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i BETINA REZZE BARTHELSON RELAÇÕES DE SENTIDO NO PROCESSO DE AQUISIÇÃO E USO DA LEITURA E DA ESCRITA CAMPINAS 2014

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BETINA REZZE BARTHELSON

RELAÇÕES DE SENTIDO NO PROCESSO DE

AQUISIÇÃO E USO DA LEITURA E DA ESCRITA

CAMPINAS

2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

BETINA REZZE BARTHELSON

RELAÇÕES DE SENTIDO NO PROCESSO DE

AQUISIÇÃO E USO DA LEITURA E DA ESCRITA

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry Coorientadora: Profa. Dra. Sonia Maria Sellin Bordin

CAMPINAS

2014,

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À MT e às crianças da escola que me

possibilitaram tantas reflexões.

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pelo apoio a esta pesquisa.

À Profa. Maza, por ter aberto as portas para um novo caminho e por ter

compartilhado comigo tanto conhecimento, a minha admiração.

À Profa. Sonia, pela paciência, perseverança e dedicação na leitura de meu texto.

Às Profas. Fernanda e Lílian, pela leitura atenta, pelas reflexões e fundamentais

intervenções.

Ao Julio, meu amor e companheiro, minha enorme gratidão pela paciência e

parceria. Você foi fundamental para que as dificuldades não parecessem tão difíceis e

para que o caminho ficasse mais doce.

À Isa, pelas escritas, reescritas e pela palavra amiga.

À Laura, pela disponibilidade e importantes contribuições para o meu texto.

À Judith, por sempre estar ao meu lado.

Ao CCazinho, uma grande oportunidade de aprendizado.

A todos da escola que compartilham comigo o dia a dia, obrigada pela

companhia e parceria.

Ao Erivaldo.

À minha família.

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RESUMO

A pesquisa em questão apresenta e analisa dados referentes a um estudo longitudinal realizado com um menino de 12 anos de idade, com dificuldade no eixo fala, leitura e escrita, e portador do diagnóstico de Retardo Mental Moderado. Esse acompanhamento foi realizado no Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho/IEL/Unicamp), fundamentado na abordagem da Neurolinguística Discursiva (doravante ND). O acompanhamento deste sujeito põe em evidência a necessidade de refletir sobre a importância da interlocução como processo de constituição do sujeito. Será posto em relevo que, a partir das concepções de língua, de linguagem e de interlocução adotadas pela ND, torna-se possível, no trabalho realizado com esse sujeito, a socialização de memórias, a ampliação do sistema de referências e de operações de construção de sentido, processos estes que desencadearam sua entrada no mundo das letras. Nesta dissertação, abordarei também a relação entre esse acompanhamento e minha prática docente na Educação Infantil (EI), com crianças de aproximadamente cinco anos, o que provocou reflexões relativas à patologização da educação no Brasil. Buscarei compreender, sobretudo, o que faz com que uma criança que não apresenta problemas na EI passe a fracassar no processo de aprendizado de leitura e escrita na continuidade de seu processo escolar no EF.

Palavras – chave: Neurolinguística Discursiva; Fala; Leitura; Escrita;

Educação Infantil; Interlocução

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ABSTRACT

This research presents and analyzes a longitudinal follow-up of a boy with learning difficulties. He is about 12 years old and has a hard time speaking, reading and writing. He also was diagnosed with Moderate Mental Retardation. The longitudinal follow up took place at the Center of Language, also known as CCazinho, (IEL/UNICAMP) and based on the Discoursive Neurolinguistics (hereafter ND) approach. The longitudinal follow up here presented puts in evidence the need to reflect on the importance of interlocution as a process of constitution of the subject. This research aims to point that, from the conceptions of language, language and dialogue adopted by the ND, it is possible, during the follow up, the socialization of memories, the expansion of the reference system and the building of meaning. This reasearch also points that these processes can lead the subjetc into the world of letters. Through this research, we also discuss the relationship between this follow up and my teaching practice in Early Childhood Education (EI), with children of approximately five years. Through my practice, I could see many aspects of the pathologizing of education in Brazil. Above all, this reasearch aims to understand what makes a child that has no problems in Early Childhood Education can fail when learning how to read and write in the continuity of their schooling process in Elementary Education. Keywords - Keywords: Discoursive Neurolinguistics; Speech; Reading; Writing; Early Childhood Education; Interlocution

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LISTA DE DADOS

Dado 1: Cópia no caderno da escola

Dado 2: Complete a frase, descubra a palavra, separe as sílabas

Dado 3: Conversando na praça do Ciclo Básico

Dado 4: Jogando Palavras cruzadas

Dado 5: Palavras cruzadas na revista Coquetel

Dado 6: Caderno de figuras

Dado 7: Trocando o pneu

Dado 8: Preparação para a escrita do texto: Como trocar pneu

Dado 9: Escrita do texto: Como trocar pneu

Dado 10: Digitação do texto: Como trocar pneu

Dado 11: Incêndio no IEL: preparação para a escrita do texto

Dado 12: Diálogo sobre o incêndio no IEL entre Ibb e MT

Dado 13: Texto final: Incêndio no IEL

Dado 14: Atividades realizadas por MT na escola

Dado 15: Animais extintos e animais em extinção

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 1

CAPÍTULO 1 - A história da Educação: da popularização do ensino à sua

patologização ........................................................................................................... 9

1.1. Contexto histórico da Educação no Brasil ........................................................ 10

1.2. Abordagem tradicional de linguagem x abordagem discursiva: uma breve

reflexão. .................................................................................................................. 14

1.3. A escola e as dificuldades escolares como sintomas de patologias ................... 20

1.4. Fundamentação teórica e metodológica da ND ................................................. 26

CAPÍTULO 2 - A constituição de MT na e pela linguagem: seu lugar na família e na

escola ..................................................................................................................... 33

2.1. A chegada de MT ao CCazinho ....................................................................... 33

2.2. A interferência das Políticas Públicas Educacionais na vida de MT .................. 39

2.3. A relação entre a escola e a família de MT ....................................................... 44

2.4. O poder do discurso médico e suas implicações no destino de MT ................... 48

2.5. MT é um sujeito incorrigível? .......................................................................... 51

CAPÍTULO 3 - O acompanhamento longitudinal de MT ........................................ 55

3.1. O CCazinho: a realização de um trabalho com MT orientado pela interlocução 55

3.2. As primeiras incursões de MT na leitura e na escrita ........................................ 64

CAPÍTULO 4 - A interlocução na Educação Infantil .............................................. 93

4.1. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental: aspectos legais .......................... 93

4.2. O trabalho discursivamente orientado na EI: “Roda de conversa” .................... 96

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 107

Anexos ................................................................................................................. 117

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APRESENTAÇÃO

A presente pesquisa1 é desenvolvida a partir dos pressupostos teóricos e

metodológicos da Neurolinguística Discursiva (doravante ND) envolvidos no

acompanhamento longitudinal do processo de aquisição e de uso da leitura e da escrita

de MT, sujeito deste estudo, realizado no Centro de Convivência de Linguagens

(CCazinho), situado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

O interesse na realização desse estudo surgiu através de minha prática como

docente concursada na Educação Infantil (doravante EI) na Prefeitura Municipal de

Campinas, a partir de minha formação em Pedagogia pela Universidade Estadual de

Campinas em 1999, ano em que atuei no Ensino Fundamental (EF) na rede privada de

ensino. Ao longo do exercício desta prática, junto a crianças que ingressam na EI e que

seguem no EF, diferentes questões me afetaram:

a) Por quê crianças que apresentam um histórico de sucesso no período da

EI passam a ter problemas em sua sequência escolar quando o processo de alfabetização

entra em cena?

b) Há uma ruptura entre esses dois momentos sem que nada indicie no

percurso da criança na EI para tal acontecimento?

O período da EI é considerado, teoricamente, como um espaço físico e

psíquico de instauração e de fortalecimento dos vínculos da criança com a imagem do

professor, da escola e, principalmente, do saber formalizado que circula em diferentes

gêneros de escrita e de memória social. Isso acontece através de diferentes atividades

cotidianas realizadas em sala, que visam aproximar a experiência que a criança traz de

sua vida familiar e social a diferentes práticas formais de leitura e de escrita, por meio

da leitura de diferentes gêneros, de contação de histórias, de rodas de conversa, do

trabalho com textos intersemióticos. Assim, busca-se, por um lado, instaurar na criança

uma relação afetiva e de aprendizagem com a escola e, por outro, a sua imersão no

processo de letramento e do saber acumulado pela cultura da qual faz parte.

1 Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, sob parecer consubstanciado de número 392.659/2013.

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Nas últimas décadas, houve um crescimento de oferta de vagas em escolas

públicas e particulares para o ingresso das crianças na EI. Entretanto, observamos que

os índices negativos do aproveitamento escolar de alunos brasileiros estão associados ao

Ensino Fundamental (doravante EF), relacionados, quase sempre, com a aprendizagem

de leitura e de escrita, com raciocínio matemático e com controle de comportamento de

atenção do aluno neste meio, o que tem acontecido sem que a Escola, como instituição,

considere o histórico desses mesmos alunos desde as suas primeiras relações (afetivas e

de aprendizagem) com a própria escola. Parece, portanto, interferir na passagem da

criança da EI para o primeiro ciclo do EF, tanto sob o ponto de vista das Políticas

Educacionais quanto do professor, a falta de práticas reflexivas envolvendo a

intencionalidade pedagógica desse primeiro período educacional, especialmente no

tocante à análise contextualizada das experiências de vida que a criança traz para a

escola e à organização de um trabalho pedagógico como decorrência que inclua a

análise teórico-prática das atividades de sala de aula e do papel do professor.

Buscando mais um curso de formação profissional que possibilitasse refletir

sobre as questões que afetam minha docência, tanto do ponto de vista teórico quanto

prático, ingressei, em 2009, no Curso de Especialização Lato-Sensu: “Linguagem,

práticas discursivas e criança”, oferecido através do convênio IEL - Unicamp e

Prefeitura de Campinas. Durante a realização do curso, interessei-me pela perspectiva

teórico-metodológica assumida pela ND, especialmente, no que tange ao estudo e às

análises de dados oriundos do processo de entrada das crianças na fase inicial da leitura

e da escrita.

Minha identificação com tal abordagem se dá porque ela abrange a teoria e a

prática em um movimento contínuo e recursivo, de modo a contemplar, assim, meu

interesse pelas questões relativas à alfabetização, à mediação e à intervenção do

professor nos processos inerentes à aprendizagem da leitura e da escrita. Especialmente,

foi importante pensar sobre como as experiências da criança na EI podem ser

ressignificadas por ela no EF.

Dando continuidade ao referido curso, optei por fazer o Trabalho de

Conclusão de Curso na área da ND, sob a orientação e co-orientação da Profa. Dra.

Maria Irma Hadler Coudry e da Profa. Dra. Sonia Sellin Bordin, respectivamente. Esse

trabalho teve como proposta o estudo da relação entre as brincadeiras infantis e a

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construção da linguagem escrita. Procurando, ainda, fundamentação e aprofundamento

teórico para a minha prática docente, através de reflexões suscitadas pela ND, dei

continuidade aos meus estudos cursando as disciplinas eletivas AM 035 e AM 0452, no

ano de 2010, quando passei a acompanhar no CCazinho o sujeito desta pesquisa – MT -

que apresentava sérias dificuldades em sua entrada nos processos de leitura e de escrita.

A ND, nos últimos anos, vem se solidificando como uma perspectiva

teórico-prática3 que propõe reflexões, discussões, análises e acompanhamentos de

sujeitos com dificuldades no eixo fala, leitura e escrita e que, em virtude disso,

frequentemente, recebem diagnósticos médicos (Transtorno do Déficit de Atenção,

Transtorno de Aprendizagem, Déficit de Aprendizagem, Dislexia, Alteração de

Processamento Auditivo, Síndrome do X-Frágil, entre outros). Diagnósticos estes que,

de alguma forma, devido à importância a eles atribuída pelos familiares e pelos

professores, determinam para a escola e para a família o mau funcionamento orgânico

desse sujeito para as questões associadas às aprendizagens escolares.

De tal modo, quando a criança apresenta uma dificuldade, muitas vezes,

natural do próprio processo de aprendizagem da leitura e da escrita, os professores,

quase sempre, sem conhecimento técnico (sobretudo linguístico) suficiente não

conseguem com elas lidar, as relacionam com questões de ordem biológica, vinculada

ao corpo do aluno, como uma incapacidade ou patologia4. As dificuldades escolares,

assim vistas, justificam o encaminhamento desse aluno pela escola a instituições que,

2 AM 035 – Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens I e AM 045 - Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens II são disciplinas eletivas oferecidas no IEL aos alunos de graduação da Unicamp e de outras universidades, ministradas pela Prof. Dra. Maria Irma Hadler Coudry com a participação da pós-doutoranda Profa. Dra. Sonia Maria Sellin Bordin. Tais disciplinas de caráter teórico-prático, por um lado, preparam os alunos quanto à perspectiva teórico-metodológica da ND, que privilegia o estudo das relações existentes entre fala, leitura, escrita, cérebro e mente e, por outro lado, possibilita a prática desses alunos no CCazinho junto às crianças e aos jovens, bem como promove a discussão dos casos acompanhados e a análise de dados oriundos de tais acompanhamentos. 3 Dentre os trabalhos realizados encontram-se: Coudry (2010); Bordin (2010); Antônio (2011); Coudry e Bordin (2012); Nakazoni (2012); Muller (2013); Silva (2014); Righi Gomes (2014). 4 A palavra patologia (páthos, doença, e lógos, estudo) define a área da medicina que descreve as alterações anatômicas e funcionais causadas pelas doenças no organismo. Ultimamente, o termo patologia tem sido empregado como sinônimo de doença, o que representa, sob o ponto de vista dos linguistas, um neologismo de significado, ou seja, quando a mesma palavra incorpora outro significado além do primitivo, tradicional, embora em nenhum dicionário, especializado ou não em termos médicos, encontra-se averbado o termo patologia com essa definição. Sendo assim, assume-se nesta pesquisa o termo patologia como sinônimo de doença/distúrbio. Disponível em <http://www.jmrezende.com.br/patologia.htm> (Acesso: 27/04/2014)

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por razões sócio históricas, se encarregam de avaliá-los (COUDRY e MAYRINK-

SABINSON, 2003).

Nessas instituições vinculadas à área da saúde, frequentemente, as

avaliações são realizadas por meio de testes psicométricos padronizados, que não

consideram o trabalho linguístico do sujeito, sua história e as diferentes formas de

trabalhar com a linguagem (COUDRY, 2010a). Como consequência, tais avaliações

resultam em diagnósticos/rótulos que, atribuídos a essas crianças, as marcam pelas

limitações de uma doença, justificando o fracasso escolar na juventude e a exclusão do

sistema produtivo na vida adulta (COUDRY, 2007).

Essa é a história de MT, sujeito desta pesquisa, uma criança de 12 anos que,

na época de sua avaliação inicial no CCazinho, em 2010, mesmo frequentando o 6º ano

do EF, não se encontrava alfabetizado. Como veremos, MT apresenta também

problemas de ordem sócio-afetiva, tanto na escola quanto na própria família e, por

vezes, tem dificuldade para se expressar e, assim, para se fazer entender.

Devido às dificuldades escolares de MT e relacionando-as a sintomas

patológicos, a escola orientou sua família a buscar ajuda de profissionais especializados.

Inicia-se, assim, a trajetória de MT e de sua mãe na procura de algum encaminhamento

que o ajudasse a transpor suas dificuldades escolares. Em duas instituições, sob a

orientação de especialistas como psicólogos, MT foi submetido a testes psicométricos

que resultaram no diagnóstico de Retardo Mental Moderado (CID F71. 9), marcando-o

como portador de uma doença.

MT e sua família passaram por diferentes instituições, por diferentes

profissionais da medicina e de outras áreas de especialização, sem conseguir mudar a

situação. Em 2010, por sugestão de uma professora de sua escola que conhecia o

trabalho realizado neste Centro, chegam ao CCazinho, buscando ajuda para que MT se

alfabetizasse, quando, então, teve início seu acompanhamento longitudinal realizado

por mim.

As dificuldades experimentadas por mim e por MT no complexo processo

do seu acompanhamento longitudinal me possibilitaram estabelecer um paralelo entre

esse trabalho discursivamente orientado na e pela linguagem (BENVENISTE,

1966/1991) e minha prática docente na EI com relação à importância da criança como

sujeito na relação com o outro. Portanto, é justamente a Interlocução, como conceito

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norteador do meu trabalho na EI, referente a crianças de até aproximadamente seis anos

de idade e ainda não alfabetizadas, e do trabalho realizado no CCazinho com MT, o que

evidencia a aproximação existente entre esses dois universos aparentemente distantes.

Sendo assim, me parece possível afirmar que as vivências das crianças na

EI, pautadas pela interlocução e pela intervenção nos processos envolvidos na

aprendizagem, e, ainda, por meio da consideração da história do sujeito e das diferentes

formas de trabalho com a linguagem, podem possibilitar ao aluno a continuidade de um

percurso escolar menos conturbado e mais feliz do que o vivido por MT. Dessa forma, a

pesquisa deste mestrado, orientada pela teorização e metodologia da ND, envolve o

acompanhamento longitudinal do sujeito MT, que acontece entre setembro de 2010 e

junho de 2013, e tem como objetivo refletir sobre a relação entre a fala, a leitura e a

escrita antes e durante o processo de entrada das crianças e jovens no mundo das letras.

Para tanto, proponho uma reflexão sobre os conceitos de sistema de

referências e de operações linguísticas ancoradas na linguagem. A concepção de

linguagem tomada como fomentadora da reflexão, do pensamento e da criatividade

(FRANCHI, 1977/1992) relaciona-se com o estudo vygotskyano que centraliza na

fala/linguagem as possibilidades de desenvolvimento afetivo e intelectual da criança

(VYGOTSKY, 1934/1993).

De tal modo, esse estudo é dirigido, por excelência, aos professores,

considerando as questões que regem a realização desta dissertação e que perpassam a

reconsideração do meu lugar de pedagoga: quais, dessas crianças que agora não

apresentam problema algum, serão as próximas a serem diagnosticados como

portadoras de alguma patologia? O que promove essa terrível transformação? Onde

estão os indícios de ruptura da esperada continuidade da suposta normalidade da criança

que frequenta a EI: na estrutura escolar, na formação do professor, na relação escola e

família? Para responder a tais perguntas, a pesquisa está organizada em quatro capítulos.

No Capítulo 1, “A história da Educação: da popularização do ensino à sua

patologização”, a partir dos fundamentos teóricos da ND e dos estudos realizados na

área, apresento uma breve reflexão sobre o aspecto histórico da Educação no Brasil,

com os objetivos de contextualizar, na sociedade atual, algumas das causas da baixa

qualidade do ensino oferecido hoje em nosso país, bem como o de discutir o olhar

equivocado que a própria Escola, a Medicina e a Família vêm mantendo sobre as

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dificuldades escolares apresentadas pelas crianças e jovens. Este processo de

patologização do ensino resvala no largo consumo de medicamento pela população

escolar.

O Capítulo 2 “A constituição de MT na e pela linguagem: seu lugar na

família e na escola” tem por objetivo apresentar MT, sujeito desta pesquisa. O primeiro

momento do processo do acompanhamento longitudinal de MT, realizado por mim no

Centro de Convivências de Linguagens – CCazinho, entre setembro de 2010 e junho de

2013. A queixa principal de MT, 12 anos, trazida pela família, era a sua impossibilidade

de entrar nos processos de leitura e de escrita. Entretanto, os primeiros encontros com

MT acabam por evidenciar uma questão de fala, mais especificamente, de interlocução,

que redireciona o acompanhamento longitudinal para as questões de interlocução e de

memória, isto é, processos de subjetivação na língua/linguagem.

O Capítulo 3, “O acompanhamento longitudinal de MT”, dá visibilidade ao

segundo momento do acompanhamento longitudinal de MT e sua finalização. Nele,

serão privilegiadas as possibilidades do vir a ser desse sujeito. Trata-se de uma aposta

de que esse sujeito pode se constituir a partir de diferentes interlocuções em diferentes

experiências, principalmente, de fala/linguagem, ampliadas por outras que envolvem a

leitura e a escrita, por estar ele imerso em uma cultura letrada. O acompanhamento

longitudinal de MT, então, é analisado a partir dos conceitos de sistema de referências,

de operações de construção de sentidos, de consciência e de conhecimento de mundo,

além dos processos de leitura e de escrita, propriamente ditos.

No Capítulo 4, “A interlocução na Educação Infantil”, se apresenta a

estrutura escolar da EI como um momento do percurso da criança, em que ocorrem suas

primeiras significações baseadas nas interlocuções oriundas de um ambiente diferente

do ambiente familiar, incluindo outro sistema de relações (com o professor e com seus

pares) e também de outro sistema de regras (escolares). Além disso, é na EI que

ocorrem as primeiras experiências da criança, ainda que de forma indireta, com a leitura

e com a escrita significadas, principalmente, na interlocução com o professor. Para

evidenciar a importância das vivências5 da criança na EI, apresento, a partir de minha

5 O conceito de vivência usado por Vygotsky é discutido por Zoia Prestes (2010) em sua tese de

doutorado defendida em 2010 na UNB: “Perejivanie, para a criança, é exatamente uma unidade simples, relativa à qual não se pode dizer que represente uma influência do ambiente sobre a criança ou uma especificidade da criança; perejivanie é exatamente uma unidade da personalidade e do ambiente, assim

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experiência como professora e dos aportes teóricos da ND, a análise de uma atividade

comumente realizada nas salas de EI - “Roda de conversa”-, como uma prática

discursiva de interlocução que interfere no processo de subjetivação dos alunos.

como está representada no desenvolvimento. Por isso, no desenvolvimento, a unidade dos aspectos da personalidade realiza-se numa série de perejivanie da criança. Perejivanie deve ser entendida como uma relação interna da criança como pessoa com um outro aspecto da realidade” (PRESTES, 2010, p.120).

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CAPÍTULO 1 - A história da Educação: da popularização do

ensino à sua patologização

A partir dos fundamentos teóricos da ND e dos estudos realizados na

área, apresento, neste capítulo, uma breve reflexão sobre o aspecto histórico da

Educação no Brasil, com o objetivo de contextualizar, na sociedade atual, algumas das

causas da baixa qualidade do ensino oferecido hoje em nosso país, bem como o de

discutir o olhar equivocado que a própria Escola, a Medicina e a Família fazem sobre as

dificuldades escolares apresentadas pelas crianças e jovens.

O propósito deste capítulo é refletir sobre a condição precária em que se

encontra o ensino público – do qual faço parte como professora – não como um

acontecimento atual, mas como uma confluência de fatores externos, como os políticos

e sociais, e os internos, a prática em sala de aula e a formação do professor. A crítica

construída pela ND aponta que, ao longo dos anos, estes fatores são encobertos pelo

excesso de patologias, como a Dislexia, o Déficit do Processamento Auditivo, o

Distúrbio de Aprendizagem, entre outras, que são atribuídas às crianças, sobretudo de

escola pública. Vemos que essas crianças, por vezes, fazem uso de medicamentos à

base de metilfenidato6, especialmente aquelas que são diagnosticadas, especialmente,

com o chamado Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade.

O Governo Federal Brasileiro7, com o objetivo de ampliar o acesso de

toda a população aos medicamentos que considera imprescindíveis para a saúde,

disponibiliza, para a rede básica de saúde, uma relação de medicamentos oferecidos

gratuitamente, dentre estes, o metilfenidato. Assim, com a legitimação do governo, esse

medicamento tornou-se tão necessário quanto aquele indicado para doenças crônicas,

como, por exemplo, a insulina para o diabetes. Este processo acaba por gerar uma

questão econômica entre o investimento da verba pública destinada a esse fim e o lucro

de laboratórios e patentes. Dessa forma, devido ao uso disseminado do metilfenidato,

6 O Brasil é o segundo maior consumidor de metilfenidato. Em primeiro lugar, estão os Estados Unidos. A venda desse medicamento começou em 1998 e, de acordo, com Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), apenas entre 2009 e 2011, seu consumo triplicou de 156 milhões miligramas para 413 milhões. O Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (IDUM) estima que o crescimento das vendas desse medicamento foi em torno de 3.200% nos últimos 11 anos. Não há estudos sobre a quantidade de metilfenidato que gira pelo mercado negro no Brasil. Disponível em: <http://www.ascoferj.com.br/noticias/consumo-de-metilfenidato-triplicou>. Acesso em: jan. 2014. 7 Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/07/sp-restringe-acesso-remedio-para-crianca-com-deficit-de-atencao.html>.Acesso em:15 jul/2014

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algumas prefeituras, como a de São Paulo, passaram a exigir, além da receita do

especialista neurologista ou psiquiatra, uma avaliação psicológica para a autorização do

uso desse medicamento.

Neste capítulo, portanto, se dará relevância ao uso da abordagem

tradicional de linguagem que embasa a prática escolar. Em função de o arcabouço

teórico da ND se constituir como um contraste a tal concepção de linguagem, ele

perpassará toda essa reflexão, no entanto, será no último item do presente capítulo que

este aporte teórico será exposto.

1.1. Contexto histórico da Educação no Brasil

Verificam-se, atualmente, no cenário Educacional Brasileiro, diferentes

problemas que comprometem o percurso escolar dos alunos, especialmente o de

crianças em processo de alfabetização. Muitas crianças não conseguem se alfabetizar

ou, se conseguem, enfrentam, até o final do seu percurso escolar, problemas em relação

à escrita de textos, ao sistema ortográfico da língua e à leitura com compreensão.

A Escola tem, como responsabilidade e função, a transmissão dos

conhecimentos historicamente construídos pela humanidade, a promoção do

aprendizado formal da leitura e da escrita, além de assumir a dianteira dos processos de

socialização e de aprendizado de papéis e normas sociais (COUDRY e FREIRE, 2005).

Em nosso país, veem-se, através dos altos índices de evasão escolar e pelo baixo nível

educacional brasileiro alcançado nos índices internacionais8, que a Escola não tem

cumprido com sucesso a sua função e responsabilidade.

A escrita e a leitura são processos que devem ser ensinados pela escola,

uma vez que possibilitam, às crianças, acesso aos conhecimentos formais: um bem

coletivo que permite a apropriação do patrimônio cultural, histórico e político

construído pelas sociedades (KLEIMAN, 2005). Assim, aprender formalmente a

escrever e a ler “envolve não só a aprendizagem de símbolos gráficos, mas, sobretudo o

8 O PISA - O Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) realiza avaliações e compara os sistemas de ensino de vários países com o objetivo de subsidiar políticas de melhoria no ensino básico. A partir do último índice de avaliação realizado em 2012, o Brasil ocupa a 55ª posição no ranking de leitura dentre os 65 países participantes. Segundo os índices do programa, quase metade (49,2%) dos alunos não alcança o nível 2 de desempenho na avaliação que tem o nível 6 como o seu indicador máximo. De acordo com a avaliação realizada esses alunos não são capazes de deduzir informações e de estabelecer relações entre as diferentes partes do texto. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos>. Acesso em: 15 jul. 2014.

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acesso ao universo criado pela circulação da produção escrita, especialmente o acesso

aos conteúdos e saberes culturais veiculados” (ALKMIM, 2005, p.12).

Nesse sentido, “ler e escrever tornaram-se práticas extremamente

valorizadas no mundo de hoje” (Ibdem, p.13) constitutivas das “novas formas de

relações sociais” e dos “novos tipos de relação com o mundo e com o outro” presentes

em nossa sociedade (LAHIRE, 1993, p.15).

Historicamente, somente no século XIX a escrita adquiriu uma grande

importância social, como consequência do advento da Revolução Industrial.

Anteriormente, “somente alguns membros de uma elite social tinham a necessidade de

ler e escrever” (ALKMIM, 2005, p.14)9.

Em nosso país, a relação do acesso da população ao saber não tem

acontecido de forma democrática, o que está diretamente associado aos interesses

políticos e às decisões relativas à Educação: o direito de aprender a ler e a escrever é,

sobretudo, uma questão de Política Educacional, que determina “o modo como o saber é

aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo

atribuído” (FOUCAULT, 1970/2010, p.17).

No Brasil, a escolarização, até o século XIX, foi precária e insuficiente para

a população em geral. Os fatos de seus habitantes se concentrarem na zona rural e de a

economia ser de base agrícola, assentada em técnicas arcaicas de cultivo, não exigiam

um saber escolar na preparação dos trabalhadores, o que se constituiu em um fator

determinante para os altos índices de analfabetismo no país. Contribui, para isso, o fato

de a educação no Brasil ser vedada aos escravos. Somente com a vinda da corte

portuguesa para o Brasil, em 1808, é que se torna relevante pensar em questões

referentes à Educação, em função da necessidade da ocupação de cargos nos quadros da

política, da administração pública e, principalmente, para formar a ‘inteligência’ do

regime” (ROMANELLI, 2012).

