besouro silva jonalva
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS - CAMPUS I
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDO DE LINGUAGENS JONALVA SANTIAGO DA SILVA
DO CORDEL NARRATIVA BIOGRFICA:
A INVENO DE BESOURO, O HERI DE CORPO FECHADO
SALVADOR BA
2010
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JONALVA SANTIAGO DA SILVA
DO CORDEL NARRATIVA BIOGRFICA: A INVENO DE BESOURO, O HERI DE CORPO FECHADO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Estudo de Linguagens da Univers idade do Estado da Bahia, como requis ito parcial para ob teno do ttu lo de Mestre, sob a orientao da Prof Dr. Mrcia Rios da Silva
SALVADOR BA 2010
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Ilustrao da capa: Desenho de Carybe. Extrado do livro O Jogo da capoeira. 24 desenhos de Caryb.K.Paulo Hebeisen. (org). Coleo Recncavo. Salvador, Livraria Turista, 1951.
S586
Silva , Jonalva Santiago da Do cordel narrativa biogrfica: A Inveno de Besouro
heri de corpo fechado/ Jonalva Santiago da Silva- Salvador, 2010. 126 f.:i l
Orientador Prof. Dr. Mrcia Rios da Silva .
Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia DepartamentoCincias Humanas - Campus I Programa
de Ps Graduao em Estudo de Linguagens.
1. Besouro Mangang - Capoeira na literatura brasileira 2.Capoeira Bahia 3 .Capoeirista I. Titulo
CDD B869.00
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Dedico este trabalho, in memoriam,a Jnatas Conceio da Silva. Tal qual Besouro, lutou , resist iu e ho je tambm brilha no cu. Virou estrela.
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AGRADECIMENTOS
minha especial orientadora, Profa. Dra. Mrcia Rios da Silva, pela pacinc ia e cumplicidade no acompanhamento e construo deste texto ; Profa. Dra. Florent ina Souza, desde o Exame de Qualif icao, pelas contribuies valiosas e laborao desta pesquisa; Ao Prof. Dr. Slvio Roberto de Oliveira, desde o Exame de Qualif icao, tambm pelas sugestes enr iquecedoras a este trabalho; Aos meus pais, Jos e Marina lva responsveis pelo meu exist ir e por sempre me incent ivarem a cont inuar crescendo ; Aos meus irmos e em especia l s minhas duas irms, Lad ismar e Adla por todo o incent ivo; A Vado e Igor, famlia que constru e que me faz sempre buscar novos ideais; Edna Viana pela ajuda na organizao do texto final; p ro fessora Beatr iz Ribeiro, pela a juda em algumas correes do texto; s minhas grandes amigas, irms do corao e anjos que encontre i, Andra e Margarete, pela convivncia intelectual, o que me fez amadurecer para a vida acadmica; Hildete, bibliotecria do PPGEduc, pelos textos interessantes que conseguiu para que melhor fundamentasse a minha pesquisa; Antonio Reinaldo , Mestre Lampio, incansvel pesquisador sobre Besouro, pelo acesso ao seu acervo e disponibilidade; Profa. Zilda Paim, pelos deta lhes sobre as hist rias de Besouro e pacincia para cont-las; Aos professores do PPGEL, pelos ensinamentos, em especial, Luciano Lima e Edil Costa; s secretarias de educao do Estado da Bahia e Mu nicipal de Santo Amaro pela concesso de licena, para a rea lizao deste estudo ; minha turma de mestrado, e ao meu grupo de estudo, Edna, Geraldo, Elizabete, Raquel por todas as trocas de exper incias; Aos atenc iosos secretr ios do PPGEL, Camila e Danilo; todos aqueles que, de alguma forma, contriburam para a rea lizao desse trabalho.
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RESUMO
Este estudo tem por objet ivo analisar as imagens ou representaes sobre o
capoeirista Besouro Mangang, tornado um mito, produzidas na literatura de
cordel, de autoria de Antnio Vie ira e de Victo r Alvim Garcia, e na narrat iva
de Marco Carvalho , como textos f iccionais que se a limentam de uma
textualidade popular. Buscando articular literatura, mito e histria,
entendidos como discursos, recorre-se a pesquisadores que contribuem para
uma compreenso da construo do mito Besouro, capoeirista ba iano que
nasce no contexto histrico da nova ordem republicana e ps -abolio, de
forte represso, por instnc ias jurdicas, ao jogo da capoeira. As narrat ivas
ana lisadas contribuem para ampliar uma tradio da literatura brasileira,
como textos f icc iona is que tensionam valo res das produes literrias
legit imadas.
Palavras-chave: Besouro Mangang. Capoeira. Textua lidade Popular.
Literatura Brasileira
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RSUM
Cette tude a comme objectif analyser les images ou les rpresentations sur le capoeirista
Besouro Mangang, qui est devenu un mito, produites dans la littrature de cordel, crit par
Antnio Vieira et Victor Alvim Grcia, et dans le rcit de Marco Carvalho, comme des textes
de fiction que se nourrissent dune textualit populaire. En cherchant articuler la littrature,
le mythe et l'histoire, compris comme des discours, il fait appel aux chercheurs qui
contribuent une comprhension de la construction du mythe Besouro, capoeirista de Bahia
qui est n dans le contexte historique du nouvel ordre rpublicain et daprs l'abolition, de
forte rpression, pour les cas juridiques, au jeu du capoeira. Les rcits analyss contribuent
pour agrandir une tradition de la littrature brsilienne, comme des textes de fiction que
tensionnent les valeurs des productions littraires lgitimes.
