bioetica e biotecnologia

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    Revista Brasileira de Biotica 2010;6 (1-4):115-138

    (Bio)tica e (Bio)Tecnologia(Bio)ethics and (bio)technology

    Mrcio Rojas da CruzUniversidade de Braslia, Braslia, Distrito Federal, [email protected]

    Gabriele CornelliUniversidade de Braslia, Braslia, Distrito Federal, Brasil.

    [email protected]

    Resumo:A biotecnologia, de modo similar ao que ocorre com outras reasdo conhecimento, ao mesmo tempo em que pode gerar grandes benefcios,pode igualmente gerar grandes riscos. Em alguns casos, a condio quedistingue o legtimo do ilegtimo to tnue que uma prtica questionveldo ponto de vista moral pode facilmente ser aceita por significativa parcelados atores envolvidos. Diante desse cenrio de to especial interesse paraa sociedade, este trabalho buscar investigar a relao entre a biotica e abiotecnologia, tendo por base a contribuio de reflexes sobre a inocuidadedo conhecimento, a neutralidade da cincia, a convergncia na racionalidade

    epistmica e o progresso.

    Palavras-chave: Biotica. Biotecnologia. GURTs. Neutralidade da cincia.Progresso.

    Abstract: In the same way as occurs in other fields of knowledge, not onlycan biotechnology generate large benefits, but also, at the same time, it canequally generate large risks. In some cases, the condition that distinguisheswhat is legitimate from what is not is so tenuous that a practice that is ques-

    tionable from a moral point of view may easily be accepted by a significantportion of the players involved. In the light of this scenario of special interestfor society, the present study seeks to investigate the relationship betweenbioethics and biotechnology, based on contributions from reflections on theharmlessness of knowledge, neutrality of science, convergence of epistemicrationality and progress.

    Keywords:Bioethics. Biotechnology. GURTs. Neutrality of science. Scientificprogress.

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    Dar incio a este texto com um exemplo recente de uma aplicaobiotecnolgica com claras implicaes bioticas seria, por mais recen-te que fosse o exemplo, correr o srio risco de aparentar obsoletismo.

    Isto porque, hodiernamente, somos expostos novidades no empregode tcnicas biotecnolgicas com tamanha velocidade, que mal temostempo de concluir de forma adequada a reflexo dos tpicos impostospelas conquistas cientficas.

    Com o desenrolar da histria humana, a tcnica, nascida para ha-bilitar seus criadores a sanarem necessidades, foi aos poucos passan-do a ocupar um papel de destaque em nossa civilizao, impulsiona-da pela crena de que sempre h algo para ser melhorado e a nossa

    vocao encontrar os meios que nos permitam alcanar o conheci-mento e o instrumental prtico para tal misso.

    Para que se tenha uma idia do impacto oriundo de investimen-tos e gerao de conhecimento nesse campo, a biotecnologia figuraao lado da robtica e da nanotecnologia como uma das trs grandespromessas de inovao tecnolgica para o sculo 21, segundo o fsicoLuiz Oliveira. Tendo por fundamento compartilhado a caracterstica

    de crescente habilidade na manipulao de objetos minsculos, estastrs grandes reas da cincia moderna nos impulsionam em direoao redesenho da forma humana, sendo desnecessrio alertar para ofato de que essa virtualidade [...] inteiramente singular na histriada cultura e nos impe a considerao de questes ticas to rduasquanto urgentes (1).

    Assim como em outras reas do conhecimento, a biotecnologiapode gerar grandes benefcios para nossa sociedade. Estratgias cada

    vez mais eficazes, como o emprego de biomolculas mais seguraspara o tratamento de diversas enfermidades, tm inquestionavelmen-te melhorado a qualidade de vida da sociedade humana. Por outrolado, armas biolgicas cada vez mais mortais podem ser alcanadaspor meio das exatas mesmas tcnicas de manipulao de organismosvivos.

    Em alguns casos, a condio que distingue o legtimo do ilegti-

    mo to tnue que uma prtica questionvel do ponto de vista moralpode facilmente ser aceita por grande parte dos atores envolvidos.Trata-se, por exemplo, do caso das pesquisas mdicas, que no sculo18 tiveram suas doutrinas produzidas, desembocando no experimen-

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    talismo desenfreado observado no sculo 20, conforme citado por Ro-mano:

    Potenciadas essas formas de representao pelas ideologiastotalitrias, os massacres de milhes de seres humanos mos-traram que a pura racionalidade cientfica tudo menos ing-nua. Sem cair no erro de apontar as Luzes como a fonte dototalitarismo, pode-se dizer que nelas foram gestados algunstipos de pensamento que se tornaram cruis realidades emnossos dias (2).

    Analisemos brevemente, a ttulo de ilustrao, o caso das tecnolo-gias de restrio do uso gentico (genetic use restriction technologies GURTs). Com desenvolvimentos iniciados na dcada de 1990, asGURTs podem ser definidas como um conjunto de tcnicas que, pormeio da transformao gentica de plantas, introduz um mecanismointerruptor gentico e, por conseguinte, previne o uso no autorizadodo germoplasma de uma planta particular ou dos atributos associados

    a este germoplasma (3).As GURTs podem ser classificadas em dois grandes grupos. Noprimeiro, denominado V-GURTs (variety-level genetic use restrictiontechnologies), a alterao gentica apresentaria efeitos em nvel devariedade, fazendo que as plantas produzidas desta forma apenas pu-dessem produzir sementes estreis, inviabilizando a prxima gerao.A germinao de sementes de plantas produzidas pelas V-GURTs condicionada estimulao externa antes do plantio.

    O segundo grupo, por sua vez, denominado T-GURTs (trait-spe-cific genetic use restriction technologies). Nesse, a alterao genticaapresentaria efeitos em nvel de atributo, restringindo-se apenas auma caracterstica especfica. Resistncia ao ataque por insetos, in-cremento na produtividade e controle de alguma fase de desenvol-vimento da planta so atributos que confeririam valor agregado aoproduto. Plantas produzidas pelas T-GURTs dependeriam de estmuloexterno para a manifestao do atributo conferido ao genoma do or-ganismo, mas no para a produo de sementes frteis.

