blimunda # 49 - junho de 2016

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    Mas quando todas as luzes dapennsula se apagaram ao mes-

    mo tempo, apagn lhe chamaramdepois em Espanha, negrum numaaldeia portuguesa ainda in-

    ventadora de palavras, quandoquinhentos e oitenta e um milquilmetros quadrados de ter-ras se tornaram invisveis naface do mundo, ento no hou-ve mais dvidas, o fim de tudochegara.A Jangada de Pedra

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    44 anos a

    trabalhar pelacultura

    Editorial

    6LeiturasSara Figueiredo

    11EstanteAndreia Brites

    Sara Figueiredo Costa

    17No vai tergolpe, j teve

    golpeSara Figueiredo Costa

    31A Casa daAndra

    Andra Zamorano

    36Os Livros do

    Desassossego:Laborinho

    Lcio

    46Entrevista:

    Marina

    ColasantiAndreia Brites

    61And the

    winner is...Andreia Brites

    62Visita guiada:

    D. QuixoteAndreia Brites

    80Espelho Meu

    Andreia Brites

    84Saramaguiana:Sou um gritode dor e in-

    dignaoPilar del Ro entrevista

    Jos Saramago

    100

    Saramaguiana:Saramago edi-tor de RaulBrando?

    Vasco Rosa

    112Agenda

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    H quatro anos, numa tentativa de preencher um pouco o enorme vazio deixado pela ausncia de Jos Saramago,

    nasceu a revista Blimunda. Desde aquele 18 de junho de 2012, oferecemos mensalmente aos nossos leitores uma

    publicao que tem os livros como protagonistas, mas que tambm d destaque a muitos outros assuntos que envolvem

    a cultura, no s em Portugal mas tambm em muitos outros pases.

    Nos 49 nmeros j editados, a revista viajou para lugares como Bogot, Macau, Xalapa, Barcelona, Madrid, Segvia,

    Lanzarote, Ponta Delgada e Cidade do Mxico. Abordou assuntos to diversos como msica, futebol, dana, fotografia,

    artes plsticas, exposies, viagens, cinema. Nas suas pginas dedicou-se espao a grandes nomes da literatura universal

    como Carlos Fuentes, Gabriel Garca Mrquez, Julio Cortzar, Jorge Amado, Clarice Lispector,

    Gnter Grass, Herberto Helder, Eduardo Galeano, Miguel de Cervantes, Fernando Pessoa, Alberto

    Manguel, Mempo Giardinelli, Sophia de Mello Breyner e Agustina Bessa Lus. As novas geraes

    tiveram lugar de destaque ao longo destes quatro anos. Entre muitas e muitos outros, tivemosconnosco Bruno Vieira Amaral, Matilde Campilho, Juan Gabriel Vsquez, Andrea del Fuego, Ricardo

    Arajo Pereira, Valter Hugo Me, Afonso Cruz, Julin Fuks, Ondjaki e Srgio Rodrigues. A Blimunda

    foi tambm espao para conversas com fotgrafos, editores, realizadores, ilustradores, crticos

    literrios, investigadores e personalidades das mais variadas reas numa perspetiva de construo

    de um mosaico da cultura do passado e do presente.

    Desde o nmero 1 a revista reserva uma seco especial, a Saramaguiana, ao escritor que, entre tantas outras

    personagens, criou a protagonista de Memorial do Convento. Blimunda, a valente e encantadora mulher que colecionava

    vontades e via o interior das pessoas, tornou-se tambm revista. Quando em 2007 criou a fundao que leva o seu nome,

    Jos Saramago manifestou o desejo de que esta, mais do que girar em torno da sua obra, trabalhasse pela cultura e pela

    lngua portuguesa. A criao da revista Blimundavai ao encontro dessa vontade do escritor, que tem e sempre ter um

    lugar especial nas nossas pginas e nos nossos coraes.

    4 anos a

    trabalhar

    pela

    cultura

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    Blimunda 49

    junho 2016

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIOEREDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    REVISO

    Rita Pais

    DESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da LicenaCreative Commons

    GONALO VIANA

    Onde estamos Where to find us

    Rua dos Bacalhoeiros, Lisboa

    Tel: ( 351) 218 802 040

    www.josesaramago.org

    [email protected]

    COMO CHEGAR GETTING HERE

    Metro Subway

    Terreiro do Pao

    (Linha azul Blue Line)Autocarros Buses

    25E, 206, 210, 711, 728, 735,

    746, 759, 774, 781, 782, 783, 794

    Segunda a Sbado

    Monday to Saturday

    10 s 18h / 10 am to 6 pm

    FUNDAOJOS SARAMAGOTHE JOS

    SARAMAGOFOUNDATIONCASA DOS

    BICOS

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    Edio vs negcio?

    O blog da editora brasileira Companhia das

    Letras publica regularmente textos doseditores da casa e um dos mais recentes deLuiz Schwarcz, sobre o mercado editorial e assuas recentes transformaes. O editor traaum panorama cronolgico sobre a histriado livro e a criao daquilo a que chamamosmercado, avanando depois para uma reflexosobre o difcil equilbrio entre a necessidadede alimentar as regras desse mercado e avontade de continuar a fazer livros com ocuidado, a dedicao e o tempo que eram

    regra at h umas dcadas. Jogo jogado,como se diz, fao parte desse mundo, nome isento de responsabilidade e no tenhonada a reclamar dos valores comerciais queregem minha profisso. Creio que as tcnicasmercadolgicas ou empresariais so um dadodo mundo em que vivemos, e no h comoescapar delas, se quisermos sobreviver e atmesmo criar. H brechas e incentivos que oprprio crescimento industrial traz, e para o

    bem. Mas quando a competio toma conta dasrelaes de forma totalitria, apaga sentidos etradies importantes, principalmente no quese refere a laos que envolvem pessoalidadee individualidade e so parte fundamentalna produo de um livro. uma pena. O quevivemos hoje a contaminao majoritria, oua disputa entre ambientes produtivos (aindafundados em relaes de intimidade familiar ou

    amorosa) e a vontade hegemnica de valoresexclusivamente comerciais.Consciente da impossibilidade de recuar, edefendendo um equilbrio que deveria sercaracterstica de um mercado cujos benscomercializados no deixam de ser especiais, namedida em que se relacionam com a cultura, aidentidade, o pensamento e a criao, Schwarczremata: No mundo ideal deveria haver espaopara todo tipo de amor aos livros, seguindo avelha cano que dizia qualquer maneira deamor vale a pena. Num mundo que luta pelaaceitao da diversidade, onde ficam os livrosfora da norma, os livros cujo tempo lento, mas

    que tanto tm a nos dar? De toda forma este um caso complexo, por estarmos pensando numproduto, num comrcio, no qual as discusses sedo no mbito do mundo dos negcios e no emfruns polticos e sociais. As regras so ditadaspelo mercado, onde todos temos cada vez maispressa, e a pressa, me permitam o trocadilho, ainimiga da edio.

    Os refugiados e a xenofobia

    Na revista , do jornal argentino Clarn,um artigo de Zygmunt Bauman reflete sobrea questo dos refugiados e o modo como aEuropa tem lidado com esta massa desordenadade pessoas que foge da guerra e da misria

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    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    LEITURAS DO MS

    LUIZ SCHWARCZ

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    para, tantas vezes, acabar por morrer noMediterrneo, com a miragem salvadora daEuropa a esfumar-se diante dos olhos. A reflexode Bauman centra-se nas reaes xenfobas quetm sido registadas em tantos pases e procuramanalisar as suas razes, quase sempre prvias chegada dos refugiados.Para los marginados que sospechan habertocado el fondo, el descubrimiento deotro fondo por debajo de aquel en que seencuentran es un acontecimiento salvfico,que redime su dignidad humana y rescata loque sobrevive de su autoestima. La llegada de

    una masa de inmigrantes sin techo, privados dederechos humanos, crea, no slo en la prcticasino tambin en la letra de la ley, una (rara)oportunidad para que dicho acontecimientoocurra. Esto parece explicar bastante bien lacoincidencia de la reciente inmigracin masivay la suerte favorable de la xenofobia, el racismo,las versiones chovinistas de nacionalismo unxito electoral tan asombroso como indito delos partidos y movimientos xenfobos, racistas ychovinistas, y de sus lderes ultranacionalistas.Mais adiante, contextualiza as reaes de muitoseuropeus, colocando a questo dos refugiadosno quadro mais amplo que caracteriza ummundo em convulso, lidando com a escassezde certos recursos e com as guerras, em curso eanunciadas:Los refugiados, como expresa agudamenteJonathan Rutherford, transportan las malas

    noticias desde un remoto lugar del mundohasta la entrada de nuestras casas. Noshacen advertir, y nos recuerdan siempre, loque querramos olvidar o, mejor an, lo quepreferiramos que desaparezca: fuerzas distantes,globales, a veces mencionadas pero mayormentedesapercibidas, intangibles, oscuras, misteriosasy de ardua comprensin, lo bastante poderosaspara interferir en nuestras vidas, desconociendonuestras propias preferencias. Sin embargo, lasvctimas colaterales de esas fuerzas suelen servistas, siguiendo una perniciosa lgica, como lavanguardia de aquellas fuerzas que ahora hacen

    sus cuarteles entre nosotros. Estos nmades, nopor eleccin sino por el veredicto de un crueldestino, nos hacen pensar, de manera irritante,exasperante y terrible, en la (incurable?)vulnerabilidad de nuestra propia posicin y en laendmica fragilidad de nuestro arduo bienestar.Es un hbito humano, demasiado humano,culpar y castigar a los mensajeros por los odiososcontenidos del mensaje que llevan: desde esasincomprensibles, inescrutables, temibles yrectamente repudiadas fuerzas globales, quepara nosotros son las responsables de nuestrahumillante incertidumbre existencial, y quehacen pedazos nuestra autoestima, nuestrasambiciones, sueos y proyectos de vida. Yaunque no podemos hacer casi nada pararefrenar las fuerzas elusivas y remotas de laglobalizacin, al menos tenemos la posibilidadde desviar el enojo que nos han causado y siguen

    causando, para descargar nuestro enojo, demanera vicaria, en sus productos ms tangibles.Esto no podr alcanzar, ni remotamente, lasraces del problema, pero podr aliviar demanera transitoria la humillacin de nuestradesgracia y de nuestra incapacidad para resistirla precariedad de nuestro lugar en el mundo.

