biblioteca, memória e discurso1 - cadernos de letras da uff · o real gabinete português de...

11
, Cadeos de Lerras da UFF - unos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71, 2003 61 Biblioteca, memória e discurso1 Maria da Graça Cassano RESUMO Este estudo é resultado parcial de meu projeto de doutorado em Estudos Lingüísticos na UFF, sob a orientação da Pro Dr' Bethânia S. C. Mari ani. Aqui pretendo t omar o Real Gabinete Português de Leitura (RJ) como espaço discur sivo. Essa análise inicial incidiu sobre documentos fundan tes (atas, regimentos, di scursos, matéri as jornalísticas), produzidos em épocas diferentes, desde a cri ação da instituição até a década de 70 do século , e reunidos em uma edição comemorativa, inti tulada Fundamentos e Actualidade do Real Gabinete Português de Leitura, organizada por Manuel Ferrei ra de Castro e publicada em I 977. Com base nos pres suposros da Análise do Discur so francesa (Pécheux; Orl andi), pretendo observar, através desses documentos, que imagens importava ao Gabinete construi r para falar de si e projetar no fut uro e, em que medida, seriam reveladoras de um projeto político que se pretendia para a consolidação do Brasil como nação e par a a normatização do português e s ua instituição como idioma nacional. Para alcançar esses objetivos, f1z um levantamento de termos, expressões e enunciados empregados para (i) nomear o Gabinete; (ii) nomear as pessoas a ele ligadas e (i i i) expressar os propósitos da instituição. E do senso comum pensar a biblioteca, tão somente, como uma institu ição que tem a função de conservar o patr imónio intelec- tual literário e artíst ico, de "preservar a memór ia, organizando a informação para que todo ser humano possa usufruí-la" (Milanesi, 1 992: 15). Ainda no limiar do século , a biblioteca assume esse lugar de diálogo com o passado, de organização do saber posto em arquivos, cuja f unção é a de sistematizar o acesso às informações ( . . . )e a de servir como mostruário histórico (ib id., passi) , a cujas obras o acesso esteve restrito até então. Cabe-nos, no entanto, compreender memória e arquivo em bases outras, ndamentadas na Análise do Discurso (Pêche; Orlandi), teoria a que recorremos como

Upload: duongnga

Post on 07-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

..

,.,.

Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71, 2003 61

Bibl ioteca, memória e discurso1

Maria da Graça Cassano

RESUMO Este estudo é resultado parcial de meu projeto de doutorado em Estudos Lingüísticos na UFF, sob a orientação da Prof' Dr' Bethânia S. C. Mariani. Aqui pretendo tomar o Real Gabinete Português de Leitura (RJ) como espaço discursivo. Essa anál ise inicial incidiu sobre documentos fundan tes (atas, regimentos, discursos, matérias jornalísticas), produzidos em épocas diferentes, desde a criação da insti tuição até a década de 70 do século XX, e reunidos em uma edição comemorativa, intitulada Fundamentos e Actualidade do Real Gabinete Português de Leitura, organizada por Manuel Ferreira de Castro e publicada em I 9 77 . Com base nos pressuposros da Análise do Discurso francesa (Pécheux; Orlandi), pretendo observar, através desses documentos, que imagens importava ao Gabinete construir para falar de si e projetar no futuro e, em que medida, seriam reveladoras de um projeto pol ítico que se pretendia para a consol idação do Brasil como nação e para a normatização do português e sua instituição como idioma nacional. Para alcançar esses objetivos, f1z um levantamento de termos, expressões e enunciados empregados para (i) nomear o Gabinete; (ii) nomear as pessoas a ele ligadas e (iii) expressar os propósitos da instituição .

