biblioteca, memória e discurso1 - cadernos de letras da uff · o real gabinete português de...
TRANSCRIPT
..
,.,.
Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71, 2003 61
Bibl ioteca, memória e discurso1
Maria da Graça Cassano
RESUMO Este estudo é resultado parcial de meu projeto de doutorado em Estudos Lingüísticos na UFF, sob a orientação da Prof' Dr' Bethânia S. C. Mariani. Aqui pretendo tomar o Real Gabinete Português de Leitura (RJ) como espaço discursivo. Essa anál ise inicial incidiu sobre documentos fundan tes (atas, regimentos, discursos, matérias jornalísticas), produzidos em épocas diferentes, desde a criação da insti tuição até a década de 70 do século XX, e reunidos em uma edição comemorativa, intitulada Fundamentos e Actualidade do Real Gabinete Português de Leitura, organizada por Manuel Ferreira de Castro e publicada em I 9 77 . Com base nos pressuposros da Análise do Discurso francesa (Pécheux; Orlandi), pretendo observar, através desses documentos, que imagens importava ao Gabinete construir para falar de si e projetar no futuro e, em que medida, seriam reveladoras de um projeto pol ítico que se pretendia para a consol idação do Brasil como nação e para a normatização do português e sua instituição como idioma nacional. Para alcançar esses objetivos, f1z um levantamento de termos, expressões e enunciados empregados para (i) nomear o Gabinete; (ii) nomear as pessoas a ele ligadas e (iii) expressar os propósitos da instituição .
E do s e n s o c o m u m p e ns a r a b i b l i o te c a , tão s o m e n t e , c o m o u m a
i ns t i t u ição que tem a fu nção de c o n s e rvar o p a tr i m ó n i o i n telectual literário e artístico, de "preservar a memória, o rganizando a informação
para que todo ser humano possa usufruí-la" (Milanesi , 1 992: 1 5 ) . Ainda no limiar do século XX, a b iblioteca assume esse lugar de diálogo com o passado, de o rganização do saber posto em arquivos, cuja função é a de sistematizar o acesso às informações ( . . . ) e a de servir como mostruário histórico (ibid., passirn) , a cujas obras o acesso esteve restrito até então.
Cabe-nos, no entanto, compreender memória e arquivo em bases outras, fundamentadas na Análise do Discurso (Pêcheux; Orlandi) , teoria a que recorremos como
62 CASSANO, Maria da Graça. Biblioceca, memória e discurso
suporte para nosso estudo. Isso nos exigiu uma reflexão em torno desses conceitos, com vista a ressignificações. Ou seja, conforme Mariani (200 1: 10 1 ) , remetendo a Pêcheux ( 1982) e a Foucault ( 1 969) , tomar
"arquivo" como um conjunto hererogêneo de monumenros rexruais de uma época, considerado em termos de seu funcionamenro discursivo. Diro de outra maneira, em tal conjunro é possível depreender a discurs ividade (ou seja, a inscrição de efeitos lingüísricos materiais na história) que rege as configurações de enunciados múltiplos e dispersos.
No que concerne especificamente à memória, Lucas (2000) observa que antes de se dar a passagem da cultura oral para a da escrita, era delegada a tarefa de guardar a lembrança do passado a determinadas pessoas, a quem Le Goff ( 1 992) denomina "memórias vivas" e que, com o desenvolvimento da escrita, contudo, passaram a arquivistas. De um modo ou de outro, esses profissionais estavam relacionados à manutenção do poder, fosse ele da Igreja ou do Estado, os quais, ao instituírem esses "lugares da memória" , o faziam inscrevendo-os no funcionamento imaginário dos processos de significação, produzindo efeitos não só independentemente da 'vontade política' de qualquer setor do Estado, mas sobre ela mesma, produzindo e deslocando os objetos simbólicos que ela pretende controlar (Zoppi-Fonrana, 1 994).
A memória relacionando-se, pois, com o poder, vai ser, nas palavras de Lucas (op.
cit.: 32), " reveladora de esquecimentos e si lêncios dos senhores que zelam por sua construção". Isso posto, é inevitável que repensemos o conceito de memória.