    O Ohio de Donald

    Ray PollockA jornalista Isabel Lucas tem andado pelosEstados Unidos da Amrica, escrevendo sobrelivros e escritores, mas tambm sobre cultura,identidade, conflitos. No Pblicodo dia 5 deJunho, assinou um texto sobre o Ohio, tendoo autor Donald Ray Pollock como guia. Doisexcertos:A viagem comea com um cu negro quepode ficar assim durante dias, semanas, diz

    Donald Ray Pollock, e no Inverno ainda maisnegro, adianta. Suporto bem o frio, a neve,mas dias seguidos desse cu escuro deixam-me louco. Est ao volante num percurso quesabe de cor, marcado pelo tal contraste entreser-se cosmopolita no Ohio e ser-se do campotambm no Ohio, um estado que comeou porser povoado por nmadas. Isso pode explicar

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    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    LEITURAS DO MS

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    alguma coisa sobre este lugar, sorri. Eu sou docampo. No me vejo a viver numa cidade grande,seria incapaz, confessa. Nada na expresso,no tom de voz, nos olhos vivos e infantis sobos culos de aro fino revela qualquer trao dotsunami literrio do mal mais puro, como lhechamou o escritor Robert Goolrick no WashingtonPost quando publicou Sempre o Diabo, o romanceque confirmou a mestria narrativa dos contos deKnockemstiff.Para Pollock, ser do campo uma condio,requer uma linguagem prpria, um cdigo ques quem partilha dessa experincia reconhece,tenta definir, e que no nem melhor nem

    pior do que o da cidade, continua, referindo ossilncios, os olhares de soslaio, uma capacidadede perdio que tem mais que ver com o tempodo que com a geografia. uma demora sem queisso nunca se sinta enquanto tal, exemplifica. E o ouvido, coscuvilheiro ou detector de sinais como os passos na gravilha da estrada em frente,um grito ao longe, um ladrar fora de horas. E aindaencontrar conforto na solido. Acho, sobretudo,que sentir que se pertence a um stio e semele sermos incapazes de nos reconhecermos,

    concretiza, afirmando que longe de casa noconsegue escrever. A comdia humana vistapelo seu lado mais trgico da escrita de Pollock tudo o que a sua geografia contm e apenasconsegue viver nesse territrio. Fora dele,confirma a sua dimenso literria.

    Em Bucareste

    Na sua crnica do Babelia, suplemento cultural

    do dirio espanhol El Pas, Antonio Muoz Molinaescreve sobre uma viagem recente a Bucareste esobre o modo como os livros que lemos definemto fortemente as viagens e a descoberta de cadalugar:Yo vena con mis lecturas, sobre todo las de losdiarios de Mihail Sebastian y los libros de NormanManea, y con el recuerdo de mis conversacionescon l, y tambin el de una novela rara y en partefallida de Saul Bellow, El diciembre del decano. Enlos diarios de Sebastian est la Bucarest afrancesa

    y art dco de los aos treinta que poco a pocose transforma en el escenario de una pesadilla; lahermosa ciudad de cafs y caminatas con amigosa altas horas de la noche sumergida de un dapara otro en una negrura de disidentes y judosperseguidos y delatores y pistoleros fascistas.Bellow, que estuvo en Bucarest hacia 1980,cuando todava duraban las ruinas del terremotode 1977, dibuja una ciudad de fachadas en ruinas,de marrones y grises que derivan al negro en

    anocheceres luctuosos a las tres de la tarde. ParaNorman Manea, Bucarest es la ciudad del miedoen los aos de Ceausescu, la capital todava llenade bellezas pasadas de su primera juventud, laciudad reconocida y a la vez extranjera a la quevolvi despus de muchos aos de exilio.

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    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    LEITURAS DO MS

    DONALD RAY POLLOCK

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    As relaes entre a Galiza e Portugal soantigas, fundadas em razes culturais comuns

    e num dilogo que, com muitas interrupese alguns mal-entendidos, foi sendo mantidoao longo dos sculos. Carlos Quiroga, escritor,professor de filologia na Universidade deSantiago de Compostela e editor tem sido,na contemporaneidade, um dos agentes maismilitantes desse dilogo e o livro que a Atravsagora publica exemplo claro dessa dedicao.A Imagem de Portugal na Galizaresulta deum convite para a colaborao do autor noprojeto Portugal segundo os Pases e Naes daLusofonia. Um Quase Dicionrio, lanado em2013 sob a coordenao de Ana Paula Tavares eJos Eduardo Franco. A incluso da Galiza nestevolume ser tanto mais natural quanto maiorfor a conscincia de ser a Galiza um territriointegrado no espao a que chamamos lusfonopor direito prprio, mesmo no sendo umdado adquirido em todo o universo cultural eacadmico. A ressalva importa tanto mais quantoa discusso sobre a identidade nomeadamente

    a lingustica galega tem passado por estetpico, mesmo no podendo escamotear-se quea assuno do galego no espao da chamadalusofonia no ser pacificamente aceite de modouniversal. nesse espao e nessa posio que seinsere o volume agora publicado por CarlosQuiroga, um pequeno livro a traar um longoarco cronolgico, contextualizando a histria

    da Galiza e assinalando, em cada momento,as pontes com Portugal. Dos mais antigosvestgios histricos e documentais partilhadospor ambos os territrios a uma atualidade ondea vizinhana pacfica, mas nem sempre muitodialogante, o autor passa pela lrica galaico--portugesa, pelos chamados sculos escuros(quando comea o domnio castelhano na

    Galiza e o galego relegado para um estatutode lngua familiar e socialmente desprestigiada)

    ou pelo ressurgimento, alcanando umpresente onde o galego tem uma grafia prpriae distinta do portugus, afastando-seirremediavelmente de um tronco comumque a histria atesta e vai testemunhandoao longo do tempo. Nem s de lngua se falaneste volume, ainda que esta seja elementoinevitvel num ensaio desta natureza. Arepresentao de Portugal e dos portuguesesna literatura popular galega, no teatro ou noslugares-comuns do quotidiano analisada commincia, sempre cruzando essa anlise como contexto histrico e cultural. Do mesmomodo, os momentos em que as grandesaproximaes culturais entre ambos osterritrios so notrias com o ressurgimentoou com a Gerao Ns, j no sculo XX soapresentados com detalhe, servindo o seuexemplo como reflexo aprofundada para umarelao que, de acordo com a viso do autor,tinha todas as condies para ser muito mais

    intrnseca do que na realidade, no fossem asvoltas da histria poltica.A Imagem de Portugal na Galiza uma boasntese de uma histria comum, mas sobretudouma reflexo bem documentada sobre o quePortugal representou e representa e, muitasvezes, sobre o que poderia representar parauma comunidade cuja identidade no tem comodesligar-se do territrio imediatamente a sul.

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    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    LEITURAS DO MS

    A Imagem de Portugalna Galiza

    Carlos QuirogaAtravs Editora

    Separados nascena

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    Onde est a minha me?

    Antnio Mota, ilust. Sebastio PeixotoAsaFbula sobre a descoberta do mundo, o maisrecente ttulo de Antnio Mota continua adiscorrer sobre os pequenos detalhes danatureza. Neste livro, dois irmos coelhos tomamuma deciso arriscada que os leva a sair da tocae explorar os campos em redor. A famlia e ocrescimento tm aqui nova verso singela, destafeita sem a carga violenta que muitas vezes estpatente na obra do autor.

    Cinco Esquinas

    Mario Vargas LlosaQuetzalUm romance que reflete sobre o poder, nas suasmltiplas formas, e sobre o modo como estedefine a vida dos indivduos e da comunidade.Fortemente marcado pelo amor e pelo erotismo,a narrativa de Vargas Llosa acompanha oquotidiano da sociedade peruana nos anos emque Alberto Fujimori governava o pas.

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    Marco Paulo a Minha Religio

    Pepedelrey e Joo TrcioEl PepBandas desenhadas de Pepedelrey e Joo Trcioem torno do universo musical do cantor MarcoPaulo. O conjunto das narrativas breves assumea pardia a partir das letras das canes e daiconografia a elas associadas, acabando porcompor um quadro que reflete os lugares--comuns e as referncias partilhadas de umacerta cultura portuguesa contempornea.

    Cheguei atrasado escola

    porque...Davide Cali, Benjamin ChaudOrfeu Negro

    Sequela de No fiz os trabalhos porque..., estenovo lbum mantm o mesmo sentido de humor,elencando incidentes absurdos e totalmenteinverosmeis para justificar uma falta comum.Todavia, h que acrescentar que os dilogosintermitentes com a professora surpreendempela convico do protagonista.

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    Jacky Ha-Ha

    James Patterson, Chris GrabensteinBooksmileEsta nova srie de James Patterson, autordo best-sellerEu cmico, acompanha umaadolescente de doze anos na sua rotina familiarrodeada de irms e no seu quotidiano escolare social. A protagonista tem por caractersticauma incapacidade de se manter em silncioou de escolher o que diz, resultando emmomentos embaraosos e cmicos. Pareceque nem sempre o seu sentido de humor bemcompreendido.

    El encantador de saltamontes

    David G. JaraGuadalmaznO ttulo completo El encantador desaltamontes y otros ensayos sobre la historianatural de los parsitose este o livrovencedor do Prmio Casa de las Ciencias deLa Corua en 2014. Assumindo a divulgaocientfica como misso, David G. Jara escrevesobre os parasitas numa linguagem acessvel emarcada por alguns episdios caricatos, sempre luz das teorias evolucionistas.

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    Chega de Saudade. A histria e

    as histrias da Bossa NovaRuy CastroTinta da China

    Quase trs dcadas depois da sua ediooriginal, no Brasil, o livro essencial sobre ahistria da Bossa Nova, seus antecedentese respetivas consequncias na cultura e naidentidade brasileiras chega agora a Portugal.Ruy Castro escreve com ligeireza disfarada,

    j que a sua erudio sobre o tema e ostemas que com ele se relacionam imensa egenerosamente partilhada.

    Kallo Cana

    Karin BoyeAntgonaNa Sucia dos anos 30 do sculo passadonasceu uma das grandes distopias da literaturauniversal. Kallo Cana o futuro totalitrio ondea delao a prtica que sustenta a autoridadedo Estado e tambm o nome do soro daverdade criado por um cientista, mecanismoque acentuar de modo drstico a anulao doindivduo em nome da plenipotncia do Estado.

