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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Instituto de Geociências GMG0497 - Fundamentos de Mineralogia Aplicada Prof. Dra. Eliane Aparecida Del Lama Prof. Dr. Yushiro Kihara maio de 2003 BIOCERÂMICA Sebastian Krieger

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Instituto de Geociências

GMG0497 - Fundamentos de Mineralogia Aplicada

Prof. Dra. Eliane Aparecida Del Lama Prof. Dr. Yushiro Kihara

maio de 2003

BIOCERÂMICA

Sebastian Krieger

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1. Introdução Simplificadamente, pode-se dizer que o cor-

po humano é constituído por três componentes bá-sicos: água, colágeno e hidroxiapatita. Este último composto representa a fase mineral dos ossos e dentes, que é responsável por fonernecer estabili-dade estrutural ao corpo, protegendo órgãos vitais como pulmões e coração e funcionando como um depósito regulador de íons.

Em casos de acidentes, doenças ou por desgaste, os ossos podem vir a perder sua funcio-nalidade e, neste caso, na busca pela melhoria da qualidade de vida, a ciência desenvolveu os bio-materiais e dentre eles está a biocerâmica.

1.1. Cerâmicas As cerâmicas englobam uma gama tão vasta

de materiais que uma definição concisa é pratica-mente impossível. No entanto uma definição razoá-vel para o termo cerâmica é um material refratário, inorgânico e não metálico. As cerâmicas podem ser divididas em duas classes: tradicionais e avança-das. As cerâmicas tradicionais incluem produtos argilosos, vidros silicatos e cimento; enquanto que as cerâmicas avançadas consistem de carbidos (SiC), óxidos puros (Al2O3), nitridos (Si3N4), vidros não silicatos e outros. Elas possuem maior dureza e rigidez que aço, maior resistência a calor e corro-são que metais ou polímeros, são menos densas que a maioria dos metais e suas ligas e suas maté-rias primas são abundantes e de baixo custo. Mate-riais cerâmicos apresentam características vastas que facilitam seu uso em diversas áreas, desde a indústria aeroespacial até a telecomunicações pas-sando pela militar, eletro-eletrônica, automotiva e médica.

A cerâmica é conhecida há trinta mil anos e constantemente novas aplicações para a cerâmica são descobertas. Hoje em dia a cerâmica está mui-to além de possuir apenas valores artísticos ou domésticos.

Ligações atômicas. Dois tipos de ligações atômicas ocorrem nas cerâmicas: ionica e covalen-te. Muitas vezes estes tipos de ligações coexistem no mesmo material cerâmico. E cada tipo de liga-ção leva a diferentes características:

- Ligações ionicas. Em geral ocorrem entre ele-mentos metálicos e não metálicos que possu-am grandes diferenças em suas eletronegati-vidades. Estas estruturas tendem a possuir pontos de fusão mais elevados, por serem as ligações fortes e não direcionais.

- Ligações covalentes. Ao contrário das ligações ionicas, onde elétrons são transferidos, este tipo de ligação compartilha elétrons. Em geral os elementos envolvidos são não metálicos e as diferenças de eletronegatividade são pe-quenas.

- Ligações ionicas e covalentes. Muitos materi-ais cerâmicos possuem ambos os tipos de li-

gações. As principais características destes materiais dependem do mecanismo predomi-nante. Compostos com predominância de um dos dois tipos de ligação possuem pontos de fusão mais altos que aqueles em que nenhum dos dois tipos de ligação predomina.

Classificação. Materiais cerâmicos podem ser divididos em duas classes: cristalina e amorfa (não cristalina). Em materiais cristalinos os átomos ou íons, dependendo do tipo de ligação, são arran-jados em padrões regulares repetitivos em três di-mensões. Ao contrário, nos materiais amorfos, os átomos apresentam apenas ordem localizada. Al-gumas cerâmicas, como dioxido de silício (SiO2), podem ocorrer em ambas formas. Oxigênio

Silício

dioxido de silício cristalino (padrão regular)

dioxido de silício amorfo (padrão irregular)

Figura 1. Ilustração comparativa da estrutura crista-lina e amorfa do dioxido de silício.

Propriedades mecânicas. Cerâmicas são materiais duros, resistentes e duráveis que possu-em baixas densidades e altos pontos de fusão.

A principal limitação das cerâmicas é sua fragilidade, ou seja, sua tendência de repentina-mente falhar com pequena deformação plástica. Nos metais, os elétrons não localizados permitem que os átomos mudem de vizinhança sem quebrar completamente a estrutura de ligação. Isso permite a deformação do metal sobre tensão. No entanto nas cerâmicas, devido ao mecanismo de ligação ionica e covalente combinados, as partículas ser transferidas facilmente. A cerâmica quebra ao ser aplicada muita força.