Memória aqui, na ótica discursiva, não será tanto relacionada ao acúmulo de obras, documentos, mas, principalmente, um espaço de legitimação que atualiza e (re)o rganiza o imaginário, " tendo a linguagem como constitutiva de sentidos e identidades, e não como instrumento de expressão" (ibid.: 33) .
Conseqüentemente, memória, diz-nos Pêcheux ( 1 999 : 50) , "deve ser entendida não no sentido diretamente psicologista de ' memória individual ' , mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas" [grifo nosso] .
***
Foi entre os séculos XVIII e XIX que floresceram nas principais cidade européias instituições - "monumentos de lembranças" - destinadas a preservar a memória coletiva das nações que já começam a ganhar os fronteiras políticas que hoj e conhecemos.
Cadernos de urras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71, 2003 63
Foi nesse contexto , mais especificamente na primeira metade do século XIX,
que, no Brasil, deu-se a fundação de dois importantes estabelecimentos que se propunham a guardar a memória com a qual P ortugal pudesse se identificar e ser identificado : a Biblioteca Nacional e o Real Gabinete P ortuguês de Leitura.
Neste trabalho, ocupar-nos-emos, contudo, exclusivamente do Real Gabinete de Leitura, doravante aqui referido RGPL. A essa instituição criada a partir da iniciativa de particulares, portugueses, em sua maioria profissionais liberais e comerciantes, que para a Colônia acorreram, segundo eles, para fugir à mediocridade que dominava a metrópole naquelas primeiras décadas do século XIX, abrimos espaço para uma primeira análise. Tomamos por base as informações contidas nos dois primeiros capítulos de Fundamentos e Actualidade do Real Gabinete Português de Leitura, uma edição comemorativa lançada pela própria insti tuição , por ocasião do seu 1 40°
an iversário , em 1 977 . N esse livro, selecionamos alguns excertos oriundos documentos fundantes, melhor dizendo, decretos de fundação, atas de reunião, discursos, etc., com o propósito de observarmos quais recortes importariam à própria instituição fazer para falar de si e , em que medida, marcariam um projeto político para a consolidação a normatização do P ortuguês.
Para que esses objetivos fossem atingidos, procuramos, a partir de enunciados extraídos desses recortes, produzidos em épocas diferentes, desde a fundação do RGPL, verificar o que se mantém discursivamente, em momen tos diferentes na existência da instituição , e confirma uma memória que se projetou desde sempre para o futuro em termos de validação do português como idioma nacional e de projetas de co nstituição do leitor.
Desse modo, pelo confronto entre a materialidade discursiva que os compõem, fizemos um levantamento de (i) expressões que são empregadas para nomear o RGPL, (ii) expressões que nomeiam as pessoas a ele ligadas e (i i i) enunciados que expressam objetivos da instituição, desde a sua fundação até final do século XX.
Ao levarmos em consideração trechos produzidos no e sobre o RGPL, sabíamos de antemão, no entanto, que eles representariam a imagem que a instituição esperava que dela se fizesse. Não haveria neutralidade nas escolhas, por sermos determinados ideologicamente.
* * *
64 CASSANO, Maria da Graça. Biblioceca, memória e discurso
O Real Gabinete Português de Leitura foi fundado em 1 4 de maio de 1 837, ou seja, quinze anos depois de proclamada a Independência do Brasil, no Rio de Janeiro, por iniciativa de um grupo preocupado em preservar a cultura portuguesa. A solenidade se deu em uma casa particular, de propriedade do advogado Antônio J osé Coelho Louzada, situada n o número 20 da rua Direita, hoje Primeiro de Março. Os principais responsáveis pela criação da i nstituição foram Francisco Eduardo Alves Vianna e J osé Marcelino da Rocha Cabral. O primeiro era um negociante madeirense e o segundo, emigrado político, advogado conhecido e jornalista.
Desde esse tempo, então , em muitas o casiões o RGPL e seus fundadores foi predicados em diversas circunstâncias. Dentre elas, destacamos algumas das situações discursivas selecionadas para constar no livro comemorativo já mencionado. Dos documentos citados, na maioria dos casos através de recortes feitos pelo autor, A. R. Tavares , selecionamos, por nossa vez, alguns tantos fragmentos tidos como de interesse para nossa leitura.