Com a vinda da corte portuguesa, também surgem outras preocupações,

como a criação de manuais para as aulas dos professores; a criação de colégios modelos

com o objetivo de oferecer um padrão de ensino a ser seguido e, ainda, a instalação da

Impressão Régia no Rio de Janeiro, criando condições para a edição de obras de autores

9“A escrita era restrita e controlada pelos espaços tradicionais de poder, como a Igreja e o Estado”. (ALKMIM, 2005, p.14).

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brasileiros (SOARES, 2002). Sendo assim, a estrutura e a organização social durante o

século XIX determinou “a permanência da velha educação acadêmica e aristocrática e a

pouca importância dada à educação popular” (ROMANELLI, 2012, p.46).

A partir do século XX, houve a deterioração das formas de produção no

campo e a intensificação do processo de urbanização e industrialização, exigindo a

necessidade de recursos humanos e mão de obra qualificada, e, como consequência, a

ampliação da rede pública escolar. De tal modo, até 1950, apenas as classes

privilegiadas social e economicamente tinham acesso à Educação. Somente depois

dessa década, e durante o Regime Militar, é que ocorre a ampliação do sistema

educacional brasileiro, como resposta à reivindicação das camadas populares pelo

direito à escolarização e pela democratização do ensino. Tal ampliação se dá de “forma

atropelada, improvisada, agindo o Estado mais com vistas ao atendimento das pressões

do momento do que propriamente com vistas a uma política nacional de educação”

(Ibidem, p.65). No entanto, devido à urgência de suas contratações, os novos

professores foram escolhidos de forma rápida, pouco seletiva, formados em cursos

curtos e desprovidos de profundidade teórica (MOLINA, 1987).

Nesse contexto, o programa curricular escolar de caráter amplo e erudito foi

reduzido para que alunos oriundos de diferentes classes sociais pudessem atingir

minimamente os objetivos acadêmicos da época: “O aumento da rede de escolas

públicas concretamente se traduziu em prédios escolares improvisados, sem

equipamento e sem segurança, (...) o aumento das crianças nas salas de aula significou a

multiplicação dos períodos de funcionamento da escola fazendo surgir, por exemplo, o

período intermediário” (SILVA, 1986, p.12). Como consequência deste tipo de

expansão do sistema educacional, verificam-se o rebaixamento do nível educacional das

escolas, a redução do salário do professor e as péssimas condições de trabalho

oferecidas (SOARES, 2002).

Segundo Silva (1986), a ampliação do atendimento escolar às camadas da

população marginalizadas representou, primordialmente, a tentativa do Estado em

divulgar uma imagem política democrática, ainda que as condições de ensino

continuassem de baixa qualidade e excluíssem, de fato, as camadas carentes da

população.

Nos anos de 1970 e 1980, o crescimento da população escolar nas escolas públicas do Estado de São Paulo foi da ordem de 1 milhão e

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meio de crianças. Esse crescimento foi um primeiro resultado da política educacional do governo, implantada no período que sucedeu a revolução de 64 em nosso país e que, ampliando o número de anos de escolaridade a um contingente da população, pretendeu fazer passar a ideia de uma educação que se “democratizava” porque fazia aumentar as chances de igualdade de condições (SILVA, 1986, p.11).

É importante ressaltar, também, que entre os anos de 1985 e 1990, em busca

de ensino de melhor qualidade, houve a migração das classes com maiores condições

econômicas da rede pública para a rede particular de ensino.

A partir dessa breve retomada histórica, observa-se que a situação

comprometedora do ensino público se mantém até os dias de hoje e reflete o descaso

dos responsáveis legais pela Educação em nosso país. Descaso que se evidencia no

interior da sala de aula, pela baixa qualidade da formação do professor10, dificultando-

lhe o entendimento dos processos envolvidos na aquisição da leitura e da escrita, assim

como o impossibilita de propor atividades que despertem no aluno o interesse em

aprender.

Além disso, diferentes fatores agravam o quadro já debilitado do ensino

brasileiro: o número excessivo de alunos em sala de aula; a má qualidade do material

didático; a falta de estrutura física das escolas; a gestão incompetente quanto à

administração de verbas destinadas à compra de materiais (giz de lousa, máquina para

fotocópia, computadores, aparelhos de DVD, livros para biblioteca); a ausência de

Políticas Educacionais favorecendo o trabalho do professor em relação à avaliação e à

promoção da aprendizagem do aluno; a baixa qualidade da gestão pedagógica escolar; a

desvalorização social e econômica do trabalho do professor. Nesse contexto, professor e

aluno estabelecem uma relação muitas vezes desrespeitosa, o que vem sendo constante

nas escolas em nosso país. A Escola vem se definindo como um palco de relações

pautadas pela violência, tanto do aluno para com o professor, quanto do professor para

com o aluno.

Nesse cenário escolar, perdem-se de vista a função e a responsabilidade da

Escola quanto a transmitir conhecimento e se fazer interessante para o aluno. Além

disso, inviabiliza-se a implantação de práticas pedagógicas condizentes com o tempo

10Castilho (2000) considera que uma das causas da crise instaurada no ensino de escrita na escola é a formação ainda conservadora oferecida pelas universidades que não prioriza a reflexão do professor quanto a: “o que devem ensinar, como devem ensinar, para quem ensinar e para quê ensinar” (Idem, p.13).

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histórico do aluno e do professor. Como consequência, antigos recursos pedagógicos,

como a cópia, passam a ser usados frequentemente pelos professores sem que se

priorizem os processos de aprendizagem dos alunos: há apenas o propósito, por um

lado, de controlar o comportamento da classe e de minimizar a indisciplina dos alunos

e, por outro, talvez, de que o professor, supostamente, exerça o seu ofício. Atreladas a

essa temática, diferentes pesquisas11 têm indicado que o professor em sala de aula passa

a maior parte do seu tempo controlando o comportamento de seus alunos ao invés de

ministrar os conteúdos previstos.

1.2. Abordagem tradicional de linguagem x abordagem discursiva: uma breve

reflexão.

A cópia, cotidianamente, tem como função social a reprodução de uma

receita culinária, de um endereço, de um número de telefone, de alguma informação que

se queira lembrar posteriormente. O que vemos, porém, através dos cadernos das

crianças do CCazinho, é que a cópia não tem sido usada na escola como instrumento da

memória: ela tem sido usada de forma descontextualizada, apenas para preencher o

tempo da aula, possibilitando ao professor certo controle sobre o comportamento dos

alunos. Ainda assim, mesmo quando usada na escola de forma descontextualizada, a

cópia pode ser um exercício de reflexão sobre a escrita se o aluno já souber ler.

Esta discussão tem relevância frente às raríssimas experiências da criança

na escola com a produção de texto, em detrimento da grande quantidade de atividades

de escrita realizadas de forma mecânica, descontextualizada, repetitiva e sem sentido

para o aluno. Essas atividades não possibilitam, assim, aprendizagens significativas para

o processo de ler e escrever (COUDRY e FREIRE, 2005). É o que pode ser visto na

análise do dado em seguida.

11 Ferreira, A. M. “Gênese da Indisciplina na relação professor-aluno”. Disponível em: <http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/1899_1921.pdf>. Acesso em: 18 mai. 2011; Pereira, M. A. S. “Indisciplina Escolar: Concepções dos professores e relação com a formação docente”. Disponível em: <http://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/8123-indisciplina-escolar-concepcoes-dos-professores-e-relacoes-com-a-formacao-docente.pdf>. (Acesso: 25 jul. 2013).

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Dado 1: 08/02/2013 – “Cópia no caderno da escola”: dado retirado do caderno de MT usado em sala de aula. O texto copiado pelos alunos foi passado na lousa pela professora da disciplina de história.

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0.

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A realização da cópia com o baixo número de erros apresentados e o

capricho do traçado das letras são reveladores de um controle de MT sobre a função da

atenção e mostram o seu envolvimento com a atividade proposta pela professora, o que

permite pensar nesses fatos como indícios do seu desejo de aprender a ler e a escrever.

Desta forma, embora MT ainda não leia, mas copie bem todo o texto da lousa, essa

proposta apenas lhe oferece a oportunidade de treino motor de escrita, que então, se

revela desnecessária, uma vez que ele não tem problema algum para realizar os traçados

das letras. A cópia, neste contexto, pode ser entendida também como uma prestação de

serviço dos professores aos pais que valorizam, e cobram destes, os cadernos de seus

filhos preenchidos de escrita, fato comumente associado por esses pais à competência

do professor e à dedicação e ao rendimento escolar do filho.

08/2/13

HISTÓRIA DO CARNAVAL O CARNAVAL É UMA FESTA QUE SE ORIGINOU NA GRÉCIA EM MEADOS DOS ANOS 600 A 520 A.C. ATRAVÉS DESSA FESTA OS GREGOS REALIZAVAM SEUS CULTOS EM AGRADECIMENTO AOS DEUSES PELA FERTILIDADE DO SOLO E PELA PRODUÇÃO. EM ROMA, A SATURNÁLIA SERIA A FESTA EQUIVALENTE AO CARNAVAL. NELA UM “CARRO NAVAL” PERCORRIA AS RUAS DA CIDADE ENQUANTO PESSOAS VESTIDAS COM MÁSCARAS REALIZAVAA JOGOS E BRINCADEIRAS COM O PASSAR DO TEMPO, O CARNAVAL PASSOU A SER UMA COMEMORAÇÃO ADOTADA PELA IGREJA CATÓLICA QUE OCORREU DE FATO EM 590 D.C. ATÉ ENTÃO, O CARNAVAL ERA UMA FESTA CONDENADA PELA IGREJA POR SUA (S) REALIZAÇÕES EM CANTO E DANÇA QUE AOS OLHOS CRISTÃOS ERAM ATOS PECAMINOSOS A PARTIR DA ADOÇÃO DO CARNAVAL POR PARTE DA IGREJA. A FESTA PASSOU A SER COMEMORADA ATRAVÉS DE CULTOS OFICIAIS, O QUE BANIA OS ATOS PECAMINOSOS TAL MODIFICAÇÃO FOI FORTEMENTE ESPANTOSA AOS OLHOS DO POVO. JÁ QUE FUGIA DAS ORIGENS DA FESTA. COMO O FESTEJO PELAS CONQUISTAS. EM 1545, DURANTE O CONCÍLIO DE TRENTO, CA APROXIMADAMENTE 1723, O CARNAVAL CHEGO (U AO) BRASIL SOB INFLUÊNCIA. OCORRIA ATRAVÉS DE

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Nota-se, no dado acima, que é extenso o texto a ser copiado. Os alunos,

preocupados em conseguir copiar tudo o que foi passado na lousa pelo professor, não

refletem sobre a escrita através da leitura do texto e da observação da ortografia das

palavras devido ao tempo delimitado para a realização dessa atividade.

Nem mesmo considerando o objetivo da professora como o registro do

conteúdo trabalhado seria justificada a atividade de cópia apresentada no Dado 1.

Atualmente há nas escolas diferentes formas pelas quais o aluno pode arquivar as

informações (fotocópias, materiais impressos) que não necessariamente precisam ser

por intermédio da cópia da lousa que se torna, assim, uma atividade repetitiva, exaustiva

e desnecessária. Desta forma, a cópia é um recurso pedagógico que poderia dar lugar a

experiências significativas e à intervenção/mediação do professor na escrita de textos

com sentido para o aluno, como afirma Coudry:

Os cadernos das crianças mostram cópia, cópia e mais cópia. E quando se encontra um bom texto as tarefas propostas ficam aquém dele e reproduzem uma visão limitada de língua, linguagem e escrita, além de bastante desinteressantes considerando a sociedade em que vivemos. Textos que poderiam render escrita caem no vazio e as respostas das crianças são sempre melhores do que a atividade proposta (COUDRY, 2007, p.4).

A frequência com que os professores propõem que os alunos copiem -

textos muitas vezes extraídos dos livros didáticos dos próprios alunos - parece indicar

também que o professor entende que essa atividade, de alguma maneira, pelo exercício

de uma memória visual, pode favorecer o aluno em seu aprendizado de leitura e de

escrita.

Outro fator determinante para a baixa qualidade de ensino oferecido na

escola é a hegemonia da abordagem mecânica de aprendizagem da leitura e da escrita.

Essa abordagem está relacionada a uma concepção tradicional de ensino em que os atos

de ler e de escrever são vistos como ações de codificação e de decodificação, cuja noção

de aprendizagem se vincula às estratégias de memorização do sistema ortográfico da

língua escrita através de atividades metalinguísticas (e da própria cópia). Para elucidar

essa reflexão, apresento o Dado 2 a seguir.

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Dado 2: “Complete a frase, descubra a palavra, separe as sílabas”. Atividade retirada do caderno de uma criança de nove anos cursando o 3º ano do EF (4ª série).

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0.

O padrão dos exercícios propostos nessa atividade é muito semelhante ao

que é comumente encontrado nas cartilhas, nos livros e nos cadernos das crianças na

fase inicial da alfabetização. Observa-se que seu principal objetivo é a

memorização/fixação da ortografia das palavras com o dígrafo LH. A proposta é a de

que a criança separe e una sílabas, coloque-as na ordem esperada, forme frases a partir

de palavras que tenham o dígrafo LH e, em seguida, copie novamente a mesma frase.

Esses exercícios estão assentados em uma abordagem tradicional, em que a linguagem é

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tomada como um código, cuja repetição permitirá a aprendizagem tomada como

memorização das regras fixas e internas da língua.

De tal modo, o ensino da língua, organizado a partir de exercícios

metalinguísticos se relaciona a uma “concepção de língua como sistema de formas”,

como “um objeto do mundo regular e estanque”, com “regras definidas”, concepção que

consolida a ideia de que “conhecer a língua é só conhecer as regras internas ao sistema”,

no entanto, a metalinguagem “é apenas uma das funções da língua” (COUDRY e

POSSENTI, 1983/2010, p.2-4).

Para Coudry e Possenti (ibdem) a hegemonia do uso da metalinguagem no

currículo escolar, talvez, tenha prevalecido sobre as suas demais funções pela longa

tradição escolar de uma concepção de língua que privilegiou a escrita. Em decorrência

disso, parece que os professores, ao priorizarem os exercícios metalinguísticos que

implicam necessariamente uma reflexão sobre a língua, imaginam que estão “ensinando

a língua”, quando na verdade, “as informações sobre a linguagem acabam se

confundindo com a própria linguagem” (COUDRY e MORATO, 1990, p.55).

Diferentemente da concepção de “língua como um sistema de formas”, para

a Linguística Moderna, é a fala que merece destaque em seus estudos. Nessa

abordagem, “saber uma língua é constituir pessoalmente enunciações e constituir-se

através dela” quando entram em funcionamento as suas regras gramaticais (COUDRY

e POSSENTI, 1983/2010, p.3). Ainda seguindo Coudry e Possenti (1983/2010), parece

que nem todos foram ainda convencidos de que falar sobre uma língua é diferente de

saber essa língua, e, por isso, “a escola pede muito mais que o aluno fale sobre a língua

do que se expresse como sujeito” (Ibdem, p.4).

Para a ND, os objetivos da atividade proposta no Dado 2 poderiam ser

trabalhados durante a escrita de textos que abrangem a linguagem em sua dimensão

social e que façam sentido para a criança (COUDRY e MORATO, 1990), à medida que

essa ortografia e a divisão silábica se tornassem uma questão para os alunos. Desta

maneira, com o objetivo de proporcionar uma reflexão quanto à forma ortográfica de

escrita, se poderia, por exemplo, realizar uma lista comparando algumas palavras como

Júlio e julho, cavalheiro e cavaleiro – palavras que, embora na fala não mostrem

diferença significativa quanto ao som, na escrita, a opção por uma ou outra ortografia

leva a significados diferentes.

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Com relação à proposta de separar sílabas, a ND assume que esta reflexão é

necessária apenas diante da necessidade de separar as sílabas ao se escrever um texto, o

que acontece, por exemplo, quando há uma delimitação no papel em que se está

escrevendo. Assim, não há sentido na realização de treinos através de exercícios

repetitivos e descontextualizados como os propostos no Dado 2. Em detrimento da

proposta de atividades metalinguísticas sem sentido, a ND adota como referência as

atividades epilinguísticas12. Essas atividades possibilitam a reflexão sobre os recursos

linguísticos na própria interlocução e se manifestam nas negociações de sentido, em

hesitações, autocorreções, reelaborações etc., presentes nas atividades verbais

(GERALDI, 1991/2003).

No entanto, as críticas realizadas às atividades metalinguísticas não

diminuem sua importância, mas é preciso modificar a forma como são empregadas

pedagogicamente. Para Geraldi (1991/2003), os professores antecipam as atividades

baseadas na metalinguagem em relação às atividades linguísticas e epilinguísticas. Isso

não possibilita que o aluno reflita sobre as expressões em uso no discurso, seja na fala

ou na escrita, o que lhes causa a sensação de que “saber a língua é saber usar a

metalinguagem aprendida na escola para analisar a língua. Essa percepção é fruto do

trabalho escolar: o aluno, falando em português, diz não saber o português” (Ibdem,

p.191).

O interesse das crianças por atividades que façam sentido para elas, bem

como a desmotivação promovida por atividades desinteressantes como as apresentadas

no Dado 2, podem ser observados no relato de uma professora da rede pública de

ensino de Campinas: “As crianças se interessam em ler, até brigam por causa de

livrinhos, mas as lições da lousa, ‘separe as sílabas’ ou ‘forme frases’, levam mais de

meia hora para fazer... são muito lentas” (COLLARES e MOYSÉS, 1994, p.30).

1.3. A escola e as dificuldades escolares como sintomas de patologias

A ND, através dos trabalhos realizados na área13, consolida-se como um

arcabouço teórico e metodológico de reflexão e de crítica frente ao excesso de

diagnósticos médicos realizados com a população escolar (como já citados: Dislexia,

12 O conceito de epilinguismo como atividade do sujeito na linguagem foi formulado por Culioli (1968/1999) e retomado por Franchi (1977/1992), por Coudry (1986/1988) e por Geraldi (1991/2003). 13 Cf. nota nº 3.

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Transtorno do Déficit de Atenção, Dificuldade de Aprendizagem, Distúrbio de

Aprendizagem, Aliteração do Processamento Auditivo Central, entre outros.). Assume,

portanto, o papel de contradispositivo em relação à banalização de sintomas e a

inadequação de formas de avaliação e acompanhamento (escolar ou clínico) que

presenciamos hoje e que desconsideram a relação do sujeito com a linguagem, a família,

a escola e a sociedade (COUDRY, 2010b).

Assim, a ND incorporou, em seu aporte teórico, o conceito de

dispositivo formulado por Foucault (1969/2000) e ampliado pelo filósofo Agamben

(2010), que o define como:

“Qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões, e os discursos dos seres viventes. Em outras palavras: um conjunto de práxis, saberes, medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. Tal posição se origina de Foucault, que define o dispositivo como um conjunto heterogêneo, que recobre o dito e o não dito e implica discursos, instituições e estruturas arquitetônicas. De natureza estratégica, o dispositivo está inscrito em um jogo de poder que condiciona saberes e práticas”. (AGAMBEN, 2010, p. 40)

A presente pesquisa14 surge motivada pelo papel social, político e

profissional que exerço como professora do ciclo escolar do Ensino Infantil da rede

municipal de Campinas. Nesta condição, a prática diária de sala de aula me remete

constantemente ao exercício reflexivo de me desvencilhar de uma noção de linguagem

tradicional, vinculada ao percurso de minha formação e às imposições, derivadas de tal

abordagem, que inclui o modo como se deve ministrar os conteúdos segundo o

Programa de Ensino da Educação Infantil (EI). Dessa forma, meu percurso na área da

ND, que se desdobrou em estudos teóricos e na atuação prática no acompanhamento de

MT, me possibilitou repensar minhas práticas pedagógicas a partir da abordagem

discursiva de linguagem, um dos pilares que sustenta a posição de contradispositivo

assumida pela ND. Estudar esta concepção de linguagem favoreceu a construção de um

14 Embora reconhecendo que diferentes dispositivos (Políticas Educacionais, Formação do Professor, Aprovação Automática do aluno, Patologização do Ensino etc.) contribuem para que a Escola Pública permaneça na condição precária em que se encontra e o quanto os estudos realizados pela ND sobre tais dispositivos são importantes, não é objetivo desta pesquisa abordar com profundidade a reflexão sobre todos eles.

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novo olhar para a o ciclo da Educação Infantil, agora como um lugar possível de

prudência e de intervenção15 no processo de despatologização dessas crianças.

Retomo, assim, os desdobramentos implicados na prática pedagógica de um

professor que se vincula a uma concepção tradicional de linguagem e a possibilidade de

se pensar a linguagem sob uma perspectiva discursivamente orientada. Ressalvo que o

exercício de se pensar a própria filiação em uma ou outra perspectiva de linguagem, não

é dada, mas descoberta a partir de um confronto íntimo e do estranhamento quanto à

naturalização com que assumimos uma concepção de linguagem tradicional que está

posta, quase sempre, em nossa formação acadêmica em Pedagogia e nas práticas de sala

de aula. Ainda que, em paralelo, possamos, como professores e pesquisadores, repetir

um discurso contrário a isso, tal discurso não se materializa, quase nunca, em mudança

pedagógica em sala de aula.

Continuando a reflexão iniciada no item anterior sobre a concepção

tradicional de linguagem alinhada à ideia de desenvolvimento biológico humano,

afirmei que tal abordagem se aproxima de uma visão mecânica e técnica de

alfabetização (BORDIN, 2010) e privilegia o ensino das letras como “uma habilidade

motora e não como uma atividade cultural complexa” (VYGOTSKY, 1979/1998,

p.156). Nessa esfera de pensamento, Vygotsky, um dos autores que compõem a base

teórica da ND, afirma que todo aprendizado se dá nas relações sociais mediadas pela

linguagem. Nesse sentido, o desenvolvimento humano não pode ser vinculado a ciclos e

nem a um padrão biológico ideal.

Para a ND, inserida nos estudos de linguagem da Linguística Moderna, o

que está em jogo no uso e nas práticas com a linguagem é a “relação significativa entre

sujeitos”, sendo a escrita “um desdobramento da práxis linguística”, possibilitando os

“traços de uso e de pessoalidade da linguagem” (COUDRY e MORATO, 1990, p.53).

Neste contexto, não cabe o ensino da escrita enquanto código que desfavorece o

encontro entre sujeitos e sua constituição pela intersubjetividade (Ibdem, p.53).

Para Moysés (2001), a Escola, ao desconsiderar a importância da relação

com o outro para a constituição do sujeito, marginaliza a função social da linguagem no

processo de aprendizado da leitura e da escrita e se insere em uma concepção

15 O termo intervenção é empregado aqui não no sentido de antecipar a ideia de uma possível patologia, mas de valorizar para o professor que é somente pela interlocução que a criança poderá ser vista como um sujeito, de fato, não assujeitado a um sintoma de uma patologia.

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biologizante, genética e inata de aprendizagem e de inteligência. Assim, o sujeito,

desconsiderado de sua singularidade, passa a ser um sujeito idealizado e universal

(ABAURRE et al., 1997).

Diante disso, os professores, por não saberem como lidar e como intervir

pedagogicamente diante de alunos que não respondem ao processo de ensino-

aprendizado como se espera, solicitam a ajuda de profissionais da área da saúde, como

médicos, psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos, encaminhando essas crianças

para avaliação. Sobre esta questão, Collares e Moysés afirmam que “os professores, que

deveriam ser também os responsáveis por analisar e resolver os problemas educacionais,

assumem uma postura acrítica e permeável a tudo; transformam-se em mediadores,

triando e encaminhando as crianças para os especialistas da saúde” (COLLARES e

MOYSÉS16, 1994, p.30).

Segundo Moysés (2001) a preferência dos professores (e, também, muitas

vezes, dos pais) por esse encaminhamento médico ou especializado tem origem

histórica, uma vez que a medicina é, no imaginário social, a ciência responsável pela

cura da doença. Nas palavras de Clavreul, a medicina, é o “mito de um saber tudo, de

um saber absoluto, que permitiria o acesso a um saber total do corpo do doente”

(Clavreul 1983/1978, p.142). A medicina é depositária, portanto, de todas as soluções e

a sua presença é indispensável nos “ambientes escolares como garantia de

aprendizagem adequada” (MOYSÉS, 2001, p. 182).

Ademais, ainda de acordo com Collares e Moysés, é possível estabelecer um

paralelo entre a formação do médico e a formação insuficiente do professor que tanto

prejudica os rumos da educação em nosso país. Para as autoras, a formação do médico

também se caracteriza como insuficiente:

“Não se pode atribuir um caráter perverso e mercenário ao médico, na verdade, um agente pouco consciente desse processo. A ausência de contato com questões sociais dentro de uma perspectiva crítica e histórica, a valorização exagerada das especialidades no mercado de trabalho, a formação baseada em literatura de língua inglesa sem a necessária revisão de conceitos para nossa realidade, a falta de discussões sistematizadas sobre o papel social da medicina, entre inúmeras outras questões, tornam o médico bastante receptivo, acriticamente, à difusão de ‘novas teorias’ sobre ‘novas doenças’, com

16 As autoras Collares e Moysés não são da área da Linguística e estudam a patologização da educação a partir das áreas da Pedagogia e da Medicina, respectivamente.

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‘novos tratamentos’, enfim, uma ‘nova morbidade”. (COLLARES e MOYSÉS, 1985, p.10).

A área clínica, seja ela fonoaudiológica, psicológica, psicopedagógica,

mantém uma dependência do saber médico, incorporando dessa área seu modus

operandis, com base na concepção tradicional de linguagem, para a realização de

avaliações e diagnósticos de fala, de leitura e de escrita. Como já visto, é uma

concepção que vai ao encontro do ensino da leitura e da escrita também na escola que

“banaliza a relação som/letra e desconsidera outros tantos fatores envolvidos no

processo de aquisição e uso da leitura/escrita” (COUDRY, 2007, p.4).

A reflexão realizada por Coudry (1986/1988) quanto ao uso dos testes

psicométricos para a avaliação da linguagem, especialmente nas áreas médica e

psicológica, evidencia as tarefas de linguagem descontextualizadas, “simulando

situações artificiais para uma suposta atividade linguística” (Ibdem, p.6), de modo a não

considerar o trabalho linguístico do sujeito na linguagem em funcionamento, sua

história e o uso que faz da língua/linguagem. Trata-se, como vimos na atividade escolar

apresentada no Dado 2, de tarefas que exigem do sujeito um trabalho metalinguístico

com a língua/linguagem, em substituição de processos epilinguísticos. Ou seja, nos

testes, as crianças são avaliadas por critérios que desconhecem, condição em que “elas

não têm quaisquer indícios para interpretar os comandos, fazer inferências, apreender a

intenção significativa dos examinadores, o que as exclui do papel ativo como

interlocutores” (COUDRY e FREIRE, 2005, p.11).

Portanto, os diagnósticos emitidos a partir desses testes, por profissionais da

área médica e/ou clínica, despreparados para avaliar a linguagem, acabam por

patologizar processos normais da aquisição da leitura e da escrita, avaliando,

equivocadamente, como erros/sintomas, as hipóteses de escrita de crianças e de jovens

em processo de aprendizado. Nesse contexto, torna-se relevante a discussão a respeito

do que se considera erro ou acerto, a partir de análises assentadas em diferentes

concepções de linguagem, como a tradicional e a de base discursiva.

Coudry e Scarpa (1991), sob a perspectiva da abordagem discursiva,

abordam o erro ou desvio linguístico como episódios esperados no processo de

aquisição da linguagem escrita e, portanto, parte integrante do “trabalho” do sujeito com

e sobre a língua (FRANCHI, 1977/1992). Para as autoras, dados de escrita como de

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repem te (por de repente), eraumaves um omen (por era uma vez um homem), groria

(por glória), rezouvel (por resolveu), são, muitas vezes, interpretados equivocadamente

como erro. Entretanto, quando discursivamente considerados a partir da história do

sujeito e de sua variedade linguística17, são analisados apenas como “uma transposição

da variedade de fala na qual a criança adquiriu a linguagem oral para o aprendizado da

escrita” (COUDRY e SCARPA, 1991, p.86). Dados como esses são considerados erros

na abordagem tradicional de linguagem porque fogem da variedade padrão que se

espera encontrar na escrita.

Esse é o raciocínio que permite a correlação entre as dificuldades normais

da criança em lidar com a complexidade do processo de leitura e de escrita com quadros

de patologia. O examinador, por estar preocupado em investigar a “normalidade” ou a

“patologia”, deixa de perceber “indícios de possibilidades” (PADILHA, 1997, p. 29),

muitas vezes não reconhecendo nem valorizando o conhecimento do sujeito. A ênfase

na avaliação psicométrica despreza os “indícios de possibilidades” do sujeito à medida

que valoriza e quantifica apenas o que o sujeito “não tem, não sabe e o que lhe falta”

(Ibdem, p.29).

