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Marco Antônio Oliveira de Azevedo Bioética Fundamental Porto Alegre, 2002 Editorial TOMO

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Marco Antônio Oliveira de Azevedo

BioéticaFundamental

Porto Alegre, 2002

EditorialTOMO

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Dedico este livro a André Luiz Zaffari, amigo ecunhado, falecido em circunstâncias trágicas, cujaperda até hoje é difícil aceitar.Lembro de André como um exemplo iluminado deamizade, prova humana de como nossa felicidadeindividual também depende da possibilidade denos emocionarmos com a felicidade dos outros.

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Agradecimentos

Há mais de dois anos atrás, escrevi e fiz circular uma versãoinicial deste livro. Infelizmente, o plano de publicá-lo junto a umacoleção de pequenos livros de filosofia não se realizou. Resolvi, en-tão, reproduzir algumas fotocópias a fim de poder utilizá-lo comobibliografia para o curso de Bioética que coordeno no Hospital dePronto Socorro. Agradeço a todos os meus alunos pelos comentáriosgentis e pelas críticas que recebi, as quais sempre aproveitei positi-vamente. Agora, a convite da Tomo Editorial, resolvi retomar a idéiade publicá-lo. Esta edição é uma versão revisada, atualizada e me-lhorada, com o acréscimo, ao final, de mais um capítulo, sobre gené-tica e clonagem.

Várias pessoas me apoiaram ou diretamente me auxiliaramno período em que os primeiros textos estavam se gestando. Gostariade agradecer a algumas. Aos colegas e amigos: Carlos Eduardo NeryPaes, Gérson Pereira, Luiz Augusto Pereira, Marcelo Generalli daCosta e Marcos Rolim, que, pelo apoio, sugestões e idéias, de algummodo me auxiliaram em vários tópicos. Agradeço à amiga ReginaLoureiro, que teve a paciência de ler e comentar as versões iniciaisdo livro. Agradeço a Paulo Seben, que me auxiliou no trabalho derevisão ortográfica e gramatical da primeira versão. Agradeço aoprofessor Dênis Rosenfield, que foi quem inicialmente criou a opor-tunidade e incentivou-me a escrever este livro, e ao professor Joa-quim Clotet, sempre amável e cordial, que leu alguns capítulos e fezsugestões imprescindíveis, como a de torná-lo um livro de ‘filosofiada bioética’. Agradeço com particular satisfação ao professor Paulo

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Faria. Paulo teve a paciência de ler e comentar meus escritos “pági-na por página”. Considero-me privilegiado em ter podido contarcom suas críticas e observações sempre muito finas, precisas e alta-mente influentes. Tenho a esperança de poder ser motivo de orgulhopara todos esses amigos, e de poder oferecer aos mais diversos tiposde leitores uma boa reflexão sobre os fundamentos da nova éticabiomédica.

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Sumário

Apresentação ............................................................................ 9

Prefácio................................................................................... 13

Introdução ............................................................................... 19

I. A vida e a morte de Karen Ann Quinlan .................... 31

II. A Tradição Hipocrática .............................................. 59

III. A Ladeira Escorregadia ............................................. 71

IV. Recursos Escassos ...................................................... 85

V. Os pacientes do Dr. Kevorkian................................. 101

VI. Tratar e Cuidar...........................................................115

VII. Por que não podemos vender nossos órgãos? .......... 129

VIII. O Relatório Warnock ................................................ 141

IX. Admirável mundo novo ............................................ 155

Notas ..................................................................................... 167

Índice Remissivo .................................................................. 191

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Apresentação

Volnei Garrafa *

O livro de Marco Antônio Oliveira de Azevedo apre-senta duas peculiaridades que chamam imediatamente a aten-ção do leitor mais atento. A primeira delas é que se trata deobra escrita por profissional com dupla formação acadêmica –medicina e filosofia – fato enriquecedor para uma área multi-disciplinar como a bioética. A segunda encerra uma salutar con-tradição: embora a clareza do texto facilite a leitura para osiniciantes na matéria, ao contrário do que o título possa sugerir– Bioética Fundamental – não se trata de um compêndio for-malmente organizado para simplesmente apresentar a nova dis-ciplina. Seguindo uma linha lógica de raciocínio, é estruturadoa partir de uma pauta de temas selecionados pelo autor e quefazem parte da curta e rica história da bioética ou do seu con-texto filosófico propriamente dito.

A feliz seleção dos capítulos torna-se ainda mais provei-tosa quando o autor, corajosamente, confronta suas principaisidéias e convicções com os pensamentos de outros pesquisado-res. Neste sentido, é importante frisar que o prof. Azevedo utili-

* Professor titular da Universidade de BrasíliaPresidente da Sociedade Brasileira de Bioética (gestão 2001-4)

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za boa parte da melhor bibliografia internacional, principalmen-te de língua inglesa, existente sobre os assuntos escolhidos. Alémde diversos filósofos de autoridade reconhecida, uma boa quan-tidade de autores diretamente relacionados à bioética são utili-zados nas discussões, como Tom Beauchamp, James Childress,Albert Jonsen, David Thomasma, Edmund Pellegrino, RobertVeatch, H. T. Engelhardt Jr., Richard Hare, Stephen Toulmin,John Rawls, W. Reich, Carol Gilligan, Peter Singer, John Harrise vários outros. Apesar de não nos encontrarmos entre os auto-res indispensáveis ao tema “Por que não podemos vender nos-sos órgãos?” (Capítulo 7), Giovanni Berlinguer e eu ficamosmuito lisonjeados pelos nossos estudos também terem sido lem-brados.