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    culado na internet, no blog do autor e na revista Vice, entre outros espaos, mas a sua compilaonum volume nico confere ao conjunto uma capacidade de refletir sobre os acontecimentos que tmmarcado o Brasil nos ltimos meses. Como explicou Sama Blimunda, foi tudo muito corrido, comexceo de alguns cartoons que eu j tinha desde 2013, quando as grandes manifestaes eclodi-

    ram no Brasil. A maior parte do material mesmo muitofresca. A BD-reportagem, Contra a Tarifa, de janeiro,sobre as manifestaes do MPL ocorridas em dezembrode 2015 e janeiro deste ano, e Foda-se, Carnaval! foimesmo feita na altura do Carnaval deste ano. Ambas fo-ram publicadas pela revista Vice. Alguns cartoons e textos

    foram notoriamente feitos para a publicao no calor dosrecentes acontecimentos da poltica do Brasil dos ltimosmeses. Estava estarrecido com as notcias e queria fazeralgo a respeito. Fui conferir o que j tinha feito e percebique tinha imenso material. E olha que muita coisa ficou defora, pois as informaes visuais, como bandas desenha-

    das, charges e cartoons ocupam muitas pginas... Decidiento usar alguns textos de pessoas que percebem bem oBrasil. As colaboraes chegaram praticamente a menosde uma semana do projecto ir para a grfica. Entre elas,contam-se textos de Carlos T, Lusa Sequeira, Joana Lopes

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    e Jos Soeiro. H ainda um texto de Noam Chomsky que,segundo Sama, no foi participado ainda... Saquei-lhe otexto de uma declarao que ele fez na televiso ameri-cana. Quanto s restantes participaes, o autor sente-se

    agradecido: S tenho boas palavras para descrever istoque aconteceu... H muito que eu e o Carlos T queramosfazer alguma coisa juntos. Pensvamos que esta primeiracolaborao seria algo para o cinema ou para a BD, maspela urgncia dos factos acabou sendo este texto meio de-sabafo, meio declarao de amor ao Brasil, que ele conhe-

    ce to bem. Com o Jos Soeiro foi um aproveitamento deuma declarao dele na sua pgina do facebook. Entreiem contacto e perguntei-lhe se poderia usar o texto noprojecto, expliquei-lhe o contexto e ele concordou, adap-tmos o texto para a publicao e voil! A querida JoanaLopes, que um prodgio a escrever sobre poltica, foi con-

    vidada por mim e prontificou-se em dar seu parecer sobreo freak show dos parlamentares brasileiros a votaremo Impeachmentda Presidente Dilma Rousseff. A cineasta e jornalista Lusa Sequeira, que conheceo Brasil como poucos brasileiros conhecem, ficou com a apresentao.Uma das histrias deNada a Temerapresenta-se como reportagem, acompanhando as ma-

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    nifestaes do Movimento Passe Livre, em So Paulo, jno incio deste ano. Contra a Tarifa segue as linhas deum trabalho jornalstico, apresentando o contexto geral,explicando os factos na origem do movimento (o aumento

    dos preos dos transportes pblicos, decidido em dezembrode 2015 pelo Governador, pelo Prefeito da cidade e pelasempresas transportadoras), analisando as consequnciasdestes factos no quotidiano da cidade e seguindo de per-to algumas das muitas manifestaes que ocuparam asruas de So Paulo. Importa dizer que Sama no cumpre a

    regra da imparcialidade jornalstica, no se abstendo decomentar o papel da polcia e da represso, aproprian-do-se de partes do discurso dos manifestantes. Uma dasmais interessantes linhas de leitura desta histria , porisso mesmo, a reflexo sobre essa ideia de imparcialidadee o modo como serve, ou no, os leitores. Que tipo de im-

    parcialidade se pode almejar quando as notcias de maiorcirculao revelam, tantas vezes, fraca informao sobre

    as manifestaes, generalizaes inaceitveis sobre o comportamento dos manifestantes, poucosdados sobre o negcio na origem do movimento? Perceber que papel pode ocupar uma banda de-senhada como esta na informao a que todos temos direito, lendo-a luz de outros movimentos

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    de informao alternativa que esto, queiramos ou no,a mudar a face da informao e do modo como esta cir-cula (a Mdia Ninja, no Brasil, um bom exemplo dissomesmo), pode ser essencial nos prximos tempos. Sama

    contou Blimunda que, para alm de teatro, estudou jor-nalismo na Faculdade Hlio Alonso, no Rio de Janeiro, faztempo, isso... Nunca tinha exercido, at agora. Ser queirei precisar da minha carteira?Contra a Tarifa , portanto, o trabalho de um jornalistacom formao, mas esse facto no faz Sama prescindir

    de uma opinio sobre os movimentos de informao quetm surgido, no Brasil como em muitos lugares do mundo, margem dos mdia tradicionais. Olha, gosto muito dainiciativa da Mdia Ninja, ainda mais considerando que asfontes oficiais no Brasil no so l muito confiveis. As mi-nhas fontes so bem diversificadas, alm de ser brasileiro

    e ir com regularidade ao Brasil, leio bastante e troco muitocom outros profissionais da rea de opinio e de jornalis-mo. Considero-me um autor de fico, mas estou a ficar cada vez mais vontade com os relatosde no fico e biogrficos. E confesso que os factos, no s no Brasil, mas de um modo geral,esto muito mais assombrosos do que qualquer fico hoje em dia... Ainda assim, o autor no

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    confunde os planos da realidade e da fico, clarificando que este livro no , todo ele, uma peainformativa, mas insistindo na importncia da informao dita alternativa numa altura em que osmdia perderam grande parte da sua independncia, to essencial: Em algumas peas, expusmetforas e tambm caricaturas da realidade urbana brasileira, mas no seu contexto geral, Nada

    a Temer o mais sincero possvel. Independentemente disto,acho que h que ter sempre cuidado com qualquer fonte deinformao nesta era em que vivemos... Existe muita infor-mao boa e ruim a circular por a. Infelizmente, cada vezmais os meios de comunicao esto a servio do capitalprivado, a publicitar pensamentos uniformizantes ao invs

    de informar ou noticiar. Recomendo a todos que, antes deaceitarem qualquer notcia de algum jornal, revista, Tv, pes-quisem e tenham conhecimento de qual grupo este veculoemissor faz parte e a quais propsitos ele serve.Sama tem desenvolvido um percurso consistente na bandadesenhada, na ilustrao e nos territrios adjacentes. De seu

    nome Eduardo Filipe, o autor publicou nas revistas Piau,Ar-gumento, General, integrou antologias internacionais, teveo seu trabalho destacado em exposies e galerias e, em2011, assinou o livroA Balada de Johnny Furaco. A versa-tilidade do seu trao notria neste ltimo livro, do detalhe

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    necessrio configurao de um espao e um contexto reconhecveis na histria Contra a Tarifa composio de pranchas mais livre, com espao para a languidez das personagens respirar emtodo o seu esplendor em Foda-se, Carnaval!, passando pelos diferentes registos, colagens, ex-perimentaes nos cartoons e nas pequenas tiras que povoam Nada a Temer.

    Usando para ttulo do seu livro a frase-slogan apropriadapor muitos milhares de pessoas para contestarem o novopresidente do Brasil, Sama coloca nestas pginas a sua voze a de muitos outros que no aceitam o impeachment, as-sumindo que o que aconteceu no Brasil foi um golpe de Es-tado. Quando se anunciou a votao do Senado brasileiro,

    o movimento No Vai Ter Golpe espalhou mensagens pelainternet, pelas ruas do Brasil e por alguns outros lugaresdo mundo onde brasileiros ou gente de outra nacionalida-de se solidarizou com aqueles que, no Brasil, no queriamo resultado que acabou por ser o da votao. Depois desemanas agitadas, poltica e socialmente, aquilo que estes

    manifestantes no hesitaram em apelidar de golpe acaboupor acontecer. De acordo com a viso de Sama, o golpej vinha ocorrendo h muito e ocorre a cada instante, noBrasil e no mundo. Ocorre nas pequenas aces, no s naoficialidade de uma troca de representante.

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    O golpe vem sendo tramado nos bastidores, o que assistimos no palco do teatro poltico s o re-sultado de um trabalho sujo de mais de meio sculo atrs. Sobre o futuro, qualquer previso mais

    especfica seria imprudente daminha parte ou de qualquer um,

    mas de um ponto de vista ma-cro podemos detectar uma ten-dncia mundial para uma fratu-ra generalizada da Democracia,caso esta continue subjugadapela poltica neoliberal, imposta

    por um poder econmico amoral,amorfo e quase abstrato. Comocitei antes, os atores esto a arepresentar seus papis: pasto-res, juzes, advogados, polticos,empresrios, etc. ... Mais eficien-

    te do que substitu-los, comba-ter aquilo que os corrompe, quenos corrompe a todos ns. Jteve golpe, mas continua de pa vontade de o interromper.

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    Nada a Temer uma pgina de Facebookcriada por um coletivo de ilustradores e autores de banda de-

    senhada brasileiros. Na sequncia do impeachment que retirouDilma Rousseff da presidncia da Repblica do Brasil, substi-tuindo-a por Michel Temer, dezenas de outros ilustradores e au-tores de banda desenhada tm partilhado nesta pgina os seustrabalhos sobre o assunto, apelando partilha das imagens ea novas colaboraes. Seleccionmos alguns desses trabalhosnas pginas que se seguem.https://www.facebook.com/nadaatemer2/info/?tab=page_info

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    8 J U N H O , L A R I S S A R I B E I R O 2 3 M A I O , F E R N A N D A O L I V E R

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    2 J U N H O , Z A N S K Y

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    1 8 M A I O , M A R C E L O D ' S A L E T E 1 J U N H O , J S S I C A B O Z Z I

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    4 J U N H O , R E N C O R I N I D ' A G O S T O 2 5 M A I O , G A R C E Z

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    A N D R A Z A M O R A N O

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    A C A S A D A A N D R A

    DOQUENOFUICULPADA

    Todaagravidadedouniversomemantinhacoladaaocolcho.Tenteimoverasminhaspernas,osmeusbraosenadaacontecia.Sabiaestarvivaporsercapazdeouvirosmeuspensamentosentorpecidos,iammedizen-dopara sairdali. Sentia opdochoaentrar pelasnarinas easmolasdesgastadasdocolchoperfuravamomeucorpoabandonado.Meusolhosrasteirospercorriamadivisoembuscadovazio,desejandoquetudoes-tivesseterminadoepudesseficaraliquieta,imvelcomapoeira,asmolasvelhaseaescurido.