Coudry (2007), instaurando o papel da ND como um contradispositivo,

aponta para a urgência da “despatologização de processos normais, enfrentando a

corrente hegemônica – psicométrica, desinformada, idealizada que ainda domina a

escola pública e a clínica tradicional” (Ibdem, p.3). Para a autora, não se trata de negar a

existência de patologias, mas de argumentar contra o excesso de patologização que

toma conta dos dias atuais (Ibdem, p.3).

Para Collares e Moysés (2009) a patologização de crianças em idade escolar

têm como objetivo encobrir uma realidade de fracasso e de exclusão escolar, que, ao

conferir a culpa à criança, isenta a sociedade e a política do papel social da escola. Para

as autoras:

“A busca por causas e soluções para os problemas não médicos no campo médico é uma tendência das sociedades ocidentais que reduzem os conflitos sociais em questões biológicas e individuais,

17 O preconceito linguístico está “rigidamente arraigado em uma visão corretiva e normativa de língua e de linguagem” e pode ser aproximado da discussão quanto ao padrão homogêneo e uniforme de conceber a aprendizagem da leitura e da escrita. O estigma dirigido à variedade oral permite a aproximação da singularidade desse processo ao sintoma de patologia: “quem fala errado pensa também errado ainda é um lema nos dias atuais para excluir pessoas e desqualificá-las para certos domínios do sistema produtivo” (COUDRY, 2007, p.2).

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orgânicas, sem levar em conta as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e históricas: o indivíduo seria o maior responsável por seu destino, sua condição de vida, por sua inserção na sociedade, desresponsabilizando o sistema sociopolítico” (COLLARES, e MOYSÉS, 1994, p. 26).

1.4. Fundamentação teórica e metodológica da ND

Conforme vimos, ao longo deste capítulo, em diferentes momentos e por

diferentes questões, foi apresentado um delineamento teórico-metodológico da

abordagem sustentada pela ND, tanto em relação à sua concepção de sujeito, de

linguagem, de língua, bem como de aprendizagem. Apresentarei, neste item, outros

conceitos articulados pela ND que serão cruciais para compreender as questões de MT

em sua relação com a fala, a leitura e a escrita. São eles: interlocução, subjetividade,

sistema de referências, processos de aprendizagem e memória.

A ND, desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp,

teve início com a tese de doutorado Diário de Narciso: discurso e afasia, defendida por

Coudry em 1986, e propõe o estudo da relação mente/cérebro e linguagem em contextos

patológicos ou não patológicos, a partir de uma concepção de linguagem, de sujeito e

dos demais processos cognitivos como construtos produzidos pela história humana. Para

esta reflexão, toma-se a linguagem “como histórica e cultural e o caráter previamente

indeterminado dos processos de significação, assumindo-se que a língua resulta da

experiência e do trabalho dos falantes com e sobre a linguagem” (COUDRY,

1986/1988, p.55).

Para teorizar sobre fenômenos patológicos e não patológicos, a ND se

assenta em conceitos e teorizações propostos por autores da Linguística: a concepção de

linguagem como atividade constitutiva, de Franchi (1977/1992); a concepção de

subjetividade na linguagem e a inter-relação dos níveis de análise linguística de

Benveniste (1966 /1991); a virtualidade da língua de Maingueneau (1979/1993) e a

heterogeneidade do discurso de Authier-Revuz (1982).

A partir de Franchi (1977/1992), a noção de linguagem assumida pela ND é,

para além do seu caráter comunicativo, concebida como uma atividade, como uma ação,

como um trabalho histórico e social que ocorre na dimensão contextual e social, em que

o homem, pela linguagem, atua sobre o outro e se constitui como sujeito na dimensão

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cognitiva e subjetiva que estrutura a sua realidade no mundo. Assim, a ND assume,

desse autor, a linguagem como uma atividade indeterminada e o conceito de sistema de

referências18:

Não há nada imanente na linguagem, salvo sua força criadora e constitutiva, embora certos ‘cortes’ metodológicos e restrições possam mostrar um quadro estável e constituído. Não há nada de universal, salvo o processo - a forma, a estrutura dessa atividade. A linguagem, pois, não é um dado ou resultado; mas um trabalho que dá forma ao conteúdo de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do “vivido” que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como um sistema de referências em que aquele se torna significativo (FRANCHI, 1977/1992, p.31).

A linguagem como atividade indeterminada é assim considerada porque a

intercompreensão/compreensão só é possível no momento da interlocução em que o

sistema de referências possibilita a construção de sentidos entre os interlocutores. Para a

ND, portanto, o conceito de interlocução é fundamental, já que é considerada como um

lugar privilegiado de produção de linguagem que permite a constituição do sujeito

através da interação humana e de suas experiências pela linguagem. Assim, a

interlocução é “condição sine qua non na apreensão de conceitos que permitem aos

sujeitos compreender o mundo e nele agir” e é “fundamental no desenvolvimento de

todo e qualquer homem” (GERALDI, 1991/2003, p.5).

Além de autores da Linguística, a ND incorpora e articula a teorização de

Sigmund Freud (1891/1977); a de Lev Semenóvich Vygotsky (1979/1998; 1926/2004) e

a de Alexander Romanovich Luria (1979), que partilham de uma concepção de

funcionamento cerebral marcadamente histórica19, entendendo o cérebro como um

órgão biológico e comum a todos, mas que revela sua singularidade determinada pelas

experiências do sujeito no contexto histórico-cultural que o interpela. Além disso,

Freud, Vygotsky e Luria, por motivos diferentes, nos estudos que realizam, têm em

comum a relação entre a aquisição de linguagem, os processos de aprendizagens

/psicoafetivos e o funcionamento cerebral.

18 Não serão discutidas nesta pesquisa as questões envolvidas nas duas formas usadas por Franchi quanto ao conceito sistema de referências/sistemas de referência em seu texto Linguagem – Atividade Constitutiva (1977/1992), que então será assumida nesse trabalho como sistema de referências. 19 A abordagem funcional de cérebro foi primeiramente elaborada pelo neurologista H. Jackson, (1835-1911) e considerada por Freud, Vygotsky e Luria em seus estudos.

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Freud (1891/1977) contesta a visão localizacionista de cérebro, majoritária

até os dias atuais, a partir dos estudos que realiza em “La Afasia”, publicação

correspondente ao período pré-psicanalítico do autor, como neurofisiologista. Freud,

como contraponto à visão localizacionista, propõe uma visão de cérebro em que as

regiões estão coordenadas (dentre elas, a auditiva, a motora e a visual) entre si de modo

plástico, dinâmico e funcional e sofre a influência das experiências de vida do sujeito.

Nessa concepção, a lesão de uma região cerebral acarreta uma reorganização

neurológica, fazendo com que neurônios de regiões vizinhas assumam a função da

região lesionada.

Assim, para Freud, a afasia20 é uma modificação funcional sujeita a

rearranjos que pode provocar no sujeito um processo de involução21. Para o autor, as

alterações de fala, de leitura e de escrita que o sujeito passa a apresentar na afasia se

assemelham aos processos de aquisição da fala, da leitura e da escrita da criança. Com

vistas no sujeito e na reconsideração, no campo da Medicina, sobre o que se postula

como normal e patológico, e, ainda, no interesse em estudar o aparelho de linguagem

(falada e escrita) como memória é que Freud se propõe a analisar a aquisição de fala,

leitura e escrita da criança. Portanto, esse interesse pontual não se constituiu uma teoria

encontrada em outro momento de sua obra pré ou psicanalítica.

Quanto à ND, sua teorização se inicia como campo teórico com os estudos

da afasia (Coudry 1986/1988) e avança em direção aos estudos dos processos de leitura

e de escrita em crianças com dificuldades escolares, recuperando, assim, nos estudos de

Freud de 1891, um retorno aos aportes teóricos iniciais da ND construídos em sua

relação com a área de Aquisição de Linguagem.

Para Bordin (2010) a relevância da análise que Freud faz do aprendizado da

criança nos processos iniciais da leitura e da escrita está no reconhecimento de que a

criança entra na linguagem pelo sentido veiculado na fala do outro e, ainda, na

dependência concomitante entre o aspecto neurológico e psicológico das vivências no

20 Para Coudry, afasia é (...) quando escapa a linguagem e a língua, o sentido, o reconhecimento do eu e do outro, do corpo, a possibilidade de dizer de novo com as mesmas ou outras palavras, de selecionar e/ou combinar traços, sons, palavras, argumentos e textos. Escapa também a relação na língua entre aquilo que é familiar, conhecido e mesmo automatizado e o que é da ordem da vontade, da iniciativa, da atitude voluntária – que se apresenta como novo e onde a afasia mais se manifesta (COUDRY, 2009, p.1). 21 Para Jackson (1879) o processo de involução se dá quando em consequência de um sofrimento neurológico, o cérebro responde perdendo os registros mais complexos (mais atuais, superassociados aos mais antigos) e conservando os mais simples (antigos ou menos associados).

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corpo do sujeito, que se estabilizam na memória como associação. É nesse sentido que

Freud constrói, em seu estudo da afasia, um aparelho de linguagem destinado a associar

as palavras a partir das experiências de sentido do sujeito no corpo e na língua. Tal

aporte teórico compreende e explicita a heterogeneidade dos caminhos que as crianças

percorrem para entrar no mundo da leitura e da escrita, ou seja, diferentes entradas em

diferentes ritmos. Para Freud, a entrada da criança na leitura e na escrita remete aos

significados presentes na sua fala e envolve uma concomitância entre o som/acústico

(significante), o visual (significado) e o motor (execução dos movimentos na fala e do

traçado na escrita), o que se dá de forma hierárquica: se tratando da fala, há o

predomínio do acústico e do motor sobre o visual; no caso da escrita, há o predomínio

do motor e do visual sobre o acústico; e, no caso da leitura, há o predomínio do visual e

do acústico sobre o motor (Coudry, 2009b).

Vygotsky (1979/1998; 1926/2004), a partir de uma visão histórico-cultural

de cérebro e de desenvolvimento humano, entende que são as experiências do sujeito,

em determinado contexto sócio histórico, que determinam a variedade do

funcionamento cerebral, comum a todas as pessoas. O autor postula que as estruturas

cerebrais de funções elementares se transformam em complexas de acordo com as

experiências de vida do homem pela linguagem - mediadora dessas experiências. A

linguagem, portanto, possibilita (epistemologia da formação da mente pelo signo), no

decorrer do seu percurso histórico, a formação das funções psicológicas superiores:

linguagem, memória, atenção, percepção, práxis/corpo, raciocínio intelectual,

imaginação, vontade. Portanto, a partir de Vygostky, vemos que os primeiros anos

escolares são determinantes para a entrada da criança na linguagem escrita e não apenas

na correspondência mecânica possível entre som e letra. Para o autor, a escrita é uma

nova forma de linguagem e pressupõe que:

(...) o ensino tem que ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. (...) uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária para a vida (VYGOTSKY, 2007, p. 141/143).

Além disso, para Vygotsky (1934/1987), é no significado da palavra que

a fala e o pensamento unem-se em pensamento verbal, o que envolve a fala social, a fala

egocêntrica, e, por fim, a fala interior como pensamento reflexivo. A fala interior é

dirigida ao próprio sujeito (linguagem interna), não é dirigida ao outro, e, portanto,

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caracteristicamente, abreviada. Segundo o autor, é nessa fala que nos baseamos quando

escrevemos, e por ser abreviada, interfere no processo de aquisição da leitura e da

escrita nos primeiros anos escolares.

Luria (1979) inicia seus estudos junto com Vygotsky, assumindo deste autor a

importância da linguagem para o desenvolvimento. Para Luria, os processos mentais

humanos são sistemas funcionais complexos que “ocorrem por meio da participação de

grupos de estruturas cerebrais operando em conjunto” (Ibdem, p.27). Esses grupos de

estruturas cerebrais correspondem a três unidades funcionais, que contribuem

particularmente para a organização desse sistema funcional e que estão presentes em

qualquer tipo de atividade mental (PEREIRA, 2010). Luria (1979) organiza esse sistema

funcional em três unidades: i) a primeira unidade funcional regula o tono cortical, a

vigília e os estados mentais; ii) a segunda unidade tem como função primária a

“recepção, a análise e o armazenamento das informações” (Ibdem, p.49) e, sendo

formada pelas chamadas áreas secundárias e terciárias, tem como função,

respectivamente, distinguir os estímulos visuais, auditivos e táteis e a análise e síntese

dos sons da fala; iii) a terceira unidade funcional faz a programação, regulação e

verificação da atividade, quando compara “os efeitos de suas ações com as intenções

originais, além de corrigir quaisquer erros que tenha cometido” (Ibdem, p.60).

Luria (1988/1995), em sua pesquisa sobre os tempos primordiais da escrita,

privilegia a antecipação da função social da escrita como sendo de registro e de

memória e a criança deverá cumprir duas condições para escrever: as coisas ao seu

redor devem representar algum interesse para ela, assim como ser capaz de controlar sua

própria atitude de atenção.

Os estudos de Vygotsky e de Luria apontam para a necessidade de conhecer

a história da escrita e da pré-escrita na criança, uma vez que elas determinam o modo

pelo qual a criança se relacionará com a escrita e com outras atividades escolares.

Conhecer este período pode ajudar a entender o modo pelo qual as funções psicológicas

se desenvolveram ao longo da vida da criança e, assim, compreender e intervir em suas

dificuldades escolares22.

Por fim, a ND incorpora uma metodologia heurística, de procedimentos de

descoberta no processo de avaliação e no acompanhamento longitudinal de sujeitos

22 Outros conceitos trabalhados por Freud, Vygotsky e Luria serão retomados por ocasião da análise dos dados de fala, leitura e escrita provenientes do acompanhamento longitudinal de MT.

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(adultos, crianças). Além desta metodologia de investigação, a ND desenvolve o

conceito de dado-achado, que inter-relaciona teoria e dado e ilumina as hipóteses sobre

a relação do sujeito com a linguagem. O dado-achado indica um processo em

andamento, resultado da interação dos interlocutores, frente a frente ou não. Dessa

forma, a partir de um quadro teórico que orienta o olhar do investigador, o dado se torna

fonte de reflexão sobre a linguagem para um refinamento/movimento teórico

(COUDRY, 1986/1988) que se volta para o sujeito na intenção de reorientá-lo no

processo em questão.

Tal movimento, dialético, da teoria para o dado e vice-versa, para a

Neurolinguística de tradição discursiva, se volta, no caso de crianças e de jovens em

processo de aquisição da leitura e escrita, para a análise da elaboração de hipóteses pelo

sujeito. Nesse sentido, o erro é visto pela ND como um dado que pode ser um achado,

pois, iluminado pela teoria, pode orientar a mediação a ser feita pelo interlocutor no

acompanhamento longitudinal do sujeito.

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CAPÍTULO 2 - A constituição de MT na e pela linguagem:

seu lugar na família e na escola

Este capítulo tem por objetivo apresentar MT, sujeito desta pesquisa. O

acompanhamento longitudinal de MT, realizado por mim no Centro de Convivências de

Linguagens – CCazinho, entre setembro de 2010 e junho de 2013, pode ser

compreendido como um processo que se deu em dois momentos. A queixa principal de

MT, 12 anos, trazida pela família, era a sua impossibilidade de entrar nos processos de

leitura e de escrita. Neste caso, imagina-se que as atividades partilhadas entre nós

seriam da esfera da leitura e da escrita. Entretanto, nos primeiros encontros com MT,

uma questão de fala, mais especificamente, de interlocução se impôs e, assim, tornou-se

imprescindível dar um outro rumo ao acompanhamento. Propostas de atividades

priorizando os processos de leitura e de escrita se mostraram menos importantes e

urgentes do que aquelas que envolviam a interlocução, a memória, enfim, seus

processos de subjetivação na língua/linguagem.

2.1. A chegada de MT ao CCazinho

De caráter teórico e prático, o Centro de Convivência de Linguagens –

CCazinho é vinculado ao Instituto de Estudos de Linguagem- IEL/Unicamp e iniciou

suas atividades em agosto de 2004, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Irma Hadler

Coudry. Academicamente, engloba duas disciplinas eletivas23 e diferentes estudos de

iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.

É um espaço para crianças e jovens com dificuldades escolares relativas aos

processos de aquisição e de uso da leitura e da escrita e, ainda, para as suas famílias

refletirem sobre como interpretam tais dificuldades e o que fazem em relação a elas. A

maior parte das crianças e jovens que chega ao CCazinho recebeu diagnósticos médicos

(Dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade, Déficit do

Processamento Auditivo, Distúrbio de Aprendizagem, Deficiência Mental) e frequenta

23 AM 035 e AM 045 - Cf. nota de rodapé nº2.

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os encontros coletivos, acompanhada individualmente por um cuidador24. Esse

acompanhamento tem por objetivo levá-los a vivenciar a linguagem através de diversas

práticas discursivas que envolvem a leitura, a escrita, a soletração, jogos, dramatização,

canto, histórias, pintura, dança etc. (COUDRY, 2007). Ainda, o objetivo principal do

trabalho realizado nesse Centro é levar a criança a mergulhar no próprio processo de

leitura e de escrita; refletir sobre o trabalho linguístico que realiza quando está lendo e

escrevendo e valorizar a leitura e a escrita como práticas sociais.

No CCazinho a criança tem respeitados seu próprio ritmo e sua dificuldade

em lidar com a complexidade própria dos processos de leitura e de escrita, sendo o seu

interlocutor quem possibilita que essa entrada seja feita – embora permeada por

situações difíceis de transpor – e não pelas portas da patologização (Idem, 2010b,

p.397). No trabalho realizado no CCazinho, interessam as hipóteses que as crianças

constroem para escrever e ler e a reflexão que fazem sobre elas (BORDIN, 2008).

A família de MT procurou o CCazinho em agosto de 2010, quando ele tinha

12 anos de idade e cursava na época o 6º ano (5ª série) do Ensino Fundamental (EF).

MT chegou acompanhado da mãe, BT, que trouxe a queixa de que ele não conseguia

aprender a ler e a escrever. BT explicou a dificuldade do filho atribuída a um déficit

intelectual confirmado pelo diagnóstico de Retardo Mental Moderado.

A partir das informações relatadas por BT, na entrevista inicial realizada no

CCazinho com as Investigadoras Ibb e Imc25, o percurso escolar de MT pode ser assim

descrito: ele entrou na escola em 2004, com seis anos de idade, para cursar o último ano

da Educação Infantil; em 2005, aos sete anos, cursou a primeira série do EF (2º ano) em

escola estadual localizada na região onde mora, na periferia da cidade de Campinas,

onde permaneceu até o ano de 2011. Assim, em 2006, aos oito anos de idade, MT

cursou a segunda série do EF (3º ano); em 2007, aos nove anos, cursou a terceira série

do EF (4º ano); em 2008, aos 10 anos, cursou a quarta série do EF (5º ano). Em 2009,

aos 11 anos, refez a quarta série do EF (5º ano); e, por fim, em 2010, aos 12 anos, é

aprovado para a 5ª série do EF (6º ano).

24 Baseado em pressupostos vygotskyanos, o termo cuidador, usado no CCazinho, é atribuído ao investigador que assume o papel de mediador na relação com o sujeito acompanhado longitudinalmente, por meio de práticas com a linguagem discursivamente orientadas. Para Vygotsky (1932/1993) é pela mediação do outro que o sujeito passa a ter autonomia para realizar o que antes precisava de ajuda. 25 Ibb: Investigadora Betina R. Barthelson, autora dessa dissertação e Imc, Investigadora Maria I. H. Coudry, orientadora dessa dissertação.

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Por ocasião da chegada de MT ao CCazinho, sua mãe nos informou também

que buscava, junto à Diretoria de Ensino de Campinas, autorização para que MT

retornasse à 4ª série (5º ano), diante da condição de seu filho em relação à leitura e à

escrita. Além do fato de o filho não estar alfabetizado, BT se preocupava com as

mudanças e exigências presentes no 6º ano que MT cursava. Para entender a

preocupação de BT, é preciso ressaltar que o 6ª ano pertence ao ciclo 2 que abrange do

6º ao 9º ano do EF. É organizado de maneira que as disciplinas do currículo escolar,

antes ministradas somente por três professores26, passam a ter cada uma seu respectivo

professor, totalizando agora oito professores. Além disso, o horário das aulas que,

anteriormente se dava de forma contínua, interrompido apenas pelo intervalo e pelas

aulas de Educação Física e de Artes, seria agora dividido em intervalos de 50 minutos.

A escola, quando reprovou MT pela primeira vez em 2008, levando-o a

refazer este ano em 2009, havia antecipado o fato de que essa nova organização escolar

própria do 6º ano (5ª série) seria um complicador para a vida escolar de MT, reprovação

que está diretamente vinculada às normas vigentes nas Políticas Públicas Educacionais

da época, que permitiam a reprovação do aluno no 5º ano escolar. No entanto, a

Diretoria de Ensino de Campinas não autorizou seu retorno para o ano anterior. Sendo

assim, BT entra em acordo com o diretor da escola para que novamente MT refizesse a

4ª série (5º ano), agora, pela terceira vez, ainda que nos documentos oficiais ele

continuasse cursando a 5ª série (6º ano).

Na continuidade de seu percurso escolar, agora em uma escola municipal,

também localizada na região onde mora, em 2012, MT cursa a 5ª série (6º ano), e em

2013 cursa a 6ª série (7º ano). Entretanto, a escola não leva em consideração o processo

de aprendizagem de MT em relação à leitura e à escrita, uma vez que ele permanece

todos esses anos na escola sem aprender a ler e a escrever27.

Nessa avaliação inicial, MT demonstrou não conhecer letras, ter pouca

familiaridade com a leitura e com a escrita e se expressar com dificuldade devido ao que

interpretamos como falta de recursos expressivos. Quando as investigadoras

26 As 4 disciplinas do currículo escolar – Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Geografia e História são ministradas por um mesmo professor, sendo os outros dois professores referentes às disciplinas de Arte e de Educação Física. 27

Durante o acompanhamento de MT no CCazinho, entramos em contato e tentamos uma aproximação das escolas frequentadas por MT. Todavia, foi somente com a segunda escola que conseguimos um encontro com a professora que o acompanhava quando procuramos mostrar o trabalho realizado no CCazinho.

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comentaram este fato com BT, esta reconheceu que isso acontecia também em suas

relações familiares. Na entrevista com as investigadoras Ibb e Imc, MT não conseguiu

dar informações simples sobre si mesmo ou relativas ao seu dia a dia como, por

exemplo: o nome do bairro em que mora, o nome da sua escola, dos estabelecimentos

comerciais próximos à sua casa, o número do seu telefone. Além disso, sua fala se

caracterizou por uma desorganização sintática e uma dificuldade semântica, impedindo

que seu interlocutor atribuísse sentido a ela. Assim, MT não respondia às perguntas que

lhe eram feitas ou as respondia aleatoriamente. De tal modo, MT causou às suas

interlocutoras a impressão de apresentar algum problema de memória, de estar alheio ao

que acontecia à sua volta, parecendo não saber sobre o mundo em que vive,

comportamentos esses que, em princípio, iam de encontro à confirmação de seu

diagnóstico de Retardo Mental.

Ainda seguindo o relato de sua mãe, as relações partilhadas por MT na

escola eram permeadas por agressividade verbal e física. Ela considera que ele sofria

bullying28 na escola, pois apanhava dos colegas no futebol, chegando a ser agredido

também em sala de aula. BT conta que tomou conhecimento destas ocorrências quando

observou que MT apresentava marcas nos braços, explicadas por ele como decorrentes

da atitude de um colega de classe que quebrava pontas de lápis em seus braços.

Outro fato desse tipo foi referido pela mãe de MT. Ela explica que, quando

o filho cursava a segunda série (3ª ano), em 2006 (com 8 anos de idade), foi chamada

pela escola em virtude de MT ter sido acusado de furto. Segundo ela, MT foi acusado

por um colega de classe de ter lhe furtado o dinheiro e guardado em seu próprio estojo

escolar. A professora de MT acatou a denúncia desse aluno, não acreditando na recusa

de MT em assumir a responsabilidade por tal acontecimento. MT continuou negando o

fato e se revoltou contra a professora e o colega. Entretanto, quando a mãe de MT foi à

escola, explicou que o dinheiro que MT tinha no estojo havia sido dado por ela.

Posteriormente, descobriu-se que outro aluno havia pegado esse dinheiro. Nas palavras

de BT, esse episódio o marcou profundamente, quando passou a se negar

28 Bullying se caracteriza por atos agressivos verbais ou físicos de maneira repetitiva por parte de um ou mais alunos contra um ou mais colegas. O termo inglês refere-se ao verbo “ameaçar, intimidar”. Basicamente, a prática do bullying se concentra na combinação entre a intimidação e a humilhação das pessoas, geralmente mais acomodadas, passivas ou que não possuem condições de exercer o poder sobre alguém ou sobre um grupo. Em outras palavras, é uma forma de abuso psicológico, físico e social. Disponível em: < http://www.cecb.edu.br/index.php/ensino-fundamental-i/315-o-que-e-bullying.html>. Acesso em: 26 set. 2013.

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veementemente a ir para a escola. Além disso, a relação entre MT e sua professora

passou a ser cada vez mais agressiva verbalmente.

Se dentro de sala de aula, a situação se consolidava assim, fora das

relações de aprendizagem, marcada por questões de relacionamentos, na família não era

muito diferente disso. O relato da mãe dava conta de que as agressões sofridas por MT

também aconteciam em casa, sendo ela sua principal agressora. Ela própria se

reconhecia cansada, desgastada para lidar com as frequentes questões de

comportamento e de aprendizagem apresentados pelo filho. MT resistia em ir à escola,

mas ela o obrigava a frequentá-la todos os dias porque em nosso país cursar a escola é

obrigatório e o descumprimento da legislação vigente29 resulta na penalização dos

responsáveis.

Na continuidade desse processo, após a avaliação inicial, MT, desde

22/09/2010, passou a frequentar semanalmente os encontros coletivos às 3ª feiras entre

15 e 17 horas, dos quais participam crianças, jovens, cuidadores e as Profas. Dras.

Maria Irma Hadler Coudry e Sonia Sellin Bordin. Além dos encontros coletivos, MT

iniciou também neste dia o acompanhamento longitudinal individual, com a duração de

uma hora, realizado inicialmente por mim e por Imc e, a partir de fevereiro de 2011,

apenas por mim.

Como foi citado anteriormente, o CCazinho se estrutura como um espaço

que acolhe crianças/jovens com dificuldades escolares e em, paralelo, oferece aos

familiares dessas crianças um espaço chamado “Grupo de Familiares”. Conforme

Bordin, a condução do Grupo de Familiares não prioriza orientações ou a formação de

regras de conduta: “Não fazemos orientação ou aconselhamento, apenas explicamos,

baseado na nossa proposta teórico-metodológica, traduzida em termos menos técnicos,

que consideração é feita sobre os fatos de leitura, escrita e de linguagem trazidos pelo

seu filho (BORDIN, 2008, p.5)”. Trata-se, portanto, de acontecimentos simultâneos.

Assim, enquanto as crianças estão em acompanhamento em grupo, os familiares

29 O direito à educação e a obrigatoriedade da matrícula e da frequência da criança/jovem no EF é assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente art.56, Conselho Tutelar e pela Constituição Federal, § 3º do artigo 208, que prescreve: “compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola”. Conforme o Código Penal Brasileiro (2004), Decreto-Lei nº. 2.848 de1940, art. 246, acarretará aos responsáveis pena de detenção de quinze dias a um mês, ou multa; impossibilidade de exercer função pública ou ocupar emprego em sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13384>. Acesso em: 27 abril 2014).

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(mães, pais, avós ou responsável pelo processo escolar vivido pela criança) estão

também reunidos, partilhando as reflexões que fazem sobre o processo pelo qual o filho

está passando; como conduzem o uso que fazem da leitura e da escrita em suas vidas;

suas angústias, alegrias e tristezas. Esse grupo é conduzido pelas Profas. Dras. Maria

Irma Hadler Coudry, Sonia Sellin Bordin e Monica Filomena Caron.

BT iniciou sua participação no Grupo de Familiares no mesmo dia em que

MT iniciou suas atividades coletivas e individuais. De tal modo, relatos, reflexões e

desabafos de BT sobre a própria vida e a vida familiar e escolar de MT, iniciados por

ocasião da entrevista, continuam a acontecer no Grupo de Familiares. O que segue nesta

dissertação, portanto, se ancora na participação de BT no referido grupo.

A família de MT é constituída pelos pais e três filhos, sendo MT o terceiro

deles. Sua gravidez não foi planejada e, de acordo com BT, ela sempre teve uma relação

difícil com esse filho. Já a relação de MT com seu pai é de muita afetividade, embora

ele não tome conhecimento das dificuldades escolares do filho e nem dos

encaminhamentos feitos pelos profissionais envolvidos nas avaliações de

aprendizagem de MT e, além disso, se mostra indiferente às discussões travadas entre o

filho e a mãe.