Todos materiais, incluindo as cerâmicas, possuem minúsculos defeitos estruturais ou de fa-bricação que os tornam mais fracos. Qualquer fa-lha, como um poro, uma rachadura ou uma inclu-são, resulta em concentração de tensão. Poros também diminuem a área transversal sobre o qual a carga é aplicada. Desta forma, materiais menos porosos são geralmente mais resistentes.

Propriedades elétricas. As cerâmicas são melhor conhecidas como isolantes elétricos. Alguns isolantes cerâmicos (como BaTiO3) podem ser po-larizados e utilizados como capacitores. Outras ce-râmicas conduzem elétrons quando uma energia limite é alcançada, assim chamados de semicondu-tores. Em 1986 uma nova classe de cerâmicas foi descoberta, os supercondutores. Estes materiais conduzem eletricidade com resistência praticamen-

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te zero. Finalmente, cerâmicas conhecidas como piezelétricas, produzem resposta elétrica a uma força mecânica ou vice-versa.

Processamento. O processamento de ce-râmica cristalina segue os passos básicos para a produção de produtos argilosos. A matéria prima é selecionada, preparada, moldado no formato dese-jado e sintetizado a alta temperatura.

1.2. Origem da biocerâmica A utilização de cerâmicas como biomateriais

remonta a 1894, quando Dreesman relatou o uso de gesso (CaSO4.1/2H2O) como um possível subs-tituto para ossos. Este material apresenta uma re-sistência mecânica muito baixa e é completamente reabsorvido pelo organismo, resultando em uma rápida fragmentação e degradação. Tais proprie-dades pouco atrativas praticamente excluíram a utilização do gesso como biocerâmica implantável.

Em 1967, Larry L. Hench, um engenheiro especializado em cerâmica, durante uma conferên-cia do exército americano, conheceu um coronel que havia acabado de voltar do Vietnã e reclamava que milhares de soldados estavam tendo braços e pernas amputados devido a implantes defeituosos, metais e plásticos que eram rejeitados pelo corpo.

O cientista da Universidade da Flórida iniciou um trabalho com verba do exército americano em setembro de 1969 e dois meses depois apresentou um vidro que se soldava tão bem aos ossos e teci-dos de ratos, que os pesquisadores não consegui-am separá-los. Aparentemente o vidro que Hench havia desenvolvido atraía as células ósseas. Em 1985, depois de extensos testes e aperfeiçoamen-tos a Food & Drug Administration (FDA) aprovou a petição da U.S. Biomaterials Corp., de Baltimore, de utilizar o Bioglass, como agora é chamado, para substituir os ossos do ouvido médio, restaurando a audição.

Hench havia descoberto uma nova classe de materiais médicos, também conhecidos como bio-materiais: a biocerâmica. Esta categoria inclui to-dos os tipos de cerâmicas implantados no corpo.

2. Características

2.1. Comportamento das biocerâmicas no corpo humano

As cerâmicas empregadas no corpo podem ser divididas nas três classificações de biomateri-ais: inerte, reabsortível e ativo. Os três principais tipos de resposta de tecidos. Os materiais inertes (mais estritamente quase inertes) causam resposta de tecidos mínima ou nula. Materiais ativos estimu-lam a ligação de tecido vizinho com, por exemplo, estímulo de novo crescimento ósseo. Materiais de-gradáveis, ou reabsortíveis, são incorporados no tecido vizinho, ou podem até mesmo ser comple-tamente dissolvidos após certo período de tempo.

2.2. Materiais Biocerâmicos Biocerâmicas estão disponíveis como micro-

esferas, camadas ou coberturas finas em implates metálicos, redes porosas, compostos com compo-nentes polímeros, grandes superfícies bem polidas.

Materiais que podem ser classificados como biocerâmicas incluem alumina, zirconia, fosfatos de cálcio, vidros ou vidros cerâmicos a base de sílica, carbonos pirolíticos.

3. Tipos de biocerâmica Biocerâmicas satisfazem necessidades tão

diversas quanto baixos coeficientes de atrito para a lubrificação de próteses de juntas, superfícies de válvulas de coração que evitam coagulação do sangue, materiais que estimulem o crescimento ósseo e aqueles que podem prender espécies radi-oativas para tratamentos terapêuticos.