    Uma atitude moralmente aceita seria empregar as V-GURTs comoforma de controle em plantios experimentais e comerciais, impedindo

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    assim que genes artificialmente introduzidos em dada variedade deplanta disseminassem-se, podendo causar danos para as variedadessilvestres da mesma planta ou at mesmo para outras populaes ve-

    getais e animais.Em contrapartida, as T-GURTs poderiam ser empregadas comoforma de dominao econmica, limitando a capacidade de agriculto-res de praticarem o chamado privilgio do agricultor, prtica esta queconsiste em reservar uma parte das sementes produzidas em uma es-tao para us-la em plantios da prxima estao, sem a necessidadede novas autorizaes por parte do detentor dos direitos de proprie-dade intelectual.

    Uma vez que a atividade cientfica e tecnolgica hoje o resulta-do de uma coletividade em que opinies singulares, via de regra,permanecem na esfera pessoal, exercendo pouca ou nenhuma influ-ncia passvel de observao , acredita-se necessria, ainda queno suficiente, a dedicao ao estudo do envolvimento de polticaspblicas e entidades governamentais de mbito federal.

    Esse estudo se revela especialmente importante quando conside-

    rado o fato de que caso no haja equilbrio entre os interesses dos pre-sentes e os interesses dos futuros, os atos praticados pelos primeirospodero vir a comprometer a prpria existncia dos segundos. Estapossibilidade persiste mesmo quando se abdica de qualquer mentali-dade excessivamente apocalptica.

    Diante desse cenrio de to especial interesse para a sociedade,este trabalho buscar investigar a relao entre a biotica e a biotec-nologia, tendo por base a contribuio de reflexes sobre a inocuida-

    de do conhecimento, a neutralidade da cincia, a convergncia naracionalidade epistmica e o progresso.

    A cincia moderna

    O adjetivo simples no raramente acompanha discusses sobre re-centes descobertas cientficas, at mesmo no seio de grupos de leigos,cujo nico contato com o pensamento cientfico se deu por meio doscontedos das grades curriculares dos ensinos fundamental e mdio.

    No obstante, enganar-nos-amos se acreditssemos que o conhe-cimento disponvel hoje guarda uma existncia to antiga quanto a

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    nossa capacidade intelectual. Na verdade, as certezas das quais dis-pomos hoje s fazem sentido quando apresentadas em um contextoespecfico, em conjunto com uma srie de outros componentes do sa-

    ber. Essas certezas tiveram suas origens em dvidas que precisavamser confirmadas e que, por sua vez, foram confrontadas com certezasprvias, que por alguma razo se revelaram incompletas ou incorre-tas; enfim, no to certas quanto se supunha.

    Na Idade Mdia, a preocupao que reinava no cotidiano era aconquista do direito de se gozar a vida eterna no paraso e a atitu-de humana diante da natureza era fundamentalmente contemplati-va. Na Idade Moderna, por sua vez, com a migrao da preocupao

    para o momento presente, a fase de contemplao d lugar fase dedomnio da natureza.

    Para Alexandre Koyr, a histria do pensamento cientfico da Ida-de Mdia e da Renascena pode ser didaticamente apresentada portrs tipos distintos de pensamento. O primeiro consta da fsica aris-totlica, cujas crenas principais so a existncia de naturezas quali-tativamente definidas e a existncia de um cosmo com princpios de

    ordem e ordenao hierrquica do conjunto dos seres reais.Com a incapacidade da dinmica aristotlica de lidar com a per-sistncia do movimento, ao se separar corpo e motor sendo o ltimoo responsvel pelo movimento do primeiro, como por exemplo, o vode uma flecha ao se separar do arco , surge o segundo tipo distintode pensamento, a fsica doimpetus.

    Trata-se de algo transmitido ao corpo movido que lhe confere acapacidade de movimento, trata-se de uma causa imanente do mo-

    vimento. Sobrepujam-se, assim, as dificuldades colocadas pelo movi-mento no vcuo, contudo persiste a incompatibilidade com o princpioda inrcia. Ademais, tanto a dinmica aristotlica quanto a dinmicadoimpetusso incompatveis com o mtodo matemtico.

    Por fim, o terceiro tipo de pensamento cientfico representadopela fsica moderna, tendo por pioneira a obra de Galileu Galilei, queintroduz a relatividade do movimento, a imutabilidade do corpo es-tando ele em movimento ou em repouso e a persistncia dos estadosde repouso e movimento, diametralmente opostos entre si a famosalei da inrcia (4).

    Destaca-se o seguinte comentrio a respeito da cincia moderna,

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    mais especificamente, a respeito do papel que deveria ser exercidopelos fundadores da cincia moderna, entre os quais Galileu, papeleste inteiramente diverso daquele de simplesmente corrigir teorias

    erradas ou substitu-las por outras teorias melhores:

    Tinham de destruir um mundo e substitu-lo por outro. Ti-nham de reformar a estrutura de nossa prpria inteligncia,reformular novamente e rever seus conceitos, encarar o Serde uma nova maneira, elaborar um novo conceito do conheci-mento, um novo conceito da cincia, e at substituir um pontode vista bastante natural o do senso comum por um outro

    que, absolutamente, no o (4).

    Merecem meno os obstculos que tiveram de ser vencidos pe-los fundadores da cincia moderna, considerados por Koyr inimigospoderosos: a autoridade, a tradio e o senso comum, sendo este lti-mo tido como o pior de todos (4).

    Estes inimigos eram especialmente fortalecidos por aquilo que o

    historiador da cincia Paolo Rossi denomina uma espcie de paradig-ma dominante e que durante muitos sculos poderia ser encontradocomo configurado na cultura europia: a tese de um saber secretodas coisas essenciais, cuja divulgao poderia trazer consequnciasnefastas.