Em relação à escolaridade dos pais de MT, o pai não completou o EF e a

mãe tem o Ensino Médio completo. Ele tem a profissão de caminhoneiro e faz

diariamente transporte de mercadorias em viagens curtas e a mãe não trabalha fora

(neste momento).

A família demonstra um descompasso entre o poder econômico (que inclui

casa própria, carro, produtos eletrônicos, alimentação, roupas boas) e a prática cultural

letrada. Os pais leem e escrevem, mas fazem pouco uso da leitura e da escrita, sendo a

televisão e os encontros familiares as principais formas de lazer da família. Os dois

irmãos mais velhos de MT, um menino de 20 anos e uma menina de 16 anos, estudam e

o mais velho trabalha. Nenhum deles apresentou na escola problemas de

comportamento ou de aprendizagem. Observando MT, nota-se que é uma criança bem

cuidada, tem acesso a brinquedos e livros, mas passa muito tempo do dia vendo

televisão. Ele se encontra acima do peso e sua mãe tenta controlar a quantidade de

comida que ele come, o que agrava a relação dos dois.

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É importante registrar que, nesse momento dos encontros, bem como, em

outros, ao longo do acompanhamento de MT, foi solicitado a BT, pelas professoras

responsáveis pela condução do grupo de familiares, que ela, juntamente com o filho,

procurassem por avaliação e acompanhamento psicológico. Notou-se uma grande

resistência por parte de BT com relação a esse tipo de acompanhamento, o que é

possível que esteja associada à sua dificuldade em lidar com as questões envolvidas em

seu relacionamento com MT e com as causas das dificuldades de aprendizagem por ele

apresentadas.

2.2. A interferência das Políticas Públicas Educacionais na vida de MT

Retomando a história familiar de MT, BT conta que, antes do nascimento

desse filho, ela e o marido estavam empregados e prosperando financeiramente. Os dois

primeiros filhos cumpriam suas jornadas escolares sem problema. Com a chegada

inesperada de MT, tentou-se manter essa dinâmica, no entanto, aos 8 anos, logo após o

episódio do furto, ele passou a apresentar resistência para ir à escola e não avançava nos

processos de alfabetização.

Não se pode perder de vista que, de uma criança de 8 anos, cursando, na

época (2006), o terceiro ano (2ª série) em escola pública, não era exigido que ela

dominasse os processos de leitura e de escrita. Considerava-se que conhecimentos

rudimentares desses processos seriam suficientes para que ocorresse a sua alfabetização.

Diante do reconhecimento de que as crianças não se alfabetizam como é esperado, o

Governo Federal lançou em 2012 um Plano Nacional envolvendo todos os estados e

municípios, chamado Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa30, cujo objetivo

principal é o de que todas as crianças estejam alfabetizadas ao final do terceiro ano (2ª

série) do EF, aos 8 anos de idade. Por este motivo, nessa época, MT não chamava a

atenção da escola e da família por não estar aprendendo, pelo fato de ele não destoar

tanto de outras crianças de sua sala de aula.

Quando, então, a escola passa a chamar os familiares para falar sobre o

comportamento de MT e também sobre a sua dificuldade de aprendizagem, instala-se

uma desconfiança no interior da família. Diante do desenvolvimento neuropsicomotor

30 Diferentes portarias regulamentam o PACTO, são elas: Portaria n° 1458, de 14 de Dezembro de 2012; n° 867, de 4 de Julho de 2012; nº 90 de 6 de fevereiro de 2013. Disponível em: <http://pacto.mec.gov.br/documentos-importantes>. Acesso em: 04/02/2014.

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de MT sem nenhuma intercorrência, a família estranhou os dizeres da escola, já que até

então, ele sempre se mostrou “normal”, ou seja, dentro do esperado para uma criança de

8 anos. Afinal, o que está acontecendo com essa criança, já que psiquicamente, a criança

costuma ser vista, quase sempre, como um reflexo das relações que estabelece nos

ambientes que frequenta, no caso de MT, são a escola e a família?

A partir do relato da mãe, pode-se inferir que a resposta encontrada para as

questões envolvidas na aprendizagem de MT circulava em torno de uma resistência que

a família e a escola interpretaram e descreveram como um “problema de

comportamento” que impedia seus processos de aprendizagem.

Assim, o comportamento de MT, de desinteresse pelas atividades escolares

e de se envolver em conflitos com os colegas e com o professor dentro e fora de sala de

aula, atrapalhava o cotidiano da escola; por outro lado, sua resistência em ir para a

escola atrapalhava o cotidiano da família que, até então, cuidava e gerenciava com

equilíbrio a independência e a autonomia de seus membros. Assim, MT quebra as regras

da escola e as da família, não se submetendo a elas.

Sem que a mãe consiga entender o que acontece com o filho e sem uma

explicação da escola sobre isso, o problema de MT passa a ser visto como uma questão

relacionada a sua personalidade e ao seu comportamento: MT precisa ser educado de

uma maneira mais rígida, aprender a obedecer, melhorar o comportamento na escola.

Sem conseguir controlar MT, a escola passa a chamar a mãe para levá-lo para casa

diante de mau comportamento. Então, especialmente, a mãe o ameaça, o coloca de

castigo, tira e lhe dá presentes e sobremesa, desliga a televisão e quase rotineiramente o

agride fisicamente. Seus pais, especialmente sua mãe, também conversam com ele

habitualmente, antes de ele sair de casa para ir à escola. Ele garante que não vai

“arrumar confusão”, mas, ao chegar diante do prédio da escola, começa a chorar. Essa

situação se prolonga por muito tempo. Nem a família, nem a escola conseguem

controlá-lo.

O dia e a noite, a semana e o final de semana, são regulados pelo fato de MT

ir à escola, e, aparentemente, ele fica cada vez mais fortalecido em sua determinação de

evitá-la. Nesse contexto, sua mãe sai do trabalho, perde sua independência financeira,

fato pelo qual se sentia valorizada e, a partir de então, passa por diferentes momentos:

frequenta a escola assistindo às aulas com ele, o tira da escola, bate nele, o obriga a

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frequentar a escola novamente. Fica com raiva da escola, faz parceria com a escola,

desanima de tudo, acredita de novo. Dito isso, quero situar o leitor diante desses

acontecimentos para que considere que o problema escolar de MT não é novo, começou

muito antes de ele chegar ao CCazinho e vai tomando uma proporção cada vez maior.

Sua relação com os pais gira em torno de ele frequentar ou não a escola. Sua relação

com a escola não passa pelo saber ou por sua identidade de aluno, mas se a escola

consegue mantê-lo ou não dentro da sala de aula, para cumprir a legislação e a

estatística governamental que regulam a matrícula e a frequência escolar do aluno.

Diante do que foi exposto até agora, através do discurso familiar sobre MT e

do estranhamento das Investigadoras do insucesso das primeiras tentativas de

interlocução com MT, diferentes questões surgiram: Quem é MT? Como ele se constitui

em meio a essa história contada pelo outro? Ele tem um problema de memória para falar

de si, como pareceu?

A relação existente entre as questões sócio-afetivas pautadas pela

agressividade de MT e por suas dificuldades escolares são importantes, mas é

primordial saber como MT se constitui como um sujeito da linguagem, o que se dá a

partir da reflexão sobre o papel constitutivo da linguagem realizada por Coudry

(1986/1988) no texto inaugural da ND. No estudo realizado pela autora, considera-se

que a língua não é determinada e que há, nela, um espaço para a atividade do sujeito,

atividade que deixa marcas dos papéis que representa na linguagem, na relação com o

interlocutor e que serão reveladas pelo discurso. Assim, para compreender MT,

importam os papéis por ele assumidos determinantes na sua constituição como sujeito

da/na linguagem.

Benveniste (1966/1991), sobre a constituição da subjetividade do sujeito na

e pela linguagem, compreende a subjetividade “não pelo sentimento que cada um

experimenta de ser ele mesmo (...) mas como a unidade psíquica que transcende a

totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da

consciência” (Ibdem, p.186). Para o autor, a consciência de si mesmo só é possível na

relação com o outro, na condição do diálogo constitutivo da pessoa, no contraste do uso

do eu – para se dirigir a si mesmo – e do tu – para se dirigir ao outro. Por conter as

formas linguísticas apropriadas à sua expressão, a linguagem possibilita a subjetividade,

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segundo Benveniste: “é, portanto, verdade ao pé da letra que o fundamento da

subjetividade está no exercício da língua” (Ibdem, p. 288).

Essa, sem dúvida, parecia ser a questão de MT. Como ele percebia a si

mesmo? Como alçar a subjetividade desse sujeito que parecia fora do contraste

possibilitado pelo uso do eu e do tu, conforme revelado por ocasião da entrevista

inicial?

Para Benveniste (Ibdem), assim como para Saussure (1916/2006), o nível

semiótico diz respeito à língua, como um sistema no qual cada signo só existe e

significa a partir de um sentido que lhe é intrínseco, e, portanto, que lhe dá identidade, o

diferenciando dos demais em um sistema de oposições. Para Benveniste (1966/1991), o

nível semântico, por sua vez, abrange os estudos das ações linguísticas. É por meio das

formas fornecidas pela língua que o falante constrói seu enunciado em um processo de

enunciação. Portanto, é somente pelos processos enunciativos que se dá a relação entre

sentido e referência quando o falante, ao elaborar seu discurso, institui o outro, em um

contexto determinado, no qual a língua é mediadora entre o homem e o homem, o

espírito e as coisas (Ibdem, p.229).

Coadunando-se com Benveniste, Franchi (1977/1992) atribui à linguagem, a

função primordial quanto à constituição do sujeito e de suas experiências com o mundo:

“é por meio da linguagem que o homem ‘dá forma’ ao mesmo tempo a si mesmo e ao

mundo, ou melhor, torna-se consciente de si mesmo, projetando um mundo no exterior”

(p.28). Para Geraldi (1991/2003) a constituição da consciência e do conhecimento de

mundo é visto como “produto” das interações entre os sujeitos.

Tais reflexões, oriundas da Linguística Moderna, nos orientam a pensar nas

dificuldades de MT quanto ao uso da língua/linguagem, como resultado de suas

interações psicoafetivas e sociais, especialmente, as familiares, onde estão seus

principais interlocutores. São dificuldades que se perpetuam e se projetam em sua vida

por serem constantemente reafirmadas pela família e, posteriormente, pela escola: essas

são, então, as interações que resultaram como produto, segundo Geraldi, da constituição

da consciência e de conhecimento de mundo de MT.

A escola é um lugar onde problemas de diferentes ordens são enfrentados.

E, no caso de MT, diz respeito, como vimos, às Políticas Educacionais da época em que

cursou os primeiros anos do EF. Além do que já foi dito, até o ano de 2014, o sistema

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escolar31 somente permitia a reprovação quando o aluno estivesse cursando o quinto ano

do EF. Até então, era aprovado automaticamente, ainda que não tivesse atingido os

objetivos propostos no ano letivo.

Dessa forma, alunos com grandes dificuldades com as de MT, não

conseguem realizar as mesmas atividades que os demais alunos e acabam excluídos na

própria sala de aula. São muitas e complexas as questões relativas a esses alunos que

não apresentam um processo de aprendizagem dentro dos “padrões de normalidade

esperados pela escola”. A escola sempre apresentou dificuldades em lidar com as

diferenças inerentes ao processo de aprendizagem vivenciado por cada um, o que inclui

diferentes maneiras de aprender e diferentes ritmos.

No intuito de buscar soluções para os problemas enfrentados, observam-se,

ao longo da história da Educação, repetidas reorganizações do Sistema Educacional de

Ensino. É nessa direção que acontece a implantação do Programa de Progressão

Continuada (PPC). O objetivo primeiro desse programa era o de possibilitar um olhar

diferenciado do professor ao aluno que precisaria de um período maior que o ano letivo

para cumprir os objetivos mínimos do currículo. Através do PPC, a organização do

sistema educacional, que se dava por série, passa a ser por um só ciclo, na tentativa de

direcionar os professores para o prosseguimento ao processo de alfabetização dessas

crianças no ano posterior. O PPC, que representa um grande avanço na organização do

sistema de ensino brasileiro, tenta evitar que esses alunos reiniciem o programa

curricular repetindo o ano letivo, o que pode ser interpretado como uma forma de

encorajar o aluno a prosseguir os seus estudos.

O PPC é formulado também com o intuito de minimizar os entraves com os

chamados “alunos problema”32, que repetiam inúmeras vezes o mesmo ano escolar, se

tornando estigmatizados por serem “alunos repetentes” quando eram encaminhados para

uma “classe especial”33. No entanto, a solução encontrada para esse problema, através

31 No ano de 2014 houve uma mudança na LDB estipulando o 3º ano do EF como possibilidade de o aluno ser reprovado. 32Uma das questões surgidas pelos altos índices de reprovação escolar era a disparidade entre a idade desses alunos “repetentes” e a idade das demais crianças que frequentavam a série na idade prevista. Essa questão foi resolvida pela aprovação automática. Observa-se uma relação entre a lei que implanta o PPC e os interesses nos dados estatísticos quanto à redução dos altos índices de repetência existentes no sistema de ensino. Índice que interfere nos investimentos econômicos internacionais destinados ao Brasil. 33 Padilha (1997), em seu livro “Possibilidades de história ao contrário”, estuda o encaminhamento dos alunos à classe especial realizado por professores. O aluno que permanecesse por pelo menos dois anos nas séries iniciais (antigo Ciclo Básico), passava a ser um possível portador de deficiência mental. Porém,

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da mudança na legislação é ineficiente e, a escola, sem conseguir intervir efetivamente

nas dificuldades de aprendizagem desses alunos, é obrigada a conduzi-los à

continuidade de seu percurso escolar, ainda que não tenham condições para isso.

Com o PPC e o dispositivo de aprovação automática, os alunos repetentes e

a classe especial deixam de existir, mas as dificuldades nos seus processos de

aprendizagem permanecem. Parece possível afirmar que no ambiente escolar houve a

substituição dos chamados “alunos repetentes” pelos “alunos diagnosticados” de alguma

patologia, que, nesse contexto, ocuparão o lugar dos “alunos especiais”, quando então,

houve somente uma mudança da nomenclatura. Os alunos especiais, diferentemente do

que ocorria com os alunos repetentes, não são encaminhados a uma “classe especial”,

mas permanecem em uma “sala de aula comum”, conforme determinado pela LDB

9394/96,34. Esta Lei orienta que os alunos especiais frequentem a escola em turmas

regulares, pois parte do pressuposto de que a escola deve promover o convívio para a

construção do respeito de toda a sociedade às diferenças e individualidades existentes.

No caso de MT, seja ele denominado como “repetente” ou como “aluno

especial”, frequentando a escola em uma “turma especial” ou na sala de aula “regular”,

o sistema educacional não consegue propor intervenções e soluções efetivas para a

superação de suas dificuldades e de outros como ele. Nesse contexto, a escola não se

constitui como um interlocutor de MT, e nem ele a marca como um lugar de

interlocução. A escola passa, então, a orientar a mãe para buscar atendimento médico

para MT.

2.3. A relação entre a escola e a família de MT

As questões relativas à família e à escola, determinantes na constituição da

subjetividade de MT, também podem ser pensadas a partir das reflexões de Lahire

(1995/2008), sociólogo francês, que estuda a importância da significação pela família de

vivências escolares de crianças/jovens. Em seu livro “Sucesso escolar nos meios

populares”, o autor discute a relevância da orientação familiar para o enfrentamento das

“regras do jogo escolar” e das “formas escolares de relações sociais”. As diferenças e o

nem todos os municípios tinham um serviço público com atendimento especializado, assim, havia dificuldade de se conseguir um diagnóstico realizado por um psicólogo. O encaminhamento de muitos alunos para a classe especial era feito, então, pelo próprio professor e/ou pelo diretor da escola. 34 A Lei de n. 9394/96 da LDB pode ser consultada em sua íntegra no endereço eletrônico: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn2.pdf>. Acesso em: 21 abril 2014.

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distanciamento entre a escola e a família não permitem que esses alunos respondam

adequadamente às exigências escolares. A escola, muitas vezes, não consegue a

adaptação desse aluno ao seu contexto, o que resulta na “solidão do aluno no universo

escolar” (Ibdem, p.19). Esses alunos, ao voltarem para casa, permanecem sozinhos

diante do distanciamento das pessoas de seu convívio familiar do contexto da escola.

Lahire trata do sucesso e do fracasso escolar a partir da relação entre os

grupos sociais e a socialização escritural escolar, discussão que abarca e que relaciona

as contradições, dissonâncias e consonâncias que existem entre a família e a escola.

Para ele, a escola é um universo de cultura escrita porque se organiza a partir dela, que,

diferentemente da fala, é adquirida por instrução formal e pela inserção do sujeito no

universo escrito contemporâneo. Para o autor:

A escola e a pedagogização das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à constituição de saberes escriturais formalizados, saberes objetivados, delimitados, codificados, concernentes tanto ao que é ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto às práticas dos alunos quanto àquela do mestre. (...) O modo de socialização escolar é, então, indissociável da natureza escritural dos saberes a transmitir: a formalidade dos saberes e as formas de relações sociais no meio das quais eles são ‘transmitidos’ estão profundamente ligados. (LAHIRE, 1993, p.24).

A partir de Lahire, pode-se afirmar que a escola é, portanto, palco de

relações mais formais, burocratizadas e hierárquicas, do que as relações que acontecem

no interior da família. Para ele, a escola é considerada como um lugar de aprendizagem

de formas de exercício de poder. Assim, mesmo com o trabalho e com o esforço dos

professores junto à adaptação do aluno na escola, muitos apresentam dificuldade na

compreensão e na adaptação às regras a serem cumpridas, como também no que tange à

formalidade e à hierarquia envolvidas nas relações escolares. Em sua reflexão, Lahire

relaciona o significado das práticas escritas no interior da família à compreensão e à

aproximação das formas de organização e de funcionamento escolar, o que pode ser

determinante no aprendizado da escrita:

A forma escolar sendo captada como uma forma escolar escritural nos permite recolocar o problema (...) do fracasso escolar ao colocar a questão da relação dos grupos sociais com a socialização escritural escolar. Os seres sociais dos diferentes grupos que compõem nossas formações sociais se distinguem, assim, pela frequência mais ou menos prolongada das formas sociais escriturais (e, especialmente das formas escriturais-escolares de relações sociais) (LAHIRE, 1993, p.41).

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A discussão realizada por Lahire (1993; 1995/2008) afina-se à

abordagem feita pela ND quanto ao sentido atribuído pela família às experiências

vivenciadas pela criança na escola, bem como à sua adaptação à instituição escolar. É

nessa direção que caminham os objetivos do trabalho realizado no CCazinho com o

Grupo de Familiares (COUDRY, 2007; BORDIN, 2010): ajudar os pais a

compreenderem as relações envolvidas no processo de leitura e de escrita; valorizar a

aprendizagem escolar da criança; refletir com os pais as possibilidades de criarem uma

relação positiva com a escola e com os professores de seu filho.

Lahire analisa a relação família e escola no sentido de que “as conversas

com pelo menos um membro da família possibilitam à criança, verbalizar uma

experiência nova, não vivenciá-la sozinha, não carregar sozinha uma experiência

diferente” (LAHIRE, 1995/2008, p.343). Para o autor, a criança que é “escutada

atentamente”35 pelos pais ocupa um “lugar efetivo” no seio da “configuração familiar”,

o que representa o reconhecimento do seu papel de sujeito e de um membro importante

na família, através das relações vivenciadas em casa. Seguindo ainda Lahire, ele

descreve outras situações em que a aproximação família e escola são importantes para a

vida escolar e familiar da criança. Por exemplo, ele se refere ao fato de que quando a

criança ouve na escola as mesmas histórias contadas em casa, o envolvimento afetivo

referente a essas histórias contadas, pelos pais, é revivido na escola.

Em relação a MT, o que se pode dizer é que no momento de chegada de sua

mãe ao Grupo de Familiares, apesar das suas tentativas para adaptá-lo ao contexto

escolar - comparecia às reuniões; cumpria os compromissos exigidos pela escola; fez-se

presente nos momentos em que foi chamada para resolver os problemas de

comportamento do filho; aceitou a orientação da escola quanto ao encaminhamento

médico para o filho; ou ainda, quando assiste às aulas com ele - permanecia

respondendo à escola, ou melhor, à permanência de MT na escola, como se isso fosse

suficiente para que ele aprendesse a ler e a escrever. Não há, por parte dela, reflexões

suscitadas pelo próprio MT, não há a significação da Escola como lugar de saber, mas

como lugar de se comportar e de permanecer. A relação de MT com o saber não é

valorizado pela família. Assim, tanto para a escola como para a família, MT ocupa o

35 Em seus estudos sociológicos, Lahire usa a expressão “escuta atenta” e não faz nenhuma referência à abordagem psicanalítica, área em que o termo “escuta” é comumente encontrado.

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lugar daquele que não consegue, ou não pode, aprender. BT reconhece que não

conseguia realizar com MT algumas tarefas que a escola mandava para que ele fizesse

em casa. Nessas ocasiões, ela dizia que tentava fazer com ele, mas logo começavam a

brigar e ela desistia, a primeira dificuldade era descobrir onde estava o material escolar

do filho. MT, com frequência, perdia seu material escolar. Diante desse contexto, é

possível dizer que a parceria feita por BT é com a escola, e não com o seu filho.

Um dos trabalhos realizados no CCazinho com os pais é vivenciar com eles

a leitura em grupo. Assim, selecionado um gênero de leitura (notícia, crônica, carta,

material pedagógico do filho etc), a partir de temas de interesse dos pais, essa leitura é

feita em partes por cada um dos presentes no encontro. Todos participam, apenas BT se

recusa. Ela solicitou às condutoras do grupo para que pudesse, inicialmente, fazer as

leituras em encontros individuais. BT não apresenta problemas importantes de leitura,

embora apenas nem sempre consiga regular a entonação com a pontuação do texto.

De fato, como já abordado, não é fácil o percurso vivenciado pela mãe de

MT, um caminho percorrido solitariamente, sem ajuda de nenhum outro familiar,

repleto de idas e vindas, conflitos e persistência. No entanto, MT também vivenciava

sozinho suas experiências escolares, angustiado e sem parceria de intermediadores

significativos.

Paralelamente à questão do compartilhar com a escola e a família, o sentido

das aprendizagens escolares de MT, era preciso maior compreensão de sua família

quanto à importância da aproximação entre a organização familiar e a organização

escolar36, que se apresenta mais formal, refletida e hierárquica e repercute nos usos de

linguagem típicos da escola e da língua escrita. A partir dessa observação, proponho a

reflexão que apresento em seguida.

No acompanhamento longitudinal de MT, além de interlocutora, ocupo

também um lugar privilegiado de observadora. Nos momentos iniciais desse

acompanhamento, fui assolada pelas questões de interlocução de MT e também pela sua

desorganização dele em relação ao seu material escolar, bem como em relação à

sequência desorganizada para a realização de qualquer atividade. Buscando ajudá-lo e à

sua família quanto a esse fato, entendendo que o direcionamento de algumas de suas

36 Essa discussão é abordada pela Profª Drª Monica Filomena Caron no trabalho que realiza sobre o Grupo de Familiares do CCazinho junto ao programa de pós-doutorado do IEL ( Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0).

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atitudes, em relação às atividades escolares e cotidianas, favorecia sua maior autonomia

e consciência das situações vividas por ele, propus, discutindo sobre isso com ele e com

a sua mãe, uma organização familiar que orientasse MT quanto a uma rotina cotidiana,

proposta considerada muito interessante por MT e BT. Subjaz a tal proposta a intenção

de que tal organização favoreceria a sua vivência de uma rotina mais planejada, que, por

ser pautada em ações refletidas, ajudaria na execução com autonomia de tarefas

domésticas e, por consequência, refletiria na organização das atividades escolares.

O que está ainda vinculado a tal proposta é a possibilidade de valorização,

pela família, dos aprendizados e das experiências vivenciadas por MT, as quais,

segundo Lahire (1995/2008) representam a importância dessa criança na configuração

familiar. Além disso, como desdobramento, tal proposta possibilitaria a MT vivências

como sujeito experimentadas na relação com o outro na e pela linguagem; a formação

da consciência e a constituição da subjetividade como alguém que importa ao outro, o

que seria marcado na linguagem, revelado através do discurso (BENVENISTE,

1966/1991) e observado em outra forma de se assumir como interlocutor. Entretanto,

essa proposta, no momento, não é posta em prática pelos dois e, posteriormente, na

sequência do acompanhamento, será retomada.

A partir da abordagem da ND e dos autores que a ancoram, a minha busca,

então, é de olhar para MT como um sujeito com possibilidades de contar a própria

história. A partir dessa reflexão, observa-se que nem sempre é percebida, pela família, a

relevância do sentido compartilhado às vivências e às aprendizagens das crianças. As

interlocuções na família podem ser, portanto, facilitadoras das relações vivenciadas na

escola, à medida que há um compartilhar de sentidos construídos nas vivências na

família e na escola.

2.4. O poder do discurso médico e suas implicações no destino de MT

Antes de MT chegar ao CCazinho, cumprindo o encaminhamento escolar,

sua mãe buscou explicações médicas e clínicas para suas dificuldades escolares.

Inicialmente, procurou pela Clínica de Psicologia da PUC-Campinas. Nessa clínica, ele

fez acompanhamento psicopedagógico por um ano que não teve continuidade, devido ao

encerramento deste tipo de atendimento na referida clínica (Cf. anexo nº1). BT, então,

procurou por novos profissionais em um estabelecimento que, desta vez, oferecia

acompanhamento como apoio escolar (Cf. anexo nº2). Durante dois anos, MT

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permaneceu nesse acompanhamento, mas, como suas dificuldades em aprender a ler e a

escrever permaneciam, BT buscou ajuda em uma clínica especializada em dificuldades

de aprendizagem, vinculada à área médica e ao setor público da saúde (Cf. anexo nº1).

Além disso, ela esteve em outra clínica que realiza avaliação das dificuldades

apresentadas pelas crianças/jovens, esta vinculada ao setor privado (Cf. anexo nº2).

Nessas duas últimas instituições – a pública e a privada – foram aplicados

testes psicométricos37 para a avaliação de MT, dentre eles, o Teste Gestáltico Visomotor

Bender (B-SPG); as Matrizes Progressivas Coloridas de RAVEN Escala Especial; o

Teste de Desempenho Escolar (TDE); o Teste de Luria Nebraska (TLN-C); a Escala de

Inteligência Wechsler para Crianças (WISC-III); o Desenho da Figura Humana (DFH-

III); as Provas Projetivas Psicopedagógicas, além de provas Piagetianas. Os relatórios

relativo às avaliações (cf. anexos 1 e 2) dão conta de que MT apresentou um

desempenho abaixo da média esperada para a sua faixa etária, o que foi relacionado a

um déficit cognitivo e ao diagnóstico de Retardo Mental Moderado (CID F71.9 – pela

classificação do DSM – IV). Esse diagnóstico foi emitido pelo neuropediatra que

acompanha MT em um hospital público da cidade de Campinas (Cf. anexo 3). Como

pode ser visto no anexo nº2, há ainda a sugestão de que a família busque por uma

escola especializada para que MT possa se alfabetizar.

Esses testes largamente usados por psicólogos são instrumentos que, muitas

vezes, apresentam resultados contraditórios diante da má avaliação dos aspectos

positivos mostrado pelo sujeito, e de uma análise incoerente das suas dificuldades. É o

que se pode observar através da leitura do anexo nº1, item V. Resultados Gerais da

Avaliação, no qual é relatado que MT apresenta limite abaixo da média esperada em

relação à Compreensão Verbal. Contraditoriamente, em relação à Fala Expressiva e

Receptiva, MT é avaliado com resultado plenamente satisfatório38. Resultados

inconsistentes como esse corroboram os diagnósticos emitidos a partir do DSM-IV de

1994 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)39, ou seja, o Manual de

37 Patrícia Aquino (2014), ao analisar materiais elaborados para darem suporte aos diagnósticos emitidos a partir de testes psicométricos, como o teste WISC, conclui que neles não há consideração do conhecimento produzido pela Linguística em relação à alfabetização, à produção escrita e à leitura no uso de ferramenta linguísticas. A autora também afirma ter observado, no material analisado, equívocos com relação às concepções de língua, de linguagem e de sujeito. 38 No 3º capítulo desta dissertação as questões relativas às dificuldades de MT serão aprofundadas. 39 No ano de 2013, foi lançado o DSM-V, entretanto, não alterei a edição usada nesta dissertação, pois não houve variação quanto à descrição do diagnóstico em questão. O DSM é vinculado à Associação

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Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais, um instrumento de classificação e de

referência para médicos no diagnóstico de doenças mentais que inclui critérios e

descrições de diagnóstico e de tratamento.

