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BAKHTIN OUTROS CONCEITOS-CHAVE

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  • BAKHTINOUTROS CONCEITOS-CHAVE

  • BETH BRAIT

    BAKHTINOUTROS CONCEITOS-CHAVE

    (organizadora)

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndice para catlogo sistemtico:1. Cincias humanas : Pesquisa 001.3072

    EDITORA CONTEXTODiretor editorial: Jaime Pinsky

    Rua Acopiara, 199 Alto da Lapa05083-110 So Paulo SP

    PABX: (11) 3832 [email protected]

    www.editoracontexto.com.br

    Brait, BethBakhtin : outros conceitos-chave/ Beth Brait, (org.). So Paulo :

    Contexto, 2006.

    Bibliografia.ISBN 85-7244-332-0

    1. Anlise do discurso 2. Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975 - Crtica e interpretao 3. Cincias humanas - Pesquisa4. Lingstica I. Brait, Beth.

    Copyright 2006 Beth Brait

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)

    2006

    Proibida a reproduo total ou parcial.Os infratores sero processados na forma da lei.

    CapaGustavo S. Vilas Boas

    DiagramaoAntonio Kehl

    RevisoAlicia Klein

    Helosa BeraldoRuy Azevedo

    06-2599 CDD-001.3072

  • Sumrio

    Introduo .............................................................................................. 7Beth Brait

    Anlise e teoria do discurso .................................................................... 9Beth Brait

    Bakhtin, Foucault, Pcheux .................................................................. 33Maria do Rosrio Gregolin

    Carnavalizao ...................................................................................... 53Norma Discini

    Cronotopo e exotopia ........................................................................... 95Marilia Amorim

    Dilogo ............................................................................................... 115Renata Coelho Marchezan

    Esfera e campo ................................................................................... 133Sheila V. de Camargo Grillo

  • Interdiscursividade e intertextualidade ............................................... 161Jos Luiz Fiorin

    Poesia .................................................................................................. 195Cristovo Tezza

    Psicologia ............................................................................................ 219Yves Clot

    Realismo grotesco ............................................................................... 243Eduardo Peuela Caizal

    A organizadora ................................................................................... 259

    Os autores .......................................................................................... 261

  • IntroduoBeth Brait

    Este volume d continuidade a Bakhtin: conceitos-chave (Contexto, 2005).Tambm aqui, o conjunto do pensamento bakhtiniano surpreendido

    em momentos de real produtividade para a compreenso da linguagem epara o desenvolvimento de seu estudo. Assim, mais alguns dos conceitos-chave, que continuam produzindo conhecimento nos estudos lingsticose literrios e nas Cincias Humanas de maneira geral, esto recuperados ereconhecidos em textos/discursos verbais, visuais e verbo-visuais.

    Um primeiro ensaio, Anlise e teoria do discurso, procura dar contade um posicionamento contemporneo diante de textos e de discursos que,por diferentes caminhos, assumem aspectos tericos e metodolgicosadvindos do pensamento bakhtiniano. A demonstrao dessa forma de en-carar a linguagem e desenvolver pesquisas em torno dela realiza-se no con-junto dos demais textos que compem este livro.

    Trs deles Bakhtin, Foucault, Pcheux, Psicologia e Esfera ecampo discutem perspectivas e conceitos que, oriundos do Crculo,dialogam de maneira mais ou menos polmica com importantes tendn-cias filosficas e/ou terico-analticas da atualidade. Essas articulaes dediferentes horizontes tericos revelam proximidades e distanciamentos

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    efetivamente produzidos e constatados nas pesquisas atuais desenvolvidaspelas Cincias Humanas.

    Seguindo a tendncia que caracterizou o primeiro volume de Bakhtin:conceitos-chave, os demais textos Carnavalizao; Cronotopo e exotopia;Dilogo; Interdiscursividade e intertextualidade; Poesia e Realismo gro-tesco situam os conceitos em sua origem e/ou disperso na obra de Bakhtine do Crculo e realizam leituras de textos e discursos estimulados por eles.

    Este volume segue os propsitos do anterior: situar pontos fundamen-tais da teoria bakhtiniana, recuperados por pesquisadores envolvidos comas particularidades do pensamento bakhtiniano e de sua produtividade naconstruo do conhecimento e, assim, possibilitar aos leitores, quer inicia-dos ou no, a abertura de mais uma porta para a leitura dos textos-fonte.

  • Anlise e teoriado discurso

    Beth Brait

    A memria uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda opassado em funo do presente.

    (Mario Vargas Llosa)

    Ningum, em s conscincia, poderia dizer que Bakhtin tenha propos-to formalmente uma teoria e/ou anlise do discurso, no sentido em queusamos a expresso para fazer referncia, por exemplo, Anlise do Discur-so Francesa. Entretanto, tambm no se pode negar que o pensamentobakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuies para os estu-dos da linguagem, observada tanto em suas manifestaes artsticas comona diversidade de sua riqueza cotidiana. Por essa razo, mesmo conscientede que Bakhtin, Voloshinov, Medvedev e outros participantes do que atual-mente se denomina Crculo de Bakhtin jamais tenham postulado um con-junto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como pers-pectiva terico-analtica fechada, esse ensaio arrisca-se a sustentar que oconjunto das obras do Crculo motivou o nascimento de uma anlise/teoria

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    dialgica do discurso, perspectiva cujas influncias e conseqncias so vi-sveis nos estudos lingsticos e literrios e, tambm, nas Cincias Huma-nas de maneira geral.

    Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definio fechada do queseria essa anlise/teoria dialgica do discurso, uma vez que esse fechamentosignificaria uma contradio em relao aos termos que a postulam, pos-svel explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolvel rela-o existente entre lngua, linguagens, histria e sujeitos que instaura osestudos da linguagem como lugares de produo de conhecimento de for-ma comprometida, responsvel, e no apenas como procedimento subme-tido a teorias e metodologias dominantes em determinadas pocas. Maisainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepo de lin-guagem, de construo e produo de sentidos necessariamente apoiadasnas relaes discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados.

    Iniciar a apresentao da anlise/teoria dialgica do discurso dessa manei-ra significa, de imediato, conceber estudos da linguagem como formulaesem que o conhecimento concebido, produzido e recebido em contextoshistricos e culturais especficos e, ao mesmo tempo, reconhecer que essasatividades intelectuais e/ou acadmicas so atravessadas por idiossincrasiasinstitucionais e, necessariamente, por uma tica que tem na linguagem, e emsuas implicaes nas atividades humanas, seu objetivo primeiro.

    Para perseguir essa hiptese (ou tese), que s pode ser recuperada noconjunto das obras do Crculo, este ensaio escolhe, como ponto de partida,a concepo de Metalingstica, conforme sugerida por Bakhtin na obraProblemas da potica de Dostoivski, e qual Paulo Bezerra, tradutor e estu-dioso de Bakhtin, se refere da seguinte maneira:

    [...] no livro sobre Dostoivski, a Metalingstica j se esboa como

    mtodo de anlise do discurso e hiptese de uma futura sntese da

    filologia com a filosofia, que Bakhtin imaginava como uma discipli-

    na humana nova e especfica capaz de reunir em contigidade a

    Lingstica, a Filosofia, a Antropologia e a Teoria da Literatura.1

    No incio do captulo O discurso em Dostoivski, encontra-se o pri-meiro momento em que uma anlise/teoria dialgica do discurso pro-posta. Bakhtin afirma:

  • 11

    Intitulamos este captulo O discurso em Dostoivski porque te-

    mos em vista o discurso, ou seja, a lngua em sua integridade con-

    creta e viva e no a lngua como objeto especfico da Lingstica,

    obtido por meio de uma abstrao absolutamente legtima e ne-

    cessria de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas so

    justamente esses aspectos, abstrados pela Lingstica, os que tm

    importncia primordial para os nossos fins. Por este motivo as

    nossas anlises subseqentes no so lingsticas no sentido rigo-

    roso do termo. Podem ser situadas na Metalingstica, subenten-

    dendo-a como um estudo ainda no-constitudo em disciplinas

    particulares definidas daqueles aspectos da vida do discurso que

    ultrapassam de modo absolutamente legtimo os limites da

    Lingstica. As pesquisas metalingsticas, evidentemente, no

    podem ignorar a Lingstica e devem aplicar os seus resultados. A

    Lingstica e a Metalingstica estudam um mesmo fenmeno con-

    creto, muito complexo e multifactico o discurso, mas estudam

    sob diferentes aspectos e diferentes ngulos de viso. Devem com-

    pletar-se mutuamente e no fundir-se. Na prtica, os limites entre

    elas so violados com muita freqncia.2

    J nessa primeira referncia a uma nova disciplina, intituladaMetalingstica e considerada necessria a um estudo do discurso que ultra-passasse os resultados atingidos pela Lingstica, uma coisa deve ser obser-vada: a metodologia proposta para o estudo do objeto, considerado com-plexo e de muitas faces, embora se oferea como uma tica diferenciada,no exclui a Lingstica. Ao contrrio: recomenda aplicar os seus resultados.O leitor que costuma usar Bakhtin como um petardo para aniquilar a Lin-gstica, especialmente a estruturalista de lastro saussureano, pra nesse pontodo texto e pensa que talvez tenha pulado alguma coisa. Volta, v que issoque est escrito num texto assinado Bakhtin ele mesmo.

    Como entender esse raciocnio, ou seja, o no dispensar a Lingstica,se o pensamento bakhtiniano incide sobre o discurso, a linguagem em uso,e no sobre a lngua? Na verdade, essa afirmao tem importncia e conse-qncias fundamentais para a anlise/teoria dialgica do discurso que estsendo gestada, como se ver mais adiante.

    Dando continuidade idia, possibilidade e necessidade de umaMetalingstica, Bakhtin, nesse captulo, vai refinando a definio do obje-to e as formas de conceb-lo e abord-lo. Assim, na definio seguinte, o

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    termo discurso, apresentado como o objeto complexo, pertencente simulta-neamente Lingstica e nova disciplina proposta, substitudo por rela-es dialgicas:As relaes dialgicas (inclusive as relaes dialgicas do fa-lante com sua prpria fala) so objetos da Metalingstica. As relaesdialgicas (inclusive as relaes dialgicas do falante com sua prpria fala)so objetos da Metalingstica.3

    Agora o leitor fica mais contente e at esquece o susto da afirmaoanterior. Com essa nova definio, Bakhtin reveste o objeto a ser estudadopela Metalingstica com uma dimenso extralingstica, afirmando literal-mente: [...] As relaes dialgicas so extralingsticas. Afinal, pergunta-se o leitor, trata-se de considerar a materialidade lingstica, aquilo quepode ser considerado interno, como est explicitado anteriormente, ou setrata de tomar como objeto a exterioridade, o extralingstico?