    At o sculo 14, estas conseqncias nefastas consistiam na con-fuso entre o homo animalis numerosos homens simples e igno-rantes, destinados a uma existncia guiada por instintos, na busca

    pela superao das necessidades mais bsicas e o homo spiritualis poucos homens sbios e eleitos, que detinham o controle da possi-bilidade de purificao da alma e do alcance da salvao por meio doconhecimento transmitido enigmaticamente por mestres em busca daperfeio individual.

    A partir do sculo 15, o segredo passa a ser mais valorizado porartesos e por engenheiros, sendo que as consequncias nefastasno eram mais a conquista do conhecimento por parte da sociedadecomum, mas os potenciais prejuzos econmicos resultantes da di-vulgao irrestrita dos inventos mecnicos. Tanto que os primeirosmecanismos de proteo de propriedade intelectual, as primeiras pa-

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    tentes, surgiram no sculo 15, apresentando significativo aumento jno sculo 16 (5).

    O primeiro passo para que o segredo deixasse de ser valor e pas-

    sasse a ser desvalor no meio cientfico, veio com a obra Dialogo soprai due massimi sistemi del mondo, tolemaico e copernicano, de autoriado j mencionado Galileu Galilei, em 1632. Pela primeira vez surgeuma publicao cientfica escrita em lngua verncula, no caso o ita-liano, transparecendo o intuito de se priorizar a educao do clero, dacorte e da burguesia, em detrimento do convencimento dos catedr-ticos da poca.

    Composto por quatro jornadas, o Dialogoexpe na primeira as

    falhas da cosmologia aristotlica; na segunda, o movimento diurno daTerra; na terceira, o movimento anual da Terra; e na quarta, a teoriadas mars, considerada por Galilei argumento comprobatrio para omovimento terrestre (5).

    Outros autores, ao analisar a contribuio de Galileu e a evoluoda prtica da cincia ao alcanar a Modernidade, dedicaram-se sinterpretaes que complementam as aqui apresentadas.

    Renato Ribeiro, por exemplo, chama a ateno para o fato de que,neste processo de evoluo, a causa final, tida por Aristteles comosendo a de maior importncia dentre as quatro causas (final, eficiente,formal e material), substituda da posio de destaque pela causaeficiente. Ou seja, pelo entendimento de que as relaes entre as di-versas possibilidades de causas e os seus respectivos e consequen-tes efeitos permitiriam descrever melhor o mundo de nossa realidadee, muito objetivamente, manipular as causas de forma a alcanar os

    efeitos desejados, habilitando-nos a construir a ponte entre a cinciae a tecnologia, tornando-nos produtores e fabricantes (6).

    Assim, a cincia moderna nasce com a revoluo cientfica do s-culo 17, promovida fundamentalmente por profundas e significativasalteraes na estrutura lingustica adotada pela cincia: a matema-tizao (geometrizao) e a vernaculizao do conhecimento. Se aprimeira contribuiu para a introduo da experimentao e para umamaior preciso das teorias cientficas, a segunda contribuiu para o in-cremento na acessibilidade e na difuso das teorias cientficas entovigentes.

    Sai de cena ohomo viatore entra em cena ohomo faber.

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    A biotecnologia e a biotica

    A biotecnologia pode ser entendida como um conjunto de tecnolo-

    gias habilitadoras que possibilitam utilizar, alterar e otimizar organis-mos vivos ou suas partes funcionantes, clulas, organelas e molculas,para gerar produtos, processos e servios especializados com aplica-es diversas nas reas da sade, agropecuria e meio ambiente (7).

    O Brasil vem demonstrando avanos satisfatrios nesse segmen-to. A biotecnologia integra a base produtiva de diversos setores daeconomia, com um mercado de produtos que atinge cerca de 2,8% doProduto Interno Bruto (PIB) nacional, apesar de ainda no possuir do-

    mnio completo de tecnologias mais avanadas que contribuam parao desenvolvimento econmico sustentvel (8).

    Reconhecendo que as descobertas cientficas podem resultar emconquistas tecnolgicas causadoras de benefcios ou prejuzos, parti-cularmente para pases em desenvolvimento e comunidades locais,a Comisso de Recursos Genticos para Agricultura e Alimentaoda Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao(Food and Agriculture Organization of the United Nations FAO) ela-borou uma proposta de Cdigo de Conduta em Biotecnologia. Entreos seus objetivos, esse cdigo estabelecer recomendaes para o usoseguro, responsvel e equitativo da biotecnologia.

    Ao mesmo tempo em que chama a ateno para a importncia dacontribuio da biotecnologia para a melhoria das condies de vidapor meio do aumento do nmero de empregos e da renda, reduo dadependncia externa, apoio ao desenvolvimento mais estvel e durvel

    e preservao dos recursos naturais, o Cdigo de Conduta alerta paraos possveis efeitos sociais, econmicos e ambientais negativos (9).

    Todos esses fatores ganham evidente relevncia quando consi-deramos a realidade nacional. O Brasil apresenta grande variedadede biomas (floresta amaznica, mata atlntica, pantanal, cerrado ecaatinga), a maior biodiversidade do mundo (contm mais de 20% donmero total de espcies de seres vivos do planeta) e a mais alta taxade endemismo (68 espcies de mamferos, 191 espcies de aves, 172espcies de rpteis e 294 espcies de anfbios, por exemplo) (10).