Mots-Cls: Besouro Mangang capoeira textualit popu laire littrature brsilienne
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SUMRIO
1 INTRODUO
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2 NO RECNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERI
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3 OS VOOS DE BESOURO NA LITERATURA DE CORDEL
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4 MORTE E NASCIMENTO DO HERI NEGRO EM FEIJOADA NO PARASO
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5 CONSIDERAES FINAIS
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REFERNCIAS 120
ANEXO 126
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1 INTRODUO
O capoeir ista Besouro Mangang nasceu provavelmente no ano de
1895, no municp io de Santo Amaro , no Recncavo Baiano, vindo a falecer
em 1924. Filho de negros escravizados que atravessaram o Atlnt ico, o
capoeirista viveu uma poca em que muitos deles viram-se obrigados a usar
seu corpo como mquina na co lheita e moagem da cana-de-acar, nas terras
dos senhores de engenhos. Contudo , apesar dessa vio lnc ia, fizeram do seu
corpo uma arte, no jogo da capoeira luta e dana , sncopa que marca a
cadncia, a firmando sua fora, como resistncia, em pro l da abolio.
Manuel Henrique Pereira, nome civil de Besouro Mangang,
conhec ido ainda como Besouro Preto ou Besouro Cordo de Ouro, viveu num
perodo de fo rte represso capoeiragem entre f inal do scu lo XIX e
comeo do sculo XX , tempo em que muitos negros vagavam e vadiavam
pelas ruas de muitas c idades da Bahia, particularmente a sua capital e as do
Rec ncavo, sem emprego fixo , explorados como mo-de-obra temporria. As
ruas passam a ser palco de um jogo encenado por muitos negros qu e
libertavam seu corpo inventando modos de viver e de se relac ionar,
protagonizando muitas histrias, que iam sendo retidas na memria de sua
comunidade.
Dentre as muitas histrias tecidas com os f ios do real e da
imaginao, as histrias produzidas por e sobre Besouro esto preservadas por
uma trad io oral, vindo a se const itu ir em uma textualidade popular, que
passou a alimentar as pginas de a lguns gneros literr ios, como o cordel, e,
recentemente, invadiu as telas do cinema, s inalizando a permanncia de um
mito, vindo a ser estudado por algu ns pesquisadores, que constatam naquela
textualidade um processo de construo da f igura de um heri popular.
A permanncia desse mito gerou as inqu ietaes deste trabalho, de
auto ria de uma estud iosa negra, tambm filha de Santo Amaro da Purif icao.
A minha vivncia em um ambiente soc ial impregnado da experinc ia histrica
dos negros, no qual compartilho os muitos causos sobre esse capoeir ista,
levou-me a indagar e a pesqu isar sobre a permanncia do mito Besouro to
famoso, seguidos por ou tros como Mestre Bimba e Mestre Past inha , um
heri a fro-baiano , que nasceu em um estado cujas oligarqu ias subjugaram os
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modos de vida e de luta de um expressivo segmento de descendentes de
escravos.
Pelo tempo exguo em um Curso de Mestrado para desenvolver um
estudo que, como primeira etapa, exigiria o levantamento das histrias
contadas sobre Besouro pelos moradores do Recncavo Baiano, optei po r
ana lisar produes literr ias sobre esse capoeirista: os textos de cordel de
auto ria do santoamarense Antnio Vie ira, O encontro de Besouro com o
valento Doze Homens (s/d) e A valentia justiceira de Besouro (2003), e do
poeta e capoeirista car ioca Victo r Alvim Itahim Garc ia, Histrias e bravuras
de Besouro o va lente capoeira (2006) e narrat iva de Marco Carvalho,
Feijoada no para so : a saga de Besouro, o capoeira (2002). O objetivo
principal deste estudo ana lisar as rep resentaes sobre Besouro nesses
textos f iccionais, considerando o contexto histrico em que viveu esse
capoeirista, no intuito de entender a permanncia desse mito.
Essas narrat ivas contam a histria de um heri negro, que se
singulariza em relao aos heris forjados pelas e lites de uma c ivilizao, a
exemplos dos heris gregos, ptr ias ou naes modernas. Ao cont rr io, o
heri Besouro protagonista de contranarrativas, de lu tas de resistncia a um
sistema opressor, de um Brasil colonial, imperia l e republicano, que sempre
sentenciou, muitas vezes de forma cruel, o apagamento dos negros e
afrodescendentes.
Na primeira seo desta Dissertao, No Recncavo da Bahia nasce
um heri , realiza-se uma composio b iogrfica desse capoeir ista,
articulando-a com o contexto histrico, no intuito de puxar os fios da cu ltura
afro-baiana para se pensar a const itu io do heri Besouro . Para compor a
paisagem hist rica do Brasil e da Bahia, particularmente a do Recncavo
Baiano, entre f ins do sculo XIX e inc io do scu lo XX, perodo tensionado
por conflitos sociais, mudanas de regime poltico e ps-abolio, recorre-se
aos estudos de Walter Fraga Filho, Eu l Soo Pang e Antonio Risrio, bem
como aos de Almir Areias, Adriana Dias, Josivaldo Olive ira e Muniz Sodr.
Visando entender a constitu io do her i e sua mitif icao, recorre -se
a Mircea Eliade e Joseph Campbell. Como o estudo proposto trata de um
su jeito da his tria esquecido pela historiografia ofic ia l, buscam-se as
contribuies de Jos Geraldo Vasconcelos, Ecla Bosi, para a qual as
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experinc ias do passado so refe itas, reconstrudas, um trabalho da memria,
e Lo iva Otero F lix, com sua noo de memrias subterrneas. Pelo
entendimento de que uma pesquisa se alimenta de fontes diversas, a lgumas at
desau torizadas pela academia, no se pde desprezar a contribuio da Profa.
Zilda Paim, conhecida como memoria lista, sobre o Recncavo Baiano.
Na segunda seo, Os vos de Besouro Mangang na literatura de
cordel , so analisadas e interpretadas as narrat ivas do co rdel de Antnio
Vie ira e Victor Alvim Garcia, nas quais se biografa a hist ria de Besouro
Mangang. Para tanto, recorre-se s contribu ies de Mrcia Abreu, Antnio
Arantes e Doralice Alcofo rado, em seus estudos sobre o cordel, gnero
produzido por escritores do chamado segmento popular, aqu i entend idos como
su jeitos que se viram privados, historicamente, dos direitos bsicos de
cidadania, cultura letrada, mas, ainda que numa incluso degradada, como
ana lisada, e cr it icada, pelo socilogo Jos de Souza Martins 1, aprenderam a
ler e a escrever. Tal conquista possib ilitou uma escrita que lhes permit iram
registrar histrias e socializ- las, s ilenciadas pela Histria oficia l, entendida
aqu i, dentro do campo historio grfico, como um d iscurso elaborado pela
perspectiva da cultura dominante.