    Antes mesmo que se possa respirar, a resposta aparece no texto de Bakhtin:

    Assim, as relaes dialgicas so extralingsticas. Ao mesmo tem-

    po, porm, no podem ser separadas do campo do discurso, ou

    seja, da lngua enquanto fenmeno integral concreto. A lingua-

    gem s vive na comunicao dialgica daqueles que a usam.

    precisamente essa comunicao dialgica que constitui o verda-

    deiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja

    qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prti-

    ca, a cientfica, a artstica, etc.), est impregnada de relaes

    dialgicas. Mas a Lingstica estuda a linguagem propriamente

    dita com sua lgica especfica na sua generalidade, como algo que

    torna possvel a comunicao dialgica, pois ela abstrai conseqen-

    temente as relaes propriamente dialgicas. Essas relaes se situam

    no campo do discurso, pois este por natureza dialgico e, por

    isto, tais relaes devem ser estudadas pela Metalingstica, que

    ultrapassa os limites da Lingstica e possui objeto autnomo e

    metas prprias.4

    Mesmo que no se recupere integralmente essa primeira e bsica sementede uma anlise/teoria dialgica do discurso (e que o leitor poder faz-lodedicando-se leitura integral de Problemas da potica de Dostoivski), pos-svel distinguir a um trao que caracterizar todo o pensamento do Crculo esua forma de conceber a linguagem e de enfrentar a complexidade do discur-so. Esse trao fundante diz respeito ao fato de que a abordagem do discurso

  • 13

    no pode se dar somente a partir de um ponto de vista interno ou, ao contr-rio, de uma perspectiva exclusivamente externa. Excluir um dos plos des-truir o ponto de vista dialgico, proposto e explicitado pela teoria e pelaanlise, e dado como constitutivo da linguagem. a bivocalidade de dialgico,situado no objeto e na maneira de enfrent-lo, que caracteriza a novidade daMetalingstica e de suas conseqncias para os estudos da linguagem.

    A idia de uma Metalingstica que tem nas relaes dialgicas o seu objeto vrias vezes recolocada nesse captulo, confirmando, de diferentes maneiras, aespecificidade da abordagem bakhtiniana do discurso, ou seja, sua proposta deencontrar caminhos tericos, metodolgicos e analticos para desvendar a arti-culao constitutiva do que h de interno/externo na linguagem:

    As relaes dialgicas so irredutveis s relaes lgicas ou s con-

    creto-semnticas, que por si mesmas carecem de momento dialgico.

    Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, con-

    verter-se em posies de diferentes sujeitos expressas na lingua-

    gem para que entre eles possam surgir relaes dialgicas.

    [...] As relaes dialgicas so absolutamente impossveis sem rela-

    es lgicas e concreto-semnticas, mas so irredutveis a estas e

    tm especificidade prpria.

    Para se tornarem dialgicas, as relaes lgicas e concreto-semn-

    ticas devem, como j dissemos, materializar-se, ou seja, devem

    passar a outro campo da existncia, devem tornar-se discurso, ou

    seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja

    posio ela expressa.5

    O enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto,as particularidades discursivas que apontam para contextos mais amplos,para um extralingstico a includo. O trabalho metodolgico, analtico einterpretativo com textos/discursos se d como se pode observar nessaproposta de criao de uma nova disciplina, ou conjunto de disciplinas ,herdando da Lingstica a possibilidade de esmiuar campos semnticos,descrever e analisar micro e macroorganizaes sintticas, reconhecer, recu-perar e interpretar marcas e articulaes enunciativas que caracterizam o(s)discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dossujeitos a instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessria anlise dessamaterialidade lingstica, reconhecer o gnero a que pertencem os textos

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    e os gneros que nele se articulam, descobrir a tradio das atividades emque esses discursos se inserem e, a partir desse dilogo com o objeto deanlise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, suamaneira de participar ativamente de esferas de produo, circulao e re-cepo, encontrando sua identidade nas relaes dialgicas estabelecidascom outros discursos, com outros sujeitos.

    No h categorias a priori, aplicveis de forma mecnica a textos e dis-cursos, com a finalidade de compreender formas de produo de sentidonum dado discurso, numa dada obra, num dado texto.

    A prova disto est justamente em Problemas da potica de Dostoiviski.O captulo utilizado neste ensaio a fim de discutir um primeiro mo-

    mento da proposta de uma Metalingstica, aqui interpretada como teoria/anlise dialgica do discurso, faz parte das estratgias utilizadas por Bakhtinpara, a partir da minuciosa leitura e anlise do conjunto da obra deDostoivski, configurar o gnero polifnico, apresentar o conceito depolifonia. E no o contrrio. No se tem um conceito de polifonia e depoisse constata sua presena numa obra ou num conjunto de obras. Nesse sen-tido, possvel compreender as objees que alguns estudiosos do pensa-mento bakhtiniano fazem do uso indiscriminado do conceito de polifonia,como se fosse um conceito abstrato, criado para ser aplicado a qualquerdiscurso, e no uma marca de identidade do discurso de Dostoivski, reco-nhecida a partir da anlise bakhtiniana. Esse o caso, por exemplo, deCristovo Tezza que, num texto recente, afirma de maneira certeira:

    O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) criou uma das categorias

    mais atraentes da Teoria Literria das ltimas dcadas do sculo

    20: polifonia. Tomando a palavra de emprstimo da arte musical,

    isto , o efeito obtido pela sobreposio de vrias linhas meldicas

    independentes mas harmonicamente relacionadas, Bakhtin em-

    prega-a no seu livro sobre Dostoivski, publicado pela primeira

    vez em 1929, para definir especificamente tanto a obra de

    Dostoivski quanto o que ele chama de um novo gnero roma-

    nesco, o romance polifnico. Essa expresso teve uma carreira

    to errtica quanto a do prprio Bakhtin.

    [...] Transformada em moda, a polifonia bakhtiniana perde o seu

    sentido de origem e se torna exatamente aquilo que negava: uma

    instncia narrativa estrutural da Literatura ou da Lingstica, con-

  • 15

    fundindo-se, muitas vezes, com simples intertextualidade; tornada

    um conceito reitervel, passa a ser um modelo a se aplicar em qual-

    quer narrativa com dois ou trs pontos de vista gramaticais distin-

    tos. Mas a complexidade do conceito para aqueles que se debrua-

    vam com mais cuidado sobre ele no era mesmo fcil de resolver.

    [...] Para colocar de novo a bola ao cho, digamos desse modo,

    preciso voltar ao prprio Bakhtin, agora com a viso do conjunto

    de sua obra (incluindo os manuscritos filosficos da dcada de

    1920), e retomar seus pressupostos. A primeira tarefa ser tentar

    recolocar nos trilhos originais a polifonia bakhtiniana.6

    Dando continuidade idia de que o pensamento bakhtiniano produziuuma teoria/anlise dialgica do discurso, possvel situar a questo de umaoutra maneira, lanando um olhar sobre o fato de que grande parte das leitu-ras e das releituras iniciadas no final da dcada de 1970 e intensificadas apartir dos anos 1990, tem como um de seus mais significativos produtos aexistncia de novos Crculos, mais ou menos bakhtinianos. O ponto dearticulao entre eles parece ser justamente a tentativa de enfrentamentodialgico da linguagem, da teoria e anlise do discurso, a partir do conjuntodo pensamento bakhtiniano ou mesmo da seleo de alguns de seus pontosespecficos. As diferentes formas de conceber enfrentamento dialgico dalinguagem constituem, por sua vez, movimentos tericos e metodolgicosque se desenvolvem em diferentes direes.

    Uma dessas direes pode ser caracterizada pelos trabalhos de intrpre-tes cujo objetivo central o aprofundamento da compreenso das propos-tas do primeiro Crculo bakhtiniano e de suas conseqncias radicais paraos estudos da linguagem, quer na perspectiva das teorias lingsticas, querdas teorias literrias ou de seu alcance dentro das demais Cincias Huma-nas. O que diferencia esse Crculo contemporneo, radicalmente bakhtiniano,dos demais, o empenho em ressaltar a origem filosfica, tica e estticaque constitui a gnese do pensamento bakhtiniano como um todo.

    Os trabalhos desses pesquisadores, nacionais e estrangeiros, resultam emleituras e interpretaes que situam as categorias, os conceitos e as noes advindasdo pensamento bakhtiniano dentro do contexto epistemolgico e cultural queos originou. Isso ajuda a diferenciar a perspectiva bakhtiniana de outras impor-tantes teorias sobre a linguagem e, especialmente, estabelecer fronteiras bem

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    ntidas entre designaes idnticas para conceitos completamente diferentes, quandono contraditrios. Esse o caso de polifonia, como aponta Cristvo Tezza,mas poderia ser tambm o de carnavalizao e de gneros.7

    Como avaliar, por outro lado, o diversificado conjunto de trabalhosque, mesmo parecendo distanciar-se das origens, contribui para o reconhe-cimento do constitutivo papel da linguagem nas atividades humanas e, por-tanto, nas diferentes cincias que tm o sujeito e sua alteridade como objetode estudos?

    Na tentativa de ao menos enfrentar essas questes, necessrio situar osanos 1970, no que diz respeito aos estudos da linguagem. Eram tempos detransio e afirmao, especialmente em relao a novos caminhos tericos,considerando-se as construes, as polmicas e as heranas positivas e nega-tivas produzidas pelo Estruturalismo e pelo Formalismo. Como no obje-tivo deste ensaio fazer histria, a referncia a dois artistas da palavra quesituaram criticamente os estudos lingsticos pode servir de metonmia paraa compreenso daquele momento. Trata-se de do peruano Mario VargasLlosa e do brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

    Em 1987, Vargas Llosa lanou um romance intitulado El falador, lana-do no Brasil no ano seguinte pela Francisco Alves, com o ttulo O falador.Nessa obra, o narrador principal evoca recordaes de um companheiro desua juventude passada em Lima, apelidado Mascarita, fascinado por umapequena cultura primitiva denominada machiguengas. Paralelamente, umannimo contador ambulante de histrias, justamente o falador que dttulo obra, uma espcie de testemunha da memria coletiva dos ndiosmachiguengas da Amaznia peruana, conta a prpria existncia, a histria eos mitos de seu povo.

    No quarto captulo dessa obra, h uma curiosa discusso sobre o Insti-tuto Lingstico de Vero, uma famosa e real instituio, que durou quatrodcadas e que, segundo o narrador, foi objeto de virulentas controvrsiasnesses quarenta anos em que existiu no Peru. O que interessa, aqui, vercomo a imagem da Lingstica e dos lingistas aparece em alguns trechosda obra, fortemente ligada ao Instituto de Vero e a seu papel junto a dife-rentes comunidades. Os trechos escolhidos, um tanto longos verdade,do a dimenso dessa imagem da Lingstica naquele momento e do dis-curso politizado que o produz.