Dispomos o material em o rdem cronológica e o reagrupamos sob o que podemos deno m inar como d iscursos do RGPL e discursos sobre o RGPL. Os primeiros seriam os produzidos pela própria instituição, normalmente constantes em atas e relató rios; os segundos, comumente os elogiosos, proferidos em solenidades comemo rativas através de discursos e as matérias jornalísticas.
Passemos a descrever, pois, resumidamente, esse corpus inicial:
Discursos do RGPL:
! .Descrição presumida da fundação da i nstituição, em 1 4/05/ 1 837, elaborada por Carlos Malheiros Dias, a partir de consultas a litografias de época e a narrativas contemporâneas. Nossa menção a este trabalho marcar-se-á da seguinte forma: Decr. funda.ção/CMD;
2.Discurso proferido pelo Presidente Dr. J osé Marcelino da Rocha Cabral, quatro meses depois da fundação (09/ 1 837), por nós retomado por Disd set. 1837/R. Ca.bral;
3 .Documento produzido, em 26/0 5 / 1 872 por comissão designada para pronunciar-se sobre Relatórios da Diretoria de 25/05/ 1 87 1 , aqui identificado por Doe. comiss. 11872.
Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduaçáo 2003, n.28, p. 61-71, 2003 65
Discursos sobre o RGPL:
4.Matéria sobre o RGPL, publicada pelo jornal do Commércio, em 231 1 21 1 888 .
Identificaremos esse material através de ]Cidez. 1888;
5.Considerações tecidas por ocasião da comemoração do 1 o Centenário ( 1 937) , pelo orador português Ricardo Severo e que serão assim distinguidas: Com. 1" Cen t!Severo;
6.Discurso proferido pelo professor D r . Antônio Augusto Mendes Corre ia, durante as comem o rações do !" Centenário do RGPL: Disc.f1o Cen t! A.A.M. C. ;
?.Discurso feito pelo professor Dr. Antônio Rodrigues Tavares e colaboradores, em homenagem aos 140 anos do Gabinete. As partes selecionadas para análise foram retiradas do espaço introdutório e de comentários por ele feitos, ao longo dos dois p rimeiros capítulos, a cerca de textos elabo rados por outros. As expressões colhidas serão identificadas por Liv. 140/A.R. Tavares.
No quadro que se segue, encontraremos a seleção de expressões, distribuídas segundo o cri tério exposto acima:
OB]ETIVOS
Descr. fun daçã.oiCMD . . . criar um estabelecimento com intuito de sua ilustração, a ilustração geral e de concorrer para restaurar a glória literária de sua pátria
Disc.lset. 1 837/R. Cabral
. . . cujo fim é a cultura do espírito; . . . promover o zelo patriótico; . . . cooperar eficazmente para a restauração da antiga, da im ensa da incomparável glória de sua Párria! . . . [ fazer com que] os porrugueses acompanhem a marcha rápida das nações que correm primeiras para o mais elevado ponro de civilização.
Doe. comiss. /1 872 . . . testemunhar ao futuro o amor dos portugueses emigrados pelo progresso da instrução e pela honra crescente de seu nome neste país hospitaleiro e irmão; . . . fim civilizador
66 CASSANO, Maria da Graça. Bíblíoreca, memória e discurso
]C!dez. I BBB . . . fará unir brasileiros e portugueses
Com . l" Cen c. /Severo . . . adoração dos símbolos sacrossantos; . . . [ adoração] dum cul to ctvtco p ara exaltação da síntese augusta duma pátria; . . . intuiro para a cultura do espírito, desenvolvimento da razão e aperfeiçoamento das condições de produção, nas ciências, artes ( ... ) e na organização social; ... visava ( . . . ) cm fervoroso entusiasmo o levantamento do nível da Colônia para a alrear no crédito de estranhos, para melhor servir a 2" pátria e timbrar de orgulho nacional na velha metrópole.
Disc. /Io Cen t. IA.A.M. C . . . prestigiar a língua, as !erras e a história pátrias; . . . [agl utinar para] to rnar coesa e úti l a colónia ( portuguesa); . . . [fomentar] iniciativas da benemerência e de solidariedade humana.
Liv. l 40/A.R. Tavares
. . . [cultuar] suas abnegadas origens; . . . fluir na senda do progresso; . . . manter os leitores a par do que se passav:t em Portugal, no B rasi l e no M undo; . . . fo rmação de bibl ioteca para ensinamento e recreio do espírito; . . . difu ndir e por em prática as s u as humanitárias i dé ias .