Na terce ira seo , Morte e nascimento de Besouro em Feijoada no
paraso , analisada a narrat iva Feijoada no paraso , de Marco Carvalho,
jornalista e publicitrio , a qual tem como narrador e personagem centra l o
capoeirista Mangang trazendo sua verso acerca de muitas histrias co ntadas
sobre ele prprio: sua morte, seu apelido, seu nascimento, o jogo da capoeira,
relaes de amizade, bem como o enfrentamento ordem republicana, com
relatos alinhavados por reflexes, digresses ou comentrios.
Em Feijoada no paraso , o jogo da capoeira ganha destaque, como
uma prtica cultural e performt ica : a ginga do corpo, seus golpes, a
mandinga, a p ro teo dos orixs so postos em relevo. Em vista d isso , so
importantes as reflexes de Stuart Hall sobre os repertrios culturais dos
negros da dispora, bem como a noo de performance , elaborada por Paul
Zumthor, compreendida como corporeidade e teatra lidade.
1 Cf. MARTINS, Jos de Souza. A excluso social e a nova desigualdade. So Paulo: Paulus, 1997. Apud PEREGRINO, Mnica. www.anped.org.br/reunioes/25/monicaperegrinoferreirat06.rtf - Acesso em 21/05/2010.
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A narrat iva de Marco Carva lho inspirou um longa-metragem do
cinema nac ional, Besouro , da capoeira nasce um heri , que estreou em 2009,
f ilme dir igido pelo renomado pub licitrio Joo Daniel Tikhomiroff.2 A
pelcula, buscando aproximao com a textualidade popular tec ida sobre
Besouro, conta a histria de Mangang, com uma superp roduo que realiza o
esforo de traduzir a viso heroicizada sobre o lendrio capoeir ista. Para
tanto , as cenas de luta, marcadas por efe itos especiais, foram coreografadas
pelo chins Huen Chiu Ku, o mesmo que dirigiu Kill Bill e O tigre e o
drago . Rodado na Chapada Diamant ina , na Bahia, a produo cuidou de
trazer capoeiristas para atuarem, e Ailton Santos, professor de capoeira,
protagonista da histria. 3 Destaque-se que em 1980 foi lanado Besouro
Capoeirista , do diretor Tato Taborda, tendo o ato r baiano Mrio Gusmo
atuando como Besouro.
Os d iferentes sites que divu lgaram o lanamento do filme de Joo
Daniel T ikhomiroff destacaram a re levncia de Besouro Cordo de Ouro no
universo da capoeiragem, ressaltando seus fe itos extrao rd inr ios, as fugas
espetaculares, a sua agilidade, denominando-o de her i, de mito, uma
referncia para a arte da capoeira. Tais rep resentaes tm longa data, como
imagens cint ilantes na cultura afro -baiana, particularmente no Recncavo
Baiano e no universo da capoeiragem. O filme p rojeta Besouro num universo
mais amplo, com a promessa de torn-lo conhecido por um pblico maior, que
vive distante de um tempo em que o jogo da capoeira era t ido como uma
prtica de pretos, vad ios e ind ivduos perigosos, ou seja, de negros que
ameaavam a nova ordem republicana, at ser enquadrado como crime em
1890, dois anos aps a abolio da escravatura.
Como este estudo tem a preocupao de articular literatura e
histria, os pesquisadores e estudiosos que se fazem presentes na primeira
seo desta dissertao so retomados nas demais sees, para art icular suas
contribuies com os textos ficcio nais que dramatizam a his tria de Besouro
Mangang.
2 Disponvel em http://www.interfilmes.com/filme_21174_Besouro-(Besouro).htlm. Acesso em 20/08/2009. 3Cf.correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp2codigo=367048mdl=4http://www.cordaodeouromangalot.com.br/index.php?opt. Acesso em 07/10/2009.
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As narrat ivas de Antnio Vie ira, Victor Alvim Garc ia e Marco
Carvalho, insp iradas na textualidade popular, trazem traos dessa
textualidade, f iliada a uma c lasse de narrat ivas que se apresentam como
fantst icas e que terminam com uma aceitao do sobrenatural, na viso de
Tzvetan Todorov, 4 sem uma exp licao lgica causa l. Os feitos e
acontec imentos envo lvendo o personagem Besouro, e at mesmo sua vida
cotid iana, so marcados pela presena do inusitado, do sobrenatural e de
metamorfoses.
Assim, o personagem capoeirista protagoniza situaes
extraordinr ias: vira besouro, um mangang, voa, transforma-se em planta,
morre e renasce, tem o corpo refratr io aos metais, enfrenta lobisomem,
convive com mundo sagrado dos orixs, retorna ao mundo dos vivos sem ser
visto e ainda se encarna no corpo de outras pessoas. Muitas das situaes
extraordinr ias ou metamorfoses ocorrem quando se torna necessrio driblar
os adversr ios, escapar dos inimigos, defender-se ou proteger a lgum
injust iado. Ainda de acordo com Todorov, no plano da recepo ocorre a
hesitao experimentada por um ser que s conhece as leis natura is, face a um
acontec imento aparentemente sobrenatu ral da que o pblico ou le itor
dessas histrias vai conviver com o extraordinr io, o inslito, o estranho , o
encantamento e a magia experimentando uma sensao que o suspende da vida
cotid iana.