    Ouviumclique.Amsica eletrnica invadiupor segundoso cubcu-lo,foideimediatoabafadapelalmpadatmidaqueseacendeuquandoaportavoltouafechar.EnormesStanSmithsustentandotornozelosmagrosmecercaram.Arodadetnisabriu-seligeiramenteevicrescernaminhadireoumasoladesapatoondeseliamadeinitaly,semhesitaralcanouomeurosto,pisouoossodaminhabochechacomforacontraocolcho

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    A C A S A D A A N D R A

    cmplice,repetiaummantrainterminveldeinsultos.Meusolhosfecha-ram-se,jnohavialgrimasparachorar.Osapatoitalianoentodecidiumostraraostniscomoviraromeucor-po,enfiandoocaladoporbaixodomeuombroeempurrando-o.Todoscompreenderam.Emconjuntoexecutaramaoperaocomsucesso,cadaumchutandoumbocadodocorpoaomesmotempo.Opedaodecarnejacentefoiviradodebarrigaparacima.Jtantomefaziaasortedeobjetosqueenfiariamdaquelav

    ezpelami-nhavag

    inaadentro,atumdosAdidasseagacharaomeuladoe,comasduasmos, obrigar-meaabrir abocaapertandoomeurostoesmagadocomospolegareseosmdios.Imaginei-meoutravezengolindoosmendealgumdeles.Osapatousouasmosparaabrirozperdascalas,deladodedentro saiuumpnisflcido, segurou-o epaciente explicouaospupiloscomonofalharemoalvo.Urinouparaaminhaboca.Olquidoquentee ftidoinundouaminhacavidadebucal,derramou-sepelomeurosto.OsAdidasficaramdesmedidamenteexcitados,ouviram-seurrosdevitriaedecelebrao.Decidiramcopiarolderdamatilha:puseram-sea

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    A C A S A D A A N D R A

    urinarparaomeurosto,apontariaaindaestavalongedaperfeio;

    outros

    apenassemasturbavam.

    Catatnica,preferisubmergirnoexcremento.Fuiinundadaporumale-

    vezasalina,meucorposeentregava,apercebi-mequeporfimestava

    acon-

    seguirmorrer,iameafogarnaureia.Estavaenganada.Algumme

    agar-

    roupelacintura,obrigando-measentarcurvadaparaoladodocol

    cho.

    VomiteitudoparacimadeumdosStanSmith.Enquantotodosriam

    ,fa-

    zendotroadoprejuzoqueojorrodemijo,Rohypnolelcoolhav

    iafeito

    numdosAdidas,oinjuriadochutoudebaixopa

    racimaacabeaquepen-

    diadomeu corpo inerte.Comaviolncia,meu rostofoiprojetadopara

    trsejuntocomeleumdentequesaltoumuitoaltodaminhaboca

    .Mais

    gargalhadasseescutaram.Osapatopediuparanomaltrataremal

    mdo

    necessrio,noagradvelesfregaropnisnumafaceensanguenta

    da.

    precisonodestruiroobjetoquesemanipula.

    Naquelemomento,osapatoconvocouosseusconfradesparaqueem

    comunhomepenetrassemaomesmotempo.Arrastaram-medocol-

    choeestenderamomeucorponumabancadaansiosa,tiraramas

    indis-

    pensveisselfies aoladodosmeusorifcios a serempreenchidos:

    aboca

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    A C A S A D A A N D R A

    pertenciaaosapato;ore

    stantedocorpodeverias

    erdistribudo,osouvi-

    dos,umparacada;avaginapo

    deriaserpartilhadapord

    oispnisemsi-

    multneo;onuserapar

    aomaisvelhodogrupoeoumbigoficav

    acomo

    exerccioparaomaisjove

    m.Cadaqualaoseuritmo

    foiterminandoatare-

    fa,ospnispendiamexau

    stosnumaabominaode

    smenesangue.

    Semgritos,lgrimasouq

    ualquerresistncia,aquel

    asubstnciaocaco-

    meoualhesparecerde

    masiadoprescindvel.At

    irarammeucorpopara

    umcanto.Umc

    larodoexterior entrou

    porsegundoscomalon

    jurada

    msica,aportabateuefez-seumsiln

    cioescuro.

    Decidimorrerrpidoan

    tesqueregressassem.Semsairdomeuluga

    r,

    vomiteidenovo,fuirecup

    erandoalgumacoordena

    o,conseguimeprde

    quatro.Apalpeiochoem

    buscadeumqualquerob

    jetocomquepudesse

    melivrardemimmesma

    .Tateavanaesperanade

    algocortante,aminha

    motocounoquepareci

    aserumapernademulh

    er.Seguiapistadoseu

    corpoedescobrioutraestudanted

    esacordada.Quissalv-la

    .Pus-meen-

    todepecambaleando,

    encontreiapenasumap.Reuniopoucod

    efor-

    asemovimentosqueme

    restavam,apanheibalan

    oeacerteiemcheiona

    suacabea.Uma,duas,tr

    svezesatteracertezad

    equepelomenosuma

    densestavalivre.

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    O S L I V R O S D O D E S A S S O S S E G O

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    O S L I V R O S D O D E S A S S O S S E G O

    Jurista, professor universitrio e ex-ministro da Justia, lvaro Laborinho Lcio

    participou nosDias do Desassossegonuma mesa que teve como motea pergunta: Se a literatura salva?. A conversa, moderada pelo jornalista

    Lus Caetano e que contou tambm com a presena de Gabriela Canavilhas,

    girou em torno da ideia da experincia leitora e dos livros que marcaram avida dos convidados. Blimundae aos seus leitores Laborinho Lcio mostrou

    os livros que o desassossegam.

    F O T O G R A F I A S D E J O R G E S I L VA

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    38O Monte dos Vendavais, Emily Brnte, Relgio D'gua

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    Camilo Broca, Mrio Cludio, Dom Quixote

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    O Impostor, Javier Cercas, Assrio & Alvim

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    Ensaio Sobre a Cegueira, Jos Saramago, Editorial Caminho

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    De Profundis, Valsa Lenta, Jos Cardoso Pires, Dom Quixote

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    Adoecer, Hlia Correia, Relgio D'gua

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    d it b il i i i t t d t lid d N id

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    uma das escritoras brasileiras mais importantes da actualidade. Nascida naEritreia, em 1937, Marina viveu a sua infncia na frica colonizada e depois emItlia, pas natal da famlia, durante a Segunda Guerra Mundial. Chega ao Riode Janeiro em 1948 e nunca mais parte. O conto a estrutura de excelncia da

    sua escrita, embora o seu primeiro livro, Eu sozinha em 1968, seja de crnicas.A sua atividade jornalstica sobreps-se formao em artes plsticas mas nuncaabandonou a pintura, ilustrando algumas das suas obras. A literatura infantil chegoupor pedido. Era suposto escrever um reconto e nasceu o seu primeiro conto de fadas,

    em 1979, Uma ideia toda azul, logo distinguido com o Prmio FNLIJ. Em 1993 foia vez de Entre a Espada e a Rosae logo no ano seguinte Ana Z aonde vai voc?,que mereceram no apenas o prmio FNLIJ como o Jabuti. Com 78 anos, MarinaColasanti continua a viajar frequentemente para participar em encontros literrios.Esteve em Portugal em 2012 e contou, numa noite estival, vrios contos de fadas no

    Jardim Pblico de Beja, a convite das Palavras Andarilhas. Este ano regressou paraparticipar no II Encontro de Literatura Infanto-Juvenil da Lusofonia, no Estoril. Foi lque a Blimundaconversou com a autora. Muito afvel, sorriu sempre. Diz que o faz

    com conscincia, quando acompanhada. Sozinha, sorri pouco.47

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    Se tivesse de destacar o mais importante da sua biografia, o que seria?

    Ter nascido em frica de uma familia no africana, facto que estabeleceu uma estranheza naminha vida, uma sensao de que sempre sou o outro. Isso muito til porque no mundo somossempre o outro, ento sinto-me muito bem quando viajo. uma situao confortvel.

    uma estranheza boa?No sei se boa porque no sei o que no ser estranho, mas til.

    Escreveu recentementeA minha guerra alheia, uma biografia que retrata a suaexperincia na II Guerra Mundial. O que a levou a escrever esta biografia?

    Comecei a pensar no livro quando estava com o meu marido, Afonso Romano de Sant'ana,em Belaggio, no lago de Como. Este lugar foi muito importante porque estive l nos dois ltimosanos da guerra. J tinha seis anos. Foi ali que ingressei na literatura universal. Por isso foi muitoimportante, foi quando tomei conhecimento da vida.

    Foi nesse lugar que pensei em escrever o livro, ideia que depois abandonei porque pensavaque precisaria de fazer muita pesquisa, pedir uma bolsa para regressar regio, coisa que noaconteceu. Mas aconteceu uma outra coisa. Houve uma exploso num clube em Bogot e l mor-reu uma menina de quatro anos que tinha sido aluna da Yolanda Reyes, minha grande amiga. AYolanda trocou umas cartas com La Purga, uma terceira amiga nossa, que era a dona da escola

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    onde a menina agora estudava. A carta de La Purga pedia a Yolanda bibliografia que ajudasse

    as outras crianas a entender que a colega no ia voltar. Essas cartas mexeram muito com o meucorao e pensei que h crianas no mundo inteiro envolvidas em processos de guerra, decla-rados ou no. Ento ia escrever esse livro para relatar, do meu ponto de vista, como vive umacriana numa guerra.

    Foi difcil fazer o exerccio de reencontrar a Marina criana?Surpreendentemente no foi. Houve uma parte grande de pesquisa, porque naquela idade

    no sabia os factos da guerra e eu queria fazer um livro mais abrangente. O livro no paracrianas, sobre ser criana. Mas no que diz respeito s lembranas, surpreendeu-me muito,porque eram muito claras. Nunca mais olhei para crianas de at dez anos como olhava. Olhopara elas e penso: "Vocs no me enganam, vocs sabem tudo!"

    Essa experincia da guerra contribuiu para uma perda de inocncia?No sei o que a inocncia. Tinha um desconhecimento das coisas sexuais porque naquela

    poca no se via na televiso nem os adultos falavam disso com as crianas mas a sensibilidade to aguada nessa idade... No acredito na inocncia. Acredito na ignorncia, no desconhe-cimento, no ocultamento. Os adultos ocultam coisas s crianas. Acho que a inocncia infantil uma lenda criada pelos adultos.

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    A Marina nasce na Etipia colonizada.

    O meu pai tinha participado nas guerras de colonizao, por isso fomos para l. Ele gostavade guerras. Depois quis estabelecer-se l e pediu transferncia de Itlia para frica.