  • 17

    Em que consiste a misso do Instituto? Segundo seus inimigos,

    um brao do imperialismo norte-americano que, sob o pretexto

    da pesquisa cientfica, realiza trabalhos de inteligncia e uma ao

    de penetrao cultural neocolonialista entre os indgenas amaz-

    nicos. Essas acusaes procedem, sobretudo, da esquerda. Mas tam-

    bm so seus adversrios alguns setores da Igreja Catlica princi-

    palmente os missionrios da selva , que o acusam de ser nada

    mais que uma falange de evangelizadores protestantes disfarados

    de lingistas. Entre os antroplogos, h quem lhe reprove o fato

    de perverter as culturas aborgenes, tratar de ocidentaliz-las e

    incorpor-las a uma economia de mercado. Alguns conservadores

    criticavam a presena do Instituto no Peru alegando razes nacio-

    nalistas e hispnicas.8

    Segundo o mesmo narrador, havia tambm os defensores, que o faziamcom argumentos pragmticos, afirmando:

    A ao dos lingistas estudar as lnguas e os dialetos da Amaz-

    nia, estabelecer vocabulrios e gramticas das diferentes tribos

    servia ao pas e, alm disso, pelo menos em teoria, estava controla-

    da pelo Ministrio da Educao, que devia aprovar seus projetos e

    recebia cpias de todo material recolhido pelo Instituto.9

    Nessa mesma obra, um pouco mais adiante e a respeito do mesmo ins-tituto, o narrador refere-se a um jovem casal de lingistas, os Schneil:

    Tinham recebido o diploma, assim como os demais lingistas, na

    Universidade de Oklahoma, mas eram, acima de tudo, como seus

    colegas, seres animados por um projeto espiritual: a difuso da

    Bblia. [...] A inteno que os induzia a estudar as culturas primi-

    tivas era religiosa: traduzir a Bblia para aquelas lnguas a fim de

    que esses povos pudessem ouvir a palavra de Deus nos compassos

    e inflexes de sua prpria msica. Esse foi o desgnio que levou o

    Doutor Peter Towsend um interessante personagem, mistura de

    missionrio, amigo do Presidente Mexicano Lzaro Crdenas e

    autor de um livro sobre ele a fundar o Instituto, e o incentivo

    que move ainda os lingistas a realizarem o paciente trabalho que

    realizam.10

    E ainda, a palavra feroz de Mascarita, sempre to ponderado, dirigindo-se ao personagem narrador, contra os lingistas:

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    18

    Eles so os piores de todos, esses seus apostlicos lingistas. Eles

    se incrustam nas tribos para destru-las de dentro, igualzinho que

    os bichos de p. Em seus espritos, em suas crenas, em seu sub-

    consciente, nas razes de seu modo de ser. Os outros tiram deles o

    espao vital e os exploram ou empurram para o interior. No pior

    dos casos, eles os matam fisicamente. Esses seus lingistas so mais

    refinados, querem mat-los de outro modo. Traduzindo a Bblia

    para o machiguenga: o que que voc acha [...].11

    E, para finalizar, um outro trecho em que se l:

    Os lingistas eram alguma coisa muito diferente. Tinham, atrs

    de si, um poder econmico e uma engrenagem eficientssima, que

    lhes permitia talvez implantar seu progresso, sua religio, sua cul-

    tura. Aprender as lnguas aborgenes, ora que logro! Para qu? Para

    fazer dos ndios amaznicos bons ocidentais, bons homens mo-

    dernos, bons capitalistas, bons cristos reformados? Nem mesmo

    isso. S para apagar do mapa das culturas, seus deuses, suas insti-

    tuies e adulterar-lhes at seus sonhos. Como tinham feito com

    os peles-vermelhas e os outros, l no pas deles. Isso o que eu

    queria para nossos compatriotas da selva? Que se convertessem no

    que eram, agora, os aborgenes da Amrica do Norte?12

    Se essa perspectiva insere uma certa Lingstica dos anos 1940, 50 e 60numa dimenso poltica e crtica, o fato de a obra ser dos anos 1980 sugereque a circulao de uma conscincia a respeito dos estudos lingsticos e deseus efeitos acontecia, por assim dizer, para um pblico no especializado.Essa perspectiva crtica, com a qual todos os lingistas politicamente cor-retos concordam hoje, diz respeito unicamente s atividades do famosoInstituto de Vero. Entretanto, tambm dessa mesma poca um poemaintitulado Exorcismo, em que Carlos Drummond de Andrade constriuma imagem dos estudos da linguagem que, tanto quanto os trechos de Ofalador, revela uma percepo pouco simptica da Lingstica e, mais espe-cificamente, da parafernlia terminolgica, do jargo propagado pelos tex-tos tericos e conhecidos por pblico externo academia.

  • 19

    EXORCISMO

    Das relaes entre topos e macrotopos

    Do elemento suprassegmental,

    Libera nos, Domine.

    Da semia

    Do sema, do semema, do semantema,

    Do lexema,

    Do classema, do mema, do sentema,

    Libera nos, Domine.

    Da estruturao semmica,

    Do idioleto e da pancronia cientfica,

    Da realibilidade dos testes psicolingsticos,

    Da anlise computacional da estruturao silbica dos

    falares regionais,

    Libera nos, Domine.

    Do vocide,

    Do vocide nasal puro ou sem fechamento consonantal,

    Do vocide baixo e do semivocide homorgmico,

    Libera nos, Domine.

    Da leitura sintagmtica,

    Da leitura paradigmtica do enunciado

    Da linguagem ftica,

    Da fatividade e da no-fatividade na orao principal,

    Libera nos, Domine.

    Da organizao categorial da lngua,

    Da principalidade da lngua no conjunto dos sistemas semiolgicos,

    Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a lngua,

    Libera nos, Domine.

    Do programa epistemolgico da obra,

    Do corte epistemolgico e do corte dialgico,

    Do substrato acstico do culminador,

    Dos sistemas genitivamente afins,

    Libera nos, Domine.

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    20

    Da camada imagtica

    Do estado heterotpico

    Do glide voclico

    Libera nos, Domine.

    Da lingstica frstica e transfrstica,

    Do signo cinsico, do signo icnico e do signo gestual

    Da clitizao pronomial obrigatria

    Da glossemtica,

    Libera nos, Domine.

    Da estrutura exossemntica da linguagem musical

    Da totalidade sincrtica do emissor,

    Da lingstica gerativo-transformacional

    Do movimento transformacionalista,

    Libera nos, Domine.

    Das aparies de Chomsky, de Mehler, de Perchonock

    De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser

    De Zolkiewsky, Jakobson, Barthes, Derrida, Todorov

    De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva

    Libera nos, Domine.13

    Carlos Drummond de Andrade

    O que h de comum entre essas duas posturas diante da Lingstica edo fazer dos lingistas, cobrindo uma grande faixa desse fazer no sculo XX?H uma percepo nada lisonjeira da Lingstica, dos lingistas e mesmodo aparato terico utilizado. Essas crticas, situadas no passado, so locali-zadas e parecem distantes do momento atual em que os estudos da lingua-gem reencontraram o sujeito, suas relaes com a histria, a partir da ob-servao da linguagem em uso, de maneira a redefinir paradigmas e repen-sar o papel do pesquisador. Como afirma Franois Dosse:

    O reprimido do estruturalismo, o sujeito, teve um regresso tanto

    mais ruidoso visto que se acreditou poder passar sem ele durante

    uma vintena de anos. Apanhado numa tenso constante entre

    divinizao e dissoluo, o sujeito experimentou no poucas difi-

    culdades para reintegrar-se no campo do pensamento, dada a com-

    plexidade que lhe prpria, dividido entre a autonomia do poder

  • 21

    e as redes de dependncia que o condicionam. Diante da falsa

    alternativa, por largo tempo apresentada como inelutvel, entre o

    sujeito onipotente e a morte do sujeito, toda uma corrente da

    reflexo contempornea se desenvolveu em torno do paradigma

    da dialgica, do agir comunicacional, e pode representar um ca-

    minho real de emancipao social, bem como um paradigma fe-

    cundo no domnio das cincias sociais.14

    Dentre as grandes tendncias que possibilitam o regresso do sujeitoesto, sem dvida, a Anlise do Discurso Francesa e o pensamentobakhtiniano, o qual chega ao Brasil, e ao resto do Ocidente, aos poucos eno como um bloco coeso. Postular a existncia de uma teoria/anlise dodiscurso exige, por assim dizer, uma reconstituio do percurso desse pen-samento e dos aspectos que vo sendo iluminados e tidos como nucleares,segundo a maneira como vai se instalando. Olhar esse percurso tambmentrar em contato com as conseqncias que vai provocando em termosdos estudos da linguagem, em termos dos estudos da enunciao, em ter-mos de estudos do discurso que, centralizados na Lingstica e tambm naTeoria Literria, alam vo e ganham espao nas diferentes Cincias Hu-manas e Sociais.

    Embora Bakhtin e seu Crculo tenham produzido seus trabalhos sobre alinguagem desde a segunda dcada do sculo XX, os lingistas entraram emcontato com esse pensamento no final da dcada de 1970, por meio de Mar-xismo e filosofia da linguagem. A verso brasileira, como as demais, tem umsubttulo bastante significativo: Problemas fundamentais do mtodo sociolgicona cincia da linguagem. Esse subttulo indicia a linguagem e seu estudo deuma forma ampla que, sem excluir a Lingstica ou Teoria Literria, antecipaa importncia da linguagem na perspectiva das Cincias Humanas.

    Um outro aspecto que chama a ateno nas verses da obra para o Oci-dente que as diferentes verses trazem assinatura de Valentin Voloshinov M. Bakhtin (Voloshinov)15 , indicando ao menos uma duplicidade de auto-ria. A questo da autoria importante para se pensar no apenas as origensdesse pensamento, o crculo de intelectuais que lhe d origem, as possveiscausas das diferentes assinaturas, mas tambm os elementos que, estando sobdiferentes assinaturas, contribuem para a construo de uma teoria/anlisedo discurso. Esses aspectos devem ser considerados a fim de que sejam enten-

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    22

    didas no apenas as razes da multiplicidade de assinaturas, mas especialmen-te a dimenso assumida pela autoria num pensamento em que o outro condio sine qua non para a existncia do eu.

    Exatamente o que desta primeira obra conhecida pelos lingistas mar-cou uma nova postura diante da linguagem? O que interferiu na forma deenfrentar a linguagem e constituir diferentemente os estudos lingsticos etambm, de certa maneira, os estudos literrios?

    O aspecto nuclear dessa obra, que atingiu os lingistas de imediato, foiprecisamente a forma de conceber a linguagem e seus estudos. Naquele mo-mento, final da dcada de 1970, havia claramente duas opes: de um lado, avertente estruturalista, voltada para as questes do sistema, que muito ensinoua todos e qual se deve o aprofundamento dos diferentes nveis da anliselingstica, caso da fontica, da fonologia, da sintaxe, e que na Teoria Literriapoderia ser traduzida, grosso modo, pelo formalismo e seus estudos estruturais danarrativa e da poesia, por exemplo. De outro lado, uma potica sociolgica, umavertente mltipla, voltada, por assim dizer, para os estudos do contedo.