As histrias cr iadas por Antnio Vieira, Victor Alvim Garc ia e
Marco Carvalho podem ser lidas como b iografemas, segundo Roland Barthes,
trao acentuado em Feijoada no paraso , narrat iva em 1 . pessoa, em que o
personagem Besouro assume o lugar de narrador. So lendas inventadas,
relatos biogrficos ou ainda instantneos fotogrficos, que Barthes va i
designar de biografemas: gosto de certos traos biogrficos que, na vida de
um escr ito r, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traos
de biografemas 5
Todas elas se f iliam a uma textualidade popular, tecida por uma
superposio de fa las, vozes, textos, histrias, causos, enfim, fices sobre 4 TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. So Paulo: Perspectiva, 2007. p. 58. 5 Cf. Roland BARTHES. A cmara clara; nota sobre a fotografia. Jlio Castaon Guimares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 51.
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uma lenda, tambm uma fico, do Recncavo Baiano, cuja histria de vida,
marcada pela rebeldia, fertilizou a imaginao de uma comunidade,
ampliando-se continuamente. Tais f ices devem ser entendidas pe la noo de
f ictcio, apresentada por Wolfgang Iser .
Questionando a viso corrente de que os textos f icc iona is se opem
aos textos factua is, Iser considera que aqueles no so de todo isentos de
realidade. O texto ficc ional contm e lementos do real, sem que se esgo te na
descrio deste real. Assim, como o seu componente f ictcio no tem o
carter de uma fina lidade em si mesma, , enquanto fingida, a preparao
de um imaginrio. 6 Segu ndo Iser, um texto ficcional guarda muita realidade,
de ordem socia l, sent imenta l e emocional. Tais rea lidades no so fices
nem se convertem nelas ao entrarem nos textos f icc ionais, pois no se
repetem por efeito de si mesmas.
A repetio um ato de fingir , pelo qual aparecem fina lidades que
no pertencem rea lidad e repetida, da que o ato de fingir uma transgresso
de limites. Por isso, Iser prope substituir o par oposit ivo fico/realidade
pela tr ade rea l, fictc io e imaginr io. Em relao ao imaginr io, seu
carter d ifuso transfer ido para uma configurao determinada, que se impe
num mundo dado como produto de uma transgresso de limites. Ou seja, no
ato de fingir, o imaginrio ganha uma determinao que no lhe prpria e
adquire, deste modo, um pred icado de realidade : po is a determinao uma
definio mnima do real.
Para Iser , as f ices no existem s como textos ficcionais :
desempenham papel importante tanto nas at ividades do conhec imento, da
ao, do comportamento, quanto no estabe lec imento de instituies, de
sociedades e de vises de mundo. Entendendo o texto literr io como um
modo de temat izar o mundo, para Iser esse modo no est dado a priori .
Assim, preciso que seja implantado, para se impor, o que no s ignifica
imitar as estruturas de organizao previamente encontrve is, mas sim
decompor. Nessa decomposio ocorrem as seguintes operaes: a seleo e
a combinao .
6 ISER, Wolfgang. O ato de fingir ou o que fictcio no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura e suas fontes. Vol. II. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384-416.
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A seleo , necessr ia a cada texto f iccio nal, dos sistemas
contextua is pr-existentes, sejam e les de natu reza scio -cultural ou mesmo
literr ia, uma transgresso de limites na medida em que os elementos
acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturao semnt ica ou
sistemt ica dos sistemas de que foram tomados. Isso va le tanto para os
sistemas contextua is, quanto para os textos literr ios a que os novos textos se
referem. Cont inua: Os elementos contextuais que o texto integra no so em
si f ictcios, apenas a seleo um ato de f ingir pelo qual os sistemas, como
campos de refernc ia, so entre s i delimitados, pois suas fronte iras so
transgred idas.
No ato de seleo ocorre uma perda de articulaes precedentes e
uma reintegrao dos elementos esco lhidos em uma nova art icu lao.
Suprimir, complementar, valorizar vm a ser , de acordo com Iser, operaes
bsicas da produo de um mundo. A seleo , como ato de f ingir , encontra
sua co rrespondncia intratextual na combinao outra operao e
transgresso de limites, dos e lementos textuais , que abrange tanto a
combina lidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os
esquemas responsveis pela organizao de personagens e aes.
Como ocorre quase sempre, segundo Iser, nos textos narrativos so
acentuados os espaos semnt icos const itudos a partir de elementos
se lec ionados das realidades extratextuais , que se revelam pela ap resenta o
esquemtica das personagens do romance (caracteres posit ivos e negat ivos).
Nos relac ionamentos intratextua is, ocorre um rompimento de fronteiras, pois
a f ico agrega, em um nico espao, uma var iedade de linguagens, de nveis
de focos, de pontos de vista, que ser iam contraditrios noutras espcies de
discurso, organizadas quanto a um fim emprico particu lar.
Compondo uma textualidade popular, as histrias sobre Besouro
elaboradas a partir da se leo de elementos da realidade extratextual,
seguidas da combinao intertextual, e na ruptu ra de fronteiras so
contranarrat ivas que pem em xeque um modelo de nao , um desenho
ident itr io homogeneizador do Brasil, segundo Florentina Souza, tecido por
um grupo social, a saber, as elites do pas. Para a pesquisadora, este desenho
ident itr io,
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individual ou coletivo, consiste num processo de const ruo simblica uti l izado como ponto de referncia e auto -afirmao do grupo ou indivduo. As fraturas, dvidas, deslizes, heterogeneidades sofrem um p rocesso de esmaecimento par a que seja garantida a const ruo de um desenho uni forme, unit rio e total izante, acima de qualquer suspeita quanto propriedade ou plausibil idade. Legit imado pela imposio de um grupo social , pelas repeties de figuras retricas, o desenho ser rat ifi cado e ret i fi cado pela tradio e arvorar -se- capaz de definir e s ingularizar indivduos e/ou grupos sociais. 7
O capoeirista Besouro viveu uma poca em que estava em curso o
projeto de consolidao do Estado-nao brasile iro , traando seu desenho
ident itr io, e a literatura e a histria, inst itucionalizadas como disciplinas e
domnio do conhecimento, vo se irmanar em tal projeto. Enquanto
produes, ambas vo contribuir , em sua maioria, na construo de um
discurso ident itr io homogeneizador.