    Nasce num pas colonizado, a Etipia, muda para outro pas colonizado, a Lbia,assiste II Guerra Mundial em Itlia e muitos anos depois vive a ditadura noBrasil. O que aprendeu sobre a condio humana e o poder?

    Vivi essas duas ditaduras de forma oposta. O meu pai era fascista, ento a ditadura no me

    era apresentada como feroz. Da mesma maneira que hoje tenho um olhar sobre o colonialismocompletamente diferente do olhar que me foi transmitido por colonizadores. Quando vivi a di-tadura no Brasil estava do outro lado. A experincia diametralmente oposta. Porm ficou-meuma desconfiana eterna por todos os extremos, qualquer pessoa que me diga que de extre-ma-direita ou de extrema-esquerda eu ponho no mesmo saco. Da mesma maneira as questesreligiosas, o patriotismo, as bandeiras ao vento, os hinos com a mo no corao, acho horrvelporque sei onde leva. muito bonitinho amar o seu prprio pas at voc atravessar a fronteirae matar todos os vizinhos.

    Como lidou com uma herana ideolgica que a certa altura descobre que no aquilo que lhe tinha sido apresentado?

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    Eu no quero divertircrianas. No omeu papel. Quero

    conversar comcrianas. Quando

    escrevo paracrianas eu converso

    com as crianasmas no me ponhono lugar delas.Sou uma adultaa conversar com

    crianas. Aquelaconversa que acriana em mim no

    me serve.Palavras Andarilhas, 2012

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    Talvez tenha sido til aprender cedo que as verdades no so verdades, que podem sempre

    ser alteradas, ter outro lado. Mas no tenho um momento Eureka! em que tenha descoberto.Foi tudo muito progressivo, um somatrio. Por exemplo, quando cheguei ao Brasil fiquei muitosurpreendida porque nem sabia que o Brasil tinha estado na guerra. Eu estava no norte da Itliaquando a guerra acabou e vi exrcitos australianos, africanos, polacos, americanos, ingleses...Nunca vi um soldado brasileiro porque os brasileiros ficaram na regio de Roma. Quando che-guei ao Brasil as outras crianas gozavam comigo e diziam que os italianos eram cobardes e osbrasileiros eram heris. Eu respondia que estava l e nunca tinha visto nenhum brasileiro. Para

    uma criana isso muito complicado. Sabia do sofrimento italiano nessa guerra, trado pelaslideranas, o rei fugiu, Mussolini idem... Era muito complicado na minha cabea.

    Como foi viver a ditadura militar no Brasil?Por sorte, j era jornalista e trabalhava com cultura e isso tornou as coisas um pouco menos

    speras. Em 1965 nasceu a minha primeira filha e isso tomou muito de mim. De uma certa ma-neira as pessoas habituam-se. A menos que se queira pegar em armas, e isso eu nunca faria, a

    gente adapta-se. Acompanhvamos os colegas que iam para a clandestinidade, a vizinha domeu apartamento cujos filhos foram presos e a quem os moradores do prdio deixaram de cum-primentar... Mas eu estava do lado certo, o que j um pouco melhor...

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    mais apaziguador...

    Sim. melhor! Trabalhei durante muitos anos, comecei em 1963, numa revista feminina eescrevia muito sobre questes de gnero. Ningum sabe mas a revista tinha de ir sempre a Bra-slia para ser censurada, textos, fotografias, legendas, tudo. A revista era muito nova e libertriae era por isso muito visada. Tive vrios textos censurados.

    Foi nessa altura que nasceu a sua aproximao literatura infantil e o seu pri-meiro conto de fadas, que ia ser um reconto.

    verdade. Ia ser um reconto e depois nunca fiz reconto na vida.

    a que comea a trabalhar os contos de fadas que so um elemento central,identitrio, na sua escrita. Como so as fadas hoje em dia?

    Hoje em dia trabalha-se muito os contos de fadas de duas maneiras: muito com a pardiae muito com a parfrase. No sei quantas verses parodsticas foram feitas de Capuchinho Ver-melhoou de Os trs Porquinhos, mas provavelmente milhares. Mas na verdade so narrativas

    de grande densidade. No tenho conhecimento claro de autores que tenham feito uma obraconsistente em contos de fadas autorais dentro do mesmo princpio de densidade conteudstica.Existem autores que fazem um conto ou outro. Espanha tem alguns. Mas no elegante falar doscontos dos outros.

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    Como o seu processo de escrita?

    Considero-me uma pessoa muito organizada mentalmente. Quando trabalho na literaturapara adultos tenho propsitos. Trabalho sempre com narrativa curta mas meus livros de contosso temticos porque a minha inteno desenvolver um tema atravs de pequenas narrativasque no so cacos. So elementos de um conjunto. uma reflexo. como se eu fizesse um en-saio sobre um tema. Fao muitas leituras e reflexes sobre o tema. Leio livros de sociologia, dehistria, de filosofia. Depois comeo a produzir. um sistema muito mental.

    Que no acontece com os contos de fadas?S fao projectos livro, no fao contos soltos. Quando fao contos de fadas no tenho nem

    quero ter nenhum propsito. A conscincia tem que ir para Curaau, frias da conscincia, dosuperego! Tenho de ficar num estado quase semi-letrgico e ficar a ouvir o inconsciente. O queele quer contar, que histria ele me traz? A fico a acompanhar a histria.

    J foi assim no primeiro livro, Uma ideia toda azul?Sim, sim. Ento no tenho nenhum domnio sobre esses contos. Tenho na hora de escrever,

    sobre a forma. No tenho domnio sobre o contedo, no quero fazer a interpretao dos sm-bolos, no quero fazer a interpretao dos contos. Poderia fazer porque fiz onze anos de psica-nlise, sou muito bem equipada para fazer essas anlises mas no quero, no o meu papel.

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    Como chega a esse estado?

    difcil. Mas comeo a preparar-me, a fazer certas leituras...

    E afasta-se do quotidiano?No, isso impossvel. Mas escolho um perodo em que no viaje tanto. Se me surgir um

    tema, escrevo num papel e por cima coloco conto de fadas ou mini conto, e largo numa caixa.Depois h uma altura em que digo: "agora vou escrever contos de fadas." A tenho de mudar aembocadura, a minha ateno volta-se para outras coisas e tenho de alimentar a alma para ela

    entrar em efervescncia nesse sentido.Recentemente juntei todos os meus contos de fadas num livro. So cento e dezassete, dos

    quais dezassete inditos.

    Quando viu o livro finalizado, com os cento e dezassete contos, releu-os?Sim.

    O que sentiu?Os autores nunca dizem isso mas eu achei lindo. So trinta anos de trabalho e achei muito

    surpreendente. Para mim foi muito emocionante. Eu surpreendo-me e emociono-me quase comoquando os escrevi. claro que tenho de rel-los porque tambm conto os meus contos, ento

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    Quando faocontos de fadas

    no tenho nemquero ter nenhumpropsito. Aconscincia

    tem que ir para

    Curaau, friasda conscincia,do superego!Tenho de ficar

    num estado quasesemi-letrgico eficar a ouvir oinconsciente.II Encontro de Literatura Infanto-juvenil da Lusofonia de O Sculo, 2016

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    tenho de escolher e decorar. Quando for para a Alemanha, em seguida, vou ter de contar um

    conto num espectculo com crianas, ento tenho sempre de reler.Agora, acho que tem alguma coisa muito emocionante nestes contos. No deveria dizer isto.Deveria ser hipcrita e dizer que estou muito satisfeita, mas no o meu perfil.

    Para si faz sentido distinguir a escrita para adultos e para crianas?Sim, faz. Escrevo outros livros para crianas que no so contos de fadas. Eu no quero di-

    vertir crianas. No o meu papel. Quero conversar com crianas. Quando escrevo para crian-

    as eu converso com as crianas mas no me ponho no lugar delas. Sou uma adulta a conversarcom crianas. Aquela conversa que a criana em mim no me serve. A criana que fui j foi...h muito tempo! J no era criana quando era criana, imagine agora! No disso que setrata. Agora, eu levo a criana muito a srio, converso com ela em absoluta seriedade, o queno quer dizer que no queira v-la sorrindo, no isso. Mas um reconhecimento, um respeitoabsoluto pela inteligncia dela. Acho que ela entende tudo, que sabe tudo, que muito curiosa.

    E como com os jovens?Com os jovens, por exemplo em Penlope manda lembranas, tive o prazer de mostrar como

    se faz, de mostrar que uma fico e ao mesmo tempo no interromper a 'suspension of disbe-lief'. Por exemplo dizer: "Nesta situao no precisamos ter janela. A luz entra e me basta. No

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    precisamos ver a janela." Ou seja, estou a mostrar-lhes como estou a tecer a fico. Ou ento a

    personagem pega na revista que estava em cima de uma mesinha e eu digo "Ou voc acha queeu te disse que havia revista na mesinha toa?" Eu tive o prazer de mostrar ao jovem como sefaz a cadeira e ele ainda se sentar. No faria isso com adultos.

    Porque no?Quando acabei o livro o Afonso leu e perguntou-me: "Porque que ests a enderear isso a

    jovens? Isso um livro para adultos." E respondi: "Ah no, mas eu fiz uma coisa quase materna:

    mostrar como a coisa feita."

    E acha que um adulto no precisa ou que no vai apreciar o processo da mesmamaneira?

    Eu no ia empenhar-me nisso porque serviria para uns e no serviria para outros. Mas paraum jovem foi um prazer enorme, uma cumplicidade que criei com o leitor.

    Qual a diferena quando escreve para crianas e para jovens? Pensa nisso?No. No que pense mas a histria diz-me para quem quer ser escrita. O tema diz-me.

    Como v a literatura infantil e juvenil no Brasil, actualmente?

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    O Brasil tem ptimos autores. A qualidade grfica melhorou muito. Quando comecei a ilustrar

    os meus prprios livros no podia usar cor, era tudo a preto e branco, agrafado... Isso melhoroumuito. A venda melhorou muito. claro que como no mundo inteiro se edita muita insignificncia.Mas os bons autores tm um espao muito grande para agir. Nada no Brasil muito continuado.Fazem-se programas que depois so interrompidos, inventam-se outros. Este ano o Ministrio daEducao decidiu, por causa da crise, que no vai comprar livros. Isso um problema. O Minis-trio compra muitos livros infantojuvenis de literatura para distribuio nas bibliotecas escolares,nas salas de leitura... Este ano no vai comprar nada.