3.1. Fosfatos de cálcio Existem uma série de cerâmicas de fosfato

de cálcio consideradas biocompatíveis. Destas, a maioria é reabsortível e dissolverá quando expos-tas a ambientes fisiológicos. Em ordem de solubili-dade estes materiais incluem: • Tetracalcium Phosphate (Ca4P2O9) • Fosfato de cálcio amorfo • alpha-Tricalcium Phosphate (Ca3(PO4)2) • beta-Tricalcium Phospate (Ca3(PO4)2) • Hidroxiapatita (Ca10(PO4)6(OH)2)

Ao contrário dos outros fosfatos de cálcio, a hidroxiapatita não quebra sob condições fisiológi-cas. De fato, é termodinamicamente estável em pH fisiológico e participa ativamente na ligação óssea, formando ligações químicas fortes com os ossos em volta. Esta propriedade tem sido explorada para recuperação óssea rápida após traumas mais signi-ficativos ou cirurgia.

Enquanto suas propriedades mecânicas não são apropriadas para aplicações de resistência a carga, como ortopedia, é utilizado como cobertura em materiais como titânio e ligas de titânio, onde suas propriedades bioativas contribuem enquanto o componente metálico suporta o peso. Estas cober-turas são aplicadas por pulverização de plasma. No entanto, é preciso um grande controle dos parâme-tros de processamento para evitar decomposição térmica da hidroxiapatita em seus fosfatos de cálcio solúveis, devido às altas temperaturas de proces-samento.

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Figura 2. Cobertura de prótese – CAM Implants, Leiden, NL.

Substitutos de ossos e implantes reabsortí-veis podem ser produzidos quando a hidroxyapatita e outras variantes de fosfato de cálcio são utiliza-dos na fase cerâmica. Estas espumas possuem a habilidade de manter e estimular o crescimento de células humanas; poros com tamanhos variando entre 100 e 200 μm permitem o crescimento de osteoblastos acima e dentro dos poros, levando à formação de osteróides que mineralizam dentro dos poros. Condições de processamento que resul-tem na presença de microporosidade de aproxima-damente 1 μm nas paredes dos poros são impor-tantes para a fixação efetiva das células e cresci-mento interno. Tanto a microporosidade quanto a macroporosidade afetam a morfologia celular e o grau de infiltração celular.

Figura 3. Célula de osso longo humana crescendo sobre a superfície de espuma cerâmica de hidroxi-apatita.

O controle de porosidade da hidroxiapatita também permite grande potencial no desenvolvi-mento de implantes para a liberação lenta de agen-tes terapêuticos.

3.2. Alumina A alumina (Al2O3) é um material altamente

inerte e resistente à maioria dos ambientes corrosi-vos, incluindo o ambiente altamente dinâmico que é o corpo humano. Sob condições fisiológicas é pra-ticamente inerte, causando pouca ou nenhuma resposta dos tecidos em volta e mantendo-se es-sencialmente inalterado.

No entanto, o corpo a reconhece como mate-rial estranho e procura isolá-lo formando uma ca-mada de tecidos fibroso não aderente em volta do implante onde necessário.

Propriedades. As principais características que tornam a alumina adequada como biomaterial incluem: • alto grau de inércia química sob condições fisio-

lógicas; • alta resistência de uso; • habilidade de ser polida com alto acabamento

superficial; • dureza excelente.

Aplicações. Devido à possibilidade de poli-mento com alto acabamento superficial e sua exce-lente resistência de uso, alumina é muito utilizada em superfícies em próteses de substituição de jun-tas. Tais aplicações incluem cabeças femurais para substituições de quadris e placas de uso em substi-tuições de joelhos. Cabeças femurais de alumina são utilizadas em conjunto com uma haste femural metálica e um copo acetabular feito de polietileno de peso molecular muito alto (ultra high molecular weight polyethylene – UHMWPE).

Alumina porosa também pode ser utilizada para repor largas sessões de osso que tenham sido removidas devido a enfermidades, como câncer. Estes podem possuir o formato de anéis concêntri-cos em volta de um pino metálico, inseridos acima do centro do osso remanescente. A natureza poro-sa destes implantes permite que o osso cresça dentro dos poros, efetivamente, a alumina estimula nova formação de ossos.

A alumina também é utilizada em aplicações dentárias. Especificamente para substituição de dentes. Em muitos destes casos alumina de cristal simples ou safira são utilizados. No entanto, está caindo em desuso, sendo substituído por outros materiais, como porcelana dentária.

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Figura 4. Prótese de cabeça de fêmur.

3.3. Zirconia Zirconia (ZrO2) não ocorre na natureza como

óxido puro e é encontrado na badeleíta e na zirco-nita (ZrSiO4). Dos dois minérios, a zirconita é a mais abundante, porém menos pura e necessita de quantidade significativa de processamento para obter zirconia.