    O aparecimento de Marxismo e filosofia da linguagem se d como umaespcie de terceira margem dos estudos da linguagem. Tanto as duas gran-des correntes do pensamento lingstico, o estruturalismo e a estilstica cls-sica, so colocadas na berlinda, mais diretamente no captulo intituladoDuas orientaes do pensamento filosfico lingstico, como um avanona direo dos estudos enunciativos e discursivos colocado em andamen-to, a partir de discusses instaladas pelos captulos mais lidos da obra: Ln-gua fala e enunciao, Interao verbal e O discurso de outrem.

    A percepo da linguagem e da possibilidade de estud-la levando-seem conta a historicidade, os sujeitos, o social, sem dvida, provocaramprofundas mudanas, que podem ser simbolizadas na idia de signo ideol-gico. Nenhuma ideologia pode aparecer fora dos signos, e nenhum signoest despido de ideologia, como a obra vai mostrando ao longo de seuscaptulos. Partindo da tradio dos estudos da linguagem, sem apagar osganhos trazidos pelos estudos saussureanos e pelos estudos estilsticos, opensamento bakhtiniano presente nessa obra ofereceu a ocasio de um saltoqualitativo no sentido de observar a linguagem no apenas no que ela temde sistemtico, abstrato, invarivel, ou, por outro lado, no que de fato temde individual e absolutamente varivel e criativo, mas de observ-la em uso,

  • 23

    na combinatria dessas duas dimenses, como uma forma de conhecer oser humano, suas atividades, sua condio de sujeito mltiplo, sua inserona histria, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens.

    Evidentemente que as demais partes da obra, de excepcional importn-cia para a concepo histrica e social da linguagem, s foram retomadasmais tarde, como o caso, por exemplo, de Tema e significao na lngua sem a qual no se pode entender o conceito de gnero discursivo (nooque aparecer como tal na obra Esttica da criao verbal, datada de 1979) ou Teoria da Enunciao e problemas sintticos e Discurso indireto,direto e suas variantes, captulos fundamentais para uma compreensoaprofundada das formas e graus de assimilao e circulao do discurso deoutrem, ou seja, da constituio dos sentidos, da possibilidade do quechamamos de interdiscurso, de alteridade constitutiva.16

    Alm disso, preciso lembrar que a compreenso e mobilizao dopensamento bakhtiniano implica, necessariamente, como acontece nas Cin-cias Humanas em geral, o conhecimento dos interlocutores com quem essepensamento dialoga.17 No caso de Marxismo e filosofia da linguagem, porexemplo, h muitos interlocutores. Assim sendo, no apenas uma leituracuidadosa do captulo Duas orientaes do pensamento filosficolingstico leva compreenso de que ele no est destruindo Saussure esua obra, ou a estilstica como vertente do conhecimento, mas aponta parauma leitura mais cuidadosa do prprio Saussure e do que ele representouno sculo XX. No fosse ele o criador da Lingstica, o pensamentobakhtiniano no necessitaria coloc-lo como interlocutor polmico. Para opensamento bakhtiniano, o outro nunca abstrato.

    A partir dos aspectos destacados em Marxismo e filosofia da linguagem,portanto, tambm a, mesmo considerando a assinatura Voloshinov, h im-portantes contribuies para uma teoria/anlise dialgica do discurso, har-monizadas com a proposta de uma Metalingstica. As relaes dialgicasso trabalhadas na perspectiva de uma teoria da enunciao em que as ques-tes do sentido, de sua construo e de seus efeitos so apresentadas pormeio da discusso dos conceitos de tema e de significao e, tambm, dasformas de presena do outro na linguagem e no fio do discurso.

    O acesso a Problemas da potica de Dostoivski, cuja primeira traduo parao portugus data de 1981, parecendo, pelo ttulo, estar mais voltada aos estudos

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    24

    literrios que aos estudos lingsticos, teve, por isso mesmo, mais influncia nosestudos da literatura, escapando, at bem pouco tempo, ateno dos lingis-tas. Entretanto, por intermdio dela que se pode reconhecer um procedimen-to analtico essencial para uma teoria/anlise dialgica do discurso: chegar auma categoria, a um conceito, a uma noo, a partir da anlise de um corpusdiscursivo, dos sujeitos e das relaes que ele instaura. Para definir o gneropolifnico do romance, e situar sua inovao e seu alcance, Bakhtin analisa,como se observou, a obra toda de Dostoivski. Ele no tinha um conceito adhoc de polifonia para testar nos escritos de Dostoivski. a partir dos textos deDostoivski que o conceito formulado, constitudo. Portanto, essa sem d-vida uma das caractersticas de uma teoria/ anlise dialgica do discurso: noaplicar conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discur-sos revelem sua forma de produzir sentido, a partir de ponto de vista dialgico,num embate. E que Marilia Amorim define da seguinte maneira:

    [...] A produo de conhecimento e o texto em que se d esse co-

    nhecimento so uma arena onde se confrontam mltiplos discur-

    sos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito analisado e conhecido

    e o discurso do prprio pesquisador que pretende analisar e conhe-

    cer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais

    vai emergir. Assumir esse carter conflitual e problemtico das Cin-

    cias Humanas implica renunciar a toda iluso de transparncia: tanto

    do discurso do outro quanto de seu prprio discurso. E portanto

    trabalhando a opacidade dos discursos e dos textos, que a pesquisa

    contempornea pode fazer da diversidade um elemento constituinte

    do pensamento e no um aspecto secundrio.18

    Somente essas duas obras j seriam suficientes para extrair dos aspectosnucleares do pensamento bakhtiniano uma teoria/anlise dialgica do dis-curso, gesto que, ao enfrentar a linguagem, se reveste necessariamente datica proposta pelo Crculo e da possibilidade e necessidade de lidar comvrios campos do conhecimento a partir do reconhecimento do papel fun-damental da linguagem na constituio dos sujeitos histricos.

    Entretanto, seguindo essa espcie de percurso que tem a ver com aforma como o pensamento bakhtiniano foi se instalando nos estudos dalinguagem, interferindo na concepo de pesquisa e de conhecimento deprticas sociais, culturais e histricas, outros dois trabalhos, assinados por

  • 25

    Bakhtin, devem ser mencionados: A obra de Franois Rabelais e a culturapopular na Idade Mdia, que aparece em 1965 e tem sua primeira traduopara o portugus em 1987, e Questes de literatura e de esttica a teoria doromance, datada de 1975 e traduzida para o portugus em 1988. ComoProblemas da potica de Dostoivski, eles parecem, pelo ttulo, interessar ape-nas aos literatos e, por essa razo, durante algum tempo, foram lidos so-mente por estudiosos da linguagem literria.

    O que contm essas duas obras para interessar outras reas do conheci-mento que no a teoria da literatura? Que noes fundamentais trazem quese articulam ao restante do pensamento bakhtiniano, impedindo os interes-sados na teoria/anlise dialgica do discurso de ignor-las?

    Em A obra de Franois Rabelais e a cultura popular na Idade Mdia, como propsito de estudar esse autor e mostrar aspectos ainda no desvendadosde sua obra, Bakhtin faz um estudo original sobre o riso, sobre a culturapopular, sobre o Carnaval, fenmenos que, pela tradio e pelas particula-ridades, propiciam uma viso inusitada, criativa e irreverente do mundo. Ovocabulrio da praa pblica, as formas e imagens da festa popular, a ima-gem grotesca do corpo, as imagens de um autor e a realidade de seu temposo alguns dos aspectos cujo estudo aprofundado resultou em conceitosque, mais tarde, foram mobilizados pela Lingstica, pela literatura, pelaantropologia ou por outras Cincias Humanas.

    Mais uma vez, um conceito fundante do pensamento bakhtiniano construdo a partir da leitura do conjunto da obra de um autor, apontandopara a anlise das especificidades de um discurso e para a maneira como eleindicia o contexto extralingstico que o constitui. Sem dvida, a estopraticados alguns princpios observados terica e praticamente em Proble-mas da potica de Dostoivski e que, na observao da obra de Rabelais,resultam no conceito de carnavalizao, to importante quanto o conceitode polifonia. verdade que o destino de carnavalizao muito parecidocom o de polifonia...

    Em Questes de literatura e de esttica a teoria do romance, aparecemalgumas noes que especialmente os lingistas utilizam com muita produ-tividade. Esse o caso de plurilingismo, palavra autoritria e palavra inte-riormente persuasiva, por exemplo, dimenses que, a fim de serem trabalha-das na literatura, foram, primeiramente, apontadas como caractersticas da

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    26

    linguagem em uso, inspirando muitos estudos e possibilitando leituras nopreconceituosas em relao s diferentes formas que a lngua e a linguagemassumem, necessariamente, do ponto de vista histrico, social, cultural.

    Durante muito tempo, e at hoje, muitas pessoas perguntam por queler e discutir Questes de literatura e de esttica a teoria do romance, se apraia dos lingistas a anlise do discurso? Em primeiro lugar, porque asmanifestaes artsticas da linguagem no esto excludas de uma teoria/anlise dialgica do discurso, uma vez que as artes constituem discursospoderosos sobre a vida, sobre os seres humanos. Deve-se ler tal obra especial-mente porque a teoria do romance no pensamento bakhtiniano ocupa umespao fundamental para se entender a linguagem em sua multiplicidade,em sua variao, no dialogismo que a constitui e no entrecruzar de discur-sos magistralmente representados nos romances, na prosa de fico. Se osestudiosos da literatura tiveram acesso a algumas obras antes dos lingistas,assim como os lingistas tiveram acesso a Marxismo e filosofia da linguagemantes dos estudiosos da literatura, sabe-se hoje que essa separao no podeser levada em conta na medida em que o pensamento bakhtiniano, parafalar da linguagem em uso e avanar em sua concepo social e histrica delinguagem, no descarta qualquer tipo de discurso.

    Quando, em 1979, aparece a obra Esttica da criao verbal reuniode um conjunto de escritos de diferentes pocas, de 1919 a 1974, e a que oautor na verdade no deu acabamento final , de fato, a idia de um pensa-mento bakhtiniano se concretizou, assim como o de uma teoria/anlisedialgica do discurso. Os conceitos de enunciado, comunicao verbal, g-neros discursivos, formas e concepes de destinatrio, esferas da atividadehumana, texto e, ainda, observaes sobre a epistemologia das CinciasHumanas do continuidade e dialogam com conceitos iniciados em obrasanteriores, em momentos anteriores, preenchendo aparentes lacunas. Otexto O autor e o heri, que pelo ttulo novamente poderia parecer volta-do apenas a uma rea do conhecimento, demonstra uma forte vocao paradiscutir, em profundidade, a questo da relao eu/outro, tanto na vidacomo na arte, a includa a pesquisa, especialmente nas Cincias Humanas.A citao de um pequeno trecho ajuda a compreender essa afirmao, esseaspecto nuclear do papel do pensamento bakhtiniano para a pesquisa emCincias Humanas, transformando o objeto da pesquisa em sujeito:

  • 27

    Devo identificar-me com o outro e ver o mundo atravs de seu

    sistema de valores, tal como ele o v; devo colocar-me em seu lugar,

    e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo

    o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldur-lo,

    criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha

    viso, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento.19

    Sem dvida, essas poucas referncias do a indicao do alcance dosescritos contidos nessa obra e da forma como ela atuou e continua atuandosobre os estudos da linguagem.