Por outro lado, devo confessar que ao correr os olhospelos primeiros parágrafos do livro cheguei a pensar que se tra-tava de mais um trabalho direcionado ao estudo da ética profis-sional/ética médica. Na medida em que a leitura avançava, noentanto, foi ficando cada vez mais nítido o compromisso da obracom a bioética e as aberturas de análise que ela proporciona.

Como que propositadamente, Azevedo utiliza para dis-cussão alguns dos referenciais clássicos da filosofia e da bioéti-ca, como: o caso Karen Ann Quinlan e os dilemas da vida e damorte; o tema da “ladeira escorregadia”, que trata do perigo dedesdobramentos equivocados a partir da aceitação inicial e sim-plista de uma norma controversa; as controvérsias em torno domédico Jack Kervorkian e sua relação com a eutanásia e o suicí-dio assistido; o famoso relatório Warnock, relacionado com apolêmica embrião versus pessoa na Inglaterra. Tanto a perspicá-cia do autor como sua sólida formação permitem ao leitor recéminiciado o sabor da novidade sem o perigo de perder-se na leitu-ra; e aos já familiarizados com a bioética, o prazer do acesso àinterpretação personalizada dos temas.

No início de 2001 fui convidado pelo Editor da revistaActa Bioethica – publicação do Programa Regional de Bioéticada Organização Pan-americana de Saúde (OPS/OMS) para a

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América Latina – para abrir uma nova sessão intitulada “Radio-grafía Bioética de un País”, falando sobre a história e desenvol-vimento da área no Brasil. Naquela oportunidade, defendi a idéiade que a bioética brasileira, apesar de tardia, estava progredin-do vertiginosamente em busca do tempo perdido. A publicação ea qualidade do presente livro não só reforça essa afirmação como,é bom recordar, chega na hora extremamente oportuna em que oBrasil teve sua proposta aceita para organizar e sediar o SextoCongresso Mundial de Bioética (Brasília, 30 de outubro a 03 denovembro de 2002).

Todos estamos de parabéns: o editor, João Carneiro, daTomo Editorial, pela feliz iniciativa; o autor, Marco AntônioOliveira de Azevedo, pela oportunidade e qualidade da sua obra;e principalmente nós, leitores e pesquisadores interessados nabioética, por esse acréscimo qualitativo à bibliografia nacionalda área.

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Prefácio

Paulo Faria *

Depois de ler um livro de história da filosofia, o sr. K. semanifestou depreciativamente sobre as tentativas dos filósofos decolocar as coisas como basicamente incognoscíveis. “Quando ossofistas afirmaram saber muito, sem ter estudado”, disse ele, “surgiuo sofista Sócrates com a afirmação arrogante de que nada sabia.Seria de esperar que ele acrescentasse: pois eu também não estu-dei. (Para saber algo, temos que estudar.) Mas ele parece que nãocontinuou a falar, ou talvez o aplauso imensurável que irrompeucom a sua primeira frase, e que durou dois mil anos, tenha engoli-do qualquer frase seguinte.” (Bertolt Brecht, Histórias do Sr. Keuner,tradução de Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 50.)

Nos últimos anos, os filósofos deram em falar em “éticaaplicada”. A expressão sugere que a ética – a reflexão filosóficasobre a vida moral – estaria constituída de duas partes, uma “pura”e uma “aplicada”. A ética pura investigaria os princípios geraissubjacentes à avaliação de problemas morais. À ética aplicada,em troca, tocaria examinar e avaliar os fatos, em domínios parti-culares do conhecimento ou da ação humanos, à luz desses prin-cípios gerais.

* Professor do Departamento de Filosofia da UFRGS (UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul)

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Na origem dessa distinção encontra-se uma certa imagemdo raciocínio moral. De acordo com essa imagem, considerar ascoisas de um ponto de vista moral é examinar, à luz dos princípiosgerais que prescrevem ou proíbem certas ações (‘Não matarás’),fatos que poderiam ser descritos em uma linguagem moralmenteneutra (as instruções para preparar uma dose letal de cianuretonão precisam, afinal de contas, dizer uma palavra sequer sobre oque é certo ou errado fazer com a substância: isso não é assuntopara a química). Quando os fatos se tornam muito complicados, eé preciso recorrer ao conhecimento especializado até mesmo paradescrevê-los adequadamente, essa imagem do raciocínio moraltransfigura-se na distinção entre “ética pura” e “ética aplicada”.