E do s e n s o c o m u m p e ns a r a b i b l i o te c a , tão s o m e n t e , c o m o u m a

i ns t i t u ição que tem a fu nção de c o n s e rvar o p a tr i m ó n i o i n telec­tual literário e artístico, de "preservar a memória, o rganizando a informação

para que todo ser humano possa usufruí-la" (Milanesi , 1 992: 1 5 ) . Ainda no limiar do século XX, a b iblioteca assume esse lugar de diálogo com o passado, de o rganização do saber posto em arquivos, cuja função é a de sistematizar o acesso às informações ( . . . ) e a de servir como mostruário histórico (ibid., passirn) , a cujas obras o acesso esteve restrito até então.

Cabe-nos, no entanto, compreender memória e arquivo em bases outras, fundamentadas na Análise do Discurso (Pêcheux; Orlandi) , teoria a que recorremos como

62 CASSANO, Maria da Graça. Biblioceca, memória e discurso

suporte para nosso estudo. Isso nos exigiu uma reflexão em torno desses conceitos, com vista a ressignificações. Ou seja, conforme Mariani (200 1: 10 1 ) , remetendo a Pêcheux ( 1982) e a Foucault ( 1 969) , tomar

"arquivo" como um conjunto hererogêneo de monumenros rexruais de uma época, considerado em termos de seu funcionamenro discursivo. Diro de outra maneira, em tal conjunro é possível depreender a discurs ividade (ou seja, a inscrição de efeitos lingüísricos materiais na história) que rege as configurações de enunciados múltiplos e dispersos.

No que concerne especificamente à memória, Lucas (2000) observa que antes de se dar a passagem da cultura oral para a da escrita, era delegada a tarefa de guardar a lembrança do passado a determinadas pessoas, a quem Le Goff ( 1 992) denomina "memórias vivas" e que, com o desenvolvimento da escrita, contudo, passaram a arquivistas. De um modo ou de outro, esses profissionais estavam relacionados à manutenção do poder, fosse ele da Igreja ou do Estado, os quais, ao instituírem esses "lugares da memória" , o faziam inscrevendo-os no funcionamento imaginário dos processos de significação, produzindo efeitos não só independentemente da 'vontade política' de qualquer setor do Estado, mas sobre ela mesma, produzindo e deslocando os objetos simbólicos que ela pretende controlar (Zoppi-Fonrana, 1 994).

A memória relacionando-se, pois, com o poder, vai ser, nas palavras de Lucas (op.

cit.: 32), " reveladora de esquecimentos e si lêncios dos senhores que zelam por sua construção". Isso posto, é inevitável que repensemos o conceito de memória.

Memória aqui, na ótica discursiva, não será tanto relacionada ao acúmulo de obras, documentos, mas, principalmente, um espaço de legitimação que atualiza e (re)o rganiza o imaginário, " tendo a linguagem como constitutiva de sentidos e identidades, e não como instrumento de expressão" (ibid.: 33) .

Conseqüentemente, memória, diz-nos Pêcheux ( 1 999 : 50) , "deve ser entendida não no sentido diretamente psicologista de ' memória individual ' , mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas" [grifo nosso] .

***

Foi entre os séculos XVIII e XIX que floresceram nas principais cidade européias instituições - "monumentos de lembranças" - destinadas a preservar a memória coletiva das nações que já começam a ganhar os fronteiras políticas que hoj e conhecemos.

Cadernos de urras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71, 2003 63

Foi nesse contexto , mais especificamente na primeira metade do século XIX,

que, no Brasil, deu-se a fundação de dois importantes estabelecimentos que se propunham a guardar a memória com a qual P ortugal pudesse se identificar e ser identificado : a Biblioteca Nacional e o Real Gabinete P ortuguês de Leitura.

Neste trabalho, ocupar-nos-emos, contudo, exclusivamente do Real Gabinete de Leitura, doravante aqui referido RGPL. A essa instituição criada a partir da iniciativa de particulares, portugueses, em sua maioria profissionais liberais e comerciantes, que para a Colônia acorreram, segundo eles, para fugir à mediocridade que dominava a metrópole naquelas primeiras décadas do século XIX, abrimos espaço para uma primeira análise. Tomamos por base as informações contidas nos dois primeiros capítulos de Fundamentos e Actualidade do Real Gabinete Português de Leitura, uma edição comemorativa lançada pela própria insti tuição , por ocasião do seu 1 40°

an iversário , em 1 977 . N esse livro, selecionamos alguns excertos oriundos documentos fundantes, melhor dizendo, decretos de fundação, atas de reunião, discursos, etc., com o propósito de observarmos quais recortes importariam à própria instituição fazer para falar de si e , em que medida, marcariam um projeto político para a consolidação a normatização do P ortuguês.