    Alm disso, o setor de agronegcios responde por 33% do PIB,42% das exportaes totais e 37% dos empregos brasileiros. Com

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    aproximadamente 300 milhes de hectares de terras agricultveis,frteis e de alta produtividade sendo explorados, o Brasil o primeiroprodutor e exportador mundial de caf, acar, lcool e sucos de fru-

    tas, liderando ainda as vendas externas de soja, carne bovina, carnede frango, tabaco e couro (11). Soma-se, ainda, o fato de que grandeparte do investimento mundial em biotecnologia tem sido emprega-da em sintonia com as necessidades e as preocupaes dos pasesindustrializados e, por conseqncia, os pases em desenvolvimentono necessariamente se beneficiaro dos avanos cientficos e tecno-lgicos alcanados.

    digno de nota que a comunidade cientfica no est isenta de

    ms condutas nas prticas de pesquisa e desenvolvimento. Estudo re-cente o primeiro a oferecer evidncia emprica com base em relatosprprios de amostra representativa de pesquisadores estadunidensesque contam com apoio financeiro dos National Institutes of Health(NIH) indicou que 33% dos pesquisadores participaram nos ltimostrs anos de pelo menos um ato com alta probabilidade de, uma vezdescoberto, gerar srio problema em nvel institucional ou federal. A

    significativa influncia de interesses econmicos revelada pelo fatode que 15,5% dos pesquisadores entrevistados j alteraram o dese-nho, a metodologia ou o resultado de um estudo em razo da pressoexercida por uma fonte de financiamento (12).

    Segundo Volnei Garrafa, a oscilao entre a prtica humana e adesumana no desenvolvimento da cincia favorece o surgimento deduas tendncias antagnicas. A primeira, defendida por cientlatras,invoca uma biotica racional e justificada, por meio da qual tudo

    aquilo que pode ser feito deve ser feito. Esta tendncia remete-nosaos conceitos de imperativo tecnolgico tudo o que possvel fazerdever ser feito e de ladeira escorregadia (slippery slope) se algo possvel de ser feito, inevitavelmente ser feito , que de formaslevemente distintas alertam para a aplicabilidade de absolutamentetodo o conhecimento cientfico, indiferentemente dos valores ticose morais envolvidos. A segunda, defendida por tecnofbicos, declarauma tendncia conservadora com base no medo de que nosso futuroseja invadido por tecnologias ameaadoras (13).

    Partindo da apresentao dos dois extremos, a reflexo sobre otema aponta para o equilbrio entre os cientlatrase os tecnofbicos

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    como a melhor soluo para a questo. A cincia e a tecnologia tmindiscutivelmente gerado uma melhor qualidade de vida da populaoem geral, das mais diversas formas, diretas e indiretas. Pesquisas nas

    reas biotecnolgicas (ambiental, sade humana, produo agropecu-ria) tm tornado a existncia individual da espcie humana neste pla-neta mais longa e segura. Paradoxalmente, no so raros os exemplosde consequncias perversas desta mesma cincia e tecnologia, indi-cando graves problemas para a existncia coletiva da espcie humana.

    Sobre este equilbrio, Antnio Maia invoca a prudncia para oenfrentamento da dicotomia entre a tecnofobiae a tecnolatria. Dessaforma, imbudos de prudncia, devemos nos despir de qualquer vi-

    so sistematicamente pessimista e devemos nos privar de qualqueringnua iluso progressista (to comum em irrefletidas mensagensnos meios de comunicao de massa) (14).

    Diante dessa realidade, Hans Jonas prope uma mudana para-digmtica. O imperativo categrico de Emmanuel Kant, age de talmaneira que possas querer que a mxima de tua ao se converta emlei universal, deveria ser substitudo pelo novo imperativo age de

    tal maneira que os efeitos de tua ao no sejam lesivos para a futu-ra possibilidade de vida humana (15). Jonas claramente acrescentaao rol de compromissos da espcie humana os direitos das geraesfuturas, passando ento a apresentar status de dever para a geraopresente a responsabilidade de zelo coletivo, considerando at mes-mo aqueles indivduos que ainda sequer existem.

    A preocupao com as geraes futuras foi precisamente uma daspedras angulares, qui a pedra angular, na construo da biotica.

    Van Rensselaer Potter, j em 1971, a partir da reflexo sobre os pro-blemas gerados por conhecedores ou cientistas (knowers) e fazedoresou tecnologistas (doers), e ainda sobre o conceito de conhecimen-to perigoso conhecimento acumulado mais rapidamente do que asabedoria para manej-lo , identificou como fora motriz de nossacultura uma variante do imperativo tecnolgico: se pode ser feito evendido com obteno de lucro, vamos faz-lo (16). Por corolrio, oseu credo biotico para indivduos (bioethical creed for individuals)aborda de modo bem estreito a preocupao com as geraes futurase a necessidade de no-comprometimento da possibilidade de suaexistncia (17).

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    A inocuidade do conhecimento

    Se a preocupao com as geraes futuras pode ser considerada

    como sendo uma das pedras angulares para o amadurecimento daproposta de biotica de Potter como ponte para o futuro, isto se deujustamente pela constatao de que a cincia ao mesmo tempo emque contribuiu para a organizao da sociedade por meio da admi-nistrao de informaes e da manipulao da natureza, contribuiuigualmente para a desorganizao da sociedade, pela introduo doconhecimento perigoso (dangerous knowledge).

    Para Potter, com o crescimento em quantidade e em complexidade

    do conhecimento cientfico e a consequente especializao dos cien-tistas, que passaram a conhecer muito melhor sobre cada vez menostpicos, surgiu a dificuldade de se contextualizar as atividades labo-ratoriais com os interesses e as prioridades da cincia como um todoe da sociedade.

    Com o passar do tempo, a incapacidade de se lidar adequada-mente com essa dificuldade permitiu que um nmero cada vez maiorde pesquisadores assumisse que todo conhecimento basicamentebom e que, no curto ou no longo prazos, todo conhecimento geradoseria capaz de contribuir positivamente para com a sociedade. Con-tudo, exemplos como o dos gases txicos utilizados nas duas grandesguerras, encarregaram-se de demonstrar que o conhecimento acercado controle de fenmenos biolgicos se comportava como uma facade dois gumes e que jamais poderia ser confinada de volta gaveta(16).