Zirconia pura existe em forma monoclínica à temperatura ambiente. Fases cúbicas e tetragonais também são estáveis a temperaturas mais eleva-das. A transformação de zirconia monoclínica em cúbica ocorra entre 800 e 1000oC e é acompanha-da por grande mudança de tamanho latente. Esta mudança de fase faz com que durante o resfria-mento cause grande expansão volumétrica, tor-nando a fabricação de cerâmicas de zirconia im-possível.

A fim de produzir componentes de zirconia, é preciso bloquear o material completamente na for-ma cúbica utilizando aditivos ou agentes estabili-zantes.

A adição de quantidades variáveis de estabi-lizadores cúbigos como CaO, MgO e Y2O3 permite a formação de zirconias parcialmente estabilizadas que, combinadas com variações de processos, po-dem resultar em cerâmicas que demonstrem pro-priedades excepcionais.

Propriedades. Características típicas de-monstradas pela zirconia incluem: • alta resistência; • alta resistência a fraturas; • excelente resistência de uso; • alta dureza; • excelente resistência química; • bom refratário; • bom condutor de íons de oxigênio.

Aplicações. Zirconia é utilizada como com-ponente de cabeça femural em implantes de qua-drís. Alta resistência permitem à junta do quadril ser diminuída que por sua vez levam a maior grau de articulação. A habilidade de ser polida com alto acabamento superficial também permite quem um junta de baixa fricção possa ser manufaturada para juntas articuladas como as do quadril.

A inércia química do material a ambientes fi-siológicos reduz o risco de infecção. Por isso, ape-nas zirconias fabricadas de materiais de baixa radi-oatividade podem ser utilizados nesta aplicação.

A zirconia apresenta características fisiológi-cas muito semelhantes à alumina. Compostos de alumina e zircona também apresentam biocompati-bilidade.

3.4. Carbono Pirolítico Carbono pirolítico é geralmente utilizado em

válvulas de corações artificiais e tem sido o princi-pal material para esta aplicação nos últimos 30 anos. Propriedades que tornam este material apro-priado para este uso incluem boa resistência, dura-bilidade e, mais importante, “trombo-resistência”, ou habilidade de suportar coagulação sangüínea.

Carbono pirolítico também é utilizado em pe-quenas juntas ortopédicas como dedos e inserções espinhais.

4. Dispositivos biônicos O uso de biocerâmica não limita-se a próte-

ses e enxertos. Desde que o engenheiro sueco Ar-ne Larsson recebeu o primeiro marca-passo cardí-aco completamente implantado, a mais de 40 anos, pesquisadores do mundo todo buscam formas de melhorar a vida das pessoas com dispositivos arti-ficiais, biônicos. A cerâmica é utilizada desde cora-ções artificiais a até mesmo olhos biônicos.

Figura 5. Microdetectores cerâmicos de filme fino (aprox. 30 μm).

5. Conclusão A biocerâmica abrange uma área muito

grande de aplicações médicas utilizando-se alta tecnologia para melhorar a qualidade de vida. É uma área da ciência de materiais que ainda precisa

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ser melhor compreendida para que novos materiais e aplicações possam ser introduzidos.

6. Referências a) G. Baehr, J. Day, L. Dieskow, D. Faulise, E.

Overocker, J. J. Schwan; Ceramics - Windows To The Future; Materials Science and Technol-ogy, 1995.

b) Gazeta Mercantil; 06/10/1994.

c) Dr. K. Gross; Bioceramics – An Overview Includ-ing Calcium Phosphates, Hydroxyapatite, Alu-mina, Zirconia and Pyrolytic Carbon; AZoM; 28/11/2002.

d) J. Czernuszka; Biomaterials – an Overview; AZoM; 26/02/2001.

e) Alumina as a Biomaterial; AZoM; 23/11/2001.

f) Ceram Research; Zirconia; AZoM; 01/03/2001.

g) Dr. J. Binner, R. Sambrook; Ceramic Foams – Processing and Applications as Filters, Inter-penetrating Composites and Biomedical Materi-als; AzoM; 24/02/2003.

h) E. Y. Kawachi, C. A. Bertran, R. R. dos Reis, O. L. Alves, Biocerâmicas: tendências e perspecti-vas de uma área interdisciplinar; Química Nova 23(4); 2000.

i) Dr. A. Ignatiev; Bionic Eyes – Ceramic Mi-crodetectors That May Cure Blindness; AZoM; 29/07/2002.