O manual do DSM-IV reitera a medicina como lugar privilegiado de

avaliação de dificuldades escolares (principalmente as que dizem respeito à leitura e à

escrita) e, portanto, de presença fundamental na área educacional (MOYSÉS, 2001),

colocando-se em uma posição superior em relação às outras áreas de conhecimento,

como a Linguística e a Pedagogia, por exemplo.

Ainda de acordo com o DSM-IV, o diagnóstico “Retardo Mental

Moderado” de MT corresponde à referência F71.9, e tem a seguinte descrição:

“O Retardo Mental Moderado equivale, basicamente, ao que costumava ser chamado de categoria dos "treináveis", em termos pedagógicos. Este termo ultrapassado não mais deve ser usado, pois implica, erroneamente, que as pessoas com Retardo Mental Moderado não podem beneficiar-se de programas educacionais. Este grupo constitui cerca de 10% de toda a população de indivíduos com Retardo Mental. A maioria dos indivíduos com este nível de Retardo Mental adquire habilidades de comunicação durante os primeiros anos da infância. Eles beneficiam-se de treinamento profissional e, com moderada supervisão, podem cuidar de si mesmos. Eles também podem beneficiar-se do treinamento em habilidades sociais e ocupacionais, mas provavelmente não progredirão além do nível de segunda série em temas acadêmicos. Estas pessoas podem aprender a viajar independentemente, em locais que lhes sejam familiares. Durante a adolescência, suas dificuldades no reconhecimento de convenções sociais podem interferir no relacionamento com seus pares. Na idade adulta, a maioria é capaz de executar trabalhos não qualificados ou semiqualificados sob supervisão, em oficinas protegidas ou no mercado de trabalho geral, e adaptam-se bem à vida na comunidade, geralmente em contextos supervisionados”.

Do texto apresentado anteriormente, ressalto dois aspectos que serão

analisados à luz da ND. O primeiro se refere à delimitação colocada pelos critérios

médicos quanto às possibilidades de aprendizado e ao desenvolvimento do sujeito:

“com moderada supervisão, podem cuidar de si mesmos; não progredirão além do nível

da segunda série em temas acadêmicos”. O segundo é a descrição da linguagem apenas

Americana de Psiquiatria e desde a sua publicação original, em 1994, passou por diferentes revisões. Explicações sobre o manual e o texto reproduzido nessa dissertação descrevendo o diagnóstico de Retardo Mental Moderado encontram-se disponíveis em: <www. psicologia.pt/instrumentos/dsm_cid/dsm.php>. Acesso: 31 maio 2013.

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como função de comunicação: “a maioria dos indivíduos com este nível de Retardo

Mental adquire habilidades de comunicação durante os primeiros anos da infância”.

Em contraposição à abordagem assumida pelo DSM-IV, como já

anteriormente abordado, esta pesquisa se ancora na concepção discursiva de linguagem,

que a considera para além da comunicação, como lugar de constituição da subjetividade

do sujeito, de sua consciência e de seu conhecimento de mundo. Nesse sentido, não há

um sujeito “pronto”, mas um sujeito que se constitui através de suas experiências

com/pela linguagem, durante toda a vida e não somente nos primeiros anos de vida, tal

como referencia o DSM-IV.

Instrumentos como o DSM-IV conferem o estatuto de patológico ao que

não é padrão ou tido como normal. Tal patologização produz um efeito negativo na vida

escolar das crianças, que passam a ser vistas como parte de um grupo que caminha em

oposição àquilo e àqueles considerados normais, dificultando ainda mais o

acompanhamento escolar (COUDRY, 2007). Padilha (1997) se alinha com a reflexão de

Coudry, afirmando que os rótulos atribuídos ao sujeito a partir dos diagnósticos, seja de

“deficiente mental”, “discrepante” ou “desviante”, o marcam ideologicamente.

Watzlawick (1994), em “A Realidade Inventada”, trata do estigma

determinado pelo diagnóstico/rotulação como profecias que se autocumprem. Para o

autor, crianças estigmatizadas, porque têm suas dificuldades atribuídas a uma

incapacidade, patologia ou a um comportamento que se repete, se comportam de

maneira a corresponder ao que se supõe ou ao que se espera delas. Este ciclo vicioso

transforma a não superação da dificuldade em realidade, como que por profecia,

confirmando a previsão.

De fato, a história de MT passa a ser justificada pela família como uma

doença que define seu passado e seu futuro, nos dizeres de BT: “Ele não tem jeito, não

tem saída, ele não muda”.

2.5. MT é um sujeito incorrigível?

É possível estabelecer um paralelo ainda entre a constituição dos sujeitos

marcados socialmente por rótulos estigmatizantes e a necessidade humana de

estabelecer um padrão de normalidade e de limites para as suas próprias condutas.

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Foucault, em sua obra “Os Anormais” (1975/2001)40, reflete sobre o

incômodo causado pelos que não seguem o padrão de conduta estabelecido e sobre a

necessidade de “encontrar um lugar” social para esse “sujeito problemático” (O que

fazer com ele? Qual o seu lugar na sociedade?). Em sua reflexão, o autor aborda os

domínios da anomalia na transição do século XVIII para o XIX. O “sujeito

problemático” é representado em sua obra pelo “sujeito incorrigível”, de difícil

determinação porque é comum e frequente na sociedade:

“O indivíduo a ser corrigido vai aparecer nesse jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia, etc. Esse contexto, portanto, é que é o campo do aparecimento do indivíduo a ser corrigido” (Ibdem, p. 72). O incorrigível se apresenta como sendo aquele que é preciso ser corrigido “na medida em que fracassaram todas as técnicas, todos os procedimentos, todos os investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo” (Ibdem, p.73).

Para Foucault, o sujeito incorrigível do século XVII-XVIII é, de forma

esboçada, o que será no século XIX o indivíduo anormal, que servirá de base para a

criação das instituições especializadas e da aparelhagem de correção para os

denominados anormais. Tal reflexão aproxima a discussão realizada por Foucault no

século XIX à realidade que encontramos hoje, no século XXI. Os anormais seriam hoje

as crianças equivocadamente diagnosticadas por patologias e estigmatizadas em suas

dificuldades. Nessa direção, também é possível estabelecer um paralelo entre a clínica

como “lugar de correção” desse sujeito anormal, e sua “aparelhagem de correção” como

os recursos usados pela clínica no trabalho com essas crianças: jogos, brinquedos,

testes, programas computacionais. Dentre esses recursos, temos o DSM-IV, que não

somente classifica essas crianças, mas também determina os limites para seus

aprendizados (BORDIN, 2010; ANTONIO, 2011).

Nesse sentido, é importante observar que MT chega ao CCazinho trazendo

dois relatórios sobre as avaliações realizadas. Nas Clínicas onde esses dois relatórios

foram emitidos, não houve a proposta de um trabalho com MT relacionado às suas

dificuldades, nem à orientação familiar. As explicações passam pela falta de vaga, como

40 Essa reflexão teve seu início na disciplina Neurolinguística I, oferecida no programa de pós-graduação em Linguística no IEL – Unicamp, ministrada pelas Profª Drª Maria Irma Hadler Coudry e Profª Drª Fernanda Maria Pereira Freire, no 1º semestre de 2012.

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no centro vinculado ao setor público, e pelo alto custo, no caso do centro vinculado ao

setor privado, inviabilizando as possibilidades da família.

Embora estigmatizado socialmente como um sujeito portador de Retardo

Mental, um sujeito que “não tem jeito”, ou, ainda, pela cobrança social que incide na

família, sua mãe não desiste da busca de alguma solução para as questões apresentadas

por MT. Esse fato se evidencia nos diferentes momentos do acompanhamento de MT,

quando ela contou sobre a cobrança que percebia ao conversar com pessoas que

perguntavam por MT: “Ele já está lendo? Ele está escrevendo? As coisas na escola já

estão melhores? Você ainda não conseguiu encaminhar isso?”, perguntas que BT

interpreta como direcionando a ela a responsabilidade pelo fracasso escolar de MT.

Assim, o CCazinho, a 5ª instituição procurada pela família, parece

representar a busca por uma estrutura diferente que possibilite o “milagre” da cura.

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CAPÍTULO 3 - O acompanhamento longitudinal de MT

Este capítulo dá visibilidade às possibilidades do vir a ser de MT. Trata-se

de uma aposta de que ele pode se constituir a partir de diferentes interlocuções em

diferentes experiências, principalmente, de fala/linguagem, ampliadas por outras que

envolvem a leitura41 e a escrita, por estar imerso em uma cultura letrada.

Tais atividades envolverão os conceitos reunidos no Capítulo 2: sistema de

referências, operações de construção de sentidos, consciência e conhecimento de

mundo, etc. Portanto, a partir dos aportes teóricos da ND, a proposta de trabalho

realizado pela investigadora, nos encontros individuais, e pelo CCazinho, nos encontros

coletivos com MT, privilegia a constituição de sua subjetividade como o que lhe

favorecerá em seu distanciamento do lugar estático em que a família e a escola, por

diferentes motivos, o tem colocado e no qual ele tem se mantido.

3.1. O CCazinho: a realização de um trabalho com MT orientado pela interlocução

No início do acompanhamento longitudinal individual discursivamente

orientado de MT no CCazinho, conversamos sobre o compromisso com o trabalho a ser

realizado nesse Centro, o que exigiria dele dedicação e esforço. Essa conversa é

realizada com a criança/jovem no início de seus acompanhamentos, porque representa a

opção que é dada ao sujeito em dar ou não continuidade à sua frequência nesse Centro,

escolha que não é possível de ser feita em relação à escola. Faz parte também desses

encontros iniciais explicar para o sujeito as atividades que serão feitas ao longo do

desenvolvimento do trabalho e o quanto tais atividades dependem de sua escolha, ou de

ele descobrir ou expor o que gosta de fazer, enfim, quais são seus interesses na vida.

Os primeiros encontros com MT foram marcados, conforme abordado no

capítulo anterior, pela sua dificuldade em se expressar, dificuldades estas em relação à

seleção lexical e à organização sintática de sua fala. MT falava muito pouco, de forma

“truncada”, ou seja, com frases condensadas e incompletas; assim, pronunciando uma

ou duas palavras, parecia expressar o que queria dizer. MT frequentemente silenciava

diante de perguntas feitas pela interlocutora sobre, por exemplo, o que ele havia feito no

41 Neste capítulo, não será dada ênfase às atividades específicas de leitura, uma vez que a leitura se deu em conjunto com a escrita.

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final de semana. Quando respondia a tais perguntas, suas respostas, muitas vezes, não

mantinham uma relação de sentido com o que lhe havia sido perguntado, o que causava

a impressão, em seu interlocutor, de que ele não entendia ou não sabia responder o que

lhe era perguntado. É importante explicitar, também, que em alguns momentos MT se

mostrava um sujeito comunicativo que ocupava os turnos conversacionais, embora não

fosse fácil e, às vezes, nem possível que seu interlocutor compreendesse as referências e

o contexto de suas falas. Esta dificuldade de MT se manteve ainda por um muito tempo

no acompanhamento longitudinal.

Sendo assim, era preciso retomar com MT os assuntos/conteúdos,

abordando-os de outra maneira. Se por um lado, esses comportamentos me levaram a

pensar na hipótese de ele apresentar um problema de memória, de compreensão, ou de

saúde mental, por outro, tais comportamentos nos impediam de travar um conhecimento

mútuo. Para Coudry (1986/1988) “o conhecimento mútuo constitui o conjunto de

pressuposições indispensáveis ao diálogo, sendo fundamental a afetividade para o

estabelecimento de uma relação intersubjetiva entre os participantes” (Ibdem, p.79).

Por algum tempo ainda tive a impressão de que MT era um sujeito

“impermeável”, que não se afetava pelas minhas proposições e que não me contava

nada sobre si. Além disso, a postura de seu corpo revelava um desconforto: deitava o

tronco sobre a mesa, segurava a cabeça com uma das mãos inclinando-a lateralmente,

mexia-se constantemente, espreguiçava-se, olhava dispersamente para a sala e mantinha

pouco contato visual com seu interlocutor.

Nesse sentido, reconheço que as dificuldades apresentadas por MT não são

condizentes com o que se costuma esperar de um jovem da sua idade (na época, 12

anos), como em relação aos conhecimentos que apresenta frente à leitura e à escrita

quando não sabe escrever o próprio nome, a ter dificuldade de manter uma conversa ou

falar, minimamente, sobre seus interesses e, ainda, a seu absoluto desinteresse em saber

algo sobre mim. Além disso, a postura de corpo que mantém dificulta a aproximação de

outra pessoa e revela sua disposição de se manter afastado. De fato, considerar apenas

esses aspectos torna o diagnóstico de Retardo Mental Moderado que lhe foi conferido,

possível, pois tais comportamentos se fazem presentes na descrição do referido

diagnóstico.

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Entretanto, no trabalho discursivamente orientado que se realiza no

CCazinho, é fundamental o conhecimento da história do sujeito e como ele revela sua

subjetividade na relação dialógica com outro, para que se torne possível, então, sua

inserção no mundo das letras através da escrita com sentido e da leitura com

compreensão (COUDRY, 2009a). Portanto, nesta abordagem, não é valorizado o

diagnóstico como determinante do sujeito, mas valoriza-se a sua inscrição no mundo: o

que ele gosta de fazer; pelo que demonstra interesse; quais são seus amigos; quais

lugares frequenta; do que gosta de brincar/jogar; que filmes/livros lhe interessam etc.

Enfim, é a história do sujeito que molda as atividades que partilhará com sua

cuidadora/investigadora em seu acompanhamento longitudinal no CCazinho.

Na tentativa de encontrar respostas a tantas perguntas, e, na tentativa de

conhecer esse sujeito e de estabelecer um conhecimento mútuo, passei a insistir nas

perguntas que não tinham sido respondidas por ele, retomando, assim, suas respostas

desconexas para mostrar-lhe que estas não respondiam ao que lhe havia sido

perguntado. É importante esclarecer, no entanto, que foi explicado a MT o motivo da

minha insistência em compreender o que ele falava, saber o que ele pensava sobre as

coisas, para que, então, pudesse ajudá-lo em suas dificuldades, bem como para que esse

trabalho fosse interessante e prazeroso para nós dois.

Dando continuidade a esse processo, muitas vezes, o retorno de MT às

minhas tentativas de desdobrar sua fala era somente uma palavra ou alguma expressão

que funcionavam como pistas para que eu compreendesse o que ele dizia. Ou seja,

embora ele não conseguisse elaborar a sua ideia e torná-la pública, o que exigia dele

uma organização sintática e semântica de sua fala, que ele não tinha, havia um querer-

dizer (BAKHTIN, 1952-53/1997). Assim, buscando descobrir mais sobre esse sujeito, a

partir da palavra ou expressão falada por ele, eu formulava enunciados que julgava

próprios para aquilo que ele parecia querer dizer, dando, também, outras opções de

respostas, até que chegássemos ao sentido pretendido por ele em sua fala.

No entanto, MT não aceitava qualquer enunciado dado por mim como

alternativa de resposta à pergunta feita a ele. Ele, portanto, sabia o que queria e o que

não queria dizer. Nesse momento, passei a questionar seu suposto problema de memória

ou de alienação em relação às coisas que aconteciam à sua volta. Passei a questionar,

então, o fato de ele conseguir estabelecer relações entre os fatos vivenciados e

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lembrados e não falar sobre eles. Também, em muitas situações em que eu tentava

recuperar o sentido do querer-dizer de MT, ele se mostrava irritado, incomodado. Passei

a considerar, dessa forma, se essa irritação se devia a não conseguir se expressar ou a

não querer lembrar. Essa dúvida permaneceu por todo o acompanhamento.

O dado que apresento a seguir se deu em 2013, dois anos e meio após o

início do trabalho voltado, entre outros objetivos, aos seus processos discursivos,

quando MT já apresenta mais facilidade de se manter em uma relação dialógica. Assim,

este dado foi selecionado para dar visibilidade aos recursos expressivos que MT, mais

recentemente, usa na interlocução com o outro.

Dado 3: 03/04/2012 – “Conversando na praça do Ciclo Básico”: diálogo entre Ibb e MT sobre o que estaria sendo construído na reforma do lago da praça do Ciclo Básico da Unicamp. Turno Sigla do

Locutor Transcrição42 Observações

sobre o enunciado

verbal

Observações sobre o enunciado não

verbal

1 MT Isso aqui é \: um laguinho E começa a querer descer no tanque que está sem água

2 Ibb Não, não vai descer aí não porque a gente não sabe se pode entrar. Um laguinho?

3 MT É, olha lá o negócio. Esse negócio aqui é no meio

Apontando para a manta impermeabilizadora

4 Ibb Vamos pensar é \ // MT. Tem \ // lugar para as pessoas circularem em volta, certo? Você acha que é um lago? Sabe o que tá me parecendo isso aqui, um teatro, sabe teatro... assim, para apresentar uma peça no meio

Referindo-se a um teatro de arena

5 MT Mas \ // 6 Ibb Mas eu acho que você tem razão,

pode ser um lago sim.

7 MT Por que teatro não vai por isso aqui

Apontando para uma manta impermeabilizadora

8 Ibb Exatamente... Muito bem... Esse negócio, como é que chama isso aqui?

9 MT Manta \ // é pra por no chão 10 Ibb Como é que chama? Mas serve

pra quê?

42 Na transcrição o símbolo \ // refere-se a uma pausa longa e o símbolo \: refere-se ao prolongamento de uma vogal, segundo tabela do Banco de Dados em Neurolinguística (DEFANTI, B.; SILVA, M. A, 2003).

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11 MT Pra água não vazar pra baixo. Faz gesto indicando embaixo de alguma coisa

12 Ibb Pra água não infiltrar no chão. Não é isso?

13 MT É ali, também vai por, ó! Aponta para a outra parte da construção onde estavam

14 Ibb Pode ser... Então chama uma manta para impermeabilizar. Olha lá ó, tá escrito, ó! Nas letrinhas pequenininhas. Im-per-me-a-bi-li-zan-te, entendeu?

Apontando para o rótulo da manta impermeabilizadora

15 MT Meu tio pôs isso lá, e ele pôs um piso em cima

Saindo da construção em direção ao gramado da praça

16 Ibb Seu tio pôs isso lá aonde? \ // Entendi. E me explica o que o seu tio fez... ele pôs essa manta impermeabilizadora...

17 MT Na casa dele 18 Ibb Mas em que lugar?

19 MT No floresta 20 Ibb Na floresta? 21 MT Floresta 22 Ibb Como assim? 23 MT No Floresta 24 Ibb Hã? 25 MT É no mesmo ele mora... Fez os gestos

indicando o trajeto que se deve fazer para chegar no Floresta

26 Ibb Ah! Floresta é o bairro! Referindo-se ao bairro da cidade de Campinas, o Parque Floresta

27 MT É 28 Ibb Ã? Mas ele pôs aonde isso? O

que ele não queria...

29 MT Na casa dele! 30 Ibb Não, mas isso eu já entendi! 31 MT Prá água na, na \: ele pôs na laje. 32 Ibb Ah, agora eu entendi \: ele pôs

na laje, pra água não ir pra onde? Pra água da chuva não ir pra onde?

33 MT Pra casa. 34 Ibb Pra que lugar da casa? 35 MT Dentro da casa. 36 Ibb Pra dentro da casa...

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

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Na condução dessa análise, ressalto inicialmente o turno 3, em que MT

estabelece a relação entre a presença da manta impermeabilizante e a possibilidade da

construção de um lago no lugar em que estão ele e a sua cuidadora. MT revela

compreensão da função da manta impermeabilizante na vedação de uma construção que

tem contato com a água. No turno 15, MT estabelece outra relação de uso com a manta

impermeabilizante, ao se lembrar desse material na laje da casa construída por seu tio.

Considerando, ainda, que informações a respeito de uma manta impermeabilizante não

fazem parte de um repertório habitual de jovens na idade de MT, é evidente que ele

conseguia estabelecer relações entre o que percebia e o que se lembrava de suas

vivências, o que mostra não estar alheio às situações das quais participava.

Tais constatações são importantes na compreensão de como se dá a

aprendizagem de MT. Para Vygotsky (1979/1998), estabelecer relações representa um

importante processo em que estão envolvidos categorias de comparação e diferenciação

responsáveis pela generalização, uma função superior diretamente relacionada à

formação do pensamento e, portanto, ao aprendizado.

Nesse sentido, a partir da construção de uma proximidade com MT e de um

olhar mais cuidadoso para com ele, foi possível percebê-lo como um sujeito com

possibilidades de aprender, mas que, se encontrando pouco envolvido nos processos de

interlocução, portanto, sozinho em suas dificuldades, teve prejudicadas a continuidade e

a regularidade no desenvolvimento de sua aprendizagem.

Continuando com a análise, considerando agora os turnos 3, 7, 13, 15 - em

que MT usa os termos “esse”, “isso aqui”, “ali”, “lá”- , é muito difícil para ele tornar

público o seu pensamento. A expressão de um pensamento ou de uma ideia é algo

complexo que exige a fala externa. A fala externa é mais detalhada e desdobrada

sintaticamente do que aquela pela qual o pensamento se organiza, que se caracteriza por

ser agramatical e reduzida. Assim, dizer sobre o que se pensa requer da língua um

conjunto de recursos expressivos para que se possa ser compreendido pelo outro.

Ainda nesse dado, analiso que os termos usados por ele, essencialmente

elementos dêiticos, se vinculam ainda a uma falta de recursos expressivos da língua em

direção a construir e a compartilhar o sentido daquilo que queria dizer. Coudry afirma

que o uso de dêiticos “impede uma análise em termos de condições de verdade por

procedimentos puramente composicionais do sentido de suas palavras, sem recorrer-se

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às relações que os dêiticos estabelecem entre o enunciado e o contexto, isto é, a situação

de enunciação” (COUDRY, 1986/1988, p.50).

Assim, é possível afirmar que MT não percebe a relação de dependência que

os dêiticos estabelecem entre o enunciado e o contexto, assim como não percebe

também que o outro não entende o que ele quer dizer, o que, por vezes, só é possível se

ambos, ele e seu interlocutor partilharem a mesma situação de enunciação.

Completando a análise do turno 3, MT usa a expressão esse negócio para se referir à

manta impermeabilizante. É a participação de Ibb na situação da enunciação que

permite a ela compreender o sentido presumido por MT (manta impermeabilizante). O

sentido da expressão esse negócio está diretamente relacionado ao contexto, sendo

preciso que Ibb recorra à relação que o dêitico estabelece entre o enunciado e o contexto

para acessar o sentido.

Para Franchi (1977/1992) o sentido atribuído ao termo “situação” com

relação à enunciação é o que permite a significação das expressões, mas não como um

“lugar real fisicamente delimitado” ou uma “situação imediata” e sim as “condições de

uso significativo da linguagem”. Essas condições de uso da linguagem, também

compreendidas como “instâncias e condições da situação discursiva”, “das quais

nenhuma língua natural pode dispensar-se”, permitem que as expressões adquiram

sentido por remeterem a “um referencial em que essas correspondências se atualizam (o

tempo, o lugar, as instâncias pessoais do discurso, a indicação demonstrativa dos

objetos, a atitude do locutor frente a seu próprio discurso, etc.)” (Ibdem, p.34). Nessa

direção, com relação ao dêitico esse seguido de negócio, usado por MT, seria preciso

que a cuidadora participasse da situação da enunciação no sentido da situação imediata

e do lugar real e fisicamente delimitado para perceber o sentido atribuído à expressão,

mas seria suficiente o uso significativo da linguagem pelos recursos expressivos da

língua, de forma que as expressões situassem a interlocutora em um mesmo referencial,

no caso, a indicação demonstrativa do objeto: a manta impermabilizadora.

Uma análise nessa mesma direção pode ser feita em relação ao turno 15,

ocasião em que MT usa o dêitico lá, para se referir a um contexto do qual Ibb não

participou. Novamente, recorro às considerações de Coudry sobre os elementos dêiticos:

“são como coordenadas (...) que orientam a interpretação para certos aspectos das

condições de produção”, embora esses elementos “estabeleçam relações bem precisas

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com um elemento do contexto (a pessoa que fala, o lugar de onde se fala, o momento

em que se fala) fica inteiramente dependente desse contexto (entendido enquanto

correspondência de referencial pelos interlocutores) a identificação da referência ou

mesmo da predicação a ser apreendida pela relação dêitica” (Idem, 1986/1988, p.50).

Essa reflexão permite explicar o fato de eu estar impossibilitada de entender

a que se referia o uso, por MT, do dêitico lá. Esse dêitico não permite que a cuidadora

acesse o seu sentido, por não haver uma correspondência de referentes entre os

interlocutores – Ibb não compartilha com MT a situação de enunciação em que esse

dêitico tinha um sentido, e, portanto, ela não identifica a sua referência quando, então,

ele é usado sem a função de dêitico. Daí a razão da pergunta da cuidadora no turno 16:

seu tio pôs isso lá aonde? Nesse momento de elaboração da resposta à pergunta da

cuidadora, a dificuldade do sujeito para selecionar palavras por meio das quais

conseguisse se expressar orienta a sequência dos turnos 19 a 26, que analisarei a partir

das palavras de Franchi:

Deve-se observar que a linguagem nem sempre (ou poucas vezes) se utiliza de recursos expressivos suficientes para identificação precisa dos objetos singulares referidos; nas expressões em geral se indicam os limites de uma certa ‘regionalidade’, a ser precisada com recurso à situação ou às regras implícitas do jogo de fatores no sistema de referências, pressuposto comum. (FRANCHI, 1977/1992, p. 35)

Passo agora à análise do turno 19 ao turno 26. MT mora em um bairro

próximo ao bairro Parque Floresta, chamado pelas pessoas que nele moram ou as quais

o frequentam somente como Floresta. Por se tratar de um bairro conhecido da

cuidadora, mas distante do contexto vivido por ela, Ibb demora a perceber no diálogo a

que MT se refere quando responde no turno 19 “no floresta”. Ibb se orienta pelo sentido

“cheio” de floresta e não se atém ao fato de MT usar a palavra como se fosse masculina,

“no (bairro) Floresta”, enunciado que traz a palavra bairro implícita. Por essa razão, Ibb

o questiona.

Segundo Franchi (1977/1992), o desconhecimento de Ibb do sentido

atribuído ao termo Floresta (como bairro) por MT, a remete aos limites de certa

regionalidade sugerida pela palavra floresta (como bosque, por exemplo), o que faz com

que o termo, no contexto e no gênero usado por MT, não faça sentido para ela, porque o

sentido usado por ele não estabelece relação com as expressões correspondentes ao

sistema de referências acionado pela cuidadora.

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Esse cenário possibilita compreender o caráter indeterminado da linguagem

enquanto “um sistema aberto e criativo e, por isso, disponível ao entendimento das

necessidades e intenções das mais variadas condições de comunicação” (Ibdem, p.26).

MT, por não ter – naquele momento – os recursos expressivos suficientes para poder ser

compreendido pelo seu interlocutor, faz uso dos gestos como sugestão de um caminho

para se chegar a algum lugar, nesse caso, o bairro Parque Floresta. A partir da reflexão

de Franchi, é possível dizer que a linguagem, como um sistema aberto e criativo,

permite que os gestos possibilitem o acesso de Ibb ao sentido pretendido por MT ao

termo floresta, quando então, os interlocutores podem compartilhar o mesmo sentido. É

importante ressaltar que, o uso dos gestos junto aos elementos dêiticos como

possibilidade da construção de sentidos entre os interlocutores Ibb e MT, também se fez

presente em turnos anteriores.

O caráter indeterminado da linguagem enquanto sistema aberto e criativo

permite, ainda, que pensemos acerca da ambiguidade do termo floresta usado na

interlocução entre MT e Ibb, com relação ao conceito de contrabandeio das expressões

abordado por Franchi (1977/1992). Para o autor, a criatividade como uma possibilidade

da linguagem, permite o contrabandeio que ocorre com as expressões naturais da língua

por meio da analogia “a outro predicado alheio que não se contém no predicado básico

que delimita esses domínios” (Ibdem, p.33). Nessa direção, o termo floresta em seu

predicado básico – no sentido de bosque – permite o seu contrabandeio ao ser usado

como um predicado alheio - no sentido do nome do bairro a que MT se referia. Tal

sentido é construído pelos sujeitos na interlocução: “a relação interlocutiva se concretiza

no trabalho conjunto, compartilhado, dos seus sujeitos, através de operações com as

quais se determina, nos discursos, a semanticidade dos recursos expressivos utilizados”

(GERALDI, 1991/2003, p. 13).

Esses recursos expressivos, além de permitirem a construção de sentidos na

interlocução, são depositados pela fala (SAUSSURE, 1916/2006) – como recursos da

língua – na memória dos falantes. Sendo assim, a fala, através da interlocução, teria

possibilitado a MT a formação da sua memória como um tesouro (composto por signos)

de recursos que o possibilitariam tornar público o seu pensamento – um processo

complexo que requer uma organização das palavras de forma “sintaticamente articulada

e inteligível para os outros” (VYGOTSKY, 1934/1993, p.184) e que pressupõe opções

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na seleção/escolha dos termos (eixo paradigmático) a serem usados/combinados na

organização sintática da frase (eixo sintagmático) (JAKOBSON, 1954/1981).