    Em que medida um problema grave?O Brasil tem o problema da distribuio porque um pas gigantesco. Em segundo lugar, a

    leitura implantada na vida das pessoas sempre atravs da escola. Sabe-se que s as familiasde um certo poder aquisitivo, que so poucas, tm livros em casa e lem. A maioria esmagadorada populao no tem livros em casa, os pais no lem. Ento a tarefa acaba por ser da escola.Uma vez que os meninos recebem os livros da escola, no estamos a formar frequentadores de

    livrarias.Ento se o Ministrio diz que no vai comprar livros, durante um ano as crianas vo viver

    com os livros do ano passado. E os editores vo ter um buraco sem medida porque vo viver daescola particular que uma minoria. Claro que os livros vendidos ao governo so quase a preo

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    de custo, mas a escala sustenta as editoras. Ento temos um problema. Mas o Brasil tem sempre

    problemas, estamos habituados.

    Mas a situao da leitura pblica est melhor?Temos a impresso que sim. Estamos metidos nisso h muitos anos. Para Afonso, como pro-

    fessor e director da Biblioteca Nacional, a questo da leitura esteve sempre muito presente. Nosei se avanamos enquanto avanamos. No sei se avanamos porque aumentou a populaoou se avanamos na questo da maior adopo pessoal. No tenho certeza nenhuma a respeito

    disso. Vejo os jovens muito interessados nas redes sociais, no lucro pessoal e colectivo que sepode alcanar atravs das redes sociais, ou seja, a imagem, e em pertencer. H pouco algumfalava de solido; os jovens desconhecem isso. A roda de fogueira dos jovens o telemvel e ofacebook. No sei como a leitura de livros se vai encaixar com isso. Mesmo as revistas so muitofragmentadas. Ento a leitura de textos longos torna-se estranha a este modo de vida. Claro queShakespeare est em domnio pblico mas que capacidade existe para ler Shakespeare?

    AND ISTHEWINNER

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    O blogue Ana Tarambana, de AnaGarraln e a associao de livrarias"La conspiracin de la plvora", queintegra uma livraria de Salamanca,outra de Cceres e uma terceira deSegvia so as vencedoras deste prmiohonorfico (sem dotao monetria)

    atribudo anualmente pelo Ministerio deEducacin, Cultura y Deporte espanholpara destacar o trabalho de promooda leitura realizado por entidadesindependentes.

    AND IS...THEWINNER

    PREMIO NACIONALAL FOMENTO DE LALECTURA 2016

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    V I S I T A G U I A D A : D . Q U I X O T E

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    que visitam a Leya. Entre os filhos dos colegas de trabalho, a editora e a sua sala de trabalho so as mais popula-

    res. Basta acercarmo-nos da parede de vidro para percebermos porqu. Para alm dos posters e figuras coladas,conseguimos alcanar bonecos que pendem do teto, expositores, e todo o tipo de livros da marca Disney, quea D. Quixote representa em Portugal. Minimos, Avies, Princesa Sofia, Doutora Brinquedos, Ana, Elsa e Olaf,Nemo, so alguns dos que identificamos imediatamente.

    Entrar na sala significa entrar numa antecmara da fantasia e a editora veste-lhe a pele, por vezes literal-mente. Gosta do que faz e explica-nos todo o processo do licenciamento, muito mais complexo do que parece primeira vista. H vrias opes para editar os livros que recontam histrias de filmes ou episdios de sries de

    animao. Uma delas a mais comum, a tradicional coedio que implica a aceitao de um formato internacio-nal, alterando apenas a lngua em que o texto est redigido assim como todas as informaes paratextuais. Nestecaso, compra-se o produto j finalizado e partilham-se os custos de impresso com editoras de outros pases.Outra opo, que se aplica aos livros dos filmes, implica a disponibilizao de um pacote de imagens e textosem troca de um valor que pago marca. Com essa espcie de guia Carla Pinheiro pode criar os livros quequiser, com o formato que quiser, de acordo com o pblico que tem em mente, desde livros para o banho a mini-livros de carto grosso a livros em que o leitor reconta a histria atravs de personagens mveis que se aplicam

    nas pginas. Aqui, o importante conseguir criar o puzzle perfeito a partir do catlogo disponibilizado, desdea imagem para a capa ao texto para cada momento narrativo. Quando tudo est planificado, cabe sempre Disney a ltima palavra.

    medida que conversamos, a editora passeia na sala procura de exemplos para o que nos explica. Dory a novidade do vero e a D. Quixote vai lanar dois livros que j esto prontos para serem distribudos na altura

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    em que o filme estrear. Carla conta-nos ento como escolheu as quarenta imagens e os textos e que, quando co-meou a montar os dois livros, o gabinete estava coberto de folhas que ia conjugando at chegar s sequncias

    que agora folheamos. Ainda h uma terceira opo: a de fazer livros com um conjunto de imagens Disney. Estasimagens so a base para um formato que a editora descobriu e quis aplicar: livros com manes que o leitor colocanas pginas criando a sua prpria narrativa com personagens conhecidas.

    Num dos armrios que ladeiam a secretria, Carla Pinheiro reencontra outros livros cuja produo est agoraem stand by. Apesar da dedicao edio de livros da Disney, Carla gostaria de continuar outros projetos comautores portugueses, como a coleo O Meu Primeiro.... O problema o tempo que o licenciamento toma paraque se cumpram todas as exigncias regulamentadas pelo gigante internacional. A exceo Mafalda Moutinho

    de quem a D. Quixote continua a editar Os Primos e tem direito a exposio na bancada que percorre toda aparede do fundo do gabinete.Na verdade, o gabinete da editora infantojuvenil da D. Quixote no se limita a albergar a fantasia Disney. As

    portas dos armrios espelham um mapa pessoal que a editora mantm por perto: poemas de autores que visitae revisita, postais de amigos, desenhos de crianas prximas, uma fotografia de um bolo de anos, o seu, comos personagens Fineas e Ferb, oferecido pelos colegas e outra sua, mascarada numa reunio. Perante o nossoespanto, Carla vai buscar um fato de Angry Bird para nos mostrar e conta-nos que se trajou a rigor para apre-

    sentar os livros destes famosos pssaros irritados aos comerciais que os iriam posteriormente vender s livrarias.Vestir a camisola aplica-se literalmente. Neste caso, a camisola no nada montona e confunde-se com o

    entusiasmo de quem a veste. despedida, entre risos, Carla Pinheiro confessa que uma pessoa de sorte porquefaz exatamente aquilo que a faz feliz.

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    A Histria de FerdinandoMunro Leaf, Robert Lawson

    Kalandraka

    Passadas oito dcadas desde a sua ediooriginal, a Kalandraka publica pela primeira vezem Portugal um clssico da literatura infantil.AHistria de Ferdinando tornou-se um bestsellerinternacional e mantm um sentido universalquase um sculo depois.Apesar de ser escrita e ilustrada por dois au-tores americanos, a narrativa tem como prota-gonista um touro que vive algures em Espanha,como logo anunciado na primeira frase.No muito comum tal rigor geogrfico, muitomenos a abrir um texto infantil. Por no ser umlugar extico ou fantstico, no se espera queo leitor final sinta qualquer apelo em relao aopas em causa.

    Por outro lado, a frase inaugural no rompecom a estrutura tradicional: Era uma vez, emEspanha... A frmula era uma vez assume aresponsabilidade de captar a ateno do leitor ede orientar uma expectativa no sentido univer-salizante dos contos de fadas e afins.Pois este touro, que vive em Espanha, desdea infncia um touro diferente, que aprecia a na-tureza e se deleita a cheirar as flores e observaros campos. Os outros, por seu turno, denotamdesde cedo uma espcie de agitao violenta,

    que se revelar essencial para que desempe-nhem bem a sua funo final na arena da praade touros.A certa altura, o acaso que transforma os an-nimos em heris leva a que Ferdinando, j cres-cido, se evidencie perante um grupo de homensque procura um touro para uma tourada em

    Madrid. O que acontece em seguida um elogioda ingenuidade e da paz, respeitando sempre a

    cadncia lenta da personagem e dizendo apenaso essencial.Toda a estrutura discursiva assenta numa lgi-ca sequencial simples, em que cada momentose associa sua ilustrao. No h qualquersugesto simblica ou metafrica. Ao invs, ailustrao revela cada passo da narrativa, cor-

    respondendo inteiramente ao texto que acom-panha cada imagem. Assim, por exemplo, quan-do a me se preocupa com o comportamentodo filho, o assunto tratado em trs pginasde texto com trs ilustraes: a me, retratadade costas, observa com apreenso o filho noalto da colina, junto ao seu sobreiro favorito; odilogo entre os dois com os dois focinhos emdestaque; finalmente a vaca descendo a colina,de semblante descontrado, apaziguada pelaspalavras do pequeno touro.A ausncia de sugestes, elipses, conotaes oudescries mais longas torna o livro absoluta-mente linear, tanto quanto a personagem. Essalinearidade, que o trao detalhado a preto e

    branco refora no seu estilo figurativo mais cls-sico, converge para um elogio da ingenuidadecontra o mal do mundo. Assim acontece no final,quando ningum sabe responder nem conseguealterar o comportamento de Ferdinando. Noh, na sua personalidade, um sentido de opo-sio perante os outros e sim uma diferena.No havendo oposio no h qualquer hiptesede dilogo, de um vencer o outro, h um vaziointransponvel, no h qualquer possibilidade decomunicao. A histria de Ferdinando apresen-

    ta ao leitor uma mudana de paradigma ou, at,uma revoluo.Pacifista e crtica, a obra nasce quando rebentaa guerra civil espanhola. No toa que Espa-nha a geografia escolhida.Pode ento uma personagem ingnua ser a maisperigosa subversiva?