    Indicados esses ttulos e um certo caminho percorrido para a instalaodo pensamento bakhtiniano, e que sem dvida podem ser reconhecidos naprodutividade representada pelos trabalhos de pesquisadores e grupos depesquisadores, ainda se deve destacar mais alguns estudos que, assinadospor componentes do Crculo, tambm representam aspectos nucleares dopensamento bakhtiniano e da teoria/anlise dialgica do discurso.

    Discurso na vida e discurso na arte, escrito em 1926 e assinado Voloshinov, um deles.20 Nesse texto de poucas pginas esto contidas algumas dasidias nucleares do pensamento bakhtiniano, como o caso de interao.Tal conceito retomado em Marxismo e filosofia da linguagem, quando otexto apresenta uma srie de noes sem as quais seria impossvel compreen-der a amplitude e o alcance de interao. o caso de conceitos comoenunciao ou enunciado concreto, comunicao, incluindo a comunica-o esttica, verbal e extraverbal se pressupondo, e as noes de situao econtexto como elementos diferenciados. Tambm a aparecem os conceitosde entoao e avaliao, como marcas da participao ativa dos interlocutoresno evento social representado pelo discurso. Todos esses aspectos vo sur-gindo a partir de um exemplo que resulta numa idia muito repetida porns, ainda que no tenhamos lido diretamente este texto: O eu poderealizar-se verbalmente apenas sobre a base do ns. Essas indicaes pare-cem suficientes para o reconhecimento de que numa teoria/anlise dialgicado discurso os conceitos enunciados acima so imprescindveis.

    Um ltimo texto, que na verdade certamente um dos primeiros senoo primeiro a ser escrito por Bakhtin, publicado na Rssia em 1986, queconfirma a gnese de uma teoria/anlise dialgica do discurso. Trata-se dePor uma filosofia do ato,21 certamente o texto mais difcil do conjunto, no

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    28

    apenas por no ter sido finalizado pelo autor, mas justamente por trazer asbases filosficas do pensamento bakhtiniano. L esto as noes de evento,de ato, de acontecimento, aspectos que sem dvida podem ser reconheci-dos pelos que leram as obras posteriores e que, talvez por isso, podem com-preender de onde partem as idias, qual o ncleo gerador do conjuntoque identificamos como pensamento bakhtiniano.

    Com esse texto, a idia j enunciada de uma concepo de estudos da lin-guagem como lugar de produo de conhecimento de forma comprometida,responsvel e, ainda, de uma concepo de linguagem, de construo e produ-o de sentidos, necessariamente apoiada nas relaes discursivas empreendidaspor sujeitos historicamente situados, fica confirmada. Como diz Augusto Ponzio,num ensaio intitulado Para uma filosofia da ao responsvel:

    Bakhtin insiste sobretudo no compromisso inevitvel com o outro

    com um outro concreto, e no com um outro eu abstrato,

    concebido teoricamente como conscincia gnoseolgica abstrata

    que o ser responsavelmente partcipe comporta na unicidade do

    prprio lugar no mundo.22

    Para finalizar, esto enunciadas algumas caractersticas dessa teoria/an-lise dialgica e que aparecem evidenciadas neste volume em cada umdos textos que, para situar um conceito-chave, mobiliza o pensamentobakhtiniano, e alguns de seus interlocutores, no que ele tem de original:fazer da anlise um processo de dilogo entre sujeitos, no sentido forteassumido pelo termo.

    (I) H conceitos prximos, mas no necessariamente intercambiveis, caso dealteridade, dialogismo, polifonia, que constituem, como heterogeneidade,interdiscursividade e intertextualidade, dimenses da noo de outro e desua importncia na reflexo sobre linguagem. Nem sempre esses conceitosse fundamentam nos mesmos princpios, ganhando especificidades emdiferentes tericos ou tendncias de anlise. O conceito de heterogeneidade,cunhado por Jacqueline Authier-Revuz, assim como o de intertextualidade,estabelecido por Kristeva, tm fortes razes no pensamento bakhtiniano,ainda que ambas tenham recorrido a outros arredores tericos e deslocadoos conceitos para o centro de suas preocupaes especficas. De qualquerforma, seja qual for o rumo assumido, a questo da alteridade constitutiva

  • 29

    ganhar um espao fundamental nos estudos da linguagem, interferindona noo de sujeito, de autoria, de texto (verbal e no verbal), de discurso,interlocutor e especialmente de vozes discursivas.

    (II) H formas e graus de representao da dimenso dialgica da linguagem,trabalhadas especialmente a partir das obras Filosofia do ato (1919), Marxismoe filosofia da linguagem, Problemas da potica de Dostoivski, A cultura popularna Idade Mdia e no Renascimento, que ajudam a entender o conceito dedialogismo como constitutivo de qualquer discurso, mas que pode serdimensionado diferentemente em textos e discursos especficos. Essasdiferenas produzem diferentes efeitos de sentido, indiciando o projeto defala a implicado. Assim sendo, os trabalhos sobre argumentao, persuaso,por exemplo, tm se valido na ltima dcada da teoria bakhtiniana e doselementos que ela oferece em termos de perspectiva enunciativa, explicitaoe posicionamento das vozes discursivas.

    (III) H um dimensionamento essencial da interao, ligada enunciao, sformas de produo e circulao dos textos e discursos. Em Discurso na artee discurso na vida (1926), texto que objetiva tentar alcanar umentendimento do enunciado potico, como uma forma desta comunicaoesttica especial, verbalmente implementada,23 chama a ateno a maneiracomo o conceito de interao, considerado processo verbal e processo social,comea a ganhar singularidade na reflexo bakhtiniana. Mais tarde, ele serevela um esteio da concepo de linguagem do Crculo.

    As contribuies bakhtinianas para uma teoria/anlise dialgica do dis-curso, sem configurar uma proposta fechada e linearmente organizada, cons-tituem de fato um corpo de conceitos, noes e categorias que especificama postura dialgica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesqui-sador. A pertinncia de uma perspectiva dialgica se d pela anlise dasespecificidades discursivas constitutivas de situaes em que a linguagem edeterminadas atividades se interpenetram e se interdefinem, e do compro-misso tico do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, umsujeito histrico.

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

    30

    NOTAS1 Paulo Bezerra, Prefcio segunda edio brasileira, em Mikhail Bakhtin, Problemas da potica

    de Dostoiviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2002, p. X.2 Mikhail Bakhtin, Problemas da potica de Dostoiviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de

    Janeiro, Forense Universitria, 2002, p. 181.3 Idem, p. 182.4 Idem, p. 183.5 Idem, p. 184.6 Cristovo Tezza, A polifonia como categoria tica, em Cult Especial Biografia, So Paulo,

    n. 4, pp. 24-26.7 A respeito de carnavalizao e gneros, consultar: o texto Carnavalizao, de Norma Discini,

    (nesta obra); Irene Machado, Gneros discursivos, em B. Brait (org.), Bakhtin: conceitos-chave, So Paulo, Contexto, 2005, pp. 151-66; B. Brait e R. Rojo, Gneros: artimanhas do textoe do discurso, So Paulo, Pueri Domus/Escolas Associadas, 2002.

    8 Mario Vargas Llosa, O falador, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p.65.9 Idem.10 Idem, p. 78.11 Idem, p. 86.12 Idem, p. 87.13 Jornal do Brasil, 12/4/1975.14 Franois Dosse, Histria do estruturalismo: o canto do cisne de 1967 aos nossos dias, trad.

    lvaro Cabral, So Paulo/Campinas, Editora Ensaio/Editora da Unicamp, 1994, p. 493.15 A edio espanhola, traduzida por Tatiana Bubnova e datada de 1992, traz unicamente a assina-

    tura de Valentin Niklaievich Voloshinov.16 A respeito de interdiscurso, ver nesta obra o texto Interdiscursividade e intertextualidade, de

    Jos Luiz Fiorin.17 Para uma melhor compreenso desse aspecto, ver: Carlos Alberto Faraco, Linguagem e dilogo:

    as idias lingsticas do Crculo de Bakhtin, Curitiba, Criar, 2003.18 Marilia Amorim, A contribuio de Mikhail Bakhtin: a tripla articulao tica, esttica e

    epistemolgica, em M. T. Freitas et al., Cincias Humanas e Pesquisa: leituras de MikhailBakhtin, So Paulo, Cortez, 2003, p. 12.

    19 M. Bakhtin, Esttica da comunicao verbal, trad. Paulo Bezerra, 4. ed., So Paulo, MartinsFontes, 2003, p. 45.

    20 La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia una potica sociolgica, por ValentinVoloshinov (M. M. Bajtin). In: Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia Del acto tico. De losborradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.

    21 Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia del acto tico: De los borradores. Y otros escritos, trad.Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.

    22 Augusto Ponzio, Para una filosofa de la accin responsable, em Mijail M. Bajtin, Hacia unafilosofia del acto tico De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona,Anthropos Editorial, 1997, p. 236.

    23 Discurso na arte e discurso na vida.

  • 31

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AMORIM, Marilia. A contribuio de Mikhail Bakhtin: a tripla articulao tica, esttica eepistemolgica. In: FREITAS, M. T. et al. Cincias Humanas e pesquisa: leituras de MikhailBakhtin. So Paulo: Cortez, 2003.

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    BAJTIN, M. M. Hacia una filosofia del acto tico: De los borradores. Y otros escritos. Trad. TatianaBubnova. Barcelona: Anthropos Editorial, 1997.

    BAKHTIN, M. Problemas da potica de Dostoiviski. Trad. Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro:Forense Universitria, 2002 [1. ed. russa 1929].

    BAKHTIN, M. (V. N. Volochinov) Le marxisme et la philosophie du langage essai dapplication de lamthode sociologique en linguistique. Trad. Marina Yaguello. Paris: Minuit, 1977.

    _______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico na cinciada linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. So Paulo: Hucitec, 1997.

    BAKHTIN, M. Esttica da comunicao verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. So Paulo: MartinsFontes, 2003.

    BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. So Paulo: Contexto, 2005.

    BRAIT, B. e ROJO, R. Gneros: artimanhas do texto e do discurso. So Paulo: Pueri Domus/EscolasAssociadas, 2002.

    DOSSE, Franois. Histria do estruturalismo: o canto do cisne de 1967 aos nossos dias. Trad. lvaroCabral. So Paulo/Campinas: Editora Ensaio/Editora da Unicamp, 1994.

    FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e dilogo: as idias lingsticas do Crculo de Bakhtin. Curitiba:Criar, 2003.