Para que esses objetivos fossem atingidos, procuramos, a partir de enunciados extraídos desses recortes, produzidos em épocas diferentes, desde a fundação do RGPL, verificar o que se mantém discursivamente, em momen tos diferentes na existência da instituição , e confirma uma memória que se projetou desde sempre para o futuro em termos de validação do português como idioma nacional e de projetas de co nstituição do leitor.

Desse modo, pelo confronto entre a materialidade discursiva que os compõem, fizemos um levantamento de (i) expressões que são empregadas para nomear o RGPL, (ii) expressões que nomeiam as pessoas a ele ligadas e (i i i) enunciados que expressam objetivos da instituição, desde a sua fundação até final do século XX.

Ao levarmos em consideração trechos produzidos no e sobre o RGPL, sabía­mos de antemão, no entanto, que eles representariam a imagem que a instituição esperava que dela se fizesse. Não haveria neutralidade nas escolhas, por sermos determinados ideologicamente.

* * *

64 CASSANO, Maria da Graça. Biblioceca, memória e discurso

O Real Gabinete Português de Leitura foi fundado em 1 4 de maio de 1 837, ou seja, quinze anos depois de proclamada a Independência do Brasil, no Rio de Janeiro, por iniciativa de um grupo preocupado em preservar a cultura portuguesa. A solenidade se deu em uma casa particular, de propriedade do advogado Antônio J osé Coelho Louzada, situada n o número 20 da rua Direita, hoje Primeiro de Mar­ço. Os principais responsáveis pela criação da i nstituição foram Francisco Eduardo Alves Vianna e J osé Marcelino da Rocha Cabral. O primeiro era um negociante madeirense e o segundo, emigrado político, advogado conhecido e jornalista.

Desde esse tempo, então , em muitas o casiões o RGPL e seus fundadores foi predicados em diversas circunstâncias. Dentre elas, destacamos algumas das situa­ções discursivas selecionadas para constar no livro comemorativo já mencionado. Dos documentos citados, na maioria dos casos através de recortes feitos pelo autor, A. R. Tavares , selecionamos, por nossa vez, alguns tantos fragmentos tidos como de interesse para nossa leitura.

Dispomos o material em o rdem cronológica e o reagrupamos sob o que podemos deno m inar como d iscursos do RGPL e discursos sobre o RGPL. Os primeiros seriam os produzidos pela própria instituição, normalmente constantes em atas e relató rios; os segundos, comumente os elogiosos, proferidos em soleni­dades comemo rativas através de discursos e as matérias jornalísticas.

Passemos a descrever, pois, resumidamente, esse corpus inicial:

Discursos do RGPL:

! .Descrição presumida da fundação da i nstituição, em 1 4/05/ 1 837, elaborada por Carlos Malheiros Dias, a partir de consultas a litografias de época e a narrativas contemporâneas. Nossa menção a este trabalho marcar-se-á da seguinte forma: Decr. funda.ção/CMD;

2.Discurso proferido pelo Presidente Dr. J osé Marcelino da Rocha Cabral, quatro meses depois da fundação (09/ 1 837), por nós retomado por Disd set. 1837/R. Ca.bral;

3 .Documento produzido, em 26/0 5 / 1 872 por comissão designada para pro­nunciar-se sobre Relatórios da Diretoria de 25/05/ 1 87 1 , aqui identificado por Doe. comiss. 11872.

Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduaçáo 2003, n.28, p. 61-71, 2003 65

Discursos sobre o RGPL:

4.Matéria sobre o RGPL, publicada pelo jornal do Commércio, em 231 1 21 1 888 .

Identificaremos esse material através de ]Cidez. 1888;

5.Considerações tecidas por ocasião da comemoração do 1 o Centenário ( 1 937) , pelo orador português Ricardo Severo e que serão assim distinguidas: Com. 1" Cen t!Severo;

6.Discurso proferido pelo professor D r . Antônio Augusto Mendes Corre ia, durante as comem o rações do !" Centenário do RGPL: Disc.f1o Cen t! A.A.M. C. ;

?.Discurso feito pelo professor Dr. Antônio Rodrigues Tavares e colaboradores, em homenagem aos 140 anos do Gabinete. As partes selecionadas para análise foram retiradas do espaço introdutório e de comentários por ele feitos, ao longo dos dois p rimeiros capítulos, a cerca de textos elabo rados por outros. As expressões colhidas serão identificadas por Liv. 140/A.R. Tavares.

No quadro que se segue, encontraremos a seleção de expressões, distribuídas segundo o cri tério exposto acima:

OB]ETIVOS

Descr. fun daçã.oiCMD . . . criar um estabelecimento com intuito de sua ilustração, a ilustração geral e de concorrer para restaurar a glória literária de sua pátria

Disc.lset. 1 837/R. Cabral

. . . cujo fim é a cultura do espírito; . . . promover o zelo patriótico; . . . cooperar eficazmente para a restauração da antiga, da im ensa da incomparável glória de sua Párria! . . . [ fazer com que] os porrugueses acompanhem a marcha rápida das nações que correm primeiras para o mais elevado ponro de civilização.

Doe. comiss. /1 872 . . . testemunhar ao futuro o amor dos portugueses emigrados pelo progresso da instrução e pela honra crescente de seu nome neste país hospitaleiro e irmão; . . . fim civilizador

66 CASSANO, Maria da Graça. Bíblíoreca, memória e discurso

]C!dez. I BBB . . . fará unir brasileiros e portugueses

Com . l" Cen c. /Severo . . . adoração dos símbolos sacrossantos; . . . [ adoração] dum cul to ctvtco p ara exaltação da síntese augusta duma pátria; . . . intuiro para a cultura do espírito, desenvolvimento da razão e aperfeiçoamento das condições de produção, nas ciências, artes ( ... ) e na organização social; ... visava ( . . . ) cm fervoroso entusiasmo o levantamento do nível da Colônia para a alrear no crédito de estranhos, para melhor servir a 2" pátria e timbrar de orgulho nacional na velha metrópole.

Disc. /Io Cen t. IA.A.M. C . . . prestigiar a língua, as !erras e a história pátrias; . . . [agl utinar para] to rnar coesa e úti l a colónia ( portuguesa); . . . [fomentar] iniciativas da benemerência e de solidariedade humana.

Liv. l 40/A.R. Tavares

. . . [cultuar] suas abnegadas origens; . . . fluir na senda do progresso; . . . manter os leitores a par do que se passav:t em Portugal, no B rasi l e no M undo; . . . fo rmação de bibl ioteca para ensinamento e recreio do espírito; . . . difu ndir e por em prática as s u as humanitárias i dé ias .

RGPL NOMEADO

Descr.fundação!CMD

. . . estabelecimento

Doc. com iss. /1 872

. . . associação que enobrece toda a colônia

]Cidez. I 888

. . . patrimônio comum à memória dos grandes homens

Com . l" Cen c./Severo

. . . u m a veneranda Sé de Portugal; . . . S é primaz; . . . Estabelecimento cri ado por portugueses; . . . fun dação portuguesa.

Cadernos de Lcrras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71. 2003 67

Disc./1" Cen t.IA.A.M.C

. . . hospedeira incomparável; . . . centro de actividades culturais; . . . núcleo aglutinador de esforço para a coesão e utilidade da colónia.