RGPL NOMEADO
Descr.fundação!CMD
. . . estabelecimento
Doc. com iss. /1 872
. . . associação que enobrece toda a colônia
]Cidez. I 888
. . . patrimônio comum à memória dos grandes homens
Com . l" Cen c./Severo
. . . u m a veneranda Sé de Portugal; . . . S é primaz; . . . Estabelecimento cri ado por portugueses; . . . fun dação portuguesa.
Cadernos de Lcrras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 61-71. 2003 67
Disc./1" Cen t.IA.A.M.C
. . . hospedeira incomparável; . . . centro de actividades culturais; . . . núcleo aglutinador de esforço para a coesão e utilidade da colónia.
Liv. 1 40IA.R. Tavares
. . . organismo vivo; . . . a mais antiga Associação Portuguesa do Brasil; . . . magn ífica obra com o cunho de perenidade; . . . ! ' biblioteca pública de uma entidade privada em toda a América Latina; . . . sacrário de luso-brasilidade
MENÇÃO A PESSOAS
Descr.fundaçã.o!CMD . . . 42 atores; . . .42 admiráveis visionários; . . . aquele patriótico grupo; . . . aquele (grupo) tão sonhador; . . . Todos imbuídos do espírito de fraternal solidariedade.
Disc. lset. l 837/R. Cabral . . . o Povo irmão que nos acolhe [os brasileiros]; . . . o grande Povo [os portugueses] ; . . . beneméritos da Nação a que pertencem [os portugueses].
Doc. comiss . /1 872 . . . obreiros do progresso popular; . . . amigos e admiradores do G abinete
C/dez. I 888 . . . grandes homens
Disc./1" Cen t.IA.A.M.C . . . portugueses de relevo social e mental
Li v. 1 401 A.R. Ta vares
. . . homens que na verdade cavoucaram os firmes alicerces onde veio a apoiar-se toda uma ( . . . ) obra;
. . . esses homens fabulosos; .. .liberais de formação; . . . [esses homens] além do seu tempo na sua terra; ... [homens] que não suportam a tacanhez e as grilhetas miguelistas na Pátria; . . . homens bons; . .. homens honrados e distintos; . . . varões pretestantes; . . . homens robustos pela fé e pela abnegação
68 CASSANO , Maria da G raça. Biblioteca. mem ória e discurso
Entrecruzando esses recortes que fizemos, pudemos observar que, ao longo de rodo esse temp o , enunciados se alternaram e se repetiram em estreita relação parafrástica, destacando-se que em diversos momentos, na voz dos inúmeros oradores, percebe-se que a Pátria referida, e à qual se devem todas as homenagens, é Portugal, ainda que nos discursos iniciais procurassem fazer-nos perceber tal referência mediante o emp rego de pro n o m e possessivos e pessoais, o que de algum modo gera ambigüidade, logo desfeita quando se especifica a que pátria de fato se está referindo:
( . . . ) restaurar a glória literária de sua párria ( 1 837)
( . . . ) pro m over o zelo patriótico" ( 1 837)
( . . . ) representar a imagem de Portug11 no coraçáo do País que ele fundou ( 1 937)
É, pois , a Portugal e à língua que lá se fala e escreve que convém preservar e instituir defin itivamente no território que desde 1822 se tornara independente, mas que, no entanto , continuava sob o governo de portugueses:
( . . . ) dar precedência a obras portuguesas ( 1 837)
( . . . ) prestigiar a língua, as !erras e a história párrias ( 1 937)
Assim sendo, o RGPL ao se instituir como um bastião da preservação do idioma nada mais fez do que promover uma intervenção político-lingüística que já vinha sendo perpetrada antes mesmo da chegada da Família Real, em 1 808. Segundo Mariani (200 1 :99 ) , a fun dação de academias literárias no século XVIII:
( . . . ) contribuíram no encobrimento de uma historicidade brasileira que vinha se
constituindo com base no uso do português ( . . . ). Havia uma correlação entre a
produção discursiva das academias e o projeto jurídico-ideológico de imposição do português da metrópole.