    LLOSA, Mario Vargas. O falador. Trad. Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

    TEZZA, Cristovo. A polifonia como categoria tica. Cult Especial Biografia. So Paulo, n. 4, 2006,pp. 24-6.

    VOLOSHINOV, N. Valentin. El marxismo y la filosofa del lenguaje: los principales problemas delmtodo sociolgico en la ciencia del lenguaje. Trad. Tatiana Bubnova. Madrid: Alianza Edito-rial, 1992.

    Anlise e teoria do discurso BETH BRAIT

  • Bakhtin, Foucault,Pcheux

    Maria do Rosrio Gregolin

    A histria de uma cincia um conjunto indefinidamente mvel deescanses, defasagens, coincidncias, que se estabelecem e se desfazem.

    (Michel Foucault, As palavras e as coisas)

    ENTORNOS DA HISTRIA

    Escanses, defasagens, coincidncias: tais so, segundo Foucault, osentornos da histria agindo sobre o desenvolvimento das teorias. Apanharalguns dos fios que entrelaam esses entornos, iniciar uma discusso sobrenossas heranas e filiaes no campo da anlise do discurso (AD) praticadaatualmente no Brasil so os objetivos deste artigo. Por meio de uma revisitaoa alguns momentos da constituio dessa disciplina, centrada particular-mente nas propostas de Pcheux, Bakhtin e Foucault, procuro caminharem direo histria da construo conceitual que interliga o discurso, osujeito e a sociedade. Esse movimento motivado pela tentativa de rebateralgumas idias muito freqentes hoje em dia, como, por exemplo, as que

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    afirmam que: a) tudo AD e b) a AD carece de identidade terica. Na basedessas afirmaes est a no considerao dos lugares ocupados por certosautores e suas formulaes, das diferenas tericas e metodolgicas e, con-seqentemente, da existncia de diferentes projetos no interior de um grandecampo do saber, hoje denominado AD.

    Ao mesmo tempo, ao pensar sobre nossas heranas e filiaes, abre-sea possibilidade de discutir a circulao de certos slogans como a ADpecheutiana s trabalha com o ideolgico ou Foucault nada tem a vercom discurso; ou, ainda, a reduo de um pensador como Bakhtin a umpunhado de conceitos como gnero, dialogismo, etc., desligados docontexto histrico e poltico em que foram produzidos.

    Enfim, na base de minha argumentao est a interrogao: como enu-merar esses nomes de autores sem transform-los em fetiches tericos? Ou, emoutras palavras: como fugir do apagamento da dimenso histrica da AD eenxergar a contribuio de cada um deles num certo momento da constru-o de um grande projeto terico que atravessou o sculo XX e se estende atos nossos dias?

    Tenho, portanto, o objetivo de iniciar uma discusso necessria, atual-mente, para o campo da AD no Brasil, atravessado pelo apagamento da sin-gularidade das posies, posicionando-me contra a homogeneizao que,nas palavras de Courtine1 amalgama, neutraliza e torna indistinguvel sobuma etiqueta consensual posies tericas contraditrias. Mais do que nunca, necessrio resgatar as fundaes tericas dos projetos desses diferentesautores, as exigncias tericas dos seus textos fundadores para, a partir des-se movimento, problematizar a prpria noo de herana, isto , lanaraos analistas de discurso o desafio de nos perguntarmos: como esses auto-res foram e esto sendo lidos, interpretados e postos em funcionamento emtrabalhos atuais no Brasil?

    LUGARES DE AUTORIA

    Proponho enxergar lugares de autoria na histria dos desenvolvimentos daAD, a partir dos dilogos tericos que Pcheux trava com os pensamentos deBakhtin e Foucault. Desse ponto de vista, ao pensar as propostas desses auto-

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    res no interior do projeto terico pecheutiano, possvel visualizar diferentesmomentos da histria epistemolgica da AD. Assim, esses trs Michis (comsuas singularidades) tomam seu sentido no interior do projeto de constitui-o desde o final dos anos 1960, na Frana de uma anlise do discursoque adotou, num primeiro momento, o discurso poltico como objeto privi-legiado. Essa tentativa totalmente identificada com o marxismo e a psican-lise fez da Lingstica uma referncia metodolgica essencial. Portanto, osdilogos entre Pcheux, Foucault e Bakhtin envolveram diferentes respostas articulao entre teorias lingsticas, teorias do sujeito e teorias da histria eda sociedade. Observando os distanciamentos e as aproximaes entre essasdiferentes formulaes, perceberemos que o solo epistemolgico da AD foifertilizado pela interpretao que cada um desses autores fez daquilo quePcheux chamou de trplice aliana, em torno de Saussure, Marx e Freud.A nfase, as aproximaes e os distanciamentos em relao a essa trade deter-minaram a arquitetura das propostas.

    Do mesmo modo, preciso considerar que, enquanto Pcheux e Foucaultviveram intensamente as lutas polticas da Frana entre 1960-1980, Bakhtinproduziu sua obra terica em outro tempo e espao, e, por isso, ele participada AD como um outro, uma leitura, uma interpretao. Nesse sentido, aleitura que Pcheux faz de Bakhtin determinada por vrias distncias: par-ticipando da primeira recepo de Bakhtin na Frana, no final dos anos1960,2 como todos os que o leram naquele momento, Pcheux tinha umavaga referncia sobre aquele terico russo de quem se traduzia Marxismo efilosofia da linguagem e Problemas da potica de Dostoivski, obras escritas naUnio Sovitica do final dos anos 1920.3 Como sabemos, a obra de Bakhtin muito ampla e diversificada e ainda hoje no totalmente conhecida.

    Nas dcadas de 1960-1970, momento da primeira recepo de Bakhtinna Europa, as obras traduzidas incidem sobre problemas da literatura,razo pela qual ele ser uma referncia fundamental para os estudiosos deTeoria Literria. Segundo Brait,4 Marxismo e filosofia da linguagem, obrade grande interesse para os estudos lingsticos, datada de 1929 e traduzidano final da dcada de 1960, na verdade ter realmente repercusso nadcada de 1980, quando aparece como uma forma de incorporar aos es-tudos lingsticos uma concepo de linguagem diferente da Lingsticaps-saussureana, na medida em que inclua a histria e o sujeito. Assim,

    Bakhtin, Foucault, Pcheux MARIA DO ROSRIO GREGOLIN

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    Bakhtin, nesse primeiro momento de sua leitura no Ocidente, teve umimpacto muito mais forte sobre os estudos literrios do que sobre os estu-dos lingsticos. Hoje, livros de Bakhtin como Problemas da potica deDostoivski e A obra de Franois Rabelais e a cultura popular na Idade M-dia e no Renascimento, mesmo tendo a literatura como objeto principal, tomado por lingistas como fonte para a reflexo sobre gnero, polifonia,cronotopo, carnavalizao, formas de incorporao do outro linguagem,definio do outro bakhtiniano, vozes, etc.

    Essas distncias temporais e espaciais explicam, em certa medida, asrecusas expressas por Pcheux em relao a Bakhtin. Da mesma forma, astransformaes tericas e polticas ocorridas entre os anos 1960-1980 en-curtaro essas distncias e levaro o projeto pecheutiano a incorporar pro-postas bakhtinianas. Essa incorporao vir atravs dos trabalhos de J.Authier-Revuz e trar para a AD a idia de heterogeneidade, indicando umavia para a anlise das relaes entre o fio do discurso (intradiscurso) e ointerdiscurso, na anlise das no-coincidncias do dizer.5

    O projeto pecheutiano de AD se delineia inicialmente em uma poca derecusas. Fortemente assentada nas teses althusserianas, entre 1969 e 1975,a obra de Pcheux estabelece um dilogo conflituoso com Foucault e Bakhtin.A partir de 1976, deslocando-se de posies dogmticas (tanto polticasquanto tericas), Pcheux faz a crtica das propostas da primeira poca,remodela o edifcio terico e se aproxima desses autores, incorporando con-tribuies que abrem diversas perspectivas para a anlise de discursos.

    Assim, o que Pcheux chamou de trs pocas da AD6 revela os emba-tes, as reconstrues, as retificaes operadas na constituio do campoterico em torno da articulao entre a lngua, o sujeito e a sociedade. Nodecorrer das trs pocas, essa articulao ser construda a partir das refle-xes de Althusser s quais Pcheux acrescenta aportes de Foucault e deBakhtin. Um percurso feito de lutas, combates, escanses. Afinal, nada mais estranho ao pensamento desses autores do que a idia de um desenvol-vimento contnuo, teleolgico do saber cientfico, que atingiria sua pleni-tude num certo momento. Ao contrrio, esse dilogo do pensamento dePcheux com os outros Michis se d sob a forma da descontinuidade, doemaranhado de descontinuidades que afasta qualquer possibilidade tantoda linearidade quanto da idia de um projeto unificador do saber.

  • 37

    GRANDES RECUSAS: DIVERGNCIAS ENTRE PCHEUX EBAKHTIN

    No interior do grupo de Michel Pcheux, as discusses sobre as propos-tas de Bakhtin ocorreram em meados dos anos 1970, e ele foi visto, pelamaioria dos integrantes, como um pensador que trazia grande contribuioaos estudos de anlise do discurso na medida em que a sua translingsticarecuperava a dimenso histrica, social e cultural da linguagem. MichelPcheux, no entanto, no concorda com Bakhtin em dois pontos cruciais:a) a crtica bakhtiniana ao objetivismo abstrato de Saussure e b) a inser-o bakhtiniana em concepes marxistas que, para Pcheux, pertencemao sociologismo e ao humanismo terico.

    Por isso, diante daquilo que era at ento conhecido das propostas deBakhtin, as discordncias principais de Pcheux envolvem seus diferentesposicionamentos em face da teoria lingstica e de uma teoria do social eda histria.7

    DUAS LEITURAS DE SAUSSURE

    Tanto Pcheux quanto Bakhtin retornam a Saussure a fim de discuti-rem o objeto da Lingstica estrutural (a langue, como sistema abstrato,formal) e proporem um novo objeto o discurso. Mas esse retorno se dde maneira diferente nos dois autores, o que provoca a discordncia dePcheux com a leitura de Bakhtin. Novamente, so duas leituras que sedo em momentos histricos diferentes e por isso produzem diferentesefeitos de sentido.