O médico e filósofo que escreveu esta Bioética Funda-mental rejeita essa imagem do raciocínio moral. Para MarcoAntônio Azevedo, ela é inadequada para dar conta da naturezada reflexão sobre os problemas morais – de fato, é inadequadapara dar conta da racionalidade humana em qualquer domínio.Pois, em qualquer domínio, o conteúdo de cada conceito queempregamos para descrever nossa experiência, desde os maiselementares (‘pessoa’, ‘coisa’, ‘animal’, ‘dor’, ‘consciência’),depende das conseqüências com que nos comprometemos aoempregar esse conceito. O pai adotivo do menino-robô David,no filme Inteligência Artificial, sabia muito bem o que estavadizendo ao lembrar a sua esposa que David era apenas um brin-quedo: se você não quer arcar com as conseqüências (e ‘as con-seqüências’ são todas as conseqüências) de reconhecer Davidcomo uma pessoa, o melhor que tem a fazer é não empregar esseconceito ao falar e pensar sobre David.

Como esse exemplo mostra claramente, não se trata ape-nas da estrutura lógica de nossos conceitos (‘Se David é umapessoa, então...’). Pois não são apenas nossos compromissos ra-cionais – e, com eles, a coerência de nosso pensamento – o queestá em jogo: estar na posse de um conceito significa tambémdispor de um sistema de reações naturais, de atitudes, de dispo-sições: não tratamos da mesma maneira um brinquedo e um ser

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humano, não reagimos da mesma maneira a seu comportamento.Em outras palavras, também nossos sentimentos estão insepara-velmente envolvidos na posse de nossos conceitos. A orientaçãofilosófica conhecida como naturalismo – cujo maior represen-tante na época moderna foi o filósofo escocês David Hume (1711-1776) – consiste, essencialmente, na disposição de tirar todasas conseqüências do reconhecimento desse fato acerca da natu-reza humana: que o que somos capazes de pensar depende, tam-bém, do que somos capazes de sentir.

Da perspectiva do naturalismo defendido por Hume, ofilósofo que imagina que podemos enfrentar questões difíceiscomo o aborto, a eutanásia ou a clonagem de seres humanos (paramencionar apenas alguns dos tópicos discutidos neste livro) “pon-do entre parênteses” as atitudes, disposições e sentimentos queconstituem nossa vida com os conceitos está sucumbindo a umailusão. Ele se imagina, e aos outros, habitando um mundo quepoderíamos descrever empregando conceitos que não guardari-am nenhuma relação com nossas necessidades, desejos, temo-res, expectativas, preferências ou aversões: um mundo em que ofato de estar chovendo não seria razão suficiente para buscar-mos abrigo; em que o sofrimento de outro ser humano não seriarazão suficiente para lhe estendermos a mão. Entregue a essafantasia, ele termina por falar e escrever, como disse memora-velmente Stanley Cavell, “como se tivesse esquecido” o que éuma discussão moral séria. E, então, começam a parecer fazersentido essas perguntas que tornam tão repulsivo o ambiente decertas discussões acadêmicas sobre ética: ‘Por que é errado con-denar um inocente?’ ou ‘Como sabemos que a crueldade é ummal?’ Como viu Hume, o que o homem que faz essa espécie depergunta está “esquecendo” ou “pondo entre parênteses” é suaprópria humanidade. E a pergunta de Hume era: que ética pode-mos esperar como resultado dessa espécie de lobotomia moral?

Mas, como Hume também se empenhou em mostrar, omundo imaginado naquela fantasia mórbida não é o da experi-ência moral humana (de fato, ele acrescentaria, esse não é o

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mundo de nenhuma experiência que pudéssemos conceber co-erentemente). A idéia corrente de que interesses, desejos, pre-ferências ou aversões (na versão “utilitarista”) ou, alternativa-mente, considerações normativas puras (na versão “deontoló-gica”), deveriam ser acrescentados à contemplação desinte-ressada (a uma espécie de cognição pura) dos fatos para ter-mos um juízo moral é uma fantasia nociva – e é só depois quenos livramos dela (e do impulso à evasão, à irresponsabilida-de moral, que a alimenta) que podemos começar a pensar seri-amente sobre nossas dificuldades.

É dessa perspectiva – a de uma crítica da ética filosóficaque denuncia como ininteligível (porque vazio) acrescentar oadjetivo ‘aplicada’ ao substantivo ‘ética’ – que é escrita estaintrodução à ética médica e à bioética.

Trata-se de uma proposta modesta: o leitor não encontra-rá neste livro nenhum grande sistema de princípios filosóficosque asseguraria um critério de solução para todos os casos. Orealismo em ética consiste justamente em renunciar a essa espé-cie de garantia ilusória, que nos exoneraria da dificuldade deeducar nossa consciência moral, e submeter à reavaliação críti-ca nossas convicções. E em poucas áreas nossas convicções es-tão a exigir mais urgente reavaliação que naquela constituídapelos problemas de que trata este livro.