A partir desta análise, é possível pensar que a formação de memória de MT

em relação ao uso da língua, no sentido proposto por Saussure (1916/2006), de fato,

dificulta a seleção e a combinação dos termos necessários para elaborar os seus

enunciados diante do que fala ou responde. Como se pode observar, “Conversando na

praça do Ciclo Básico” é um dado que dá visibilidade a um sujeito com dificuldades

importantes de construir e de compartilhar sentidos com seu interlocutor e com o

mundo. São dificuldades, possivelmente, associadas às poucas oportunidades de

interlocuções que vivenciou ao longo de sua história e que o impossibilitaram de se

colocar como sujeito em suas relações frente à alteridade marcada pelo outro. Nesse

contexto, o trabalho assumido com MT foi norteado pela fala, implicado também na

ampliação de seu sistema de referências, como categorias que possibilitam a construção

de sentidos aos recursos expressivos no discurso, modificando sua amplitude e

constituindo a variedade e a diferenciação do sistema de referências em que a

linguagem se torna significativa (FRANCHI, 1977/1992).

Finalizando esta análise, recupero brevemente os recortes dos turnos 10, 11

e 12, para mostrar como é feito o trabalho quanto à retomada da fala de MT. Os

recursos expressivos dos quais faço uso quase sempre põem em questão a relação de

sentido ou a relação gramatical, para, então, provocar em MT outra forma de dizer,

outra forma de organização sintática, ancoradas em um repertório sempre em expansão,

que mobiliza outras operações de construção de sentido.

3.2. As primeiras incursões de MT na leitura e na escrita

A resistência apresentada por MT, na entrevista, diante de qualquer material

que representasse a leitura e a escrita (lápis, caneta, papel, livro, caderno), se estendeu

pelos primeiros meses de acompanhamento. Por esse motivo, as atividades voltadas

para a leitura e para a escrita foram inseridas ludicamente, através de jogos, desde o

início do acompanhamento longitudinal de MT. Assim, passo a apresentar um dado que

mostra as primeiras reflexões de MT quanto à imagem visual e à imagem sonora das

letras (Freud, 1891/1977). Entretanto, essa não foi a primeira vez que o jogo “Palavras

cruzadas”, com letras móveis de madeira do alfabeto do Português Brasileiro e um

tabuleiro quadriculado, foi usado por MT. Em uma sessão anterior, do dia 28/09/2010,

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houve uma atividade utilizando esse mesmo jogo. Nesse dia, escrevemos e montamos

nossos nomes no tabuleiro com as letras móveis, quando MT demonstrou não ter

conhecimento sobre nenhuma das letras dispostas sobre a mesa. Para a ND, escrever o

próprio nome tem grande significado para a aprendizagem da escrita com sentido e da

leitura com compreensão.

Dado 4: data:09/11/2010 – “Jogando Palavras cruzadas”:

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

Como MT não sabia o nome das letras e não estabelecia relação entre elas,

priorizamos esse aprendizado durante o jogo à medida que montávamos as palavras no

tabuleiro. Então, retomávamos várias vezes o nome dessas letras, pedindo para que MT

as identificasse. Assim, na escrita da palavra carne, retomávamos o nome das letras: ce,

a, erre, ene, e, e fazíamos a correspondência/associações a outros nomes: M de Mateus,

R de rato, N de navio etc.

Coudry (2009a) reflete sobre a ação de soletrar, a partir do estudo de Freud

sobre as afasias (1891) e afirma que, apesar de parecer uma ação mais oral do que

escrita, envolve também as relações entre a escrita (coordenadas viso-espaciais e

temporais) e a fala (aspectos acústicos, motores e visuais). Essas relações implicam a

representação mental ou escrita da letra, a sua relação com o desenho da letra e o

conjunto de gestos articulatórios envolvidos para pronunciar o nome da letra, que não

são os mesmos que usamos para pronunciar o som que a letra adquire na palavra. Sendo

assim, ler a palavra carne é diferente de soletrá-la: [se], [a], [εRe], [ene], [e].

R I T A

T U D O

S M

B C A R N E

S O P A I

L A

A

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Para Coudry (2010a), ainda a partir de Freud (1981/1977, p.18), “é preciso

apagar o nome da letra para escrever e ler a letra na palavra”, ou seja, é preciso não se

ater ao nome e à representação gráfica da letra para que se consiga atribuir um sentido à

leitura da palavra, sentido este que deve coincidir com o que está presente na fala da

criança e do outro, invocando o objeto ausente. Ou seja, é pela fala que é possível se

estabelecer a relação entre o som da palavra e seu significado, porque é pelo que já se

conhece (o que é carne) que se atribui um sentido ao que se está lendo (carne).

A fala, aprendida pela repetição na relação com o outro, possibilita que se

chegue a um sentido coincidente: da fala do sujeito e da fala do outro, portanto, é

possível que se chegue à língua. Ao contrário, se a essa palavra não fosse atribuído um

sentido, ela ficaria vazia de significado, o que daria a ela o estatuto somente de som e de

representação gráfica (BORDIN, 2008). Essa reflexão é aprofundada por Coudry

(2010b) a partir de Freud (1891/1977), estabelecendo, como visto no capítulo 2, uma

relação entre a possibilidade de saída do sujeito afásico dos sistemas da

língua/linguagem e a entrada da criança na linguagem. O que foi falado pelo outro se

torna o já ouvido pela criança, processo em que acontecem novas cadeias associativas

entre o que ela já sabe e um novo conhecimento. É pela linguagem, “falada e lembrada

(memória)” que o que é velho e novo na língua podem ser reconhecidos. O velho da

língua representa o que já é conhecido, e por isso “automatizado” e “irrefletido”. De

forma diferente, o novo aparece como “indeterminado” e representa o que ainda não se

conhece (COUDRY, 2009a; COUDRY, 2010b).

O trabalho para que MT estabelecesse relações entre as letras e seus nomes

se fazia importante porque, embora não se escrevam e nem se leiam os nomes das letras,

conhecê-los é um recurso fundamental para o aprendizado da leitura e da escrita. É

preciso saber o nome das letras para soletrar, um complexo exercício que corresponde a

decompor e combinar a palavra em sua menor unidade na escrita: a letra. Só

conseguimos soletrar porque temos a representação mental da palavra por inteiro,

atividade que envolve, além de conhecer a escrita da palavra, “conhecer o nome das

letras que a compõe, falar ordenadamente o nome das letras (...), conhecer o traçado de

cada letra que corresponde a cada nome e saber o conjunto de gestos articulatórios que

representam o nome das letras” (GOMES et al., 2010, p.268).

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As letras, por terem nomes diferentes, permitem que as usemos com

autonomia, possibilitando esse uso sem vinculação a um registro gráfico para

indicarmos a qual letra está sendo referida. Por exemplo, é possível corrigirmos a escrita

de uma palavra que tenhamos nos enganado quanto à sua ortografia somente pela

soletração dessa palavra por outra pessoa, não sendo necessária, portanto, a visualização

do desenho das letras para sabermos a quais letras essa outra pessoa se refere.

Essa atividade possibilitou analisar com MT a questão envolvendo o som

que a letra adquire conforme sua posição na palavra e na sílaba. Assim, quando

escrevermos a palavra rua a partir da letra r encontrada no meio da palavra carne,

retomamos a questão da diferença de som do /r/ na posição de coda da sílaba, que é

produzida em nossa região como uma consoante retroflexa alveolar vozeada (como em

/car/ de carne) e o r na posição de início da palavra, que, por sua vez, é produzida como

uma vibrante alveolar vozeada (como em rua).

De tal modo, nessa etapa do trabalho, através do jogo Palavras Cruzadas,

buscamos levar MT a vivenciar atividades com a escrita que favorecessem sua

percepção quanto à estabilidade/repetição do sistema de escrita e a recursividade nele

existente, relativa às suas possibilidades de combinação para formar unidades de sentido

– a palavra (FREUD, 1891/1977; VYGOSTKY, 1934/1993).

Ainda com relação ao nome e som da letra na palavra, na situação do jogo

“Palavras Cruzadas”, tentamos mostrar que somente em alguns momentos há

coincidência entre eles. Ou seja, a letra p na palavra sopa não tem som de [pe], mas o de

[pa], porque se encontra na mesma sílaba, ao lado da letra a. O mesmo ocorre com a

sílaba (so) em que a letra o se une à letra s e não ao seu nome, dito como [εse]. Esses

exemplos evidenciam a diferença existente entre o nome da letra e o som que ela

adquire na palavra. Entretanto, a semelhança muitas vezes existente entre o nome da

letra e o som que ela tem na palavra pode causar equívocos na escrita/leitura, como

apresentado no Dado 5, que se deu seis meses após o início do acompanhamento de

MT.

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Dado 5: 29/03/2011 – “Palavras cruzadas na revista Coquetel”.

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A escrita de palavras cruzadas encontradas em revistas como “Coquetel”,

destinada ao público infantil/jovem, foi usada como atividade com MT. O propósito de

tal atividade envolvendo a escrita e a leitura foi o de incentivá-lo a procurar, por sua

própria vontade, por atividades como essas que são mais condizentes com a sua idade, o

que, também ampliaria o seu processo de aprendizado nesses processos. Além disso,

fazer palavras cruzadas pode ser um recurso interessante a ser usado em determinado

momento do processo de aquisição da leitura e da escrita, porque as instruções para

preencher os espaços destinados às letras orientam a própria escrita no sentido de

antecipar, por exemplo, quantas letras tem a palavra.

A imagem do Dado 5 mostra a escrita da palavra gema. MT, após escrever a

palavra junto com a cuidadora, volta ao registro para conferir a sua escrita. Ele aponta

com o dedo a letra g e lê (ge), e, em seguida, aponta a letra e, e lê (ma). A letra g, por ter

o seu nome coincidente ao som da sílaba a ser escrita [�e] faz com que MT pense que a

sílaba já está escrita somente pela representação da letra g. Por isso, a letra seguinte da

palavra (e) é lida como [ma], momento em que há a intervenção da cuidadora para que

ele perceba que para escrever a sílaba (ge) seria preciso não somente a letra g, como

também a letra e.

B G

G A V E T A

N M

D A

E D

I L E Ã O

R D S

R A D I O T

R

L U V A

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Diante de atividades desse tipo, inicialmente MT se mostrava muito confuso

e tenso e, posteriormente, ao longo da atividade e do acompanhamento, demonstrava

maior conforto e mais tranquilidade, o que se deve à familiaridade que foi construindo,

no ritmo dele, com as regras do sistema de escrita que passam invariavelmente pelo

conhecimento das letras. Entretanto, essa familiaridade com as letras precisa se tornar

memória, o que envolve um complexo funcionamento do sistema cerebral da criança/do

jovem.

Para Freud (1891/1977), como vimos, aprendemos a falar associando a

imagem sonora da palavra à impressão da sua inervação nos órgãos da linguagem, ou

seja, à sua imagem cinestésica43. Para ao autor, a repetição é uma possibilidade de

retorno do que foi associado pelos registros psíquicos e neurológicos do sujeito, ou seja,

uma possibilidade de memória. Com o intuito de favorecer a repetição/memória da

relação som/letra, realizei, entre muitas outras, a atividade do Dado 6 com MT.

Dado 6: 18/09/2011 – “Caderno de figuras”

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BORBOLETA, BALEIA, BOCA, BARALHO, BATOM, BONÉ, BANANA O “Caderno de Figuras” é um caderno de desenho em que eu e MT

marcamos, em cada folha, as letras em ordem alfabética. Recortamos várias figuras de

revistas e as colamos nas folhas de letras correspondentes à inicial do nome da figura.

As figuras recortadas foram selecionadas por MT e a condição para isso é a de que ele a

43 Freud (1891/1977, p.87) usa a expressão “imagem cinestésica” para se referir às impressões sensoriais precedentes dos órgãos da linguagem.

CAMISA, CENOURA, COPO, CEBOLA, CINTO, CHINELO

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conhecesse e soubesse seu nome, para assegurar a associação entre a imagem que

representa o objeto e sua imagem sonora – palavra, para Freud.

A partir dessa associação (mais antiga e mais automatizada), outras

seriam favorecidas, nas palavras de Freud, em um processo de superassociação: à figura

do objeto e ao seu nome se somaria o desenho das letras (imagem visual/representação

gráfica) e sua imagem sonora (quanto ao nome da letra e ao som da letra na palavra).

Configurou-se como um trabalho realizado, então, com as duas impressões sonoras e

motoras da letra, relativas ao nome da letra, ao soletrar, e ao som da letra na palavra,

conforme Freud. É importante ressaltar, ainda, que nesse momento inicial do processo

de alfabetização de MT, era preciso a mediação do interlocutor para que ele conseguisse

escrever a palavra.

Os momentos iniciais no processo de aquisição da escrita vividos pela

criança, mais precisamente com relação à sílaba, são objeto de reflexão de Abaurre

(2001), quanto ao lugar central de organização dos segmentos que a sílaba ocupa para as

teorias fonológicas atuais. Composta por um núcleo que deve obrigatoriamente ser

preenchido por uma vogal, a sílaba pode também ser preenchida por uma ou por mais

consoantes na posição de ataque e na posição de coda (que, no português brasileiro,

mais frequentemente é preenchida por uma consoante). Para a autora, é preciso que a

criança analise a estrutura interna das sílabas para optar pelo número e posição das

letras na sílaba, o que se torna mais complicado com relação às sílabas complexas

diante da hierarquia interna da sílaba (quando primeiro acontece a construção das

estruturas CV e V e posteriormente CVC e CCVC).

Como desdobramento da reflexão realizada por Abaurre (2001), na escrita

do nome das figuras, primeiramente a palavra era falada em voz alta, silabando, a fim de

que MT percebesse a segmentação da palavra em unidades que correspondem às

sílabas. Em seguida, cada sílaba era escrita, uma a uma, de forma que na análise da

sílaba fosse estabelecida a relação entre seu som e as letras que a constituem.

Na oralização, a vogal é a letra de sonoridade mais marcante. A associação

da imagem sonora do nome de uma vogal ao seu som na palavra é facilitada por terem

alguma coincidência44. Sendo assim, o início da escrita com MT, nesse momento, partia

44 Em relação às vogais, embora haja coincidência entre o som da letra na palavra e o seu nome, há também variações nessa relação. Assim, no caso da letra e, o seu nome pode não coincidir com o seu som na palavra caso se refira ao som é, por exemplo.

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da percepção da vogal, com a qual eram feitas as associações posteriores. É o que se

pode perceber na escrita da palavra camisa, quando, ao ser escrita a sílaba (ca), a letra a

era facilmente percebida. O passo seguinte seria que MT associasse a imagem sonora da

letra a à sua imagem visual (aspecto gráfico) e percebesse que a letra c precisava ser

escrita antes da letra a, para a formação da sílaba (ca), o que constitui uma estrutura de

sílaba CV (consoante/vogal) - a mais comum no português brasileiro. Com esse

objetivo, a cuidadora dizia várias palavras que se iniciam com a letra c, fazendo

referência às palavras já usadas em outros momentos do acompanhamento e que se

iniciam com essa mesma letra, como cavalo, casa, coruja. MT, então, chegava à

representação da letra c usada para a escrita da sílaba (ca) referente à palavra camisa.

A proposta de atividades como essas, que promovem a repetição da análise

envolvida no ato de escrever, é contexto favorável para a ocorrência de memória,

possibilitada, segundo Freud, pelo encurtamento funcional, ou seja, quando o esquema

neuronal (relação do fisiológico com o psíquico) não precisa mais “percorrer todo o

caminho neuropsíquico para realizar uma atividade”, o que torna o seu percurso

facilitado (COUDRY e BORDIN, 2012).

Vimos, com Freud (1891/1977), a importância das superassociações que se

dão entre o que é da ordem da fala e o que é da ordem da escrita. Vygotsky (1934/1993)

é outro autor que focaliza essa relação em seus estudos. Assim, as atividades propostas

para MT na sequência de seu acompanhamento longitudinal também passaram a

contemplar essa referida relação.

A reflexão de Vygotsky considerando a escrita e a leitura como

desdobramentos da relação entre a fala e o pensamento, referidos por ele como

pensamento verbal e por rascunho mental, subsidiou a elaboração do trabalho com MT

e desencadeou a escrita conjunta do texto “Como trocar um pneu”, apresentado

posteriormente.

A escrita conjunta desse texto dá visibilidade à formação do pensamento

como um desdobramento dos planos interpsíquico e intrapsíquico, dos quais Vygotsky

se utiliza para explicar a aprendizagem. As estruturas da fala dominadas pela criança,

adquiridas em sua experiência social, internalizam-se e “tornam-se estruturas básicas do

pensamento”: “o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, ou

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seja, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sócio–cultural da

criança” (Ibdem, p.62).

O trabalho realizado com MT ao longo de seu acompanhamento

longitudinal, conforme já mencionado, começa pela instauração de espaços de

interlocução, então, retomo Vygotsky para explicitar que os processos de fala e de

linguagem em relação aos processos de aprendizagem que MT vivencia, em muitos

momentos, nos pareceram semelhantes ao dos experimentados por crianças pequenas no

trajeto de aquisição da linguagem que cumprem. Minha intenção, abordando os estudos

vygotskyanos, é identificar que, além dos processos de interlocução que MT agora

mantém, a escrita é um espaço privilegiado para ampliar suas possibilidades de

interlocução e, por outro lado, o leva a ter um contato mais íntimo com análise dos

diferentes sistemas que compõem a fala.

A palavra, constituída por um significado, tem sua formação na

compreensão de um conceito ou em uma generalização, considerados por Vygotsky

como atos do pensamento. Desta forma, a formação de um significado é um fenômeno

do pensamento construído a partir das vivências do sujeito:

O significado das palavras é um fenômeno do pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento (VYGOTSKY, 1934/1993, p.151).

A internalização das estruturas da fala para a formação do pensamento

verbal acontece mediante mudanças estruturais e funcionais no pensamento. Essas

mudanças são explicadas por Vygotsky a partir de três momentos diferenciados do

processo de formação do pensamento verbal: a constituição interna e externa da

formação dos significados das palavras, a relação entre os aspectos semânticos e os

aspectos gramaticais na fala e, por fim, a elaboração da fala interna e a sua relação com

a aprendizagem da escrita.

Sobre a formação dos significados das palavras, Vygotsky (1934/1993) que

não os considera conceitos estáticos e definidos. Os significados constituem relações

frágeis, inconstantes e dinâmicas, que se modificam e que se sofisticam quanto maior a

inserção do sujeito na linguagem. O autor define um significado de uma palavra como

“um conceito ou uma generalização”, um “critério da palavra”, um “componente

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indispensável” de modo que, sem ele, a palavra se tornaria um “som vazio” (Ibdem,

p.150). Esses significados, por serem conceitos dinâmicos, passam por transformações,

inerentes ao sujeito, antes de serem expressos em palavras. Para explicar esse

movimento o qual os significados percorrem até se tornarem palavra, o autor,

didaticamente, divide a fala em dois planos distintos. No primeiro plano, o aspecto

semântico e significativo do interior da fala, e, no segundo plano, o aspecto fonético

exterior à fala. Embora estes dois planos da fala formem uma só unidade, para o autor,

eles não caminham juntos quanto à aquisição do repertório linguístico da criança

(Ibdem, p.157).

Com relação ao aspecto exterior da fala, nas primeiras tentativas de

oralização da criança, uma única palavra é suficiente para expressar seu pensamento,

que, neste momento, se assemelha a um “todo homogêneo”. À medida que seu

pensamento se torna mais completo e mais definido, essa palavra não é mais suficiente

para expressá-lo. Neste momento, a criança precisa de mais palavras para dizer o que

pensa e passa a relacionar essas palavras entre si, elaborando primeiramente “frases

simples e depois complexas”. Aos poucos, consegue uma estruturação da sua oralidade

mais coerente, quando o seu pensamento pode ser expresso com mais adequação

sintática. Quanto ao plano interno da fala - aspecto semântico e significativo -, o

pensamento da criança, primeiramente, se constitui por um “complexo significativo”,

quando “uma palavra corresponde a uma frase completa”. No decorrer desse processo, o

pensamento se torna mais específico e diferenciado e acontece uma maior “separação

das unidades semânticas” relativas aos significados distintos das palavras. (Ibdem,

p.157 e 158).

Esse pensamento da criança, agora mais específico e diferenciado, permite

que os seus enunciados possam ser mais completos. Para Vygotsky (1934/1993), os

enunciados não surgem “plenamente formados”. O autor explica essa relação da

formação dos enunciados e da diferenciação semântica das palavras a partir da

“interdependência dos aspectos semânticos e gramaticais da linguagem” quando reflete

acerca da união entre a forma verbal e o significado na “consciência linguística

primitiva” da criança. Para a criança pequena, o “nome dos objetos” 45 está muito

45 Nesse momento, o uso das palavras pela criança coincide com o dos adultos em sua referência objetiva, mas não em seu significado (VYGOTSKY, 1934/1993, p. 162).

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atrelado aos seus “atributos” 46: “a palavra é parte integrante do objeto que denota”. Aos

poucos, acontece a separação entre eles, quando a criança passa a distinguir referente de

significado, semântica de fonética (Ibdem, p.160). Neste momento, a elaboração dos

enunciados se torna mais flexível e ela já é “capaz de formular seu próprio pensamento

e compreender a fala dos outros” (Ibdem, p.162): “a capacidade que tem uma criança de

comunicar-se por meio da linguagem relaciona-se diretamente com a diferenciação dos

significados das palavras na sua fala e na sua consciência” (Ibdem, p. 161).

Vimos que a dificuldade de MT em lidar com a diferenciação dos

significados das palavras, dada a pouca diversidade de seus recursos expressivos,

justifica a sua procura por outras formas de se expressar, especialmente pelo uso de

expressões que não favorecem o compartilhar de um sentido comum entre os

interlocutores, conforme a análise apresentada em relação ao Dado 3. Esta reflexão

permite uma aproximação entre as dificuldades enfrentadas por MT para se expressar à

insuficiente diferenciação do seu pensamento em unidades semânticas, o que se

relaciona à organização sintática de sua fala, e tem, em contrapartida, o excesso de

indeterminação semântica.

Em função do que acabo de expor, passo a apresentar em seguida o Dado 7,

um diálogo entre MT e mim, que aconteceu enquanto simulávamos uma troca de pneu

usando os equipamentos do meu carro, que habitualmente fica estacionado próximo ao

CCazinho. Essa dinâmica foi realizada como parte da proposta de escrita do texto

“Como Trocar Pneu”, momento em que minha intervenção nos diálogos com MT teve

por objetivo proporcionar a retomada, por ele, de suas falas, buscando uma maior

adequação sintática, a ampliação do léxico e a busca de um refinamento nos

conceitos/significados usados.

46 É reveladora da estreita aproximação que a criança faz entre o nome dos objetos e seus atributos à situação vivenciada em minha sala de aula na EI: após conversarmos sobre o ornitorrinco – um animal de características físicas exóticas – uma criança me perguntou se o ornitorrinco era esquisito, ao que respondi que sim. Em seguida, questionei-a sobre por que ele era esquisito, e ela me respondeu que ele era esquisito porque ele é o ornitorrinco.

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Dado 7: 12/06/2012 – “Trocando o pneu”

Turno Sigla do Locutor Transcrição Observações sobre o

enunciado verbal

Observações sobre o enunciado não-

verbal

1 Ibb Então, qual a primeira coisa que a gente faz depois que parou o carro e ligou o pisca alerta?

2 MT Triângulo Tentando montar o triângulo de segurança do carro

3 Ibb O que é que tem o triângulo?

4 MT Põe o triângulo

5 Ibb Põe o triângulo aonde?

6 MT Atrás do carro

7 Ibb No vidro de trás? Tom de ironia Fala com o intuito de provocar o detalhamento na resposta de MT

8 MT Não, longe do carro

9 Ibb Isso, a mais ou menos uns 5 metros, certo?

Coloca o triângulo montado no chão

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

Analiso, então, este dado, a partir da reflexão de Vygotsky, que permite

inferir que MT, ao dizer somente a palavra triângulo - no turno 2 -, acredita que a sua

resposta tenha sido suficiente para expressar o seu pensamento, um pensamento que se

assemelha a um “todo homogêneo” ou a um “complexo significativo”. Nesse contexto,

é necessária a intervenção da cuidadora para que ele fosse desdobrado em palavras e

organizado sintaticamente, intervenções que tinham o objetivo de possibilitar que MT

percebesse que uma palavra não corresponde a uma frase completa e, assim, ajudá-lo na

reformulação de seus enunciados que não surgem plenamente formados.

Vygotsky (1934/1993) reformula o conceito de “fala interior”, a partir do

conceito de “fala egocêntrica”, usado inicialmente por Piaget. Para Piaget, a fala

egocêntrica não exerce nenhuma função no pensamento da criança, limitando-se a

acompanhá-lo. Essa fala se estabeleceria entre um “autismo primitivo” e a “socialização

gradual” do seu pensamento. Ela diminui com o crescimento da criança, juntamente

com a redução do egocentrismo no seu pensamento e em sua fala. Já para Vygotsky, a

constituição do pensamento pela fala percorre o mesmo caminho da formação das

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funções psicológicas superiores: a partir da atividade social, situada no plano

interpsíquico da aprendizagem, em que se dá a relação entre sujeitos, a fala,

anteriormente social, se individualiza através da fala egocêntrica. Esse momento

representa a transição da função interpsíquica para a intrapsíquica da linguagem, quando

acontece a internalização da fala e a formação do pensamento.

Sendo assim, a fala egocêntrica transforma-se em fala interior e se

assemelha a ela quanto à sua função: “não se limita a acompanhar a atividade da

criança, mas está a serviço da orientação mental, da compreensão consciente; ajuda a

superar as dificuldades; é uma fala para si mesmo, íntima e convenientemente

relacionada com o pensamento da criança” (Idem, 1934/1993, p.166). Com a imersão

cada vez maior da criança na linguagem, a fala social se consolida, e a criança passa a

diferenciá-la da fala egocêntrica. A fala egocêntrica, que tem sua estrutura difícil de ser

socialmente compreendida, se torna cada vez mais isolada, independente e autônoma.

O silenciamento característico da fala interior lhe confere uma sintaxe

especial. Parecendo ser desconexa e incompleta ao ser comparada à fala exterior, a fala

interna demonstra uma regularidade que tende “para uma forma de abreviação

específica, em que se omite o sujeito de uma frase e todas as palavras com ele

relacionadas, enquanto se mantém o predicado” (Idem, 1934/1993, p. 172).

Considerando que “a fala interior é para si mesmo; e a fala exterior é para os outros”

(Ibdem, p.164), para o autor, a fala interna “não é de forma alguma fala, mas antes uma

atividade intelectual e afetivo-volitiva, uma vez que inclui os motivos da fala e o

pensamento expresso em palavras” (Ibdem, p.163). Nesse sentido, ela se constitui como

um plano do pensamento verbal que só pode ser compreendido realmente através da

análise de outro plano: o pensamento. O autor ainda afirma que o pensamento tem sua

própria estrutura e dispõe de um fluxo que não é acompanhado por uma manifestação

simultânea da fala. Dessa forma, fala e pensamento são unidades separadas. Não há

correspondência rígida entre pensamento e fala, o que permite que, por trás das

palavras, exista um subtexto, um pensamento oculto, já que não há um equivalente

imediato em palavras.

As reflexões de Vygotsky acerca da fala interna têm relevância para esta

pesquisa a partir do conceito de “rascunho mental” desenvolvido por ele, ao afirmar que

a fala, mas principalmente a escrita, requerem um planejamento - o que acontece pela

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fala interna. Por isso, segundo Vygotsky, a sintaxe da escrita se utiliza de um número

muito maior de palavras do que a da fala, o que justifica a sua maior complexidade com

relação à organização sintática.

A reflexão do autor quanto à importância do rascunho mental para a escrita

e para a fala leva a perceber a complexidade envolvida no eixo fala, leitura e escrita

assumida nesta pesquisa. Nesse sentido, o trabalho com a diferenciação dos significados

para que MT conseguisse maior elaboração de sua fala (e de seus enunciados), a partir

da reflexão de Vygotsky, consistia na principal preocupação no encaminhamento do seu

acompanhamento.

A fala pública, considerada como um desdobramento da fala interna,

convoca a organização do pensamento e o pensamento, por sua vez, permite o

planejamento do que se vai escrever. De acordo com Vygotsky (1934/1993), o

pensamento verbal é gerado pela motivação, pelos interesses e emoções. Por trás de

cada pensamento há uma “tendência afetivo-volitiva” que, quando considerada, permite

a compreensão plena e verdadeira do pensamento do outro (Ibdem, p.187). Essa

reflexão orientou a escolha do tema da proposta que seria realizada com MT.