A identidade, para os intelectuais dos primrdios da nao, estava l igada necessidade de construo de um pas, de uma histria, uma cultura, atravs dos quais todos s e reconhecessem simultaneamente semelhantes e di ferentes da Met rpole (contradies de colonizado. . . ) . rgos so criados, um projeto l i terrio delineado, escri tores, estudiosos, art is tas e pol t i cos art iculam-se; todas as energias intelectuai s dirigem-se e concentram-se no es foro de inventar o Brasil . preciso inventar o pas, preencher os vcuos da memria com aquilo que no propicie constrangimentos maiores que o de ser uma ex-colnia. Como construo simblica que , a identidade cultural brasil ei ra vai ganhar perfis mais ou menos ot imistas de acordo com as idias , princpios e valores hegemnicos de cada poca. 8
Para Florentina Souza, os intelectuais brasile iros tm frente um
desafio, cercando-os de constrangimentos: Como forjar uma ident idade d igna
se o imaginr io j t inha cr ista lizado como verdadeira a ind ignidade d e dois
segmentos tnicos [o ndio e o negro ] da populao? 9. Segundo a autora, o
7 SOUZA, Florentina. Imagens e contra imagens do negro. In.: Congresso ABRALIC, Anais... Rio de Janeiro. 1988.p. 243. Nesse trabalho, a autora analisa a srie Cadernos Negros, um peridico criado por escritores afrodescendentes, em fins de 1970. Segundo a autora, Cadernos Negros, produzidos com inteno expressa de abalar a autoridade do discurso do saber e do poder, podem ser vistos como tentativa de constituir uma suplementariedade cultura oficial brasileira; buscam inventar uma contra-imagem que desautorize a unanimidade proposta pela imagem instituda. p. 245. 8 Id., p. 243-244. 9 Id., p. 244.
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processo de construo simblica no descarta as significaes p r -
existentes.
Desse modo, no processo de construo da identidade nac iona l
brasileira, pelas elites do pas, de cunho homogeneizante, a trad io ocidental
desempenhar um papel fundamental, uma vez que tece narrat ivas sobre o
Outro [o ndio e o negro] de acordo com o seu projeto de dominao,
incu lcando-as no imaginr io do prprio colonizado de modo que o m esmo
chega a acred itar na verac idade do texto.10 Assim, o perfil do Outro
inventado pela tradio ocidental presc inde de ser comprovado ou organizado
logicamente, a repetio garante a sua validade. 11
Na contramo de um desenho ident itrio homogeneizador, uma
textualidade popu lar emerge quest ionando -o , com histrias que tm Besouro
como heri, reve lia da Histria oficia l. Tais narrat ivas so elaboradas por
su jeitos que enco ntram nesse capoeirista a referncia de uma luta e
res istncia ao processo de colo nizao , que subjugou os negros, colocando-os
num lugar inferio r, em diversos nveis, naquele desenho, a despeito de sua
inegvel contr ibuio na construo do pas. Assim, um refro insiste,
furando tal desenho, em riste: zum zum zum, zum zum zum, capo eira mata
um.
10 Id., loc. cit. 11 Id., p. 244.
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Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 Capoeira, 1977
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2 NO RECNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERI
Quand o eu morrer No quero gri to e nem mi str i o Quero u m beri mbau Tocand o na porta d o cemit r i o Com u ma fi ta amarel a Gravada com o nome dela Ai nda depoi s de mort o Besouro cordo de ouro Como o nome? Cord o de Ouro. 12
Vida breve, longa histria
Manuel Henr ique Pereira o nome c ivil do mestre de capoeira
Besouro Mangang, ou Besouro Cordo de Ouro. A data provvel de seu
nascimento tem como refernc ia o processo movido em 1918 , pelo Exrcito
Brasile iro, que resultou na sua expulso da corporao, no mesmo ano , po r
incapacidade moral, conforme o fcio do Ministr io da Guerra, 13 no qual se
atesta que o acusado tinha 23 anos poca. Besouro Mangang nasce no
quilombo Urup y, Olive ira dos Campinhos, distr ito de Santo Amaro da
Purif icao, na regio denominada Recncavo Baiano, 14 filho de Joo Martins
12 Letra da cano Cordo de ouro, do mestre Trara de Santo Amaro, o Jos Ramos do Nascimento. Capoeirista famoso da Bahia, marcou poca e ganhou notabilidade mpar na arte das rasteiras e cabeadas. No disco fonogrfico, produzido pela Editora Xau, intitulado "Capoeira", hoje uma preciosidade para os estudiosos e adeptos dessa arte, tem presena marcante envolvendo os ouvintes. Sobre a beleza e periculosidade do seu jogo, assim se referiu Jorge Amado: "Trara, um caboclo seco e de pouco falar, feito de msculos, grande mestre de capoeira. V-lo brincar um verdadeiro prazer esttico. Parece bailarino e s mesmo Pastinha pode competir com ele na beleza dos movimentos, na agilidade, na rigidez dos golpes. Quando Trara no se encontra na Escola de Waldemar, est ali por perto, na Escola de Sete Molas, tambm na Liberdade". Mestre Trara tambm teve importante participao no filme "Vadiao", de Alexandre Robatto Filho, produzido em 1954, junto a outros grandes capoeiristas baianos, como Curi, Nag, Bimba, Waldemar, Caiara, Crispim Disponvel em: http://sites.br.inter.net/capueirameialua. Acesso em 06/06/2009. 