Liv. 1 40IA.R. Tavares

. . . organismo vivo; . . . a mais antiga Associação Portuguesa do Brasil; . . . magn ífica obra com o cunho de perenidade; . . . ! ' biblioteca pública de uma entidade privada em toda a América Latina; . . . sacrário de luso-brasilidade

MENÇÃO A PESSOAS

Descr.fundaçã.o!CMD . . . 42 atores; . . .42 admiráveis visionários; . . . aquele patriótico grupo; . . . aquele (grupo) tão sonhador; . . . Todos imbuídos do espírito de fraternal solidariedade.

Disc. lset. l 837/R. Cabral . . . o Povo irmão que nos acolhe [os brasileiros]; . . . o grande Povo [os portugueses] ; . . . beneméritos da Nação a que pertencem [os portugueses].

Doc. comiss . /1 872 . . . obreiros do progresso popular; . . . amigos e admiradores do G abinete

C/dez. I 888 . . . grandes homens

Disc./1" Cen t.IA.A.M.C . . . portugueses de relevo social e mental

Li v. 1 401 A.R. Ta vares

. . . homens que na verdade cavoucaram os firmes alicerces onde veio a apoiar-se toda uma ( . . . ) obra;

. . . esses homens fabulosos; .. .liberais de formação; . . . [esses homens] além do seu tempo na sua terra; ... [homens] que não suportam a tacanhez e as grilhetas miguelistas na Pátria; . . . homens bons; . .. homens honrados e distintos; . . . varões pretestantes; . . . homens robustos pela fé e pela abnegação

68 CASSANO , Maria da G raça. Biblioteca. mem ória e discurso

Entrecruzando esses recortes que fizemos, pudemos observar que, ao longo de rodo esse temp o , enunciados se alternaram e se repetiram em estreita relação parafrástica, destacando-se que em diversos momentos, na voz dos inúmeros oradores, percebe-se que a Pátria referida, e à qual se devem todas as homenagens, é Portugal, ainda que nos discursos iniciais procurassem fazer-nos perceber tal referência mediante o emp rego de pro n o m e possessivos e pessoais, o que de algum modo gera ambigüidade, logo desfeita quando se especifica a que pátria de fato se está referindo:

( . . . ) restaurar a glória literária de sua párria ( 1 837)

( . . . ) pro m over o zelo patriótico" ( 1 837)

( . . . ) representar a imagem de Portug11 no coraçáo do País que ele fundou ( 1 937)

É, pois , a Portugal e à língua que lá se fala e escreve que convém preservar e instituir defin itivamente no território que desde 1822 se tornara independente, mas que, no entanto , continuava sob o governo de portugueses:

( . . . ) dar precedência a obras portuguesas ( 1 837)

( . . . ) prestigiar a língua, as !erras e a história párrias ( 1 937)

Assim sendo, o RGPL ao se instituir como um bastião da preservação do idioma nada mais fez do que promover uma intervenção político-lingüística que já vinha sendo perpetrada antes mesmo da chegada da Família Real, em 1 808. Segundo Mariani (200 1 :99 ) , a fun dação de academias literárias no século XVIII:

( . . . ) contribuíram no encobrimento de uma historicidade brasileira que vinha se

constituindo com base no uso do português ( . . . ). Havia uma correlação entre a

produção discursiva das academias e o projeto jurídico-ideológico de imposição do português da metrópole.

Mais do que nunca, então , com a independência do Brasil, urgia assegurar o lugar da língua dos ant igos colon izadores nesse cadinho expressivo da América. Daí que a questão de nomeação da língua da nação brasileira já se impunha na instância legaL Em 1 827, uma lei estabelecia que os professores só ensinariam a ler, a escrever segundo a gramática da Língua Nacional, isto é, da Língua Portuguesa.

Tal in iciativa está fundada no espírito colonizador, que preconiza um efeito de unidade, ou seja, fala-se no Brasil uma só língua, cunhada desde o período pombalino, cuja ação previra a proib ição de qualquer outra que não fosse a portuguesa no ensino.