Podemos renunciar a esses problemas: proclamar que nãoé tarefa da filosofia enfrentá-los – e condenar nossa filosofia àirrelevância que é o preço de toda fantasia de resolver com ar-gumentos a priori problemas que não podem ser resolvidos, enem mesmo formulados adequadamente, sem informação empí-rica adequada e detalhada. Podemos, também, entregar-nos àcrença supersticiosa na capacidade da ciência de resolver sozi-nha todos os problemas que suscita.

Mas, se queremos resistir a essa espécie de ilusão, pre-cisamos estudar. Não saberemos nem mesmo por onde começara enfrentar esses problemas difíceis enquanto não nos empenhar-mos em adquirir a informação mínima requerida para descrevê-

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los adequadamente. Mas também não faremos nenhum progressose não formos capazes de pensar nesses problemas fazendo usointegral do legado de discernimento moral que nos foi transmiti-do com as reações, atitudes, expectativas e sentimentos que cons-tituem nossa vida moral. O livro de Marco Antônio Azevedo éuma introdução ideal a esse desafio.

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Introdução

Dois temas são objetos deste livro: a ética médica e abioética. Isso exige alguns esclarecimentos preliminares. Primei-ro, o que entendemos por ‘ética médica’? Ora, trata-se da ética doexercício da medicina. E por ‘bioética’? Em geral, quem entendeo significado de ‘medicina’ sabe igualmente que o seu exercíciocomporta uma ética especial; porém, se há uma outra ética, alémda já tradicional ética médica, a que profissionais ela se aplica-ria? Sabemos que a atividade médica guia-se por padrões éticosbem definidos. A maior parte dos leigos tem conhecimento de quetodo estudante de medicina, ao se tornar um médico, costuma prestarum juramento solene durante seu ato de formatura. Esse juramentosubmete o médico recém-formado a um conjunto de obrigações.Uma dessas obrigações, notória e amplamente reconhecida, é a deprestar socorro. Mas, e a bioética, que obrigações implicaria? Àprimeira vista, poderia parecer que a bioética seria a ética nãoapenas dos médicos, mas de todos os demais profissionais de saú-de. Algumas passagens dos livros de Bioética mais conhecidospermitiriam conclusões deste tipo: ‘A bioética inclui a ética mé-dica, mas vai além dos problemas éticos tradicionais da medici-na, porque também examina os vários problemas éticos das bioci-ências, que não são, basicamente, médicos’.1

Entretanto, examinando de perto essa frase, nota-se que oque com ela se entende por ‘ética médica’ é algo diferente do

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mero estudo da aplicação das normas contidas no famoso jura-mento ou nos códigos de ética profissional, isto é, da deontolo-gia médica. Afinal, os códigos de ética não ‘examinam’ proble-mas. Sob a ótica dos códigos profissionais, os problemas refe-rentes ao exercício da medicina são infrações normativas quepodem requerer sanções de algum tipo. O que os códigos fazemé classificar esses problemas e estabelecer para cada tipo umasanção determinada. Sabemos, todavia, que não são apenas oscódigos de ética que regulam a atividade das profissões. Os atosmédicos, por exemplo, são também regulados pela esfera maiordo Direito. Isso implica dizer que a atividade profissional (nãosomente médica, certamente) é igualmente regulada pelos códi-gos civil e penal, assim como pela Constituição e por toda formade legislação complementar, federal, estadual ou municipal a elaaplicada. O estudo da aplicação dessas normas, impostas pelopoder público aos médicos, é atualmente chamado de DireitoMédico.2 Ora, nem o direito médico, nem a deontologia médicaconsistem nessa disciplina acima chamada de ética médica, queteria como finalidade examinar os “problemas éticos” envolvi-dos com a prática dos profissionais da medicina.

A ética médica que nos interessa neste livro é o que po-deríamos chamar de estudo da moral ou da moralidade médica.Isso inclui o estudo dos costumes, crenças e valores morais dosprofissionais médicos, inclusive de seu código de ética. Trata-se, assim, de um estudo, de fato, de caráter mais amplo que adeontologia. A ética médica que nos interessa não é propriamen-te o sistema de interpretação do código de ética, a deontologiada profissão, ou o sistema de interpretação das normas jurídicasaplicadas ao exercício profissional, que é parte da chamada ci-ência do direito e que foi denominada especificamente de Direi-to Médico por Genival Veloso de França (ainda que possa, emalgum sentido, incluí-lo).

Vamos clarear isso. Sabemos que os termos ‘ética’ e ‘mo-ral’ são semanticamente correlatos. Com alguma freqüência, elessão empregados inclusive como sinônimos. Porém, é fácil admi-

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tir que, se estamos falando de ética como uma forma de estudo, épreciso diferenciá-la de seu objeto. Não há muito problema, naverdade, em se falar da ‘Ética’ como o estudo da ética (assimcomo o ‘Direito’, entendido como a ciência do direito é tambémo estudo do direito). Porém, se temos dois termos igualmenteaplicáveis a um mesmo domínio semântico, nada mais útil doque arbitrar seus empregos de um modo mais particularizado.Assim, em que pese exista quem empregue esses dois termos emum sentido diferente, vou sugerir que reservemos o termo ‘ética’para o estudo da moral ou da moralidade.3 Assim sendo, a éticamédica será aqui entendida como o estudo particular da morali-dade médica.