    Hans Jonas, idealizador da tica da responsabilidade, tambmidentifica no fenmeno da especializao, com a consequente pro-liferao de subdivises e fragmentao do conhecimento, um riscopreocupante para a reflexo da gesto da atividade cientfica.

    Os pesquisadores se veem forados a renunciar participao emtudo que no diz respeito as suas cada vez mais limitadas competn-cias, ficando comprometida, dessa forma, at mesmo uma adequadacompreenso da cincia, quando eles so colocados em posio deexpectadores a partir de uma perspectiva mais global.

    Jonas constata que o nascimento do perigo, fruto das excessivasdimenses da civilizao cientfica-tecnolgica-industrial com a in-

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    cessante busca do conhecimento para o poder perante a natureza e autilizao deste poder para a melhoria do destino humano, coloca-nosdiante da impostergvel necessidade de amadurecimento de uma ti-

    ca de preservao e preveno, ainda que isto implique sacrifciosnunca antes demandados (18).Assim, segundo Potter, conhecimento perigoso tem sido definido

    como conhecimento que foi acumulado mais rapidamente do que asabedoria para geri-lo; em outras palavras, conhecimento que produ-ziu um desequilbrio temporal por superar outros ramos de conheci-mento (16).

    Mesmo assumindo que o conhecimentoper seno pode ser con-

    siderado inerentemente bom ou mal, a associao indiscutvel entreconhecimento e poder permite que se fale em conhecimento perigo-so. Mesmo que se argumente que o problema no o conhecimentoperigoso, mas sim a ignorncia perigosa uma vez que o perigo resi-de na nossa incapacidade de prever todas as conseqncias da apli-cabilidade do conhecimento, ou todas as interaes que determinadoconhecimento apresentar com outros conhecimentos , perigoso se-

    ria ignorar o fato de que a cincia ao mesmo tempo em que propesolues para alguns dos problemas do mundo, tambm cria novosproblemas para o mundo (16).

    A neutralidade da cincia

    Ainda hoje relativamente comum encontrarmos pesquisadoresalheios a qualquer tipo de reflexo biotica alm das superficiais con-

    cepes cada vez mais difundidas pelos meios de comunicao demassa. Em que pese o fato de que os cientistas diretamente envolvi-dos com experimentaes em seres humanos demonstram cada vezmais conscincia dos direitos dos sujeitos de pesquisa, ideias comoa de que a cincia deve ser completamente livre de qualquer contro-le moral ou cultural ilustram a aceitao da neutralidade da cinciaem nossa sociedade e em outras tantas, desconhecendo fronteiras. Ocerne desta concepo repousa na crena de que a cincia nos per-mite alcanar o conhecimento puro e, enquanto tal, fora da esfera dosvalores.

    Entretanto, no necessrio ser um dedicado historiador da cin-

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    cia para se entrar em contato com alguma descrio ou algum relatode abusos cometidos contra inocentes, tendo por justificativa o avanoda cincia. Lembremo-nos apenas do clssico artigo de Henry Bee-

    cher, publicado h mais de quatro dcadas no prestigiado peridi-co The New England Journal of Medicine, que, alertando para o fatode que graves erros ticos estavam aumentando no s em nmeros,mas tambm em variedades, apresenta 22 exemplos de experimentosmdicos cujas realizaes jamais deveriam ter sido realizados (19).

    Aceitemos ento, como nos sugere Leon Oliv, que a cincia eigualmente a tecnologia so, assim como tantos outros, sistemas deaes intencionais. Ou seja, os sistemas tecnocientficos apresentam

    agentes colocando em prtica determinados meios, obtendo determi-nados resultados, buscando deliberadamente alcanar determinadosfins, movidos por determinados interesses.

    Por corolrio, uma vez que os pesquisadores agem de acordo comsuas crenas, conhecimentos, valores e normas particulares, a prticapara aquisio de conhecimento cientfico pode ser louvvel ou con-denvel, influenciando no julgamento os meios utilizados, os resul-

    tados gerados, os fins almejados e o tratamento atribudo s pessoas,considerando-as agentes morais. Dessa forma, a cincia no etica-mente neutra (20).

    Corroborando este posicionamento, temos a reflexo de ThomasKuhn a respeito do processo de negociao pelo qual uma comuni-dade ou um grupo cientfico gera um consenso dominante. pormeio da negociao que se d o estabelecimento dos fatos que devemser considerados relevantes para a extrao de concluses cientfi-

    cas, bem como das prprias concluses ltimas (a crena dominan-te). Uma vez que estes dois aspectos (o factual e o interpretativo) danegociao ocorrem concomitantemente ao mesmo tempo em queas concluses moldam as descries dos fatos, os fatos moldam asconcluses deles geradas , fica comprometida a segurana de que aexperimentao apresenta papel determinante nos resultados cient-ficos. Em ltima anlise, diferenas na histria individual, no campode pesquisa e no interesse pessoal exercem influncia significativa noprocesso de negociao, o que explica a existncia de divergnciasnas concluses por parte dos diversos atores envolvidos (21).

    Feyerabend, aproveitando a contribuio de Galison acerca da

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    distino entre o contexto da descoberta e o da justificao, colocaas certezas de qualquer sistema de conhecimento, naturalmente in-cluindo o sistema cientfico, como resultados de decises prticas, ou

    como simples resultados de modos de se viver, e no apenas de intui-es estritamente tericas. Assim, considerando a semelhana entregrupos de pesquisa e partidos polticos, ambos dotados de informa-es, habilidades, ideologias diversas e diversos acessos quilo quese estaria pronto para aceitar como fatos objetivos, o autor descrevede forma clara e direta o processo adotado pela comunidade cientficapara a resoluo de disputas cientficas, ressaltando esta similaridadeexistente, particularmente no que diz respeito aos processos que an-

    tecedem a concluso de uma tratativa poltica:

    H indagaes desenvolvidas em pequena equipe, h nego-ciaes por telefone, por carta, painis, conferncias; um gru-po cede alguma coisa aqui, o outro alguma coisa l, no debateentram os interesses nacionais, as questes financeiras, atque, finalmente, cada qual est pronto a assinar, muito em-

    bora nem todos fiquem felizes (22).