13 Cf. VASCONCELOS, Jos Gerardo. Etnocenologia e histria: percorrendo indcios da vida de Manoel Henrique Pereira, vulgo Besouro (1895-1924). p. 25. In: MATOS, Kelma Socorro L. de. VASCONCELOS, Jos Gerardo. (Orgs.). Registros de pesquisas na educao. Fortaleza: LC-UFC, 2002. p. 27. Na Seo Judiciria do Arquivo Pblico Municipal de Santo Amaro (Data limite: 1920 1927: Subsrie: Tentativa de Homicdio: Cx. 4; N. 104: Vol. 18), tem-se o seguinte registro, de 04/02/1922, no auto de perguntas dirigidas vtima Caetano Jos Diogo: um homem moderno de cor escura quase preto. 14 O Recncavo abrange a regio Bahia de Todos os Santos, com 23 municpios, incluso o de Salvador. Partindo do litoral, onde comeam as dunas e praias do Litoral-Norte, a linha limite inflete para o Oeste, para o interior, passando ao Norte de So Sebastio do Pass, at alcanar o norte do municpio de Santo Amaro, e encontrar Humildes, onde seu traado curva-se para o Sul, correndo paralela ao sentido do litoral, atravessando os leitos dos rios Jacupe e Paraguau, envolvendo os municpios de So Gonalo dos Campos, Cachoeira, Conceio da Feira e Cruz das Almas; deste, a fronteira retorna em direo costa, passando por Santo Antnio de Jesus, apontando em linha reta para o mar, margeando as Matas do Sul, passando abaixo de Nazar, Aratupe e Jaguaribe, at encontrar a praia, nas alturas da Ponta do Garcez, ao norte da Barra do Jequiri. Cf. COSTA, Pinto. Recncavo: laboratrio de uma experincia humana. In. BRANDO, Maria de Azevedo et al. Recncavo
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Pereira e Maria Auta Pereira 15. Zilda Paim, conhec ida como memoria lista
santoamarense, traz a lguns dados biogrficos desse capoeirista, fa lec ido em
1924: Nasceu em Santo Amaro. Filho de Joo Matos Pereira e Maria Jos. O mais ladino e malicioso capoei ris ta da Bahia. Mestr e de capoei ra no Exrcito, de onde se desligou depois da guerra. No conhecia o medo, vencia a pol cia dando pernadas e rabos de arraia, com seus famosos saltos acrobti cos. Foi fria e covardemente golpeado em Maracangalha, no lugar de nome Quimbeca. Veio para Santo Amaro em canoa , fi cando no Port o em frente a Loja Nova, at que foi t ranspor tado para a Santa Casa da Misericrdia, onde faleceu aos 32 anos de idade. 16
O capoeirista Besouro Mangang d continuidade a uma p rtica, a
capoeira, que chegou ao Brasil desde o incio da colonizao. Segu ndo
Car ib, os capoeiristas chegaram Bahia no bo jo de pau dos ant igos ve leiros
do sculo XVI. Eram negros da Angola, talvez guerreiros jogadores dessa luta
em que ps e cabea tm mais importncia e que as mos passam a segundo
da Bahia Sociedade e economia em transio. Salvador: Fundao Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; UFBA, 1998. p. 103-105. 15 No h informaes precisas sobre a data de nascimento de Besouro. Segundo Vasconcelos, s foi possvel desvendar a sua origem mediante a certido de bito do seu irmo Caetano Ccero Pereira. O autor ainda cita relato de Joo Pequeno, citando-o em seu livro: Besouro morreu com vinte e tantos anos ou trinta. To ouvindo falar que ele morreu em 1924. Cf. Etnocenologia e histria: percorrendo indcios da vida de Manuel Henrique Pereira, vulgo Besouro (1895-1924). p. 29-32. In: Matos, Kelma Socorro Lopes de. VASCONCELOS, Jos Gerardo. Orgs. Registros de Pesquisas na Educao. Fortaleza: LCR UFC, 2002. O autor transcreve na ntegra a certido de bito, expedida pela Santa Casa da Misericrdia de Santo Amaro, em 1925, a pedido do Dr. Joo de Cerqueira e Souza, promotor pblico da Comarca de Santo Amaro, para o arquivamento do processo movido contra o capoeirista por Caetano Jos Diogo em 1922, em virtude do seu falecimento em 1924. C.f.; certido de bito em anexo. A Santa Casa da Misericrdia de Santo Amaro, mantenedora do Hospital Nossa Senhora da Natividade, uma entidade filantrpica sem fins lucrativos que presta servios de sade de urgncia/emergncia, h cerca de 235 anos, a toda a populao santoamarense e de cidades circunvizinhas, tendo como finalidade principais o atendimento aos mais carentes. O objetivo maior da Santa Casa da Bahia, como de todas as Santas Casas, desde sua criao, era praticar a caridade crist, observando o estatuto, a lei escrita da Misericrdia, chamado de Compromisso. A Santa Casa da Bahia seguia o Compromisso datado de 1516, que regia a Santa Casa de Lisboa. O Compromisso prescrevia as quatorze aes ou obras de misericrdia que concretizavam a prtica caritativa, sendo sete Espirituais ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes; perdoar as injrias recebidas; suportar as deficincias do prximo; orar a Deus pelos vivos e pelos mortos e sete compromissos Corporais resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os mortos. SANTANA, A. C. S. de. Santa Casa de Misericrdia da Bahia e sua prtica educativa, 1862-1934. 227f. Tese (doutorado em Educao) Faculdade de Educao, UFBA, Salvador, 2008.p. 44. 16 PAIM, Zilda. Relicrio popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo: EGBA, 1999. p 53. Conhecida pela divulgao da cultura santoamaresense, a autora nasceu em 1919 e iniciou o magistrio, em Santo Amaro, de 1937 at 1988. Foi vereadora pelo PDC e MDB nas legislaturas de 1959-1963 e 1997-1982, presidente do Legislativo de Santo Amaro entre 1980 e 1982. Seu grupo folclrico Maculel de Santo Amaro atravessou fronteiras para ser aplaudido por cariocas, paulistas, mineiros e paraibanos. In: Isto Santo Amaro. 3 ed. Salvador Academia de Letras, 2005. Zilda Paim apia-se na memria popular para referir-se ao nome da me de Besouro como Maria Jos, enquanto na certido de seu irmo Caetano Ccero Pereira, consta Maria Auta Pereira.