    Em toda a obra de Pcheux, a reflexo sobre a relao entre a Lings-tica fundada por Saussure e a teoria do discurso essencial. Para ele, Saussuremostrou a complexidade da lngua, entendendo-a, ao mesmo tempo, comoinstituio social e como sistema de signos. Pcheux8 e Gadet procuram evi-denciar que a Lingstica ps-saussureana obscureceu a idia do valor ecentralizou-se na separao radical entre lngua e fala e que isso a) levou aLingstica a abandonar o estudo da Semntica e b) abriu a porta para oformalismo e o subjetivismo (j que a parole pensada como individual e,por isso, o objeto da Lingstica deve ser a langue, pensada como sistema

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    abstrato e coletivo). Essa leitura, segundo Pcheux, deixou na sombra agrande inovao de Saussure, a descoberta do real da lngua o fato de queo equvoco um fato estrutural9 e, por isso, contm a possibilidade dametfora, dos deslizamentos, dos jogos de palavras (o jogo nas regras e ojogo com as regras). Visto dessa maneira, o sistema contm a regulao e acriatividade e torna possvel, simultaneamente, a felicidade da simetria e odrama da abertura de cada palavra.10 Esse fato incontornvel faz com quea fronteira que separa o lingstico e o discursivo seja constantementerecolocada em causa em toda prtica discursiva, pois as sistematicidadesno existem sob a forma de um bloco homogneo de regras organizadas maneira de uma mquina lgica.

    Acatando a idia de que nas propostas saussureanas apresenta-se essa com-plexidade do objeto lngua e que, portanto, no h um corte entre alangue e o discurso , Pcheux no concorda com as crticas formuladas porBakhtin/Voloshinov ao objetivismo abstrato de Saussure. Esse o primeiroponto de sua recusa s teses bakhtinianas: ele entende que h um erro deavaliao em Marxismo e filosofia da linguagem11 e coloca-se do lado dos traba-lhos do Crculo Lingstico de Moscou (principalmente de Jakobson) e dosformalistas. Evidentemente, no podemos nos esquecer de que, diferente-mente de Bakhtin que tomou contato com as idias do Curso de LingsticaGeral logo aps sua publicao, no incio dos anos 1920, e se ope leituraque os formalistas fazem de Saussure12 , Pcheux, nos anos 1970, faz umaleitura de Saussure j fundamentada nos trabalhos de Godel13 sobre as fontesmanuscritas do Curso de Lingstica Geral e de Starobinsky14 sobre os estudossaussureanos dos anagramas. Assim, antes de atribuir a leitura correta deSaussure a Pcheux ou a Bakhtin, mais prudente que perguntemos: noestaro eles falando de dois diferentes Saussures?

    Com base na tese de que houve uma leitura equivocada de Saussure,Pcheux afirma que Bakhtin tende a anular a dimenso prpria da lngua:opondo ao sistema abstrato de formas lingsticas o fenmeno social dainterao verbal, realizada atravs da enunciao e dos enunciadores; eleconduz fuso da Lingstica em uma vasta semiologia.15 Pcheux enten-de que Saussure deve ser considerado como o inaugurador da cincia dalinguagem e, por isso, em torno de suas propostas devem continuar a seremgestadas as grandes questes da anlise do discurso: a possibilidade de pen-

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    sar os jogos da/na lngua (a felicidade da simetria/o drama da abertura), aproduo da singularidade do sujeito na lngua, assim como a articulaoentre a lngua, a ideologia e o inconsciente.

    DUAS LEITURAS MARXISTAS

    O segundo plo de crticas de Pcheux em relao a Bakhtin diz respeitos suas diferentes maneiras de pensar a articulao entre o discurso, o sujeitoe o social a partir do marxismo. A posio fortemente althusseriana dos traba-lhos de Pcheux de 1969 a 1975 leva-o a recusar o que chama desociologismo de Bakhtin, entendido como o anncio de uma sociolingsticamaterialista apoiada numa psicologia social herdada de Plekhanov,16 queencontra suas garantias numa psico-sociologia da comunicao verbal. Se-gundo Pcheux, na base das propostas bakhtinianas est a ideologia da Vida, ohumanismo terico,17 que entendem a produo do discurso como fruto daciso indivduo/sociedade e o inscrevem na esfera das relaesinterindividuais.18 Assim, o segundo ponto terico fundamental, em tornodo qual se assentam as crticas de Pcheux a Bakhtin, o modelo bakhtinianoda interindividualidade, que se fundamenta na idia de interaosociocomunicativa. Para Pcheux, a produo do sentido no pode ser pensa-da na esfera das relaes interindividuais; do mesmo modo, ela no pode sertomada em relaes sociais pensadas como interao entre grupos humanos.

    Essa recusa a Bakhtin expressa uma crise no interior da anlise dodiscurso francesa, uma diviso entre aqueles que Pcheux classifica comolingistas marxistas e aqueles rotulados como os sociologistas. H, nessadiviso, uma luta terica determinada pelas diferentes posies dos inte-lectuais franceses, nos anos 1970, no interior do Partido Comunista Fran-cs. Aliando-se vertente dos lingistas marxistas, Pcheux critica ossociologistas que desenvolvem uma sociolingstica materialistacentrada nas idias de interao e dialogismo o grande alvo de sua crti-ca so as posies expressas, por exemplo, por Marcellesi e Gardin.19 ParaPcheux, essa sociolingstica um lugar de recobrimento da polticapela psicologia, em que se desdobram sem perceber as evidncias dosujeito individual e coletivo, da comunicao intersubjetiva.20 Marxista

    Bakhtin, Foucault, Pcheux MARIA DO ROSRIO GREGOLIN

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    filiado s teses althusserianas, Pcheux no poderia concordar com as te-ses de Bakhtin que articulam o signo ideolgico, ao mesmo tempo, comoarena das lutas sociais e expresso ntima e pessoal de indivduosinterlocutores. Essa discusso sobre as divises entre as interpretaesmarxistas entremeava-se com a poltica, e os althusserianos travavam,naquele momento de crise do marxismo, uma batalha terico-polticacontra o que denominavam de reformismo.21

    Inserido nessa verdadeira guerra que determinava aos grupos de inte-lectuais daquele momento que se perguntassem: o que ser marxista emLingstica? Pcheux prope que, a partir do materialismo histrico, preciso mudar de terreno a fim de lutar contra o empirismo (desembara-ar-se da problemtica subjetivista centrada no indivduo) e contra o for-malismo (no entender a lngua como uma mquina lgica e sem exterior uma lngua de marcianos). Isso implicava a introduo de novos objetostomados em relao ao novo terreno terico.

    As divergncias fundamentais do grupo pecheutiano no que diz respei-to a Bakhtin era, certamente, essa relao com o marxismo, j que, apesarde no concordarem com a leitura que ele faz de Sausurre, tanto para Pcheuxquanto para Bakhtin, duas idias fundamentais assentam seus projetos deanlise do discurso: a) a lngua um sistema e, portanto, tem uma organi-zao que j prev a possibilidade dos deslizamentos; b) a lngua umainstituio social. Esse carter sistmico e social da linguagem a base apartir da qual ser pensada a heterogeneidade dos processos discursivos. Alngua entendida como condio de possibilidade do discurso e a questoa ser respondida : se a lngua o lugar material onde se realizam os efeitosde sentido, de que feita sua materialidade? Nos ltimos textos de Pcheux,desde 1980, a problemtica do real da lngua aliada ao problema do realda histria ser uma interrogao constante. E o grupo pecheutiano en-contrar nas formulaes bakhtinianas respostas para entenderem essamaterialidade discursiva na anlise da heterogeneidade enunciativa.

  • 41

    PCHEUX, FOUCAULT: VOZES ENTREMEADAS

    Para o desenvolvimento da obra de Pcheux, Foucault foi sempre umadversrio estimulante. Desde as primeiras formulaes da AD pecheutianaencontram-se idias derivadas da arqueologia do saber foucaultiana como oconceito central de formao discursiva. Foucault desenvolve essa noo comoum dispositivo metodolgico para a anlise arqueolgica dos discursos, daa sua definio:

    No caso em que se puder descrever, entre um certo nmero de

    enunciados, semelhante sistema de disperso e, no caso em que

    entre os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos, as escolhas

    temticas se puder definir uma regularidade (uma ordem, correla-

    es, posies e funcionamentos, transformaes) diremos, por

    conveno, que se trata de uma formao discursiva [...].22

    Ao deslocar esse conceito para sua proposta de anlise do discurso,Pcheux d a ela uma interpretao que fortalece os aspectos lingsticos ea insere dentro das proposies althusserianas sobre o primado da luta declasses. O desenvolvimento desse conceito nuclear da AD mostra os confli-tos e as recusas de Pcheux em relao a Foucault, na sua reticncia ematribuir-lhe a autoria e o emprstimo.23 Novamente, as crticas em relao aFoucault ligam-se teoria lingstica e interpretao das teses marxistas.

    Com relao teoria lingstica, Pcheux categrico em afirmar queFoucault promove a eliso da lngua e, portanto, nem coloca em causa se halguma leitura saussureana sustentando o projeto foucaultiano de anlisedo discurso. Se essa no a preocupao central de Foucault a ponto deele ter estabelecido como sua trplice aliana os nomes de Nietzsche, Freud,Marx , o conceito de enunciado, fartamente discutido em A arqueologiado saber, no deixa dvidas de que ele est muito prximo da Semiologia,principalmente a barthesiana. Foucault define enunciado em relao ln-gua, entendendo-a como um sistema de possibilidades de construesenunciativas. No entanto, para a anlise arqueolgica no interessa essecampo de virtualidades das formas lingsticas. Partindo da idia de queno basta qualquer realizao material de elementos lingsticos, ou qual-quer emergncia de signos no tempo e no espao, para que um enunciadoaparea e passe a existir,24 Foucault mostra que o que torna uma frase,

    Bakhtin, Foucault, Pcheux MARIA DO ROSRIO GREGOLIN

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    uma proposio, um ato de fala em um enunciado justamente a funoenunciativa: o fato de ele ser produzido por um sujeito, em um lugarinstitucional, determinado por regras scio-histricas que definem e possi-bilitam que ele seja enunciado.

