a me, com os olhos, no momento da condenao.

    Da palavra para os olhos de Blimunda que leem o mundo s mos de Baltasar que o (re)criam, a demanda, no romance, faz-se em torno do grande mistrio: a criao e o seu sentido. uma busca que promove a viagem de olhares cruzados: de Blimunda e o seu olhar, de Baltasar e o seu fazer, do saber de padre Bartolomeu Loureno e da msica de Domenico Scarlatti.

    Mas, o romance vinca, sobretudo, a enamorada atrao que une olhos e mos (de Blimunda e Baltasar), transfigurando-as nas aes de ver, moldar, nomear e criar, corporizadas na Passarola.

    Como se processa essa criao? [] Em Blimunda, deparamos com a apoteose da viso de abrangncia e de profundidade. Com-

    pelida pela obsesso do olhar, Blimunda, repousando os olhos no corpo dos outros, capta as von-tades, isto , a Sabedoria [].

    isso que Blimunda far at exausto, nomeadamente, em dois momentos cruciais: a procis-so do Corpo de Deus e durante o tempo da epidemia de morte que grassou em Lisboa.

    Esses episdios evidenciam os contrastes entre religiosidade e superstio, sagrado e profano, dentro e fora, numa excedncia do olhar, fazendo crescer aos nossos olhos os olhos eleitos de Bli-munda. Eleitos, porque marcados, estranhos: Eu posso olhar por dentro as pessoas, diz Blimunda a Baltasar num dos momentos de (re)conhecimento.

    [] Jos Saramago fez do olhar, neste romance, o motor do conhecimento que h de levar construo da passarola.

    Blimunda, enfim preparada, comea a vincular, a fixar vontades, algoz e vtima de uma vio-lncia suplementar imputada experincia auroral e ingnua do olhar. assim que ela, ladra de vontades, inicia uma peregrinao de quase morte [].

    Repousando o seu olhar sobre o existente, o mundo pesquisado. Se de um lado ela apreende o cosmos, do outro ela apreende as intrincadas relaes que fazem interagir quer biolgica, quer psicolgica, quer sociologicamente, o homem, simbolizado na vontade.

    Apesar de a criao da passarola ser, como vimos, comprometimento dos vrios sentidos, a viso que orienta.

    A viso a trajetria do olhar ingnuo ao olhar atento, que especula. E neste ponto que a criao se inaugura, no desafio de figurar a filosofia da viso: logos viajante que busca expanso na mente criadora. Olhar que sentindo conhece, conhecendo exprime, exprimindo forma a passa-rola. Por isso, o olhar de Blimunda orienta-se magicamente, nos dois sentidos: depende das coisas e nasce l fora, no proscnio do mundo, mas tambm depende do sujeito que v, nascendo nele. No esqueamos que Blimunda viu, pela primeira vez, na barriga da me.

    MADRUGA, Maria da Conceio, 1998. A paixo segundo Jos Saramago. Porto: Campo das Letras