Resta saber, ainda, de que tipo de estudo se trata. Há umcostume acadêmico de se considerar toda forma de estudo quepretenda estabelecer algum conhecimento de forma sistemáticacomo um tipo de ciência. A Ética, nesse sentido, deveria serentendida como a ciência da moral. Os filósofos, porém, evitamessa expressão. Afinal, para eles, a Ética não é uma ciência emsentido estrito. Não caberia à Ética descrever ou explicar oscostumes ou o comportamento humano. Esse papel caberia aospsicólogos, aos sociólogos, aos antropólogos, aos historiado-res. A Ética deveria ser entendida como uma disciplina filosófi-ca. Além disso, a Ética não seria uma ciência teórica, mas práti-ca. Ou seja, a Ética não se destinaria a estabelecer verdades.Nowell-Smith, em seu livro Ethics, afirmou que a Ética não éum saber acerca do que ocorre no mundo. Ela é um saber práticoque se destina a responder perguntas tais como ‘O que devo fa-zer?’ e não propriamente perguntas como ‘O que é?’ ou ‘O queexiste?’.4 Mas esse modo de ver as coisas não seria um meropreconceito dos filósofos? Afinal, se por Ética entendemos oestudo filosófico da moralidade, como chamaríamos o estudonão-filosófico, histórico, antropológico e sociológico dos cos-tumes e comportamentos humanos? Para evitar confusões, prefi-ro empregar o termo Ética no sentido genérico que envolve to-dos os tipos de estudo, tanto os com fins teóricos, como os estu-

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dos com fins práticos, e chamar de ética filosófica ao estudopropriamente filosófico, não-descritivo, da moral. Assim, a éti-ca médica filosófica seria esta investigação peculiar dos funda-mentos ou, como alguns preferem, dos princípios da moralidademédica. É evidente que aqui entramos num terreno algo contur-bado. A filosofia não tem uma definição precisa e consensualsobre sua própria atividade, muito menos de seus termos. Emfilosofia, na maior parte das vezes, dar uma definição implicatomar partido. É bem possível que, devido ao receio de tomarpartido de modo precipitado, os filósofos se habituaram muitomais a esclarecer problemas do que a apresentar soluções.

Mary Warnock disse que a prática da filosofia é geral-mente melhor compreendida como a prática de suscitar questõessobre coisas que usualmente são tidas como estabelecidas ouque, com muita freqüência, sequer pareciam questionáveis.5 Ofilósofo “cria” mais problemas do que soluciona, isto é, ele de-tecta problemas onde usualmente eles não pareciam existir. En-tre os filósofos, em que pesem as várias diferenças de escola ede método, é largamente aceita a noção de que a filosofia presta-se a analisar o significado de certos conceitos fundamentais. Con-ceitos como ‘bom’ e ‘mau’ (e os correlatos ‘bem’ e ‘mal’), ‘cer-to’ e ‘errado’, ‘virtude’ e ‘vício’ são freqüentemente tidos comofundamentais em filosofia moral. Assim, a ética médica filosófi-ca deveria tratar de questões como: ‘O que queremos dizer combom e mau, certo e errado, virtude e vício no âmbito da práticamédica?’ Porém, essas questões remetem a outras que dizem res-peito não propriamente à ética, mas à filosofia da medicina: oque é medicina, o que é saúde, o que é profissão? Nesse caso,talvez seja melhor apresentar a ética médica como o estudo damoral peculiar a uma certa prática profissional, prática essa cu-jos conceitos fundamentais merecem igualmente investigação eesclarecimento. A ética médica, nesse sentido, é o estudo geralda moral que acompanha e se desenvolve com a história da prá-tica da medicina. Considerando sua parte filosófica, trata-se dareflexão sobre os conceitos próprios à moralidade comum que

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sustenta essa prática, sobre sua consistência ou inconsistênciainternas, suas variações e conflitos. Igualmente, sobre os desafi-os decorrentes da relação entre a moral particular dessa comuni-dade moral e a moralidade comum da sociedade em geral.

E quanto à Bioética? Como já vimos, trata-se de um ter-mo novo e, seguramente, de uma disciplina nova. Neste livro,procurarei mostrar em que momento surgem esse novo conceitoe essa nova disciplina. Por enquanto, cumpre-me assinalar que,ao contrário da ética médica, cujas origens remontam à época dosurgimento da medicina na Grécia antiga, a Bioética tem poucomais de vinte e cinco anos. A Bioética teve origem nos EstadosUnidos da América, como o resultado da preocupação crescentecom as conseqüências do emprego de novas tecnologias na me-dicina, preocupação essa que, não sendo restrita aos médicos,tornou-se multidisciplinar, alcançando não somente outras pro-fissões da área biomédica, mas também todo o universo leigoexterno ao domínio mais restrito dos círculos profissionais eacadêmicos. Vou definir a Bioética como o estudo multidisci-plinar dos aspectos morais da investigação e da prática naárea biomédica.6

Atualmente, muitos currículos acadêmicos já contam comdisciplinas de Bioética, além das já tradicionais disciplinas dedeontologia. Já há programas de pós-graduação em Bioética e játemos vários profissionais que atuam como bioeticistas. Institu-tos de pesquisa em Bioética proliferaram em vários países, se-guindo a linha dos pioneiros norte-americanos Kennedy Institu-te of Ethics da Georgetown University (Washington DC) e doHastings Center de Nova York. Já existem no mundo inteiroassociações nacionais e internacionais de Bioética.