    Para Kuhn, os cientistas, cientes ou no, recebem treinamentos erecompensas que os impulsionam para a resoluo de quebra-cabe-as intrincados que habitam a interface entre o mundo fenomenal eas crenas de suas comunidades a respeito deste particular mundofenomenal, mergulhando-os em questes de interesse, poltica, podere autoridade (21).

    Reforando a famosa frase de Francis Bacon pela qual se afirmacategoricamente que cincia poder, Norberto Bobbio reconheceque a cincia um imenso instrumento de poder, no necessariamen-te por tornar os cientistas poderosos, mas por criar instrumentos queaumentam o poder dos que so capazes de se utilizarem dela (23).

    Segundo Bobbio, a utilizao da investigao cientfica para finsimorais (ainda que isto diga respeito mais tcnica do que cincia)no depende da cincia, mas sim de determinados grupos de cientis-tas que por meio da aplicao das tcnicas de investigao cientficaacabam por gerar efeitos socialmente danosos.

    Entretanto, vivendo em uma poca na qual encontramos rios de

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    tinta acerca da dependncia mtua entre os dados e as teorias cien-tficas, bem como em relao ao fato do progresso tcnico cientficono ter trazido o aperfeioamento moral da humanidade mas ape-

    nas melhoramento material para parte dela, capacitando essa parte aexercer com maior eficcia sua vontade de potncia , o preo pagopara se manter a cincia imaculada foi tentar trazer a neutralidadepara seu cerne, registrando a sua definio como sendo o conjuntodas tcnicas de pesquisa que devem servir para restringir ao mximograu a interveno das nossas preferncias ou dos nossos juzos devalor (23).

    O reconhecimento de que a cincia no eticamente neutra en-

    caminha-nos, necessariamente, reflexo sobre os valores envolvidosnas atividades cientficas e igualmente sobre os fins buscados por elas.

    Regressando a Oliv, os sistemas tecnocientficos devem estarsubmetidos a uma avaliao em dois nveis: interno e externo. A ava-liao interna deve focar o conceito de eficincia (adequao entreos meios e os fins propostos), bem como conceitos proximamente re-lacionados, inter alia, factibilidade (que seja passvel de realizao

    lgica e materialmente), eficcia (que alcance os fins propostos) econfiabilidade (que a eficincia seja estvel). A avaliao externa, porsua vez, deve contemplar o contexto social e o cultural, oferecendooportunidade de discusso sobre a desejabilidade das inovaes tec-nolgicas e do desenvolvimento tecnolgico para a sociedade, quesofrer o impacto das aplicaes desses sistemas em questo (24).

    Sugere-se, por conseguinte, que a nica justificativa moralmen-te plausvel para o investimento em uma tecnologia especfica seria

    a sua contribuio ao bem-estar dos seres humanos, sem que hajadanos inaceitveis a animais ou ao meio ambiente, sendo permitidaapenas a explorao racional destes recursos, bem como o aproveita-mento moralmente aceitvel dos sistemas sociais (24).

    A convergncia na racionalidade epistmica

    Tal qual ocorre com a concepo da neutralidade da cincia, aconcepo da convergncia na racionalidade epistmica pode ser en-contrada de forma bem difundida em nossa sociedade atual, espe-cialmente na comunidade acadmica ocupada com as cincias duras.

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    Esta corrente baseia-se na idia de que qualquer ser humano, sejaele quem for, esteja ele onde estiver, viva ele da forma que viver, casoseja capaz de desenvolver absolutamente sem limitaes sua capaci-

    dade de conhecer o mundo, alcanar a exata mesma crena acercado mundo que qualquer outro ser humano, que igualmente goze daextrema ausncia de interferncia no que tange ao exerccio da racio-nalidade, alcanar.

    No cerne desta crena, segundo Oliv, repousa o equvoco de queh relaes causais objetivas no mundo isto , relaes cuja exis-tncia independente do que cada indivduo acredite s quais, emprincpio, podem ter acesso epistmico todos os seres humanos (20).

    Significativa contribuio para esta discusso surgiu do trabalhode Thomas Kuhn, com suas reflexes acerca das revolues cientficase da incomensurabilidade caracterstica entre teorias cientficas quese sucederam por meio de uma mudana paradigmtica. Para Kuhn,a cincia pode avanar mediante uma evoluo do tipo cumulativanormal, ou seja, quando novos conhecimentos apenas so agregadosao conhecimento previamente disponvel; ou por intermdio de uma

    mudana revolucionria, que necessariamente envolve descobertascujos conceitos no estavam j em uso, com mudanas nas leis danatureza e nos critrios pelos quais alguns termos esto ligados na-tureza (21).

    Em relao incomensurabilidade, Kuhn utiliza metaforicamen-te este termo originalmente empregado na geometria para designarnenhuma linguagem comum, chamando nossa ateno para o fatode que inexiste uma linguagem que seja capaz de viabilizar uma tra-

    duo de uma teoria para outra, caso ambas sejam incomensurveis,sem que surjam neste processo de traduo resduos ou perdas. Porconseguinte, um lxico especfico capaz de oferecer acesso a apenasum conjunto de mundos possveis, ao mesmo tempo em que tornainacessvel outro conjunto de mundos possveis. Aps longos anos dereflexo, Kuhn apresenta a alterao do conhecimento da naturezaintrnseco prpria linguagem como sendo a principal caractersticadas revolues cientficas (21).