É preciso , por isso , entender, como em O rlandi ( 1 997: 8 ) , que conforme o Estado brasileiro se estabelecia, a questão da língua se evidenciava. Língua e Estado se conj ugam em sua fundação" , diz-nos a estudiosa. Busca-se a sua un idade através

Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n-28, p. 61-71, 2003 69

da imaginária unidade lingüísrica. Desse modo, embora se perceba que o sujeito que fala o português brasileiro seja distinto do que fala o de P ortugal, há que se buscar uma identidade que justifique a identidade nacional. O século XIX foi um momento p ropício em que sociedades, línguas e nações se legitimaram como insti­tuições em sua unidade.

Observamos também que, ao ratificar a Língua Portuguesa como idioma naci­onal , o RGPL objerivou principalmente contemplar dois aspectos, quais sejam:

1 . manter os portugueses que aqui viviam a par dos acontecimentos:

( ... ) imuito de ilustração geral ( 1 8 37) ( ... ) cujo fim é a cultura do espírito ( 1 837) ( . . . ) [fazer com que] os portugueses acompanhem a marcha das nações ( 1 837) ( ... ) testemunhar ao futuro o amor dos portugueses pelo progresso da instrução ( 1 872) ( ... ) ensinamento e recreio do espírito ( 1 977) ( ... ) manter leitores a par do que se passava ( ... ) no Mundo ( 1 977)

2. prestar um serviço ao Brasil, civilizando-o, investindo-o de respeitabilidade ao incluí-lo no rol das nações progressistas que importa levar em conta no cenário mundial:

( ... ) acompanhar a marcha rápida das nações que correm em marcha rápida p ara o mais elevado ponto da civil ização ( 1 837)

( . . . ) fim civilizador ( 1 872) ( . . . ) cultura do espírito, desenvolvimento da razão e aperfeiçoamento da ( . . . ) organização social

( 1 9 3 7 ) ( . . . ) levantamento do nível da Colônia para altear no crédito de estranhos ( 1 9 37) ( . . . ) fluir na senda do progresso ( 1 977)

A instituição, por sua vez, é nomeada ao logo dos dois séculos, de modo a que nela se reconheça um papel maior do que uma simples biblioteca. É assim, diante do levantamento por nós empreendid o , que o ra ela é predicada como um monumento devorado à memória portuguesa, ora como centro de cultura e, até, como um local sagrado:

associação que enobrece a colónia ( 1 872) patrimônio comum à memória ( 1 888) veneranda Sé de Portugal ( 1 937) estabelecimento criado por portugueses ( 1 937) fundação portuguesa ( 1 937) hospedeira incomparável ( 1 937) centro de atividades culturais ( 1 937) núcleo aglutinador de utilidade da colônia (I 937)

organismo vivo ( 1 977) mais antiga Associação portuguesa do B rasil ( 1 977)

70 CASSANO, Maria da Graça. Biblioreca, memória e discurso

obra com cunho de perenidade ( 1 977) I' biblioteca pública de urna entidade privada ( 1 977) sacrário de luso-brasilidade ( 1 977)

O Brasil aparece em dois momentos mencionado como "colônia", em 1 872 e 1 937 . Parece-n os que tal enunciado pode estar tomando o país como parte de P ortugal, a ele submetido, senão politicamente, ao menos cultural e lingüisticamente.

Quanto às pessoas ligadas ao RGPL, desde a sua fundação até recentemente, observamos que se autodenominam um grupo de visionários a quem os adj etivos mais recorrentes são admiráveis, sonhadores, grandes, honrados. São os portugueses (grande Povo) " imbuídos de espírito de solidariedade", "beneméritos da Nação (por­tuguesa) , em relação aos brasileiros (Povo irmão) .

Nota-se também que inúmeras vezes os adjetivos são util izados para produzir um efeito de gradação , conferindo ao enunciado maior imensidade, tal como em:

( . . . ) restauração da antiga, da imensa, da incomparável glória de sua Pátria ( 1 83 1 ) ( . . . ) eternizar, pelo idioma opulento e formoso, suave e forte ( 1 937)

Também vale a pena m encionar o emprego em maiúsculas da palavra "nação", sempre que associada à P ortugal.