A Bioética, contudo, não é apenas uma área multidisci-plinar de investigação. Ocupada eminentemente com questõespráticas, a Bioética também possui uma subdivisão dedicada àclínica. A Bioética Clínica é a área da Bioética que se dedica aestabelecer critérios, padrões e diretrizes morais para a soluçãode problemas clínicos concretos. Em Bioética, há várias abor-

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dagens concorrentes em Bioética Clínica, agrupadas em tornodas diferentes escolas teóricas, bem como de seus matizes inter-nos. Este livro não tratará especificamente de Bioética Clínica,em que pese muitas situações clínicas venham a ser utilizadaspara ilustrar as várias dimensões de um certo problema. A Bioé-tica Clínica é uma área de alto interesse atual. No entanto, emBioética Clínica, a reflexão teórica visa a um interesse clínicodireto. Neste livro, a reflexão teórica terá uma natureza primari-amente filosófica.7

Os capítulos e os temas escolhidos para este livro refle-tem, sem dúvida, a perspectiva do seu autor, isto é, refletem suaspreferências filosóficas. Essas preferências podem também re-fletir, por vezes, alguns preconceitos. Isso eu não posso negar.Porém, todo aquele que investiga problemas filosóficos parte,ao menos inicialmente, de seus próprios preconceitos, para po-der, refletindo sobre eles, inclusive superá-los. Para superar pre-conceitos é preciso, antes, pô-los em evidência. E evidenciarum preconceito é apresentar o desconforto provocado por algu-ma situação prática ou pela abordagem e pela solução apresen-tadas por alguma teoria. O passo seguinte consiste em ampliar oproblema, conhecer sua história e seus possíveis desenvolvi-mentos. Distanciamo-nos de um problema particular e o contem-plamos como momento de uma situação maior, tanto no tempocomo no espaço. Assim, tanto a situação como as soluções apre-sentadas para ela podem ser vislumbradas sob um outro prisma.Nesse processo de descentramento, é possível que o nosso des-conforto inicial assuma uma outra característica. O filósofo es-cocês David Hume talvez dissesse que se trata de um processono qual nossas impressões deixam de lado sua particularidade eviolência inicial, para se tornarem calmas e serenas. Esse é, talcomo hoje penso, o método de reflexão a ser empregado em filo-sofia moral. Examinamos fatos e seu desenvolvimento históricoe as relações entre tais fatos e os sentimentos que refletem nossaprópria natureza moral. Há, evidentemente, outras perspectivasem filosofia moral. Mas creio que é correto e prudente que eu

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anuncie desde já de quais pontos-de-vista partem minhas esco-lhas temáticas.

Este livro é um livro de reflexões filosóficas sobre asrelações entre a ética médica clássica e a atual disciplina deno-minada de Bioética. Porém, somente alguns temas puderam serdiretamente tratados. A Bioética é uma disciplina que abarcauma vastidão de temas. No Brasil, estamos recém iniciando essepercurso de investigações, que, de todo modo, é bastante recenteno mundo inteiro. Não seria prudente, nesse aspecto, que sim-plesmente adotássemos um modo ou outro de ver as coisas e nãopartíssemos para uma reflexão crítica mais abrangente. Já há noBrasil um bom número de publicações nacionais sobre o assuntoe já temos alguns grupos de profissionais com experiência reco-nhecida dentro e fora do país. Por outro lado, surpreendo-me emver como temos no Brasil tão poucas discordâncias e debatesem um terreno tão controverso. Talvez meu livro venha a serencarado com certo receio pelo leitor já familiarizado com aBioética, mas pouco acostumado com o saudável hábito da polê-mica. Porém, este é exatamente o meu objetivo: provocar refle-xões e introduzir alternativas que enriqueçam o panorama atualde nossas discussões.