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plano.17 So detentores de uma cultura que contribuiu para formar a cultura
afro-brasileira, fortalecendo o combate opresso, uma arte que usa da
ginga para disfarar a luta, dando-lhe um carter ldico ino fensivo e
cadenciado, de certa forma, locomoo e preparao dos ataques e
defesas.18
Nas histrias sobre Besouro, que compem uma textualidade
popular, sobressa i-se a imagem do capoeirista como um indivduo alt ivo,
destemido, rebelde, corajoso, va lente, audacioso, ju stice iro, representante dos
segmentos oprimidos num perodo de ps-abolio e mudana de regime
polt ico . Besouro torna-se uma lenda, mito , acima do bem e do mal pelo poder
de que se investe e investido, para enfrentar a elite econmica e polt ica da
terra de Santo Amaro, no Recncavo Baiano.
Graas a uma tradio oral, pode-se recontar a sua histria,
praticamente ausente das pginas da literatu ra canonizada, exceo feita a
Jo rge Amado, que o ap resenta em Mar Morto , publicado em 1936, um ano
depois de Jubiab , narrat iva que elege um negro o heri da trama. Em Mar
Morto , o escritor faz uma homenagem a Mangang, no captulo int itu lado
Viscondes, condes, marqueses e Besouro. Na trama, Besouro Cordo de
Ouro , um negro valente, o save irista amigo de Guma, personagem desta
narrat iva:
Essa cidade de Santo Amaro, onde Guma es t com o saveiro, foi ptri a de muito baro do imprio, viscondes , condes, marqueses, mas foi t ambm de gente do cais, a pt ria de Besouro. Por esse motivo, somente por esse motivo, no por produzi r acar, condes, viscondes, bares, marqueses, cachaa, que Santo Amaro uma cidade ama da dos homens do cais. Mas foi al i que nasceu Besouro, correu naquelas ruas, al i derramou sangue, esfaqueou, at irou, lutou capoeira, cantou sambas. Foi al i p erto em Maracangalha, que o cortara m todinho a faco, foi al i que seu sangue correu e al i bri lha a sua estrela, cl ara e grande [. . . ] ele virou estrela, que foi um negr o valente [. . . ] . Besouro nunca casou, alm de mart imo ele era jaguno, alm do remo tinha um ri fl e, alm da faca de marinhei ro t inha uma navalha. [. . . ] a estrela de Besouro pisca no cu. cla ra e grande. As mulheres dizem que ele est espiando os mal feitos dos homens (bares, condes, viscondes,
17Cf. CARIB, op. cit., Zilda Paim em Relicrio Popular, transcreve essas mesmas informaes no corpo do seu texto, porm no cita a fonte pesquisada. op. cit.; p. 47. 18 AREIAS, Almir, O que capoeira. 3 ed. Brasiliense. (sd), p.24.
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marqueses) de Santo Amaro. Est vendo todas as injustias que os mart imos sofrem. Um dia voltar para se vingar. 19
Besouro se metamorfoseia, torna-se uma estrela, clara e grand e
depois de ter vivido como martimo e jaguno , atento s injust ias dos
poderosos do Recncavo, como os bares, co ndes, viscondes e marqueses.
Assim como o personagem Macunama, de Mrio de Andrade, que tambm
vira estrela, Besouro faz parte de uma conste lao, organizada pelo
pensamento mt ico, const itutivo dos homens, em diferentes pocas ou
sociedades, visando dar sent ido e reflet ir sobre a existnc ia, os cosmos, as
situaes de estar no mundo ou as relaes soc iais. 20
Ao se rememorar a vida de Besouro, deve-se considerar que a
lembrana a sobrevivncia do passado. O passado, conservando -se no
esprito de cada ser humano, aflora consc inc ia na forma de imagens -
lembrana.21 Portanto, o ato de lembrar acontec imentos que se transformam
em histria vivifica s ituaes e perpetua o seu aprendizado. Assim so as
histrias sobre Besouro Cordo de Ouro, idea lizadas em imagens elaboradas
pela memria de quem as conta. Segundo Ecla Bosi, o instrumento
socializador da memria a linguagem. Ela reduz, unifica e ap roxima no
mesmo espao hist rico e cultu ral a imagem do sonho, a imagem lembrada e
as imagens da vig lia atual. 22
As narrativas sobre Besouro Mangang so produzidas num
momento histrico e social e ta is acontecimentos, num processo de se leo e
combinao, so memorizados, contados e recontados, dispensando -se ass im
uma cobrana aos seus narradores quanto a dados histricos p recisos, pois a
importncia da narrat iva est no personagem vetor do acontec imento narrado.
Como representante de um expressivo segmento populac ional
afrodescendente, a hist ria desse capoeirista, que Car ib destaca, dentre
vrios nomes da capoeiragem, como bom faquista angola, mas jogador 19 AMADO, Jorge. Mar Morto. 36 ed. So Paulo, Martins, 1973. p. 123-127. 20 ROCHA, Everardo. O que mito. So Paulo, Brasiliense, 1991. 5. edio. P. 7. De acordo com o autor, o mito, presente em todas as pocas, no possui slidos alicerces de definies. No possui verdade eterna e como uma construo que no repousa no solo. O mito flutua. Seu registro o do imaginrio. Seu poder a sensao, a emoo, a ddiva. Sua possibilidade intelectual o prazer da interpretao. E interpretao jogo e no certeza. Id., p. 95. 21 BOSI, Ecla. Memria e sociedade. Lembrana de velhos. 9 ed. So Paulo Companhia das Letras, 2001. p. 53. 22 Id.; p. 56.
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escasso,23 foi, como a de tantos ou tros, esquecida pela Histria oficial,
comprometida com o projeto ident itr io das elites do pas, na construo de
um Brasil europeizado. Por isso, a ausncia de documentos escr itos, devendo
o pesqu isador recorrer memria oral para elaborar uma histr ia da capoeira,
pela importncia dos afr icanos na construo da memria do pas. Ao
considerar o trao livre e quase onrico da memria, Bosi afirma o seguinte :
[. . . ] lembrar no reviver, mas refazer, reconstrui r, repensar, com imagens e idias de hoje, as experincias do passado. A memria no sonho, trabalho. Se assim , deve-se duvidar da sobrevivncia do passado, tal como foi e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrana uma imagem construda pelos materiais que esto agora nossa disposio, no conjunto de representa es que povoam nossa conscincia atual . 24
Transmit idas de gerao a gerao, h quase um sculo, as
narrat ivas sobre Besouro so fios de uma memria subterrnea, tecendo
outros tranados, a fim de evitar o seu esquecimento.