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    Desde Os Livros Que Devoraram o Meu PaiqueAfonso Cruz no escrevia uma narrativa juveniltout court. Os textos mais aforsticos denotavamum pensamento metonmico pleno de refernciase lgicas surpreendentes mas deixavam emsuspenso ideias, teses, situaes, constataes,possibilidades. Os aforismos deA ContradioHumanaou O Livro do Ano, por exemplo,desconcertam ao romper fronteiras entre o quese assume que o real e tantas outras formaspassveis de serem reais. Tudo depende, em suma,da construo do discurso, da narrativa subjetiva

    com que cada um organiza o mundo.Em Vamos Comprar Um Poeta, o escritor petodas estas estratgias ao servio da narrativa. Oponto de partida, que no se anuncia, o de umacomunidade cujo pensamento e prxis dependede lgicas numricas em funo de um princpiomagno: o utilitarismo. Tudo mensurvel, at osvalores morais. A escala representa, por seu turno,o referente para todas as argumentaes, leis eescolhas.Mas Afonso Cruz no deixa o cenrio abandonado

    a esta potencial distopia sem lhe dar um sentidode humanidade ou correria o risco de no vercumprido um pacto de verosimilhana essencialpara a progresso da ao. A famlia que vive oepicentro de uma revoluo, e qual pertencea narradora, tem um quotidiano, enfurece-se,espanta-se, tem valores, hbitos e conflitos como

    qualquer famlia com pai, me e dois filhos, umarapariga e um rapaz. A estranheza por isso

    relativa e a crtica funciona de imediato. Elespoderemos ser ns um dia. Falta famlia apenasum animal de estimao.E aqui tudo comea a adensar-se: a narradorapede aos pais para lhe comprarem um poeta. Aobjectificao de uma pessoa, que avaliada emfuno da sujidade que provoca ou dos custos que

    vai provocar, sem que nunca lhe seja reconhecidauma rstia de humanidade por parte de todos,

    desloca a ligeira distopia para um universokafkiano.Pouco se sabe do poeta, at porque inicialmenteningum o percebe. Mas o efeito das suas palavrasinteis atinge todos os elementos familiares,de formas distintas. E a revoluo acontece, arevoluo de comportamento, a rutura, tantoquanto a negao e a indiferena. A inutilidadedo poeta salva a famlia, mas no o faz sem dor, ador provocada pelo acesso dimenso onrica e

    artstica da vida.A palavra o cerne de toda a narrativa. O posfcio disso exemplo quando elenca argumentos afavor da arte. J os referentes poticos que oautor enumera no final do livro contribuem para osentido mais profundo do texto: na linguagem epela linguagem que vivemos. O poder do discurso o poder da comunicao, da organizao. Mas igualmente o poder que cresce fora da estruturado poder; h sempre uma liberdade a romperessa estrutura, nos limites do discurso que se

    reconhece. O poder do poeta o poder do novo,o que se perdeu e do qual parece no havermemria. Este poeta traz consigo uma histria denovas palavras, criadas e recriadas nesses limitesao longo do tempo, e esquecidas, apagadas pelacomunicao mensurvel.

    Vamos Comprar Um PoetaAfonso Cruz

    Caminho

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    A S B S

    s a r amagu iana

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    PILAR DEL RO ENTREVISTA JOS SARAMAGO

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    Como se sente depois de ter apresentado o livro em capitais e aldeias de trs continentes?

    Muito cansado. Foram 45 dias de viagens, conferncias, entrevistas, apertos de mos, abraos, tudo muitoagradvel e gratificante, mas custa de um esforo fsico e psquico arrasador.

    Em todo caso, preciso boa sade para aguentar o ritmo que leva.

    At agora, a sade tem sido um muro sem brechas. s vezes perguntam-me como consigo aguentar e s tenhouma resposta: No sei.

    Falamos do seu novo livro, desta caverna onde parece que estamos instalados.

    Falamos. Mas no gostaria que as minhas ideias sobre o romance se impusessem s que o leitor ter por suaconta. Ser autor no significa ser autoridade e, muito menos, ser autoritrio. Se as nicas ideias que um livropudesse gerar fossem as que o prprio autor tem dele, esse livro seria bem pobre...

    Um parntesis, antes de comear com o romance. Vive numa ilha, que parece que o paradigma

    do melhor, feliz, faz o trabalho que quer. Como lhe vem cabea a ideia de que todos estamosfechados numa caverna?

    A minha felicidade no mais que uma pequena ilha no mundo, mas as janelas da minha casa esto abertaspara esse mundo e no gosto do que vejo. Por isso escrevi oEnsaio sobre a Cegueira,Todos os Nomese agoraA Caverna, por isso toda a minha obra pode ser entendida como uma reflexo sobre o erro.

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    Sobre o erro?

    Sim, sobre o erro como verdade instalada e por isso suspeita, sobre o erro como deturpao intencional defactos, sobre o erro como iluso dos sentidos e da mente, mas tambm sobre o erro como ponto necessrio parachegar ao conhecimento.

    E se levamos a caverna ou o erro na cabea, e por isso nos custa tanto discernir o que se nos impe

    como verdade oficial?

    Levamos tudo dentro da cabea. Fora da nossa cabea no sabemos o que h verdadeiramente. Cada servivo, desde o mais elementar ao mais complexo, percebe que algo o rodeia, mas essa percepo no a mes-ma em todos. O simples olhar deu-nos nos passado uma certa imagem do mundo, mas o microscpio demons-trou que essa imagem no era mais que uma aparncia. Acrescente-se a isto as abstraces que inevitavelmentemodificam as imagens mentais que vamos formando sobre o mundo, e diga-me se possvel ter apenas certezassobre a real realidade do que nos externo. Uma dessas abstraces Deus. Depois de criar dentro da nossa

    cabea uma ideia de Deus, acabamos, paradoxalmente, fazendo dele nosso criador, criador do prprio serque o criou. Ou seja, criamos Deus e logo acreditamos que foi ele que nos criou... Tambm criamos essa outraabstraco a que chamamos diabo e acusamo-lo de ser culpado das nossas prprias maldades... Quer maiorabsurdo?

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    No, mas um absurdo que serve para ir andando pela vida.A mim parece-me uma brincadeira de mau gosto. No tem sentido que precisemos de nos enganar para vi-

    vermos.

    As personagens deA Cavernarebelam-se. necessria rebeldia para sair da caverna?

    A Caverna uma histria de perdedores cuja nica vitria consiste em que no se entregam ao triunfador. a rebelio possvel mas sem ela no poder haver outra. A derrota definitiva seria a submisso, e ainda assimno devemos esquecer que as geraes se sucedem, mas no se repetem. Assim como de insubmissos podemnascer submissos, tambm dos que se submeteram podero nascer os que se rebelaro.

    Neste romance introduzem-se dois elementos novos na sua obra: a famlia e a ternura. Cr que

    estes conceitos so importantes para que algo se modifique para melhor?

    No tenho iluses sobre a famlia como instituio. A famlia lugar de crimes, traies e vilanias, tanto comoqualquer outro grupo humano. Mas continuo a acreditar no poder regenerador da bondade pessoal e da ternu-

    ra. A casualidade quis que em A Caverna se reunissem quatro pessoas boas e um co no menos bom, aindaque a realidade, sabemo-lo por experincia, demasiadas vezes seja diferente.

    H uns meses em Santander disse que quanto mais velho mais sbio, quanto mais sbio, mais

    radical. No foi s uma frase de efeito...

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    No me lembro se a frase dita em Santander era exactamente assim. Seja como for, parece-me que fica maisclara a ideia se digo que quanto mais velho me vejo, mais livre me sinto e mais radicalmente me expresso. No

    se trata de uma frase de efeito, uma verificao de todos os dias. As palavras que com mais frequncia medigo so estas: No te permitas nunca seres menos do que s.

    Sente-se velho com 78 anos?

    Por muitas voltas que se d ao assunto, uma pessoa com 78 anos ser sempre um velho porque est na idadeque definimos como velhice. No vale a pena estar com estpidos eufemismos que no fundo no enganam nin-gum, como esse da terceira idade. Mas ser velho no nem um estigma nem uma vergonha, e muito menosse o corpo e a mente continuam a funcionar de maneira satisfatria. Verdi escreveu o seu Falstaffaos 80 anos.Deveria pedir desculpas pelo facto de, sendo velho, ter escrito uma obra-prima?

    um homem vaidoso, sedutor?

    Gosto de me ver bem, nada mais. No que respeita s gravatas, por exemplo, sou implacvel...

    E um sedutor. Essa capacidade de seduo natural ou trabalhada?

    No creio que seja um sedutor. Limito-me a mostrar-me aos outros exactamente como sou. Se com isso sesentem seduzidos, melhor para mim, porque no estive a enganar ningum. Tenho debilidades e defeitos como

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    todo o mundo, mas tenho tambm uma qualidade essencial, a de respeitar o outro como pessoa que . Talveza esteja o segredo.

    Voc enamora homens e mulheres, pessoas em particular e auditrios inteiros. Essa capacidade de

    embelezamento tem de dever-se a algo mais do que o respeito pelo outro.

    Mas basicamente isso. E simplicidade e sinceridade, e mo esquerda e mo direita, ambas oferecidas eabertas.

    Na sua idade, como fala do amor?

    H umas quantas coisas que me mantm de p, uma delas o amor.

    Haver quem pense que se est a gabar, que o amor coisa de jovens, que na sua idade s resta

    a resignao e tudo o mais lembrana.

    A velhice de quem pensa assim comea aos 30 anos... Esses so os que se resignaram e cansaram aos pri-meiros passos. Comea-se com a impotncia do sentimento e acaba-se na outra...

    Ainda que no acredite em Deus, voc crente. Apesar do seu alardeado pessimismo, acredita na

    vontade humana como factor de mudana. No conheo ningum mais tenaz nessa convico.

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    Acredito na vontade humana, sim, mas no deixo de exigir que sirva e defenda a vida, em vez de a ofendere humilhar.

    E o que pode esperar da vida, se parece que j tem tudo?

    Que o que me resta de vida no seja indigno de como vivi at agora. Se tiver de perder algo, que seja sdinheiro.

    Quando era pequeno e brincava sozinho nos canaviais de Azinhaga e no rio Almonda pensava na

    literatura? Sonhava em ser escritor?

    Quando brincava nos canaviais, brincava nos canaviais. Tive a sorte de no ser um menino-prodgio, osmeninos-prodgio so como pequenos monstros insuportveis... Em casa dos meus avs, camponeses pobres,ou em Lisboa, vivendo com os meus pais em casas alugadas, como ia pensar em literatura?

    Mas algum sonho teria.

    No tive sonhos nem ambies que valha a pena recordar, salvo, algumas vezes, imaginar-me como maqui-nista de comboios. Exaltava-me a ideia de ser responsvel pelas vidas que transportava.

    Esse sentimento de responsabilidade sobre outras pessoas, poderia ser uma expresso de liderana?

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    No sei. De psicologia, ou melhor, de interpretaes psicanalticas, no percebo nada. Para alm disso, nun-ca gostei dos lderes. O maquinista leva o comboio para a estao e no espera aplausos.