    Concorda com esta posio o seguinte comentrio de Koyr, quetrata do papel fundante da linguagem geomtrica para a cincia mo-derna, no contexto da revoluo cientfica do sculo XVII:

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    A experimentao consiste em interrogar metodicamente anatureza. Essa interrogao pressupe e implica uma lingua-gem na qual se formulam as perguntas, [...]. Como sabemos,

    para Galileu, era atravs de curvas, crculos e tringulos, emlinguagem matemtica ou, mais precisamente, em linguagemgeomtrica no na linguagem do senso comum ou atravsde puros smbolos , que nos devemos dirigir natureza edela receber respostas (4).

    A contribuio de Kuhn, por meio de sua reflexo tratando das re-volues cientficas com mudanas paradigmticas e da caracterstica

    de incomensurabilidade entre paradigmas que se sucedem ao longodo desenvolvimento do pensamento cientfico, expe a fragilidade daaceitao de teorias cientficas vigentes como conhecimento demons-trado pela cincia, dotado da caracterstica de verdade corroborada epermanente certeza imutvel alcanada.

    Ao procedermos a comparao entre as distintas teorias com vo-cao para oferecer uma viso organizada de um mesmo grupo de fe-

    nmenos naturais, a aplicao do rtulo verdade deve ser mais parci-moniosa, qui talvez deva vir acompanhada da complementao ato momento ou por enquanto. Teorias histricas deixaram de ocuparo lugar do consenso por se considerar, luz de teoria mais recente,falsas, ainda que tenham sido tidas como verdadeiras em suas pocas.Na dinmica cientfica, o discurso que trata da verdade deve assumirum tom implcito de provisoriedade, de interinidade.

    Diante dessa nova realidade, na qual houve o descarte da certeza

    da independncia entre fatos e crenas e tambm da certeza de quea cincia nos aproxima cada vez mais do mundo real que independede nossas culturas e de nossas mentes, Kuhn indica dois relevantesaspectos de uma reconceituao:

    Em primeiro lugar, o que os cientistas produzem e avaliamno a crena tout court, mas mudana de crena, [...] Emsegundo, aquilo que a avaliao procura selecionar no socrenas que correspondam a um chamado mundo externoreal, mas, simplesmente, ao melhor entre dois, ou o melhordentre todos os corpos de crena efetivamente apresentados

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    aos avaliadores no momento em que chegam a seu veredicto(21).

    Bobbio chama a ateno para o fato de que da mesma forma que oprogresso cientfico pode apresentar em sua histria revolues signi-ficativas, assim tambm pode se dar com o progresso moral, do pontode vista da filosofia da histria, como pode ser exemplificado pelaafirmao dos direitos do homem e sua transio de uma fase doutri-nal, no pensamento jusnaturalista, para uma fase prtico-poltica, nasDeclaraes do fim do sculo 18.

    Essas so consideradas por Bobbio uma verdadeira e prpria re-

    voluo copernicana, remetendo-nos ao exemplo de Kuhn anterior-mente citado. Bobbio afirma que encontraremos sempre um cdigo dedeveres ou de obrigaes caso nossa busca se d no incio da histria damoral. E em que pese o fato de que dever e direito so termos correla-tos, no sentido de que um no pode existir sem o outro, cdigos de direi-tos somente surgiram muito mais tardiamente na histria da moral (23).

    Consideramos importante salientar que seria um equvoco ex-

    trapolar a dependncia entre os fatos observveis na natureza e asteorias cientficas correlacionadas para a concepo extremista dacompleta independncia entre eles. Inquestionavelmente, o mundoreal estabelece certo grau de comunicao com as teorias cientficas,manifestando determinados aspectos condicionantes. A contribuiodo mundo real para as teorias cientficas se d, via de regra, por restri-es que resultam no descarte de hipteses candidatas a teorias nosuficientemente ancoradas em argumentos, observaes ou experi-

    mentaes racionais.Tendo isto posto, Oliv nos conduz ao reconhecimento de que a

    razo comum a todos os seres humanos, ou seja, todos ns temos acapacidade de aprender e usar uma linguagem, ter representaes domundo, escolher fins, eleger os meios possveis para se alcanar taisfins, conectar diferentes ideias, realizar inferncias lgicas, construire analisar argumentos e, por fim, aceitar ou rejeitar ideias, valores enormas de conduta com base em razes. Trata-se de aceitar a posioequilbrio entre o absolutismo (valores e normas morais com valida-de absoluta) e o relativismo extremo (juzos de valor com validadeespecfica exclusivamente para determinados grupos humanos): o

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    pluralismo. Trata-se de aceitar que nenhum conceito apresenta umsignificado absoluto e, por corolrio, no so vlidos para toda a cul-tura humana nem mesmo o conceito de direitos humanos, que para

    o pluralismo so to somente direitos reconhecidos pelas sociedadesmodernas a todos os seres humanos pelo simples fato de pertencerem espcie humana (24).

    O progresso

    Por fim, chegamos quarta reflexo, aquela que acredita haveruma necessria relao entre a evoluo da sabedoria pela cincia e

    da capacidade pela tecnologia com a evoluo de conceitos morais.Ou seja, o aumento do conhecimento est diretamente implicandoum crescimento moral em direo a um aperfeioamento da espciehumana.

    Essa afirmao teve sua origem em uma imagem moderna da ci-ncia que, segundo Paolo Rossi, pode ser caracterizada por trs fatos:primeiro, a convico de que diferentes geraes contribuem suces-

    sivamente no sentido de aumentar o saber cientfico; segundo, a con-vico de que este processo se d sempre de forma incompleta, ouseja, o saber cientfico pode ilimitadamente sofrer acrscimos, inte-graes ou revises e; terceiro, a convico de que existe uma espciede tradio cientfica (mais de cunho institucional do que em nvel deteorias) na qual so acrescentadas as contribuies individuais.

    Essa imagem moderna da cincia teve de superar dois obstculosprprios da tradio hermtica, presentes na cultura do sculo 17:

    a negao da prtica da cincia com carter secreto e inicitico e anegao da ideia de que a origem de toda a sapincia mantida es-condida em um passado longnquo (25).