Tudo parece concorrer para o engrandecimento desse país, conferindo-lhe im­po rtância a que não se deve olvidar, reconhecimento que se materializa na e pela linguagem e, por que não, no prédio de estilo manuelino situado no Rio de Janeiro.

Ao analisarmos cada produção discursiva, articulando umas com as outras, b uscamos perceber as filiações de sentido as quais estão l igadas, tendo como base uma formação discursiva predominante que perpassa os discursos, instituindo um lugar de memória que se pretende e, inclusive, se consegue proj etar no futuro. Daí a repetições encontradas n os diversos textos, produzidos em épocas diferentes que retomavam o j á-dito , reafirmando-o.

Essa relação de determinação discursiva para o RGPL e para as pessoas com ele envolvidas evidenciam um retorno de um imaginário desde sempre existente e que já estava presente desde o século XVIII , a partir da publicação do Diretório dos Índios.

É sabido que, os enunciados aqui arrolados, ao serem formulados, instituem o que deve ser dito e o que deve se silenciado, em contrapartida. Práticas discursivas configuram direções de sentido. No caso do RGPL, tal prática dá visibilidade a um P ortugal a que o B rasil se deve espelhar, ou mesmo de quem deve incorporar valores . . P arece-nos que se pretende preservar nesta terra bárbara, carente de civilização, um

Cadernos de Letras da UFF - Alunos da Pós-Graduaç:io 2003, n.28, p. 61-71, 2003 71

lugar para a terra e a língua lusitanas e, conseqüentemente, para um grupo aristocrá­tico , os portugueses de relevo social e men tal ( 1 937), homens além do seu tempo na sua Terra 0 977). Não se pode, portanto, conspurcar uma cultura, uma língua tão valorosas; há que se preservá-las.

O RGPL é uma entre outras instituições que surgiram no século XIX. Está na base da construção dos sentidos de nação e de língua. Em sua função reguladora, como academia que é, deu início ao que Mariani (ibid., 1 1 3) denomina de "processo de constituição de uma memória, cuj o início se dá na inobservância da língua e realidades brasileiras" . Para isso, a util ização da língua portuguesa, material izada nas obras e manuscritos de mérito, é um meio para que se evite uma fuga de sentidos já há muito postos.

N O TAS

' Este trabalho represema um recorre do meu projero de dourorado O papel da biblioteca na construção dos senridos de nação e de língua , sob a orienração da Prof' Dr" Bethania Sampaio Mariani.

REFERf.N CJAS BIBLIOGRÁ.FICAS

JACOB, Christian; BARATIN, Marc (Org.) . O Poder das Bibliotecas: a memória dos livros no Ocideme. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000. LAPA, M . Rodrigues. Estilística da Língua Ponuguesa. Coimbra, Pt: Coimbra, 1 977. LUCAS, Clarinda R. Leitura e interpretação em biblioteconom.ia. Campinas, S P : Ed. da Unicamp, 2000. MARIANI, Bethania. A institucionalização da língua, história e cidadania no Brasil do século XVIII: o papel das academias literárias e da política do Marquês de Pombal. In: ORLANDI, Eni. P. (Org.) História das Idéias I..i.ngiilstica Campinas, SP: Pomes; Cáceres, MT: Unemat, 200 1 . MILANESI, Luis. O que é biblioteca. São Paulo: Brasiliense, 1 994. ORLANDI, Eni P. O Estado, a gramática, a auroria. ln: GUlMARÁES , Eduardo (Coord.) Relatos. n. 4. Campinas, SP: lEL!Unicamp, jun/ 1 997. PfCHEUX, Michel. Papel da Memória. ln: ACHARD, Pierre et ai . . Papd da Memoria. Campinas, SP: Pomes, 1 999.