Mais do que nunca, então , com a independência do Brasil, urgia assegurar o lugar da língua dos ant igos colon izadores nesse cadinho expressivo da América. Daí que a questão de nomeação da língua da nação brasileira já se impunha na instância legaL Em 1 827, uma lei estabelecia que os professores só ensinariam a ler, a escrever segundo a gramática da Língua Nacional, isto é, da Língua Portuguesa.
Tal in iciativa está fundada no espírito colonizador, que preconiza um efeito de unidade, ou seja, fala-se no Brasil uma só língua, cunhada desde o período pombalino, cuja ação previra a proib ição de qualquer outra que não fosse a portuguesa no ensino.
É preciso , por isso , entender, como em O rlandi ( 1 997: 8 ) , que conforme o Estado brasileiro se estabelecia, a questão da língua se evidenciava. Língua e Estado se conj ugam em sua fundação" , diz-nos a estudiosa. Busca-se a sua un idade através
Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n-28, p. 61-71, 2003 69
da imaginária unidade lingüísrica. Desse modo, embora se perceba que o sujeito que fala o português brasileiro seja distinto do que fala o de P ortugal, há que se buscar uma identidade que justifique a identidade nacional. O século XIX foi um momento p ropício em que sociedades, línguas e nações se legitimaram como instituições em sua unidade.
Observamos também que, ao ratificar a Língua Portuguesa como idioma nacional , o RGPL objerivou principalmente contemplar dois aspectos, quais sejam:
1 . manter os portugueses que aqui viviam a par dos acontecimentos:
( ... ) imuito de ilustração geral ( 1 8 37) ( ... ) cujo fim é a cultura do espírito ( 1 837) ( . . . ) [fazer com que] os portugueses acompanhem a marcha das nações ( 1 837) ( ... ) testemunhar ao futuro o amor dos portugueses pelo progresso da instrução ( 1 872) ( ... ) ensinamento e recreio do espírito ( 1 977) ( ... ) manter leitores a par do que se passava ( ... ) no Mundo ( 1 977)
2. prestar um serviço ao Brasil, civilizando-o, investindo-o de respeitabilidade ao incluí-lo no rol das nações progressistas que importa levar em conta no cenário mundial:
( ... ) acompanhar a marcha rápida das nações que correm em marcha rápida p ara o mais elevado ponto da civil ização ( 1 837)
( . . . ) fim civilizador ( 1 872) ( . . . ) cultura do espírito, desenvolvimento da razão e aperfeiçoamento da ( . . . ) organização social
( 1 9 3 7 ) ( . . . ) levantamento do nível da Colônia para altear no crédito de estranhos ( 1 9 37) ( . . . ) fluir na senda do progresso ( 1 977)
A instituição, por sua vez, é nomeada ao logo dos dois séculos, de modo a que nela se reconheça um papel maior do que uma simples biblioteca. É assim, diante do levantamento por nós empreendid o , que o ra ela é predicada como um monumento devorado à memória portuguesa, ora como centro de cultura e, até, como um local sagrado:
associação que enobrece a colónia ( 1 872) patrimônio comum à memória ( 1 888) veneranda Sé de Portugal ( 1 937) estabelecimento criado por portugueses ( 1 937) fundação portuguesa ( 1 937) hospedeira incomparável ( 1 937) centro de atividades culturais ( 1 937) núcleo aglutinador de utilidade da colônia (I 937)
organismo vivo ( 1 977) mais antiga Associação portuguesa do B rasil ( 1 977)
70 CASSANO, Maria da Graça. Biblioreca, memória e discurso
obra com cunho de perenidade ( 1 977) I' biblioteca pública de urna entidade privada ( 1 977) sacrário de luso-brasilidade ( 1 977)
O Brasil aparece em dois momentos mencionado como "colônia", em 1 872 e 1 937 . Parece-n os que tal enunciado pode estar tomando o país como parte de P ortugal, a ele submetido, senão politicamente, ao menos cultural e lingüisticamente.
Quanto às pessoas ligadas ao RGPL, desde a sua fundação até recentemente, observamos que se autodenominam um grupo de visionários a quem os adj etivos mais recorrentes são admiráveis, sonhadores, grandes, honrados. São os portugueses (grande Povo) " imbuídos de espírito de solidariedade", "beneméritos da Nação (portuguesa) , em relação aos brasileiros (Povo irmão) .