    Assim, discorrendo sobre a f no progresso e da procura pela leido progresso a propsito do tardo-iluminismo e do positivismo, des-sa forma que Rossi apresenta a ideia de progresso:

    Essa f repousava principalmente sobre trs convices: 1.na histria est presente uma lei que tende, atravs de grausou etapas, perfeio e felicidade do gnero humano; 2. talprocesso de aperfeioamento geralmente identificado com o

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    desenvolvimento e com o crescimento do saber cientfico e datcnica; 3. cincia e tcnica so a principal fonte do progressopoltico e moral, constituindo a confirmao de tal progresso

    (25).

    Jonas interpreta o progresso no s como lei, mas igualmentecomo ideal. A relao que existe entre o julgamento de que as mu-danas do passado ocorreram em direo a uma melhora, a f de queesta direo inerente dinmica do processo e persistir no futuroe o compromisso em tornar esta situao o objetivo da humanidadefazem que muitos de ns acabemos por adotar uma postura progres-

    sista. E sendo a tecnologia o smbolo dominante do progresso nos diasatuais, este passa a implicar necessariamente melhorias de aspectomaterial que, por fim, gerariam aumento na produtividade da econo-mia global.

    Tendo considerado essas questes, Jonas nos alerta para o fatode que, ao julgarmos o recente superior ao anterior, devemos ter emmente que no se trata de emisso de juzos de valor, mas de to-so-

    mente uma declarao descritiva. Ilustra esta afirmao o desenvolvi-mento de armas de destruio em massa, uma vez que o condenvel justamente o fato de que as armas mais recentes, por serem tecno-logicamente superiores, apresentam maior poder de destruio (18).

    Concluso

    A lei de Hume, exposta no Tratado da Natureza Humanacomo

    uma observao que talvez se mostre de alguma importncia, faz--se inquestionavelmente cada dia mais relevante para a reflexo dainterface entre as questes de natureza epistemolgica e as questesde natureza tica. Ao constatar com surpresa que em todo sistemamoral, em um dado momento do discurso, as cpulas proposicionaisusuais e no passam a ser sistematicamente substitudas por devee no deve, Hume teceu o seguinte comentrio:

    Essa mudana imperceptvel, porm da maior importncia.Pois, como esse deve ou no deve expressa uma nova relaoou afirmao, esta precisaria ser notada e explicada; ao mes-

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    mo tempo seria preciso que se desse uma razo para algo queparece inteiramente inconcebvel, ou seja, como essa nova re-lao pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes

    (26).

    Impedidos, por corolrio, de derivarmos o que devemos fazer da-quilo que podemos fazer, resta-nos uma atitude de prudncia dian-te dos avanos biotecnocientficos. A aplicao madura do princpioda precauo, pela avaliao racional dos benefcios previstos deserem alcanados e dos riscos possveis de serem aceitos, poderia,em princpio, permitir que a cincia e a tecnologia avanassem de

    modo seguro para o aumento da qualidade de vida da populao emgeral. A maturidade na aplicao do princpio da precauo implicaa participao dos diversos atores envolvidos em toda a cadeia deacontecimentos, do cientista que descobre, passando pelo tecnologis-ta que realiza e chegando ao cidado comum, alvo final da aplicaodo conhecimento. Isto, claro, sem excluir legisladores, reguladores,produtores e quem mais for afeto ao tema em questo.

    Infelizmente, hodiernamente, no so raros os alertas de que nombito dos poderes Legislativo e Executivo, a cincia vem sendo em-pregada como uma ferramenta til para tornar argumentos defen-sveis em justificativas legtimas para decises previamente estabe-lecidas e acordadas, que tiveram como parmetros influenciadoresquestes comerciais, polticas ou de outras naturezas similarmentecomprometedoras.

    Esse alerta se torna particularmente relevante quando da cons-

    tatao de que em praticamente todas as reas do conhecimentocientfico tendo em vista a alta complexidade das questes tratadas existem especialistas de notrios saber e competncia que apresen-tam opinies, extra-cincia dura, diametralmente opostas, tornandorelativamente fcil fazer escolhas pretensamente cientficas (27).

    Deve-se buscar devolver a cincia aos cidados, na tentativa degarantir que as polticas cientficas governamentais sejam o resultadode extensa reflexo por parte de todos os elementos da sociedade, eno mais decididas tendo por base as recomendaes de um limitadogrupo de cientistas especialistas (28). Nesse sentido, a informaosocial deve receber a ateno necessria para que suas trs funes

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    bsicas sejam exercidas de forma adequada:

    a) impedir que a iniciativa popular se extinga em razo de

    complicaes burocrticas e de instituies estticas fecha-das em si mesmas; b) garantir, at certo ponto, a eficinciada presso vinda de baixo como um instrumento democrticode primeira linha [...] c) tender a manter certo grau de con-tato entre as decises polticas e as aspiraes dos cidados,protegendo-os tanto da precipitao autoritria como das ten-dncias paternalistas (29).

    Fermin Roland Schramm chama a ateno para a necessidadede controle da atividade cientfica, a fim de evitar abusos de poderpor parte de cientistas e instituies tecnoburocrticas e igualmentede controle do controle, a fim de evitar as possveis conseqnciasperversas do controle, como as influncias de coeres, fanatismos eignorncias que podem comprometer a autonomia positiva da cincia(30).

    A necessidade das atividades de controle e controle do controle,conforme proposto por Schramm, vem em sintonia com a idia deequilbrio entre os cientlatras e os tecnofbicos previamente comen-tada. O dilogo genuinamente plural com representaes de todosos setores interessados, em que a racionalidade e a imparcialidadeaparecem como elementos valorizados surge como o caminho certopara o alcance dos mais significativos benefcios das biotecnologiascom os menores riscos possveis e aceitveis.

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    Recebido em: 21/06/2010 Aprovado em: 20/09/2010

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