MT sempre teve muito interesse por carros, motos e mal pode esperar pelo

momento em que poderá dirigir. Conseguir a carteira de habilitação é um dos incentivos

para a superação das suas dificuldades no aprendizado da leitura e da escrita. Esse

desejo é fruto de uma experiência muito próxima de MT, pois, além de gostar de dirigir,

seu pai47 é caminhoneiro e o contexto que envolve a imagem do “caminhão” (mecânica,

limpeza, manutenção), lhe desperta interesse.

Na simulação da troca do pneu experienciada pela fala, descrevemos e

narramos oralmente como manipular e como usar cada equipamento envolvido na

operação, a partir das informações que eu e ele tínhamos sobre o assunto: como montar

o triângulo de segurança, a necessidade de colocá-lo a uma distância do carro que dê

certa segurança ao procedimento da troca do pneu (com relação a um suposto carro que

venha na direção do carro em manutenção); como girar a manivela do macaco (pois o

47 Nesse momento, como preparação para o encontro que iria acontecer na semana seguinte, pedi a MT que conversasse com seu pai para que ele lhe mostrasse como se troca um pneu de caminhão. As informações que ele traria poderiam ampliar a nossa discussão sobre a troca do pneu. No entanto, o pai de MT não deu importância a esse pedido que lhe havia sido feito e, desta forma, não conversou com MT sobre o assunto. Já foi discutido anteriormente, a partir de Lahire (1993; 1995/2008) e da ND, a importância do sentido atribuído pela família às vivências e aprendizagens de crianças/jovens.

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seu encaixe é de difícil manipulação, sendo preciso liberar a manivela para poder usar o

macaco) e onde ele deveria ser encaixado no carro; como proceder com a chave de roda

(no caso de não se ter força para destravar o parafuso é preciso subir sobre a chave de

roda para conseguir girá-lo, o que deve ser feito somente o suficiente para destravar o

parafuso a fim de não desencaixar o pneu antes de elevar o carro com o macaco); quais

procedimentos realizar primeiro; quais as consequências de realizá-los em momento

errado (como por exemplo, girar os parafusos do pneu depois do carro suspenso com o

macaco, pode fazer com que o carro sofra uma queda).

Enquanto imaginávamos como se daria a troca do pneu, os equipamentos

foram sendo retirados do porta-malas do carro e colocados na calçada. Nesse momento,

contamos até com a atenção da vigilância do campus, quando um vigilante de moto,

vendo a cena da troca do pneu, parou e nos perguntou se estava tudo bem e se

precisávamos de ajuda.

Nomeamos e separamos os equipamentos envolvidos na operação, momento

em que verifiquei qual era o léxico e os significados que já eram do domínio de MT, o

que me permitiu orientar o trabalho para a formulação dos enunciados.

Para proporcionar mais um momento de reflexão e pensamento a partir

da fala, elaboramos uma lista dos nomes dos equipamentos envolvidos na operação

(Dado 8), quando retomamos oralmente o que já havíamos discutido sobre cada etapa da

operação da troca do pneu.

Dado 8: 12/06/2012 – “Preparação para a escrita do texto: Como trocar pneu”.

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

COMO TROCAR PNEU

PNEU TRIÂNGULO MACACO CHAVE DE RODA SETA PISCA ALERTA FREIO DE MÃO

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A escrita das palavras desta lista aconteceu pela mediação da linguagem

através da cuidadora que, palavra por palavra, orientou a sua escrita. Nesse momento,

MT já apresentava mais autonomia para estabelecer a relação entre a percepção do som

da letra na palavra e a letra que deveria usar. Dessa forma, ao escrevermos a primeira

sílaba da palavra macaco, MT já associava as letras m e a. No entanto, ainda era preciso

orientá-lo na escrita da palavra quanto à ordenação das sílabas e também ajudá-lo a

perceber quando deixava de colocar uma letra na palavra.

A continuidade do trabalho aconteceu com a escrita do texto, momento em

que foi orientado para a transição da variedade de fala de MT para a variedade padrão

(conforme já abordado no primeiro capítulo), representada pela norma padrão da língua.

Dado 9: 16/08/2012 – “Escrita do texto: Como trocar pneu”

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

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1- DÊ SETA E ENCOSTE O CARRO 2- LIGUE O PISCA-ALERTA 3- COLOQUE O TRIÂNGULO (A MAIS OU MENOS) 5 METROS (DE DISTÂNCIA) LONGE DO CARRO 4- SEPARE O ESTEPE, A CHAVE DE RODA E O MACACO E DEIXE AO LADO DO CARRO 5- SOLTE OS PARAFUSOS E LEVANTE O CARRO COM O MACACO. TIRE OS PARAFUSOS, TIRE O PNEU E COLOQUE O ESTEPE 6- COLOQUE OS PARAFUSOS 7- ABAIXE O CARRO E APERTE BEM OS PARAFUSOS 8-GUARDE O MACACO E A CHAVE DE RODA 9-POR ÚLTIMO GUARDE O TRIÂNGULO

Em mais quatro encontros, finalizamos o texto. No entanto, era preciso

que o digitássemos no computador para que fosse publicado na Revista do CCazinho48,

momento em que algumas reelaborações foram realizadas.

Dado 10: 27/11/201249 - “Digitação do texto: Como trocar pneu”

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

O trabalho com a digitação foi muito importante diante de algumas

observações que foram norteadoras da elaboração das etapas seguintes do

48 Como finalização do trabalho dos encontros coletivos do CCazinho do ano de 2012, foi realizada uma compilação dos textos escritos pelos participantes do grupo que seriam publicados na Revista do CCazinho. Em meio à realização dessa atividade houve, nos encontros coletivos do CCazinho, como atividade de escrita para o grupo, a proposta de se fazer uma revista. Essa revista tem por finalidade a socialização e circulação das produções textuais das crianças/jovens do CCazinho tanto dos acompanhamentos individuais quanto de grupo. 49 O distanciamento de mais de 3 meses entre o início da escrita deste texto e a sua finalização aconteceu pelas faltas consecutivas de MT ao CCazinho (por diferentes motivos).

COMO TROCAR PNEU 1- DÊ SETA E ENCOSTE O CARRO 2- LIGUE O PISCA-ALERTA 3- COLOQUE O TRIÂNGULO A MAIS OU MENOS 5 METROS DE DISTÂNCIA DO CARRO 4- SEPARE O ESTEPE, A CHAVE DE RODA E O MACACO E DEIXE AO LADO DO CARRO 5- SOLTE OS PARAFUSOS E LEVANTE O CARRO COM O MACACO. TIRE OS PARAFUSOS, TIRE O PNEU E COLOQUE O ESTEPE 6- COLOQUE OS PARAFUSOS 7- ABAIXE O CARRO E APERTE BEM OS PARAFUSOS 8-GUARDE O MACACO, A CHAVE DE RODA E O PNEU 9-POR ÚLTIMO GUARDE O TRIÂNGULO

MT

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acompanhamento longitudinal de MT: embora já tivéssemos realizado outras atividades

usando o computador, foi nesse momento que observei que o conhecimento de MT

sobre os procedimentos e estratégias de uso desse equipamento havia sido ampliado, de

modo que valorizar tal conhecimento passou a ser o objetivo dos nossos encontros.

Dessa forma, era ele quem ligava o equipamento, localizava os arquivos, salvava-os no

pen-drive (que ele mesmo providenciou, emprestado de uma prima), além de usar de

forma autônoma os recursos do Word para a escrita do texto. O uso e a autonomia de

MT em relação à tecnologia foram elementos que muito contribuíram para a

continuidade do seu processo de aprendizagem de leitura e de escrita que, nesse

momento, depois de tantas dificuldades, se mostrava fortalecido. Assim, a sua

autonomia em lidar com o computador tinha o pen drive como um elemento importante.

Dessa forma, MT, ao chegar ao CCazinho, antes do início dos encontros, usava o seu

pen drive para mostrar informações que eram do interesse dele e dos amigos, como

imagens de carros e de motos, o que também acontecia na escola quando lhe era

permitido o acesso ao computador.

Retomo brevemente que, diante de suas complicadas relações psicoafetivas

envolvendo a escola e a família, neste ano de 2012, houve uma nova conformação de

seus relacionamentos escolares e sociais. MT começou a ter amigos, relações, agora

motivadas também pela sua nova relação com a leitura e com a escrita e com o uso de

computador. No entanto, mesmo sabendo do uso do pen drive em nossos encontros e da

sua importância para MT, BT, o devolveu à prima de MT sem a preocupação de me

avisar antecipadamente (para que eu providenciasse outro), ou de acordar com MT a

compra de outro. Ela justificou para mim que compraria outro pen drive, o que não

aconteceu. Esse episódio aparentemente sem importância é revelador das situações

vividas por MT quanto ao investimento afetivo que faz em seu processo de

aprendizagem que continua não sendo valorizado pela família. É, portanto, um episódio

que, a partir das considerações de Lahire (1993; 1995/2008) sobre a importância da

criança não vivenciar sozinha as suas experiências, evidencia também as contradições

das atitudes de BT que, nesse momento, por algum motivo, se mostra desrespeitosa em

relação às conquistas de MT, pelas quais tanto lutou.

Finalizando este capítulo, apresento um conjunto de dados falados e

escritos, ocorridos em virtude do incêndio na biblioteca do IEL, em março de 2013. MT

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conhece essa biblioteca, já estivemos em suas dependências algumas vezes para realizar

atividades de leitura e de escrita. Por ocorrência do acidente, ele me perguntou o que

havia causado o incêndio, o que havia sido incendiado etc., interesse que norteou o

planejamento dos encontros subsequentes.

Para orientar e para enriquecer nossa discussão quanto ao episódio do

incêndio, selecionei alguns textos, como reportagens de jornal e o e-mail enviado aos

alunos pelo responsável pela biblioteca do IEL, sobre os encaminhamentos e

andamentos da investigação sobre o incêndio. Como eram muitas as informações,

elaboramos em tópicos, como um esquema, uma síntese das informações relevantes

sobre o que havíamos lido. Esta atividade teve como objetivo que MT retomasse

oralmente os diversos aspectos abordados sobre o assunto. Nesse momento, não havia a

preocupação com a escrita (por isso fui eu quem escreveu o texto/esquema) e nem com

a ordenação desses assuntos (o que foi feito com a numeração das frases).

Dado 11: 02/04/2013 - “Incêndio no IEL: preparação para a escrita do texto”

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

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INCÊNDIO NO IEL

2- REDE ELÉTRICA DO COMPUTADOR 1- NO TÉRREO – NA SALA DA DIRETORIA, ÀS 5 DA MADRUGADA 5- PEGOU FOGO NOS LIVROS QUE ESTAVAM NA PARTE DA FRENTE DO PRÉDIO 6- VAI DAR PARA SUBSTITUIR OS LIVROS PERDIDOS 3- TERIA QUE TER ALARME DE INCÊNDIO, DETECTOR DE FUMAÇA, MANGUEIRA DE INCÊNDIO E SAÍDA DE EMERGÊNCIA 8- NA BOATE KISS, O COMBUSTÍVEL ERA O ISOPOR, E NO IEL ERAM OS LIVROS 7- OS ALUNOS DO IEL FIZERAM PROTESTO PARA ARRUMAREM LOGO A BIBLIOTECA 4- SE UM ALUNO ESTIVESSE COM FONE DE OUVIDO NO COMPUTADOR NA HORA DO INCÊNDIO, IRIA MORRER 9- BIBLIOTECA FUNCIONANDO PARA A BIBLIOTECA VOLTAR A FUNCIONAR, FORAM INSTALADAS DUAS PORTAS DE EMERGÊNCIA ANTI-PÂNICO E UMA ESCADA EXTERNA PARA EVACUAÇÃO RÁPIDA

Esse esquema com as informações sobre o que havíamos lido teria a função

de organizar o texto que escreveríamos em seguida, quando, através de um “rascunho

mental”, planejaríamos a sua escrita. Entretanto, em função da continuidade do trabalho

com MT quanto aos desdobramentos de sua fala em enunciados que permitissem ao

outro compreendê-lo, direcionei a atividade para este fim. Apresento, então, o Dado 12,

que mostra as minhas intervenções no processo de elaboração de fala de MT como um

“falar não somente de um saber prévio de recursos expressivos disponíveis, mas de

operações de construção de sentidos destas expressões no próprio momento da

interlocução” (GERALDI, 1991/2003, p.9).

Dado 12: 23/04/2013 – “Diálogo sobre o incêndio no IEL entre Ibb e MT”

Turno Sigla do

Locutor Transcrição50 Observações sobre o

enunciado verbal Observações sobre o enunciado não verbal

1 Ibb Então vai lá, conta pra

mim, é sobre o quê?

2 MT Um incêndio Olha para baixo e mexe constantemente o ombro para frente e para trás

3 Ibb Um incêndio...

4 MT No IEL Permanece olhando para baixo e mexendo constantemente o ombro para frente e para trás

5 Ibb No IEL. E aí, o que você sabe sobre esse incêndio? O que causou esse incêndio?

50 Cf. nota nº42.

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6 MT É, a rede elétrica... Diminuindo a tessitura da frase

Levanta o olhar e continua mexendo constantemente o ombro para frente e para trás

7 Ibb Fala tudo!

8 MT A energia... Mexe na cadeira em que está sentado

9 Ibb A energia... da rede elétrica

10 MT O fio do computador.

11 Ibb Hã? O que aconteceu?

12 MT Pegou fogo Mexe na cadeira em que está sentado

13 Ibb Por quê? Pára de mexer! Deu um \ //

14 MT Curto Apoia a cabeça sobre a mão

15 Ibb Isso. Um curto circuito. Pegou fogo, e aí?

16 MT Na sala da diretoria Permanece com a cabeça apoiada sobre a mão

17 Ibb Isso. Pegou fogo na sala da diretoria... quando, que horas?

18 MT Ah, que horas eu não sei! Levantando a cabeça para falar

19 Ibb Às 5 da manhã?

20 MT Domingo Fala quase inaudível 21 Ibb Hã? Com a intenção de que ele

levantasse a sua cabeça

22 MT Domingo! 23 Ibb No domingo. E aí, como é

que foi?

24 MT Aí chamou o corpo de bombeiros... e \:

Abaixando a cabeça Sentado com o corpo solto sobre a cadeira

25 Ibb E? 26 MT Apagou o fogo. Mexe na orelha 27 Ibb Aí eles apagaram o fogo.

Quem que chamou o corpo de bombeiros?

28 MT Os... os [g]... Os guardas 29 Ibb Os guardas da \: Permanece mexendo na

orelha 30 MT Do IEL 31 Ibb Daqui da Unicamp, né?

Muito bem. E aí, o que o fogo fez, como é que foi o estrago?

32 MT Queimou tudo. 33 Ibb Então me fala, você sabe

bastante coisa sobre isso

34 MT Queimou... Queimou livros... computador... umas pastas

Tom de enumeração

Ibb E \ :

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5

6 MT Só

7 Ibb Mas foi no IEL inteiro?

38 MT Não, na sala da diretoria e lá na frente.

39 Ibb Então foi só numa parte do IEL

40 MT No térreo 41 Ibb No térreo, muito bem. E

quanto de livro queimou, como é que é?

42 MT De livro eu não sei não Apoia a cabeça sobre a mão

43 Ibb O que precisa ter no IEL... 44 MT Na biblioteca? Permanece com a cabeça

apoiada sobre a mão 45 Ibb Na biblioteca 46 MT Entra + saída de

emergência Fala a palavra entrada até a 2ª sílaba, quando inicia a palavra saída

47 Ibb Hum... 48 MT Sa \: \ // alarme Fala a 1ª sílaba da palavra

saída, pára, e inicia a fala da palavra alarme

49 Ibb Hum, hum... 50 MT Detector de fumaça e

mangueira Olha o texto que

havíamos lido 51 Ibb Mangueira de incêndio,

né?

52 MT Só 53 Ibb E por que que no e-mail

que a gente leu ele fala da Boate Kiss51lá do... o que aconteceu, explica pra mim

54 MT As pessoa morreu Apoia a cabeça sobre a mão

55 Ibb As pessoas morreram 56 MT Intoxicadas 57 Ibb Na boate 58 Ibb Na boate, que fica? 59 Ibb Faz sinal

com a cabeça de que não sabe a resposta

60 MT No sul do Brasil... Ao mesmo tempo em que responde faz sinal de que não sabe com a cabeça

61 Ibb Sul do Brasil Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

51 Lemos um artigo escrito por um estudante, comparando as causas do incêndio acontecido na biblioteca do IEL na Unicamp com o acontecido na Boate Kiss, no sul de nosso país, acidente que ocorreu no mês anterior ao da biblioteca e sensibilizou todo o país pela morte de muitos jovens.

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Minhas intervenções na fala de MT, as leituras e discussões dos textos sobre

o episódio do incêndio, possibilitaram a ampliação de seu sistema de referências, o que

pode ser observado através do uso que faz com sentido de novos recursos expressivos,

como os itens lexicais mais complexos: detector de fumaça e mangueira (turno 50), e

intoxicadas (turno 56). Resgato ainda, através desse dado, sua grande mudança com

relação à memória, imaginação, criatividade, atenção, regulação do próprio

comportamento (as chamadas Funções Psicológicas Superiores).

Chamo atenção, também, para o turno 46 do dado apresentado, como

representativo, nesse momento, da organização de pensamento de MT a partir da fala

reveladora da atividade linguística e das operações interiores realizadas pelo sujeito

(FRANCHI, 1977/1992): MT, querendo dizer a palavra saída, primeiramente pensa na

palavra entrada, chegando a dizer parte dessa palavra (entra), interrompendo sua fala e

dizendo em seguida, saída (para se referir à saída de emergência). Nesse episódio, é

possível observar a reorganização daquilo que MT queria expressar ao retomar sua

própria fala. Este aspecto da linguagem que permite que o sujeito remaneje o que seria

fixo e definitivo é chamado por Franchi de atividade epilinguística52, atividade, como

vimos, que supõe um retorno da atividade linguística a si mesma e que estabelece

“relação entre os esquemas de ação verbal interiorizados pelo sujeito e a sua realização

em cada ato do discurso” (Ibdem, p.32).

Um acontecimento relevante nesse ano é que MT iniciou um

acompanhamento psicológico. Sua mãe, embora tenha conseguido também a vaga para

ser atendida em uma clínica do setor público, não se propõe a fazer o acompanhamento.

MT, constituído, agora, também, por novas referências e, portanto, com

novas possibilidades de aprender, consegue, enfim, encontrar função social da escrita. O

Dado 13 ilustra o texto multimodal elaborado por mim e MT para ser partilhado com as

crianças/jovens do acompanhamento em grupo.

52 Cf. nota nº 12.

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Dado 13: 18/06/2013 – “Texto final: Incêndio no IEL”

INCÊNDIO NO IEL

PEGOU FOGO NA BIBLIOTECA DO IEL, NA SALA DA DIRETORIA QUE FICA NO TÉRREO DO PRÉDIO.

O INCÊNDIO ACONTECEU POR CAUSA DE UM CURTO CIRCUITO NA REDE ELÉTRICA DO COMPUTADOR

ENTRADA DA BIBLIOTECA INTERDITADA SALA DA BIBLIOTECA INCENDIADA

É PRECISO QUE O PRÉDIO TENHA ALARME DE INCÊNDIO, DETECTOR DE FUMAÇA, MANGUEIRA DE INCÊNDIO E SAÍDA DE EMERGÊNCIA, PORQUE SE UM ALUNO ESTIVESSE COM FONE DE OUVIDO NO ÚLTIMO ANDAR NA HORA DO INCÊNDIO, IRIA MORRER.

A FALTA DE EQUIPAMENTOS DE SEGURANÇA FEZ COM QUE MUITAS PESSOAS MORRESSEM EM UM INCÊNDIO QUE ACONTECEU NUMA BOATE NO SUL DO BRASIL. NA BOATE O COMBUSTÍVEL DO FOGO ERA O ISOPOR DO TETO, E NA BIBLIOTECA DO IEL ERAM OS LIVROS.

SALA DE ESTUDO – 3º ANDAR

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NA BIBLIOTECA, O FOGO QUEIMOU SOMENTE OS LIVROS QUE ESTAVAM NA PARTE DA FRENTE DO PRÉDIO E QUE PODERÃO SER SUBSTITUÍDOS.

LIVROS INCENDIADOS

ENTRADA DA BIBLIOTECA

OS ALUNOS DO IEL FIZERAM PROTESTO PARA QUE A BIBLIOTECA FOSSE LOGO

ARRUMADA. 49 DIAS DEPOIS DO INCÊNCIO, A BIBLIOTECA VOLTOU A FUNCIONAR. FORAM

INSTALADAS DUAS PORTAS DE EMERGÈNCIA ANTI – PÂNICO E UMA ESCADA EXTERNA PARA EVACUAÇÃO RÁPIDA

PORTA ANTI-PÂNICO ENTRADA PROVISÓRIA DA BIBLIOTECA

MT

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

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Esse texto sintetizou as discussões realizadas sobre o assunto e finalizou

essa etapa do trabalho com MT. O domínio de outra variedade linguística em seu meio

social resultou em muitas de minhas intervenções na elaboração da escrita do texto.

Sendo o uso da tecnologia um elemento que facilitava e motivava MT na

realização das atividades, a escrita desse texto aconteceu diretamente no computador

usando o programa Word. A escrita no computador, como já mencionei, possibilitava

que fosse priorizada a correspondência entre o som da letra na palavra e o desenho da

letra, sem precisar ser considerado, nesse momento, o traçado da letra (em relação às

impressões motoras recebidas pela mão) que é fornecido pelo teclado do computador.

As relações entre o desenho da letra, o seu som na palavra, o seu nome e seus aspectos

motores ainda precisavam, por vezes, de orientação para que se concretizarem em

escrita, embora ele se mostrasse, em relação a isso, cada vez mais autônomo.

Esse trabalho teve relevância pelo uso da tecnologia que envolveu: o uso do

celular para tirarmos as fotos do entorno da biblioteca; a escrita do texto diretamente no

computador e o uso dos recursos do Word para seleção, edição e inserção das fotos no

texto. A leitura dos recursos do programa computacional utilizado se faz por meio de

ícones, por inteiro, ou seja, uma leitura que lê a palavra sem decompô-la em unidades

menores53, o que abrange uma relação de espacialidade na visualização/leitura da

palavra como um todo - mas em alguns momentos é preciso uma leitura mais

minuciosa. Nessa situação, a mediação da cuidadora permitiu que MT percebesse que

conseguia – com o que já sabia sobre leitura e escrita – transitar no universo dos

recursos tecnológicos.

Enquanto isso na escola...

53 Ver discussão realizada sobre soletração no início desse capítulo quanto à importância da combinação e decomposição das palavras em unidades menores.

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Dado 14: (23/02/2012) - “Atividades realizadas por MT na escola”

Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

... MT realiza atividades encontradas em “Revistas de Passatempo”

vendidas em bancas de jornal. Atividades estas que não proporcionavam novas

aprendizagens a ele e por isso são reveladoras da concepção presente em grande parte

das escolas que não consideram possível o aprendizado de crianças e jovens como MT,

estigmatizadas socialmente como sujeitos incapazes de aprender.

A finalização do texto apresentado no Dado 13 tinha como proposta a sua

apresentação ao grupo de crianças do CCazinho (nos encontros coletivos), quando seria

elaborada uma exposição usando os recursos do computador e também seria entregue a

cada criança uma cópia do texto. Para tanto, seria proposto a MT a reescrita desse texto,

o que seria produtivo para o trabalho com a elaboração da linguagem padrão e com o

uso dos recursos compatíveis com essa variedade. Infelizmente, esse trabalho não foi

possível de ser efetuado, porque, em agosto de 2013, MT desistiu de frequentar o

CCazinho. Ele alegou não querer mais ir aos encontros individuais e coletivos, decisão

que foi apoiada por sua psicóloga mediante o argumento de que era preciso respeitar as

vontades de MT. Em consonância com essa decisão, houve a opinião de seu

neurologista que, nas palavras da mãe de MT, afirmou que “fazer o que não temos

vontade não nos leva a nenhum aprendizado”.

O que será que vai aparecer? Descubra ligando os numerais de 1 a 5.

JOGO DOS ERROS Descubra as OITO diferenças entre os dois desenhos.

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Durante o acompanhamento de MT, 3 anos incompletos, em alguns

momentos, ele desanimava, como é natural em processos longos e complexos como o

seu. Como vemos pelos dados, MT se tornou um interlocutor diferente, com diferentes

histórias para contar e ultrapassou muitas de suas dificuldades tanto em relação à

aprendizagem quanto em ganho de autonomia: desde abril, ele vinha sozinho para o

CCazinho de ônibus e isso só foi possível porque passou a transitar também pelo

universo escrito. A autonomia de MT está mais ampliada e reconhecida também pela

família: sua mãe conta que agora MT consegue entrar em uma loja e pedir a roupa ou

sapato que quer experimentar, além de fornecer ao vendedor as informações necessárias

(como o número de seu calçado e de sua roupa).

A interação com MT, como mencionado na apresentação dessa dissertação,

além de me inserir como pesquisadora nos estudos da ND repercutiu diretamente no

meu papel social de professora da Educação Infantil, como passo a relatar no próximo

capítulo.

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CAPÍTULO 4 - A interlocução na Educação Infantil

A Educação Infantil (EI) é um momento do percurso da criança em que

ocorrem suas primeiras significações baseadas nas interlocuções, oriundas de um

ambiente diferente do ambiente familiar, incluindo outro sistema de relações (com o

professor e com seus pares) e também outro sistema de regras (escolares). É na EI que

ocorrem as primeiras experiências da criança, ainda que de forma indireta, com a leitura

e com a escrita significadas, principalmente, na interlocução com o professor. Sabe-se

que a alfabetização não é a proposta principal desse período, mas as significações que a

criança atribui às atividades que envolvem ler e escrever podem ser determinantes para

a sua relação com a Escola como instituição.

Para evidenciar a importância das vivências da criança na EI apresento, a

partir de minha experiência como professora e dos aportes teóricos da ND, a análise de

uma atividade comumente realizada nas salas de EI - “Roda de conversa”-, entendendo-

a como uma prática discursiva que prioriza a interlocução como condição diferenciada

para o processo de subjetivação dos alunos.

4.1. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental: aspectos legais

A EI abrange o primeiro período da criança na escola entre as idades de

quatro meses e seis anos54. Para se compreender os objetivos e a forma como a Política

Educacional voltada para a EI a estrutura, se faz necessário também conhecer os

princípios que orientam o Ensino Fundamental (EF), segmento posterior à EI. A

mudança no Plano Nacional de Educação orientada pela Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional nº 9394 do ano de 1996, institui a transferência do último ano de

escolarização da criança na EI para o primeiro ano do EF, que passa a receber crianças

aos seis anos de idade. Assim, o EF passou a ser organizado para ter a duração de nove

anos. A implantação desse plano em território nacional coaduna com a busca do

Governo Federal em avançar mais um passo em direção à universalização do ensino no

Brasil.

54 No sistema escolar organizado pela Prefeitura Municipal de Campinas, as crianças que completam 6 anos até o final de março são encaminhadas para o Ensino Fundamental, diferentemente, aquelas que completarem 6 anos depois desse mês permanecem no último ano da Educação Infantil.

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Assim, nesse contexto Político Educacional, as crianças, aos cinco anos de

idade, se encontram em uma fase educacional que antecede a formalização e a

sistematização da alfabetização a ser iniciada no primeiro ano do EF. Desta maneira, na

Rede Municipal de Ensino da cidade de Campinas, a EI se constitui como um período

no percurso escolar da criança que objetiva a familiarização destas com as práticas de

leitura e de escrita e, sobretudo, busca promover o contato com diferentes gêneros

textuais.

De maneira geral, o trabalho realizado na EI é norteado pelas brincadeiras e

atividades que priorizam o jogo simbólico. Entretanto, o caráter lúdico e menos formal

dessas atividades e brincadeiras não diminui a importância de tais propostas em relação

às oferecidas no EF, por priorizarem a alfabetização; ao contrário, os processos

subjetivos nelas envolvidos são os alicerces para o enfrentamento, pela criança, das

dificuldades inerentes ao percurso escolar propriamente dito.

Além disso, a grande importância da EI está no fato de que é nela que

acontecem as primeiras experiências da criança com um ambiente marcado como

diferente do que ela frequentou até então, ou seja, ambientes familiares. Portanto, para

além do contato da criança com atividades tipicamente escolares mediadas pelo

professor e permeadas pela leitura, escrita e matemática, trata-se também de a criança se

adaptar a novas regras vinculadas à Escola, como instituição, ao professor e aos colegas

de classe. Este novo ambiente passa, então, a ser significado não só pelas possibilidades

de aprendizagem, mas pelas significações psicoafetivas que dele emanam. Retomando

os estudos de Vygotsky (1928/1997), não podemos pensar a Escola relacionando-a com

um espaço destinado apenas a processos de cognição/intelecto, pois a promoção na

criança de processos do intelecto é indissociável do afeto.