    Quando era mecnico, ou depois funcionrio administrativo e passava pelos cafs onde se reuniam

    os escritores portugueses, que sentia?

    Quando era mecnico o itinerrio que me levava at oficina no passava pelos cafs. E depois, quando metornei funcionrio administrativo, no tinha dinheiro para os frequentar. O meu reino no era daquele mundo...

    Quis aproximar-se deles alguma vez?

    Nunca fiz nenhuma tentativa para me aproximar. Quando um amigo me introduziu numa tertlia, comeceipor contentar-me com o papel de ouvinte. Tardei em dar sinal da minha presena. Mas aprendi muito a ouvir.

    Voc comunista e j o era antes da Revoluo de Abril. Teve problemas com a censura de Salazar?

    No como escritor, j que a minha actividade literria era incipiente ento. Mas tive-os, e muitos, no pero-do em que fui jornalista. Quase no havia um dia em que no tivesse de ir discutir com os coronis do lpisazul... Eram uns pobres idiotas, s vezes nem se davam conta do que tinham diante do nariz. Houve uma revistaque publicou uma srie de artigos sobre o Marxismo, sem usar nunca esta palavra, e passaram. Nem sequerentenderam que o Carlos Marques de que falavam era Karl Marx...

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    Falemos da sua participao na luta poltica de ento.

    No h muito a dizer. Cumpri as tarefas de que me encarregaram. Colaborei, sem dramatismos nem heroi-cidades, para enterrar um regime corrupto. No creio ter defraudado os que confiavam em mim e na minhaparticipao.

    Mas, sim, teve problemas quando o seu pas j vivia em democracia. E por isso vive em Lanzarote.

    Sob pretexto de que o livro ofendia a crena catlica, o governo social-democrata de Cavaco Silva proibiuque O Evangelho segundo Jesus Cristo concorresse, tal como havia decidido um jri independente, e sem inter-veno da minha parte, ao Prmio Literrio europeu. O meu protesto foi emigrar.

    Mas ao fim de alguns anos descobriu que tambm em Lanzarote existe o mesmo, que a ambio e

    o racismo fazem ninho em qualquer lugar.

    Numa manifestao racista em Las Palmas houve uma palavra de ordem miservel, como outras que eramditas: Saramago, vai-te daqui!. E em Lanzarote choveram insultos contra mim. Mas no lhes vou dar esse gos-to. Quero esta terra como quero a minha aldeia natal e defend-la-ei contra quem tente fazer dela um lugar deexcluso e explorao dos que vm procura de um prato de comida.

    Acredita que estamos liquidados, que se a histria no acabou tero acabado os grandes movi-

    mentos libertadores, que trs quartos da humanidade esto condenados misria?

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    Nem a histria chegou ao seu fim, nem acabaram as revolues. O meu optimismo contenta-se com estascertezas. O resto so dvidas. Como? Quando? Onde? Isso no sei, mas acontecer.

    Vai a Chiapas, no Mxico. Ou a Timor. Ou a Moambique. Acaba de visitar os presos de La Tablada,

    esses jovens que assaltaram um quartel na Argentina acreditando que se preparava um golpe de

    estado, e que levam anos de priso e mais de cem dias em greve de fome exigindo um julgamento

    justo. Conhece as feridas do mundo e no entanto continua inteiro.

    Aparentemente sim, estou inteiro. Mas quem me conhece bem sabe que sangro por dentro. Todos os dias, to-

    das as horas. Sou, em carne e em esprito, um grito de dor e indignao. Se parece que h demasiada retricano que acabo de dizer, recordo que a pior retrica a dos actos, no a das palavras. E tambm recordo queos presos de La Tablada continuam em greve de fome e o Governo argentino no ouve as recomendaes dostribunais internacionais, que pedem que se repita o julgamento.

    E o que fazer com o conflito basco?

    Enquanto a ETA no deixar de matar, a situao estar encalhada, no vejo sada. Deixar de matar a con-dio essencial para que se possa iniciar o dilogo que conduza paz, soluo do problema basco, que no, precisamente, o da bandidagem. O gangsterismo um terrvel acrescento que tanto os bascos como o restode Espanha queremos que acabe.

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    Sei que cada dia lhe custa mais falar de literatura, que prefere falar, por exemplo, de direitos e de

    deveres humanos. Porque no escreve a Carta dos Deveres Humanos?

    Depois de milnios de civilizaes e culturas, os deveres humanos encontram-se inscritos nas conscincias,inclusive quando aparentamos ignor-los ou desprez-los. No h que escrever uma Carta dos Deveres Huma-nos, h que apelar s conscincias livres para que a manifestem e a assumam.

    Sabe que alguns o criticaram por ter estragado o banquete do Nobel falando do incumprimento

    universal dos Direitos Humanos?

    Poucas coisas na vida me deram tanta satisfao como ter estilhaado o espelho lisonjeiro e tranquilizadorem que muitas daquelas pessoas se contemplavam. Sabe quais foram as palavras da Rainha da Sucia quandoregressei ao meu lugar, sua direita, depois do discurso? Foram estas: Algum tinha de diz-lo. E ela no foicertamente a nica a pens-lo.

    O que pensa que pesa mais, ter recebido o Nobel ou no o ter recebido e ansiar por ele?

    Passar a vida a pensar no Nobel deve ser uma doena. Por essa razo, para alm de todas as outras, o me-lhor receb-lo...

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    Dizem que o Nobel acarreta uma maldio e que muitos escritores no conseguem escrever depois

    de o receber. Voc rompeu a maldio.

    No fui o primeiro, nem serei o ltimo. Pode ter acontecido, isso sim, que alguns escritores a quem foi con-cedido o Nobel no tenham voltado a publicar por considerarem que a sua obra j estava concluda. Dessadeciso so eles os juzes, e h que respeit-la.

    A quem recomenda a leitura deA Caverna?

    A quem nela no queira entrar, a quem se sinta tentado a entrar, a quem j esteja dentro. Que no leia A

    Caverna quem considere que no est em nenhuma destas situaes...

    Coloque um ponto final nesta entrevista.

    A nossa entrevista no acaba aqui, portanto, nem ponto, nem final.

    Entrevista publicada originalmente no dia 7 de janeiro de 2001 na revista El Semanal.

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    A S B S

    s a r amagu iana

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    Raul Brando morreu em Dezembro de 1930, e depois de um fogao imediato com a publicao,no ano seguinte, de O Pobre de Pedir e de Memrias III: O Vale de Josafat, os seus livros foram

    desaparecendo de circulao. S duas dcadas e meia depois surgiram as primeiras tentativasde contratar o relanamento da sua obra com a sua viva e herdeira, Maria Angelina Brando,que ento publicou em Coimbra (1957) umin memoriam do escritor. Assim sendo, de admitirque Jos Saramago, nascido em Novembro de 1922, s ter podido ler Raul Brando em gastosexemplares de alfarrabista ou sados das estantes de amigos mais velhos ou de bibliotecas, masviria a ter uma especial oportunidade de editar alguns dos seus livros, quando colaborou com os

    Estdios Cor, nos idos 1960.De facto, depois que o projecto de uma edio da obra completa em fascculos doJornal do Foro, que havia

    sido iniciado em 1960-61 por Fernando Abranches Ferro (1908-85) e Manuel Mendes, acabou suspenso apsa priso e exlio daquele prestigiado advogado de oposicionistas a Salazar, foram os Estdios Cor que lana-ram uma luxuosa edio dOs Pescadores, ilustrada com boas fotografias e prefaciada por Mendes, que jhavia escrito sobre o livro para o boletim informativo desta editorial, em Julho de 1957.

    Documento conservado pela Sociedade Martins Sarmento, de Guimares, permite-nos verificar ter Jos Sa-ramago proposto herdeira de Raul Brando, em Setembro de 1965, uma tiragem em formato comum dessemesmo livro, uma iniciativa plena de sentido e oportunidade, a qual, porm, no viria a concretizar-se.

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    Maria Angelina havia cedido o arquivo literrio de Raul a Manuel Mendes, comvista edio duma obra completa fielmente estabelecida, e aguardaria com

    natural expectativa a menos de dois anos do centenrio de Raul Brando que o malogrado projecto doJornal do Foroviesse a ser assumido por em-presa editorial capaz de o levar avante. Joaquim Santos Simes, um destacadoactivista cultural e poltico residente em Guimares desde Outubro de 1957,impulsionador naquela cidade do Teatro de Ensaio Raul Brando, em 1959,e da Livraria Raul Brando, em 1961, pode bem ter aconselhado a viva do

    escritor a esperar por uma soluo integral para a reposio da bibliografia brandoniana em livros novos, quea proximidade da efemride parecia prometer. Anos antes, Tlio Ramires Ferro passara sucessivas temporadasna Casa do Alto a transcrever os apontamentos paraOs Operrios, Guilherme de Castilho iniciara j os seustrabalhos biogrficos (inclusive visitando-a em Nespereira, numa das suas pausas de diplomata em Paris), nessepreciso momento Ernesto de Sousa levava ao palco do Crculo de Cultura Teatral O Gebo e a Sombrae tambmno Porto algo j estaria sendo feito para a edificao em Maro de 1967 do monumento ao escritor, adiadadesde o incio da dcada de 1940...

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    Afinal, o centenrio nada resolveria quanto edio integral da obra brandoniana, queMaria Angelina, falecida em 1973, j no veria realizar-se, mas mostrou que os seus

    livros continuavam a sacudir muita boa gente, como provam os suplementos literrios queento lhe foram dedicados. Num desses suplementos, o do portuenseJornal de Notcias,de 20 de Abril de 1967, Jos Saramago assinou um artigo nunca includo em colec-tneas e adiante transcrito que, na minha opinio, pode e deve ser lido como se fosseo seu parecer de publishersobre a edio das obras de Raul Brando que a EstdiosCor no quis assumir alm do livro de 1923 (e parecia estar em boas condies para o

    fazer, se o quisesse). Reconhecendo no saber exactamente o que se h-de fazer da obra de Raul Brando,tida como irremediavelmente datada (e sublinhou) e de terrvel destino, no s o par do mesmo ofciomas tambm o editor Saramago que de seguida questiona que literatura precisamos (o clssico que faz fal-tapublicar? dos editores a srio). A ternura sempre molhada em lgrimas do autor de Hmusj no seriaadequada aos desafios da humanidade, pois interroga-se diante da nossa suprema fragilidade dianteda morte, no haver lugar para o sorriso sbio de quem dominou os medos e pode aspirar alegria?. Foisobretudo como escritor que Jos Saramago l