Nota-se também que inúmeras vezes os adjetivos são util izados para produzir um efeito de gradação , conferindo ao enunciado maior imensidade, tal como em:
( . . . ) restauração da antiga, da imensa, da incomparável glória de sua Pátria ( 1 83 1 ) ( . . . ) eternizar, pelo idioma opulento e formoso, suave e forte ( 1 937)
Também vale a pena m encionar o emprego em maiúsculas da palavra "nação", sempre que associada à P ortugal.
Tudo parece concorrer para o engrandecimento desse país, conferindo-lhe impo rtância a que não se deve olvidar, reconhecimento que se materializa na e pela linguagem e, por que não, no prédio de estilo manuelino situado no Rio de Janeiro.
Ao analisarmos cada produção discursiva, articulando umas com as outras, b uscamos perceber as filiações de sentido as quais estão l igadas, tendo como base uma formação discursiva predominante que perpassa os discursos, instituindo um lugar de memória que se pretende e, inclusive, se consegue proj etar no futuro. Daí a repetições encontradas n os diversos textos, produzidos em épocas diferentes que retomavam o j á-dito , reafirmando-o.
Essa relação de determinação discursiva para o RGPL e para as pessoas com ele envolvidas evidenciam um retorno de um imaginário desde sempre existente e que já estava presente desde o século XVIII , a partir da publicação do Diretório dos Índios.
É sabido que, os enunciados aqui arrolados, ao serem formulados, instituem o que deve ser dito e o que deve se silenciado, em contrapartida. Práticas discursivas configuram direções de sentido. No caso do RGPL, tal prática dá visibilidade a um P ortugal a que o B rasil se deve espelhar, ou mesmo de quem deve incorporar valores . . P arece-nos que se pretende preservar nesta terra bárbara, carente de civilização, um
Cadernos de Letras da UFF - Alunos da Pós-Graduaç:io 2003, n.28, p. 61-71, 2003 71
lugar para a terra e a língua lusitanas e, conseqüentemente, para um grupo aristocrático , os portugueses de relevo social e men tal ( 1 937), homens além do seu tempo na sua Terra 0 977). Não se pode, portanto, conspurcar uma cultura, uma língua tão valorosas; há que se preservá-las.
O RGPL é uma entre outras instituições que surgiram no século XIX. Está na base da construção dos sentidos de nação e de língua. Em sua função reguladora, como academia que é, deu início ao que Mariani (ibid., 1 1 3) denomina de "processo de constituição de uma memória, cuj o início se dá na inobservância da língua e realidades brasileiras" . Para isso, a util ização da língua portuguesa, material izada nas obras e manuscritos de mérito, é um meio para que se evite uma fuga de sentidos já há muito postos.
N O TAS
' Este trabalho represema um recorre do meu projero de dourorado O papel da biblioteca na construção dos senridos de nação e de língua , sob a orienração da Prof' Dr" Bethania Sampaio Mariani.
REFERf.N CJAS BIBLIOGRÁ.FICAS
JACOB, Christian; BARATIN, Marc (Org.) . O Poder das Bibliotecas: a memória dos livros no Ocideme. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000. LAPA, M . Rodrigues. Estilística da Língua Ponuguesa. Coimbra, Pt: Coimbra, 1 977. LUCAS, Clarinda R. Leitura e interpretação em biblioteconom.ia. Campinas, S P : Ed. da Unicamp, 2000. MARIANI, Bethania. A institucionalização da língua, história e cidadania no Brasil do século XVIII: o papel das academias literárias e da política do Marquês de Pombal. In: ORLANDI, Eni. P. (Org.) História das Idéias I..i.ngiilstica Campinas, SP: Pomes; Cáceres, MT: Unemat, 200 1 . MILANESI, Luis. O que é biblioteca. São Paulo: Brasiliense, 1 994. ORLANDI, Eni P. O Estado, a gramática, a auroria. ln: GUlMARÁES , Eduardo (Coord.) Relatos. n. 4. Campinas, SP: lEL!Unicamp, jun/ 1 997. PfCHEUX, Michel. Papel da Memória. ln: ACHARD, Pierre et ai . . Papd da Memoria. Campinas, SP: Pomes, 1 999.