    Toda a discusso sobre o conceito de enunciado feita, em A arqueolo-gia do saber, a fim de precisar que o objeto da descrio arqueolgica no o enunciado atmico com seu efeito de sentido, sua origem, seus limitese sua individualidade, mas o campo de exerccio da funo enunciativa eas condies segundo as quais ela faz aparecerem unidades diversas (quepodem ser, mas no necessariamente, de ordem gramatical ou lgica).25

    O exerccio da funo enunciativa, suas condies, suas regras de con-trole, o campo em que ela se realiza esto no centro das reflexes de Foucault,na medida em que entre o enunciado e o que ele enuncia no h apenasrelao gramatical, lgica ou semntica; h uma relao que envolve ossujeitos, que passa pela Histria, que envolve a prpria materialidade doenunciado. dessa perspectiva que ele pode afirmar:

    [...] gostaria de mostrar que os discursos, tais como podemos

    ouvi-los, tais como podemos l-los sob a forma de texto, no so

    como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de

    coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta,

    visvel e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso

    no uma estreita superfcie de contato, ou de confronto, entre

    uma realidade e a lngua, o intrincamento entre um lxico e uma

    experincia; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos,

    que, analisando os prprios discursos, vemos se desfazerem os la-

    os aparentemente to fortes entre as palavras e as coisas, e desta-

    car-se um conjunto de regras, prprias da prtica discursiva. Essas

    regras definem no a existncia muda de uma realidade, no o uso

    cannico de um vocabulrio, mas o regime dos objetos. As pala-

    vras e as coisas o ttulo srio de um problema; o ttulo

    irnico do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os

    dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferen-

    te, que consiste em no mais tratar os discursos como signos (ele-

    mentos significantes que remetem a contedos ou a representa-

    es), mas como prticas que formam sistematicamente os objetos de

    que falam. Certamente os discursos so feitos de signos; mas o que

    fazem mais que utilizar esses signos para designar coisas. esse

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    mais que os torna irredutveis lngua e ao ato da fala. esse

    mais que preciso fazer aparecer e que preciso descrever.26

    Quanto relao com o marxismo, a partir do desenvolvimento dagenealogia do poder,27 as divergncias tornam-se acirradas, pois Foucault dis-corda fundamentalmente das teses centrais de Althusser: os aparelhos ideo-lgicos, a centralidade do poder de Estado, a interpelao ideolgica, oassujeitamento, a luta de classes, etc. Nesse sentido, conforme Pcheux devido s transformaes polticas posteriores a 1978 , se afasta das posi-es althusserianas dogmticas, seus pensamentos se aproximam.28

    A teoria foucaultiana da microfsica do poder e das resistncias vem deencontro s teses althusserianas, motivo pelo qual ele acusado pelo grupopecheutiano de praticar um marxismo paralelo.29 Foucault afirma que opoder no unitrio e global, mas se constitui de formas dspares, hetero-gneas, em constante transformao. Entendendo o poder como uma pr-tica social constituda historicamente, as anlises da genealogia do poderfoucaultiana realizaram um importante deslocamento em relao idiados aparelhos ideolgicos de Estado, pois propem que no h uma rela-o direta entre poder e Estado (considerado como um aparelho central eexclusivo de poder), mas que ele se manifesta em uma articulao de pode-res locais, especficos, circunscritos a uma pequena rea de ao (institui-o). Os micropoderes so formas de exerccio do poder diferentes doEstado, a ele articulados de maneiras variadas e que so indispensveis suasustentao e atuao eficaz. Foucault situa sua anlise no nvel em que opoder intervm materialmente e atinge os indivduos na concretude deseus corpos e penetra no seu cotidiano. Analisando os poderes molecularesque se relacionam com determinados saberes sobre o criminoso, a sexua-lidade, a doena, a loucura, etc. , sua anlise concebe o poder no comouma dominao global e centralizada que se pluraliza, difunde e repercutehomogeneamente nos diversos setores da vida social, mas como tendo umaexistncia prpria e formas especficas. Essa concepo coloca, para osalthusserianos, dois grandes problemas, fundamentalmente polticos e te-ricos. Politicamente, se o poder no tem um centro, a sua tomada pela classedominada e a modificao dos aparelhos de Estado no so suficientes parafazer desaparecer ou transformar, em suas caractersticas fundamentais, a

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  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    rede de poderes que impera em uma sociedade. Por negar a idia de revo-luo que poderia transformar o poder de Estado (e de seus aparelhos), osalthusserianos acusaro Foucault de reformista.

    Teoricamente, a idia de microfsica do poder faz com que as noes deaparelhos ideolgicos e de luta de classes (centrais nas propostasalthusserianas) percam seu valor heurstico: como os poderes no esto si-tuados em nenhum ponto especfico da estrutura social, se eles funcionamcomo uma rede de dispositivos sem um exterior possvel, limites ou fron-teiras, para Foucault no existe, de um lado, aqueles que tm poder (classedominante), e, de outro, os que esto dele alijado (classe dominada). Osmicropoderes se disseminam por toda a estrutura social. Do mesmo modo,a resistncia no tem um ponto fixo, mas pontos mveis, transitrios quetambm se distribuem por toda estrutura social, e h, no interior das pr-prias classes, microlutas pelo poder. Alm disso, Foucault no relaciona osaber e o poder diretamente com a economia (a infra-estrutura), como nomarxismo clssico. Compreendido como materialidade, como prtica, comoacontecimento, o saber est intimamente relacionado com os poderes. De-corre disso que Foucault no faz distino entre cincia e ideologia. Eleevita, explicitamente, empregar o termo ideologia, por ser muito carrega-do de significados, o que no denota, entretanto, que ele no mobilize aidia de luta pelo poder.

    Situando a ideologia como histria do saber, Foucault afasta a idia deneutralidade objetiva da cincia e da ideologia como falsa conscincia.Todo conhecimento (cientfico ou ideolgico) s pode existir a partir decondies polticas condies que determinam a possibilidade de forma-o tanto do sujeito quanto dos domnios de saber. Todo saber poltico;no porque gerado pelo Estado, mas porque tem sua gnese nas relaes depoder. Saber e poder se implicam mutuamente. O poder quer gerir, con-trolar, aumentar a produtividade dos corpos (objetivo econmico e polti-co). Para conseguir essa gesto e controle, criaram-se as sociedades discipli-nares, por meio da organizao do espao e do controle do tempo. A vigi-lncia um dos seus principais instrumentos de controle, pois ao mesmotempo em que exerce um poder, produz um saber. Em suas ltimas obras(A histria da sexualidade, principalmente no seu volume 1, A vontade desaber), Foucault formula a existncia de outras formas de poder alm da

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    disciplinaridade: analisando a sexualidade, v que o seu controle tambm exercido por um biopoder, cujos dispositivos envolvem a segurana, aregulao, etc.30

    Decorre dessas idias a anlise de que o poder produtor da iluso deindividualidade. O indivduo uma produo do poder e do saber (o hos-pcio produz o louco como doente mental, personagem individualizado apartir da instaurao de relaes disciplinares de poder). O poder discipli-nar no destri o indivduo; ao contrrio, o fabrica e, por isso, o indivduo um dos mais importantes efeitos do poder.

    Pensando o sujeito como essa fabricao, realizada, historicamente,pelas prticas discursivas, no entrecruzamento entre discurso, sociedade ehistria que poderemos observar as mudanas nos saberes e sua conseqen-te articulao com os poderes. Para Foucault, o sujeito o resultado de umafabricao que se d por intermdio de dispositivos e suas tcnicas. Portan-to, se o objetivo fundamental de Foucault produzir uma histria dos dife-rentes modos de subjetivao do ser humano na nossa cultura e, se essa histria constituda pelo discurso, a relao entre linguagem, histria e sociedadeest na base de suas reflexes. Usando as palavras de Foucault, para analisaros diferentes modos de subjetivao preciso determinar e descrever aproliferao dos acontecimentos atravs dos quais, graas ao quais e contraos quais se formaram as noes, os conceitos, os topoi que atravessam econstituem os objetos e engendram os discursos que falam sobre eles.31

    Assim, em vez de considerar o discurso como uma srie de acontecimentoshomogneos (as formulaes individuais), Foucault distingue, na prpriadensidade discursiva, diversos planos de acontecimentos possveis (planoda emergncia dos enunciados; do aparecimento dos objetos; dos tipos deenunciao; dos conceitos; das escolhas estratgicas; da derivao de novasregras; da substituio de uma formao discursiva por outra, etc.).

    PCHEUX, BAKHTIN, FOUCAULT: CONVERGNCIAS

    A partir de 1978, Pcheux inicia um perodo de autocrticas que ir desloc-lo, terica e politicamente, das posies dogmticas da primeira poca. Es-sas retificaes atingem pontos centrais das posies tericas e polticas (como

    Bakhtin, Foucault, Pcheux MARIA DO ROSRIO GREGOLIN

  • BAKHTIN outros conceitos-chave

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    no anexo edio inglesa de Semntica e discurso, publicada em 1978, cujottulo S h causa daquilo que falha); dos pressupostos e procedimentosda AD (como em Ltrange mirroir de lanalyse du discours),32 1981); domarxismo ( Discurso: estrutura ou acontecimento?)33.34 A discusso da articula-o entre discurso e histria torna-se proeminente, trazendo com ela umaampla reformulao que integra a noo bakhtiniana de heterogeneidade eque resulta, entre outros deslocamentos:

    a) na discusso sobre as relaes entre a materialidade discursiva e o interdiscurso,com a leitura feita por Authier-Revuz35 das propostas de Bakhtin e a formulaodos conceitos de heterogeneidade mostrada e constitutiva;

    b) no encontro com historiadores (Robin, Guilhaumou, Courtine), que traza rediscusso da relao entre discurso e histria a partir da leitura daspropostas de Foucault e a incorporao das noes de acontecimento,arquivo, prticas discursivas, etc;

    c) no papel decisivo da leitura de Bakhtin e de Michel de Certeau para que aAD incorporasse aquilo que Pcheux chama de registro do ordinrio do sentido:Coloca-se cada vez mais a necessidade de entender esse discurso na maiorparte das vezes silencioso da urgncia s voltas com os mecanismos desobrevivncia: trata-se, para alm da leitura dos Grandes Textos, de se prna escuta das circulaes cotidianas, tomadas no ordinrio do sentido.36 Atransformao no objeto de estudos da AD traz novas questes ao deslocar-se dos discursos escritos-legtimos-oficiais para o registro dos dilogos,rplicas, narrativas, histrias, provrbios, aforismos, etc. Como em Bakhtin,encontra-se em De Certeau,37 em sua reflexo sobre a escrita da histria, apreocupao com a alteridade, com a palavra do outro o patois durante aRevoluo Francesa, o possudo, o estrangeiro, o mstico e as formasutilizadas pelos sujeitos para se apropriarem dos cdigos e lugares que lheso impostos ou para subverterem as regras a fim de comporem novas formas(as invenes do cotidiano). Essas reflexes, em cuja base est um dilogocom as idias da arquegenealogia de Foucault,38 traz para a AD a problemticada tenso entre os poderes e as resistncias e a crtica de Pcheux, em seultimo texto, s teses althusserianas:

    Esse carter oscilante do registro do ordinrio do sentido escapou

    completamente intuio do movimento estruturalista, que o fe-

    chou totalmente no inferno da ideologia dominante e do empirismo

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    prtico, considerados como ponto-cego, lugar de pura reproduo

    do sentido.39

    A reviso terico-metodolgica, que aproxima a AD pecheutiana deFoucault, Bakhtin e De Certeau, leva anlise do real da lngua e do real dahistria, integrados na produo em espiral de reconfiguraes do corpus.So explicitadas, nos textos posteriores a 1978, a tematizao daheterogeneidade, a idia da alteridade (presena do discurso do outro comodiscurso de um outro e/ou discurso do Outro), as relaes entre intradiscursoe interdiscurso (no fio do discurso, vestgios da memria discursiva), etc.

    HERANAS, FILIAES...

    A discusso das recusas e das aproximaes entre o projeto da ADpecheutiana e os projetos de Bakhtin e Foucault, apenas esboada nestetexto, no prope, evidentemente, que seja possvel decidir quem estavacom a razo, porque as verdades cientficas so relativas. A prpria verda-de, conforme afirma Foucault, uma cons