Dentre os problemas que elegi para este livro, algunsrefletem minha preocupação com a adoção irrefletida de algu-mas abordagens em Bioética, feitas sem levar em conta todos osseus pressupostos filosóficos. Por exemplo, a abordagem domi-nante em Bioética no nosso país é a baseada em princípios, fre-qüentemente denominada de principialismo. Seus representan-tes mais eminentes na literatura bioética são os dois autores nor-te-americanos do livro Principles of biomedical ethics, TomBeauchamp e James Childress, pesquisadores associados aoKennedy Institute of Ethics.8 Outra abordagem bastante conheci-da e aceita é a oferecida por Robert M. Veatch, diretor do mes-mo Instituto, e autor de outros dois clássicos de bioética, A the-ory of medical ethics e The patient as a partner, livro divididoem duas partes, A theory of human-experimentation ethics e

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The patient-physician relation, nos quais Veatch expõe sua teo-ria de que certos princípios tradicionais da ética médica hipo-crática, em especial, o princípio da beneficência, sofrem hoje anecessária precedência de outros princípios como o da autono-mia e da justiça. Em que pesem as diferenças entre essas duasabordagens, ambas consideram que os preceitos tradicionais damedicina hipocrática estão superados. Para ambas, a ética médi-ca necessita de novos conceitos. Tanto o paternalismo médicocomo o conservadorismo tradicional, que se recusam a incorpo-rar os novos valores da moderna sociedade de direitos no âmbi-to da prática da medicina, seriam devidos à fixidez dos dogmashipocráticos e a uma incorreta abordagem dos princípios queatualmente regem a prática biomédica.

O primeiro capítulo deste livro dedica-se a refletir so-bre a introdução dessas novas abordagens, tendo por base o pa-norama em que surgiu a Bioética, ilustrado a partir de um casoclínico clássico, o da jovem Karen Ann Quinlan. Esse caso, comoveremos, ilustra o conflito entre a moralidade tradicional internaà prática médica e a nova moral de respeito aos direitos indivi-duais pressuposta pelo direito contemporâneo. As abordagensbaseadas em princípios supõem, todavia, uma filosofia moral epolítica determinada, que, julgo, devemos compreender adequa-damente. Também mantêm uma visão peculiar sobre os chama-dos dilemas morais. A abordagem centrada em princípios pro-põe uma orientação à prática clínica. Contudo, adotar uma abor-dagem prática com conseqüências em bioética clínica talvez im-plique a aceitação de certas premissas filosóficas mais comple-xas. É preciso discuti-las primeiro.

O segundo capítulo do livro propõe refletir sobre algunsconceitos fundamentais da antiga tradição hipocrática em con-traste com alguns conceitos novos. Para tanto, escolhi alguns re-presentantes nesse debate, em especial, Leon Kass da Universi-dade de Chicago; David Thomasma, da Loyola University (tam-bém de Chicago), Edmund Pellegrino e Robert Veatch (amboscolegas da Georgetown University e do Instituto Kennedy). Kass

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representa a posição de defesa do hipocratismo. Veatch protago-niza a posição adversária à tradição, centrada em sua teoria for-temente baseada no princípio do respeito aos direitos dos paci-entes. Thomasma e Pellegrino representam uma posição inter-mediária.

Um dos argumentos mais famosos nos debates em Bioéti-ca é o assim chamado argumento da ladeira escorregadia. Eleé freqüentemente empregado contra a admissão de novos princí-pios alheios aos clássicos princípios e preceitos deontológicosda tradição hipocrática. Segundo esse argumento, admitir a pos-sibilidade, por exemplo, de que o aborto e a eutanásia possamser corretos em algumas circunstâncias implicaria admiti-los tam-bém em outras circunstâncias imediatamente afins, e assim pordiante, até o ponto em que passaríamos a admiti-los como corre-tos em circunstâncias em que anteriormente seriam absolutamen-te recriminados. Tendo isso em vista, o terceiro capítulo faz umretorno ao contexto da prática e da condenação da prática damedicina sob o nazismo e reflete se a aceitação da crítica aosdesvios da tradição hipocrática implica necessariamente umarecusa às novidades advindas com a Bioética, isto é, se o argu-mento da ladeira escorregadia detecta ou não as sutilezas dessesdilemas.

Num percurso progressivo, passo a um exame das mu-danças conceituais que passaram a operar internamente na tradi-ção hipocrática, dentre os quais, o conceito de saúde, doença esuas implicações com respeito à noção geral de justiça. A medi-cina sabidamente vem-se modificando nos últimos séculos e,acentuadamente, nas décadas finais do século XX. Questões fun-damentais como decisões sobre a alocação de recursos escassossão problemas tipicamente atuais. Segundo Albert Jonsen, pro-fessor de Ética e História da Medicina da Faculdade de Medici-na da Universidade de Washington, em Seattle, a Bioética surgecomo uma decorrência desses novos problemas. A medicina,entendida como uma instituição, uma prática ou uma profissão, édominada por um aparente paradoxo congênito comum às profis-