No entanto, no Brasil, a EI não é valorizada historicamente nem pela área de

Educação e nem pela família como um lugar de aprendizagens importantes. A ideia

consensual sobre este período escolar carrega ainda uma visão paternalista de que os

profissionais nela envolvidos exercem o papel de apenas cuidar e proteger fisicamente a

criança enquanto os pais trabalham. Com isso perde-se de vista que é justamente nos

primeiros anos de vida que acontece o ápice da plasticidade cerebral (GOLDBERG,

2006), no qual a linguagem e os processos de mediação têm fortíssima influência.

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Contudo, costuma-se entender o início do processo de alfabetização da

criança a partir da sua relação direta com o lápis e com as letras, como se as diferentes

linguagens vivenciadas por ela não fizessem parte desse processo. Segundo Luria

(1979/2001), a aprendizagem da escrita pela criança está relacionada ao período que ele

denomina de “pré-história” da escrita, no qual a criança elabora técnicas primitivas que

se assemelham à escrita, técnicas que são culturalmente elaboradas e podem explicar

sobre as circunstâncias que tornaram a escrita possível:

“Se formos capazes de desenterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante instrumento para os professores: o conhecimento daquilo que a criança era capaz de fazer antes de entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer deduções ao ensinar seus alunos a escrever” (LURIA, 1979/2001, p.144).

Entretanto, quando a EI (Escola, professor) fica marcada culturalmente pelo

exercício da função cuidadora, ocupando-se, quase que exclusivamente, dos cuidados

dirigidos ao corpo da criança, se reproduz historicamente uma desvalorização da voz

dos profissionais que dela se ocupam. O retorno da fala desses profissionais às famílias

sobre seus filhos fica, assim, reduzido às informações quanto à condição física da

criança e seu comportamento. Ainda, ressalto que observar o desenvolvimento

neuropsicomotor infantil é muito importante, afinal, a surdez, o autismo ou outras

doenças degenerativas podem sinalizar seus sintomas na fala, na linguagem, na parte

motora da criança.

Observa-se, então, que, na EI, frequentemente, a noção da criança como um

sujeito que se desenvolve e que se descobre intelectual e afetivamente em meio a

diferentes atividades e diferentes relações dialógicas, fica apartada, por vezes, de uma

observação pedagógica destinada a regular o comportamento e o desenvolvimento físico

da criança: ela está dentro do esperado diante de seus pares, ela se adaptou bem, ela se

alimenta na escola etc. De tal modo, não é fácil tornar compreensível para a família e,

muitas vezes, para os próprios professores, a relação complexa e/ou específica existente

entre as inúmeras atividades lúdicas e as aprendizagens desenvolvidas com as crianças

na EI, principalmente, as que se referem à linguagem, à imaginação e à interpretação do

mundo em que vivem, que comumente são consideradas como naturais do

desenvolvimento biológico de uma criança normal.

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4.2. O trabalho discursivamente orientado na EI: “Roda de conversa”

O conceito de interlocução vem sendo referido em diferentes momentos

neste trabalho, especialmente, na apresentação e discussão do acompanhamento

longitudinal de MT. Vimos, então, a partir de Benveniste (1966/1991) que a

interlocução instaura a subjetividade pela presença do sujeito na linguagem marcado

pelo uso do eu frente à alteridade instaurada pela relação com o outro. Neste

acontecimento, entram outros aspectos linguísticos mantenedores do espaço de

interlocução como a demonstração de interesse, a manutenção do olhar entre os

interlocutores.

Assim, a ND, como vimos, se afina com Geraldi (1991/2003) quando este

autor afirma que a interlocução é entendida como um espaço de produção de linguagem

e constituição de sujeitos que acontece pela fala, quando são acionados os vários

processos constitutivos e cognitivos responsáveis pela possibilidade de aprendizagem da

criança. Ainda, segundo Coudry e Freire:

(...) na interlocução importam as relações que nela se estabelecem entre sujeitos falantes de uma língua, dependentes das histórias particulares de cada um; as condições em que se dão a produção e interpretação do que se diz; as circunstâncias histórico-culturais que condicionam o conhecimento partilhado e o jogo de imagens que se estabelece entre os interlocutores (COUDRY e FREIRE, 2010b, p.23 e 24).

Considerando, assim, a perspectiva discursiva como norteadora do trabalho

que realizo na EI, tomo a interlocução como ponto de partida para organização, análise

e avaliação de várias atividades que proponho à minha turma infantil, tais como: jogos

de montar, pintura, desenho, receitas culinárias, dramatização etc. Porém, dentre tais

atividades, a “Roda de conversa” é a proposta que prioriza, por excelência, a relação

entre os interlocutores e os processos nela envolvidos.

Para compreendermos historicamente a proposta “Roda de conversa”,

retomarei, brevemente, os estudos de Celestian Freinet datados de 1920. Para Freinet, a

atividade “Roda de conversa” é voltada para a promoção da proposição livre expressão,

que tem como fundamento o respeito e a valorização à maneira como cada criança dá

sentido à sua relação com o mundo, seja pela fala ou por outras linguagens como

desenho, pintura etc. Nessa proposta, o diálogo, a voz dos alunos e suas necessidades

são os norteadores de ações educativas na escola, princípios que rompem de forma

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radical com a prática de ensino tradicional, concepção hegemônica nas escolas da

época, pautada no monólogo do discurso do professor e nas suas decisões em relação à

organização do processo de aprendizagem do aluno.

Em contrapartida aos objetivos norteadores da concepção tradicional de

ensino, a “Roda de conversa”, tal como proposta freinetiana, começou a ser difundida

no Brasil por volta de 1970. No entanto, a forma como atualmente é usada por muitos

professores se distanciou da proposta originalmente elaborada por Freinet, adquirindo

outro contorno sendo, de maneira geral, destinada a discussão ou apresentação de uma

tarefa a ser realizada em sala de aula.

Ryckebusch (2011) também analisa as práticas atuais da atividade “Roda de

conversa” na EI, entendendo que a concepção de linguagem oral assumida pelos

professores é uma visão naturalizada de linguagem vinculada a uma concepção

espontaneísta considerada como suficiente para que os processos linguísticos presentes

na interlocução sejam trabalhados. Na reflexão da autora, tal atividade fica caracterizada

como um “bate papo” sem que haja, por parte do professor, intenções ou

direcionamento para diferentes temas apontados pelos processos dialógicos, nos quais o

grupo (crianças e professor) se encontra envolvido. Ainda para a autora, nesse contexto,

as crianças, sem serem reconhecidas como sujeitos e sem terem suas falas significadas

pelo professor, perdem a vontade de falar e silenciam, aderindo, assim, aos sentidos

impostos pelo monólogo do professor, o que representa a anulação desta criança

enquanto sujeito na relação.

De fato, observo tal acontecimento na realidade escolar que partilho com

outros professores e essa prática que deveria proporcionar a troca de experiências, o

diálogo e a reverberação de uma memoria social torna-se uma “falação” endereçada a

nenhum interlocutor, o que ainda assim é considerado por esses professores um trabalho

com a linguagem oral.

Entretanto, nas práticas do grupo (professor e crianças), falantes naturais de

uma mesma língua, percebe-se que há um ponto de divisão tênue, muito fácil de ser

perdido de vista, distinguindo a “falação” de uma “Roda de conversa”. A participação

ativa da criança na roda de conversa implica em aguardar o seu momento para falar,

além disso, compreender o que o outro está dizendo, relacionar a ideia ouvida ao que já

se sabe e já se conhece, não esquecer aquilo que queria dizer enquanto espera a sua vez

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de falar e, por fim, querer socializar o que pensou e enfrentar essa exposição, o que para

muitas crianças é difícil.

Interferem, nesse processo, a possibilidade de cada participante do grupo

escutar o outro e ser escutado, o que em nossa cultura não parece muito valorizado pela

Escola e pela Família. Desde a EI, o aluno brasileiro convive com o cenário em que as

falas se sobrepõem umas as outras e os próprios participantes não conseguem se escutar.

Na continuidade do percurso escolar da criança em ciclos posteriores quando a atenção

à fala do professor é imprescindível, aquele comportamento socialmente construído,

torna-se, por parte das crianças, sintomas de déficit de atenção ou distúrbio de

aprendizagem e, em contrapartida, por parte dos professores, distúrbios vocais e/ou

psíquicos devido aos desgastes provocados pelas tentativas de controlar o

comportamento de seus alunos em classe.

Freinet (1977) orienta que o professor faça intervenções na prática da Roda

de Conversa favorecendo a troca de experiência, o diálogo entre os interlocutores

devendo ser considerada a história de vida de cada um, bem como, o papel que cada

criança exerce dentro do grupo. De tal modo, o professor pela interlocução, atribui

sentido à fala da criança ao considerá-la como sujeito na relação com ele e com o grupo,

possibilitando o diálogo e a troca de experiências entre as crianças. Diferentemente, em

uma roda que se assemelha a uma falação ou a um bate-papo, as diversas falas das

crianças não teriam efeito sobre o professor e nem sobre as demais crianças.

Conforme explicitado antes, o trabalho do professor na “Roda de conversa”

não se resume em deixar as crianças falarem inconsequentemente, por outro lado, não é

o de assumir o lugar da voz determinante, mas, sobretudo de validar o papel do

professor como o do adulto mais experiente desta relação, do formador, daquele que

possibilita, à criança, vivências de aprendizagens em relação a certo saber formalizado,

portanto, escolar.

Trata-se, também, de desenvolver, com sutileza, a aproximação entre as

vivências familiares e as práticas escolares, sem que haja um engessamento, por parte

do professor, gabaritando todos os temas desenvolvidos pelo grupo em propostas

escolares. O que está em jogo aqui é o conhecimento do professor em relação aos

processos linguísticos envolvidos nessa prática e a sua habilidade em aproximar o

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conteúdo a ser trabalhado dos interesses e necessidades da criança, o que é descoberto

através da construção do conhecimento mútuo, como já visto anteriormente.

Sendo assim, assuntos trazidos pelas crianças como, por exemplo, o

acontecimento do machucado que ardeu ao ter sido devidamente lavado - possibilitaria a

discussão, adaptada à idade e experiências cotidianas das crianças, sobre a ação das

bactérias em nossa vida. Relembrando que a EI é a porta de entrada da criança para a

instituição Escola, atividades assim conduzidas costumam favorecer positivamente a

significação da Escola pela criança, bem como a sua adaptação a essa instituição como

uma ponte que possibilita a continuidade entre saberes cotidianos e formais.

Na sala que assumo na EI, é pela “Roda de conversa” que acolho as crianças

e inicio os trabalhos do dia e, na maioria das vezes, sentamos todos em círculo no chão.

A proposta é a de que cada criança tenha a oportunidade de falar a partir de seus desejos

e necessidades daquele momento, contar alguma coisa que tenha acontecido em sua

casa ou sobre um passeio que realizou, uma brincadeira divertida etc. Nesse momento

de acolhimento, almeja-se que cada criança tenha um espaço para falar livremente de si.

Mantendo o objetivo da “Roda de conversa” e buscando a efetivação de um

dos conteúdos que devem ser contemplados nesse período escolar, ou seja, a

aproximação da criança a diferentes gêneros textuais através da leitura realizada pelo

professor, apresento o Dado 15.

Dado: 15 – set/2013: “Animais extintos e animais em extinção”

O livro “Ana e Ana” 55 conta a história de duas irmãs gêmeas que são

idênticas fisicamente, mas completamente diferentes em suas preferências quanto às

brincadeiras, cores, comidas etc. A história descreve essas diferenças desde que eram

pequenas até o momento em que crescem e escolhem suas profissões: uma delas escolhe

trabalhar em uma estação de rádio e a outra viaja para longe para trabalhar com animais

em extinção. A história continua até o momento do reencontro das duas irmãs, quando

matam a saudade e percebem o quanto uma é importante para a outra.

Durante a leitura que faço para as crianças, intercalo paradas estratégicas

para retomar a história lida, momentos em que as crianças precisam resgatar os fatos

55 “Ana e Ana”. Autora: Célia Cristina Silva, Ilustrações Fê. 2ª Ed. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2007.

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narrados e compartilhá-los pela fala com as demais crianças. Nesses casos,

frequentemente, a fala de uma criança se completa pela fala de outra criança ou da

professora. Em meio a essa dinâmica de retomada da história, no momento da narrativa

em que uma das irmãs faz a opção pelo trabalho com animais em extinção, questionei as

crianças quanto ao sentido dessa expressão e obtive como resposta, de uma delas, que

“animais em extinção eram os animais que não existem mais, como os dinossauros”.

Era evidente que havia uma confusão entre o que são animais em extinção e

o que são animais extintos. Então, abordei a diferença entre os dois conceitos

explicando às crianças que os dinossauros são animais extintos e, por isso, não existem

mais. Expliquei também que os animais em extinção são os que estão ameaçados de não

existirem mais, mas que ainda existem em nosso planeta, embora em número reduzido.

Abordei ainda, de forma resumida, que na maioria das vezes a extinção dos animais

acontece porque o ser humano destrói a natureza matando muitos animais que nela

vivem, não dando tempo para que se reproduzam. A questão da extinção dos animais e

da destruição da natureza não era uma discussão nova para as crianças que,

frequentemente, demonstram interesse por este tema.

Atendendo aos interesses das crianças, no dia seguinte ao da leitura do livro

“Ana e Ana”, essa mesma história foi retomada na Roda de conversa, através das

ilustrações presentes no livro. Minha intenção pedagógica nesse momento era a de, além

de recuperar as reflexões já realizadas, verificar o que haviam apreendido em relação ao

conceito de “animais em extinção”, assim, perguntei a todos: “O que é um animal em

extinção?”. As falas a seguir se referem às respostas que obtive de duas crianças:

Turno Sigla do Locutor Transcrição 1 MA Bichos que mataram faz tempo. 2 AZ É um bicho que morre logo logo e não vai ter mais porque não vai ter

pai nem mãe pra cuidar dos filhotes. Fonte de dados: Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com a linguagem e documentação de dados CNPq 307227/2009-0

As falas das crianças, acima transcritas, à primeira vista são expressões de

fácil compreensão, entretanto, em uma análise posterior e mais detalhada, verificamos

que revelam a complexidade envolvida no trabalho linguístico discursivo do sujeito, na

tentativa de tornar público o seu pensamento. Por exemplo, na fala de AZ, vemos

marcas de uma relação de tempo na repetição de “logo logo” quanto à sobrevivência dos

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animais. Observa-se que a relação de tempo, nessa fala, fica sobredeterminada

envolvendo diferentes gerações, tal qual pressupõe o termo extinção.

A complexidade do trabalho linguístico da criança em processo de aquisição

de linguagem revela-se também na fala de MA: “Bichos que mataram faz tempo”.

Figueira (1994), em sua análise sobre a incidência de verbos causativos e não

causativos, argumenta em relação às trocas de um item verbal por outro na mesma área

de significados, como, por exemplo: sair e tirar; cair e derrubar; morrer e matar. Para

a autora, há a ocorrência divergente ou idiossincrática desses itens verbais na fala da

criança em idade correspondente à de MA (5 anos), resultado da não distinção das

marcas de oposição lexical. Dessa forma, em relação à fala de MA, é possível dizer que

há a troca do verbo morrer por matar, o que marca a relação de causatividade e não

causatividade dos verbos. Nesse sentido, MA faz uso do recurso sintático

(semanticamente motivado) para tentar se fazer compreender pelo seu interlocutor.

A partir desta análise, é possível pensar que MA queria dizer “bichos que

morreram faz tempo”, o que possibilita inferir que ele não compreendeu o conceito

“animais em extinção”. De qualquer forma, não se pode afirmar se a criança entendeu

ou não o conceito abordado, ou se ela quis ou não dizer o que disse. Nesse sentido,

dispor dos recursos expressivos da língua não garante a construção de sentido no

momento da interlocução: “os recursos expressivos utilizados não são suficientes nem

para produzir ‘obviamente’ o que se pretende, tampouco para compreender

‘obviamente’ o que o outro pretendeu. Em outras palavras, os sujeitos trabalham

linguisticamente para produzir significações” (FREIRE, 1999, p.152; FRANCHI, 1977;

COUDRY, 1986/88; GERALDI, 1991/1993; POSSENTI, 1995).

O trabalho do sujeito na significação da fala do outro pode ser percebido

pelo episódio narrado sobre a fala de uma criança, na contextualização do dado anterior,

em que associa, equivocadamente, os dinossauros ao conceito de animais em extinção:

animais em extinção eram os animais que não existem mais, como os dinossauros.

Nesse episódio é possível observar a atribuição de sentido pela criança a um novo

recurso expressivo, um novo conceito (animal em extinção), a partir de outro conceito já

compreendido por ela (dinossauro como um animal extinto) e que, portanto, pertence ao

seu sistema de referências. É esse o trabalho orientado pela interlocução na Roda de

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conversa: possibilitar a ampliação dos recursos expressivos e das possibilidades de

construção de sentidos na relação com o outro e com o mundo.

Para evidenciar um pouco mais a importância do trabalho do professor com

a linguagem e com aquilo com que ela faz interface, passo a descrever uma situação que

foi partilhada comigo por outra professora da escola em que trabalho.

A situação vivenciada diz respeito a uma atividade que ela pediu para que as

crianças realizassem, na qual teriam que descobrir, dentre um emaranhado de desenhos,

o objeto que estava sendo procurado pelo pirata, ou seja, um baú de tesouros. Ao final

do dia de trabalho, diante de sua preocupação com a falta de compreensão da atividade,

por parte de uma das crianças da sala, essa professora veio até minha sala de aula e

comentou sobre o desempenho dessa criança que não conseguiu realizar a atividade. A

professora se mostrava indignada dizendo que mesmo mostrando a figura

correspondente à resposta esperada (figura do baú de tesouro), a criança não

compreendia a relação entre o pirata e o baú de tesouros. Diante da dificuldade

observada, a professora levantou a hipótese de que essa criança pudesse apresentar

algum problema de aprendizagem, pois a considerava apática e mais quieta que as

demais.

Considerando que piratas e baú de tesouros não são elementos que fazem

parte do cotidiano de todas as crianças, levantei junto à professora a possibilidade de

essa criança não saber o que é um pirata, um baú e, nem mesmo, um tesouro. Essa

hipótese me pareceu possível, pois para ter acesso a esse repertório, seria preciso que

alguém tivesse lido para ela um livro sobre piratas ou que ela tivesse visto um filme

com esse mesmo personagem. Com essas vivências, seria possível, então, que tais

expressões passassem a fazer parte de seu sistema de referências e atribuíssem sentido à

atividade solicitada pela professora. Portanto, sem conhecer a história da criança, a

professora não poderia fazer a avaliação que fez – ela não conhece o que é um pirata,

um baú e um tesouro; ela não entende a relação entre pirata e baú – e, além disso,

realizar um “pseudodiagnóstico” – ela tem dificuldade em seu processo de

aprendizagem.

Realizo, nesse momento, uma aproximação da reflexão realizada por Lahire

(1993) sobre a característica escritural dos saberes escolares, mais formais e distantes de

situações práticas cotidianas da criança. Hoje, sabemos que a criança de uma sociedade

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letrada, como a nossa, não chega à escola sem saber nada sobre a escrita (BORDIN,

2008). Em contrapartida, muitos dos saberes trazidos pelos alunos que têm suas famílias

mais distantes das práticas escriturais da escola não são os saberes esperados pela

própria escola. Ou seja, o sistema de referências constituído a partir dos saberes dos

alunos não se aproxima do sistema de referências trabalhado pela escola, dificultando

que esses alunos atribuam sentido ao que a escola está querendo ensinar. Assim, fica

dificultado o encontro entre os dois.

Como já discutido no 2º capítulo desta dissertação, a distância entre a

família e a escola, evidenciada no entrave entre o compartilhar ou não os sentidos das

aprendizagens proporcionadas por essas instituições, é disparadora de difíceis

momentos enfrentados pelas crianças, como as dificuldades em sua adaptação à forma

escritural escolar de organizar o processo de ensino-aprendizagem. É o que pode ser

observado na situação acima descrita: a dificuldade da criança em aproximar o que sabe

(porque certamente sabe alguma coisa), ao que é esperado que ela saiba – que localize o

pirata e seu baú de tesouros – foi interpretada pela professora como indício de um

problema de aprendizagem.

Vimos que, para a ND, a associação das dificuldades escolares da criança,

por vezes, próprias do processo de aprendizagem, quando interpretadas como problemas

da ordem da patologia, acabam por estigmatizá-la. A fala naturalizada da professora,

que pode parecer um comentário inocente, pode começar a marcar a vida escolar dessa

criança como sem possibilidades de aprender. Como já foi dito, uma criança, ao ser

vista como impossibilitada de aprender, incorpora rótulos de incapaz ou portadora de

uma patologia e passa a corresponder ao que esperam dela, o que é determinante para

sua relação com os obstáculos inerentes ao processo de aprendizagem (FOUCAULT,

1970/2010; WATZLAWICK, 1994).

Apresento, ainda, um trabalho realizado na/pela linguagem sobre as lendas

folclóricas brasileiras, mais propriamente a lenda do “Boto Cor-de-rosa”, pautado na

ampliação dos recursos expressivos. Esse trabalho tomou amplas proporções que

envolveram discussões sobre alguns costumes da região norte do Brasil, costumes estes

que têm relação com a organização do povo em função do clima e dos recursos naturais

encontrados. Mais especificamente, falamos do hábito de alguns ribeirinhos de tomarem

banho nos rios, que existem em abundância na região, junto aos botos. O encantamento

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das crianças por essa lenda se deu por saberem que o boto é um animal que existe

verdadeiramente e que uma das variedades de sua cor é o cor-de-rosa.

O direcionamento tomado pela discussão, a partir do interesse das crianças,

foi o de refletirmos sobre as condições que seriam necessárias para realizar uma viagem

à Amazônia, quando passamos a pesquisar quais seriam as formas de chegar a este

lugar, tão distante de onde vivemos, embora pertençamos ao mesmo país. A fim de

tornar menos abstratas as questões abordadas a partir da dimensão tomada pelo trabalho,

utilizei recursos que me eram disponíveis, como o mapa político, o globo terrestre, fotos

e filmagens a partir da internet, o que contribuiu para as especificidades e amplitudes

das relações que pudemos trabalhar.

Relaciona-se à análise que passo a apresentar o caráter livre, ativo e criador

da linguagem, que permite os mais variados caminhos e suporta devaneios na realização

de um trabalho como o que aconteceu sobre o “Boto Cor-de-rosa”. Refiro-me ao

trabalho discursivamente orientado que prático em sala de aula da EI como um

interlocutor privilegiado, priorizando a construção de sistema de referências que

possibilitam a essas crianças significar os recursos expressivos usados para a operação

de construção de sentidos.

Em uma reunião de pais, ao atender a mãe de um de meus alunos,

conversamos em relação ao envolvimento da criança com as questões trabalhadas na

escola, o que era observado pela sua motivação em contar, em casa, sobre os seus novos

aprendizados realizados. Em meio à nossa conversa, a mãe contou que sua filha, minha

aluna, referiu em casa “um tal” de boto cor-de-rosa e uma viagem para a Amazônia que

ela gostaria de fazer. Pude observar, na fala dessa mãe, certa conotação de quem não

estava conseguindo perceber coerência na fala da filha, atribuindo a essa fala um caráter

fantasioso comum a algumas histórias contadas pelas crianças nessa faixa etária.

Considerando que a escola em que leciono se localiza na periferia da cidade, diante das

famílias de meus alunos, observo um descompasso entre suas possibilidades

econômicas e o investimento cultural que realizam a partir dessa condição. Dessa forma,

embora não haja uma demasiada carência econômica, a pouca diversidade de vivências

possibilitadoras de uma ampliação cultural pode ser a responsável por provocar

situações como a que relatei, em que não há um compartilhar de sentidos construídos

entre a mãe e a filha com relação à referência “boto cor-de-rosa”.

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A situação descrita pode ilustrar a reflexão realizada por Lahire (1993,

1995/1998), quanto às dificuldades muitas vezes enfrentadas pelas famílias de atribuir

sentido às aprendizagens e vivências das crianças realizadas na escola. Essas famílias,

sem tantas possibilidades de acesso aos bens culturais e aos conhecimentos baseados em

um saber escritural - que fundamentam as atividades propostas pela escola -, encontram

dificuldades em atribuir sentido às vivências e aprendizagens realizadas pelas crianças.

Essa criança, pela constituição na linguagem através da interlocução presente na escola,

além de assumir-se como sujeito na relação com a sua mãe, assume também a dianteira

de seu processo de aprendizado à medida que não aceitou que tal aprendizado fosse

desconsiderado pelo outro. Nesse caso, a mãe imaginou que a filha estivesse inventado

algo sobre “um tal de boto cor de rosa”. Assim, o trabalho de ampliação com o sistema

de referências, simbolizado agora no aprendizado da menina, ultrapassa os limites da

escola e chega à família, que, conseguindo atribuir sentido à fala da criança, reconhece a

importância da sua vivência escolar e possibilita a aproximação entre família e escola.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso desta dissertação se inicia com o trabalho realizado com MT no

CCazinho. Como vimos, o acompanhamento longitudinal e as dificuldades que MT

encontrava para ler e escrever revelaram as dificuldades vividas por um jovem que não

encontrou um lugar para se subjetivar - nem na escola, nem na família. A análise dos

dados apontou que a ausência de um interlocutor comprometeu a estrutura sintática e

semântica de sua fala. Tal comprometimento teve um efeito negativo na vida de MT,

uma vez que ele não consegue tornar público o que pensa e nem tornar particular o que

é público. Sem conseguir dizer o que pensa, passou a se expressar como lhe era

possível, através do mau comportamento. Conforme apresentado pela teorização, essa

impossibilidade de interiorização e exteriorização limitou seu acesso a outros processos

da linguagem, como é o caso da leitura e da escrita. Diante de suas dificuldades para

falar, ler e escrever, MT foi avaliado e recebeu o diagnóstico de Retardo Mental

Moderado. O diagnóstico implicou na construção de um estigma que MT passou a

carregar: sujeito doente e sujeito que não pode aprender. A partir da consolidação deste

estigma por ele próprio, pela escola, pela clínica e pela família, MT responde a

“profecia” de que é um sujeito incapaz e passa apresentar muita resistência diante das

possibilidades de aprender já que estava acomodado com o lugar de quem não sabe, e

de quem não conseguirá aprender porque é doente.

Essa situação se agravou quando MT se deparou com as Políticas Públicas

que orientam a estrutura do ensino escolar do qual faz parte, a qual não se importa com

os seus indícios de possibilidades para aprender a ler e a escrever e valoriza as

impossibilidades apontadas pelo diagnóstico. Desta maneira, vimos que as Políticas

Públicas acabam por se eximir da responsabilidade que têm sobre o aprendizado de MT,

usando seu laudo médico como justificativa para não investir nem intervir em seu

aprendizado. A partir da valorização do diagnóstico e da suposta impossibilidade de

aprender, também a escola lhe marca como um sujeito doente, determinando-lhe a

impossibilidade de atribuir sentido na aquisição e no uso da leitura e da escrita, e de

atribuir sentido à própria escola (o que é evidenciado pelo Dado 14).

A análise do desempenho de MT na escola e nas atividades individuais e

coletivas no CCazinho mostraram que ele foi capaz de superar muitas de suas

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dificuldades e iniciou seu processo de alfabetização no contexto da interlocução

comigo, enquanto cuidadora. Desta maneira, vemos que o diagnóstico que lhe foi

atribuído não se confirma, e, que a dificuldade de aprender na escola só acontece

porque, nesta instituição, é esperado um padrão de sujeito e um padrão de aprendizado:

não há lugar para a singularidade das crianças. É nesse cenário que se contextualiza o

principal papel da ND: mostrar que o processo de aprendizado de leitura e de escrita é

singular e que tal singularidade não é sintoma de patologia.

No enfrentamento dos detalhes e da complexidade do acompanhamento

longitudinal de MT, através do aporte teórico e metodológico da ND, pude refletir sobre

a minha própria concepção de linguagem e ressignificar minhas práticas em sala de

aula. Assim, apresentei um recorte da minha prática na EI, através da dinâmica da Roda

de Conversa, orientada discursivamente e norteada pela interlocução, ou seja, pelo que

faz sentido para a criança. São situações em que, como professora e mediadora, tenho a

oportunidade de intervir na fala e, portanto, na possibilidade de aprendizado dessas

crianças, dando condições para a construção de sentidos, ampliando seus sistemas de

referência em favor das aprendizagens atuais e das que estão por vir, uma vez que, o que

está em jogo, é a possibilidade de patologização à que estão sujeitas.

Dessa forma, gostaria de ressaltar a importância do papel do professor na

formação e constituição de crianças e jovens, e para a necessidade do seu compromisso

para com essa profissão que, pelo despertar, no outro, do prazer em aprender, abre a

possibilidade de futuros diversos.

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Anexos

1.

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119

2.

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121

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122

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123

3.

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