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sões liberais: a satisfação pessoal do médico (em qualquer sen-tido que quisermos, seja sua realização pessoal como profissio-nal, sejam os benefícios pessoais adquiridos com seus honorári-os, etc.) resulta do empenho em empregar todo seu conhecimentopara o benefício de uma outra pessoa. Isso se diferencia da ati-vidade comercial, que, de um modo usualmente aceito, permite-se operar segundo o primado do interesse próprio, daí por quenecessariamente regulada por uma esfera exterior. O primadomoral do comércio é a honestidade. Na medicina, fala-se emfidelidade, confidencialidade, mas fala-se também em benefi-cência e não-maleficência. Em geral não esperamos que um co-merciante, como tal, possa agir corretamente traindo o primadoda honestidade. Porém, um médico excessivamente honesto podepor vezes ser cruel. Desafios morais sempre se impuseram aosmédicos durante séculos; todavia, suas soluções cabiam apenasaos membros da profissão. Atualmente, tais soluções ultrapas-sam os limites da profissão médica. Um dos exemplos mais típi-cos são os problemas concernentes à alocação de recursos es-cassos. Como decidir quem deve receber um certo tipo de trata-mento ou quem deve ser priorizado? No quarto capítulo, procu-ro refletir sobre algumas mudanças conceituais na medicina, emespecial, à incorporação do pensamento utilitarista e do raciocí-nio epidemiológico na prática clínica. Verifico como tais mu-danças operam no contexto da racionalidade da tradição hipo-crática e como os conflitos com a moralidade interna à profissãomédica ainda não se acham superados, mesmo com o surgimentoda Bioética e com a conseqüente introdução de pontos-de-vistaexternos à moralidade médica no âmago dos debates.

O quinto capítulo dedica-se ao estudo das implicaçõespara a ética médica e para a Bioética das reflexões sobre o sui-cídio assistido. David Hume mostrou uma vez que os argumen-tos que consideram o suicídio um crime moral são falhos. Poroutro lado, a defesa da liberdade de cometer o suicídio é idios-sincrásico a uma certa concepção liberal extremada, que confli-tua com os preceitos médicos tradicionais. Os casos em que se

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envolveu, por exemplo, o Dr. Jack Kevorkian, hoje mundialmen-te conhecidos pela mídia, revelam algo de paradoxal. A medici-na, de fato, não encara o suicídio como um problema relativo auma opção racional ou de liberdade pessoal. Trata-se de um pro-blema médico. Porém, isso tem uma origem moral clara na natu-reza da atividade profissional médica. Parece, assim, que há ele-mentos da tradição que não conseguem e talvez não possam nemdevam ser erradicados. Nesse capítulo, pretendo desenvolver aalternativa de uma filosofia moral fundada nos sentimentos hu-manos, alternativa essa que tem em Hume sua maior referênciaclássica.

O sexto capítulo prossegue nessa busca de alternativasàs visões dominantes representadas, de um lado pelas versõesmais conservadoras da tradição hipocrática, de outro pelo prin-cipialismo, pelo liberalismo neocontratualista e pelos utilitaris-tas. Parto então para a apresentação de um exemplo do que vemsendo chamado no meio filosófico de ética baseada no cuidado(em inglês, care ethics). Nesse âmbito, questões como a diferen-ça de percepção moral entre homens e mulheres e diferenças depercepção moral entre médicos e enfermeiros são abordadas. Oâmbito do cuidado é sustentado como uma dimensão moral abran-gente, coesionadora da unidade entre os profissionais que atuamna área da saúde. A Bioética é vista, assim, como uma aborda-gem eminentemente multicultural.

No sétimo capítulo, passo a considerar questões que têmalgumas implicações metafísicas, como o conceito de pessoa e decorpo. A preocupação central é o problema dos transplantes deórgãos e, novamente, o argumento liberal individualista, agora con-siderado a favor da venda de órgãos, é posto em questionamento.No oitavo capítulo, passo ao problema da pesquisa e da manipu-lação de embriões em laboratório, com algumas intersecções como problema clássico do aborto. Algumas teses sobre a definiçãode pessoa humana e sobre o objeto da moralidade são considera-das. No nono capítulo, trato dos temores quanto às possibilidadesde uso da genética, sobre a clonagem e técnicas afins.

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Este livro, enfim, não pretende ser um tratado de introdu-ção à Bioética. É um livro de reflexões e particularmente umlivro de filosofia. Ele destaca apenas alguns problemas da éticamédica e da bioética, que servem fundamentalmente como fioscondutores de uma reflexão sobre os fundamentos morais e filo-sóficos da ética médica tradicional e das várias alternativas co-locadas atualmente pela Bioética. Ele pretende ser um livro deintrodução a problemas de Bioética, tendo como público tantopessoas da área biomédica, filósofos, como também leigos inte-ressados no assunto. Para tanto, procurei tornar sua linguagem amais acessível e clara possível, sem ser superficial. Essa é umadas características da Bioética: dirigir-se a um público maisamplo que o tradicional público de especialistas. Numa tentati-va de conclusão, definirei complementarmente a Bioética comoa reflexão multicultural sobre assuntos de interesse geral rela-tivos à moralidade humana inerentes à prática das profissõesbiomédicas. Porém, como se verá a seguir, nem todas essas re-flexões dirigem-se a problemas. Muitas delas problematizamquestões tidas por resolvidas e aceitas. Esta é a dimensão daatividade filosófica no interior da Bioética: buscar esclarecerproblemas que pareciam já estar resolvidos.

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