Estudar memria falar no apenas de vida e de perpetuao da vida at ravs da histria; falar, tambm, de seu reverso, do esquecimento, dos s i lncios, dos no ditos e, ainda, de uma forma intermediria, que a permanncia de memria s subterrneas ent re o esquecimento e a memria social. E no campo das memrias subter rneas, falar tambm nas memrias dos excludos, daqueles que a fronteira do poder lanou marginalidade da histria, a um outro t ipo de esquecimento ao lhes ret i ra r o espao ofic ial ou regular da mani festao do di reito fala e ao reconhecimento da presena social . 25
Por esse entendimento, tais histrias so reconstrudas,
ressignificadas pelo traba lho da memria, que se efetua pelas operaes de
lembrar e esquecer. Toda vez que um acontecimento narrado, ou tras
performances so colocadas e trazidas do inconsciente e, num misto de real e
imaginr io, confluem para o mesmo ponto, ou seja, a recriao das faanhas
ou feitos realizados por Besouro, num pas que fez do negro o seu Outro, um
23 CARIB. Op.cit.; 24 Ibid.; p. 55. 25FLIX, Loiva Otero. Poltica, memria e esquecimento. In: TEDESCO, Joo Carlos (org). Usos de memrias. (Poltica, Educao e Identidade). Universidade de Passo Fundo. RS Brasil. 2002, p. 31.
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estranho a quem se podia maltratar, ao ignorar que se trata de um ser
humano .
Segu ndo Vasconcelos, ao tratar da importncia da memria para a
so lidificao da histria, se o esquecimento nos protege das dores, no
impedir que os homens s intam saudade ou rememorem seus mitos, s mbolos
e imagens.26 Assim, ao se propor um estudo sobre o capoeirista Besouro, no
se tem a inteno de esquecer as dores que certamente viveu . Ao contrrio,
busca-se entender as razes pelas quais esse p ro tagonista rememorado como
um mito, um smbolo, rep resentante de um segmento social margina lizado.
Para se entender o lugar que Besouro Mangang ocupa no
imaginr io popular, necessr io contextua lizar o perodo em que viveu,
marcado por mudanas soc iais e polt icas do Brasil do f ina l do sculo XIX e
incio do sculo XX. A abo lio da escravatura, com a assinatura da Lei
urea em 13 de maio de 1888 , e a Primeira Repblica, que comea a vigorar
com a sua proclamao, em 15 de novembro de 1889, pelo Marechal Deodoro
da Fonseca, at 1930, criam a esperana de transformar o Brasil em um novo
pas.
Nesse perodo, o Recncavo Baiano o principal veto r das relaes
econmicas com o plant io e a colhe ita da cana-de-acar, e os engenhos so
os p rincipa is nc leos para os contatos . A maioria dos engenhos estava
loca lizada em Santo Amaro da Purif icao, terra de Besouro Cordo de Ouro.
Para Z ilda Paim, o Recncavo tornou-se em pouco tempo o mais importante
centro agrcola da era colonia l. 27 Ainda para a autora, Santo Amaro fo i, sem
dvida, o municpio que mais escravos possuiu. Seus primeiros povoadores,
os portugueses, dado s aventuras, vidos de lucros, queriam t irar da terra o
mximo que ela pudesse dar. Destacam-se a inda os agrupamentos negros que
vieram para Santo Amaro:
[. . . ] os hausss habitavam o Sudo Central , ao norte dos rios Niger e Binue. Formavam a nao mais importante de todas as negrt i cas sudanesas. Os mals eram africanos is lamizados, possuidores de mediana cultura e portador de ofcios de
26 VASCONCELOS, Jos Gerardo. op. cit.; p. 24. 27 PAIM, Zilda. Isto Santo Amaro. 3 ed. Salvador. Academia de Letras, 2005, p.51.
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pedrei ro e ca rpinteiro, timos agricul tores, exercend o influncia sobre escravos de diversas procedncias. 28
No perodo em que Besouro viveu , preva leciam ranos muito
fortes do regime monrqu ico no pas, e a abolio era ainda uma s ituao a
ser aceita por muitos ex-donos de escravos. Segundo o historiador baiano
Walter Fraga Filho, nos lt imos anos do sculo XIX, o Recncavo era a
regio economicamente mais importante da provnc ia. Era tambm a mais
densamente povoada e a que concentrava maior nmero de escravos. 29 E para
Antnio Risr io a sociedade que se formou na cidade da Bahia e seu
Rec ncavo esteve marcada por um processo contnuo de mest iagem, apesar
de todas as desigualdades entre os grupos que a constitu ram. 30
Com essa composio populacional s ingularizando o Recncavo
Baiano e a cidade do Salvador nos primeiros anos da Repblica, as e lites
loca is vo fazer uso dos capoeiristas. De acordo com Risrio, a c lasse
dir igente baiana se ops, at quando isso foi possvel, mudana de regime
polt ico, e a Bahia foi a lt ima provncia do imprio a ad er ir Repb lica.
Risrio destaca que a elite baiana, por seu conservadorismo, de fundas e
contorcidas razes, via no novo regime o sinnimo da anarquia e, tanto a
elite po ltica quanto o empresariado agromercant il, consideravam que, com a
alterao do regime, s ter iam a perder o poder adqu irido durante anos de
domnio senhorial. 31
Assim, com a Primeira Repb lica, surge a f igura do coronel, que va i
atuar como escudo das foras polticas vigentes, cabendo -lhe, po r muitas
vezes, escolher os lderes loca is ou formar novas parcerias, pois a
sobrevivncia do sistema poltico dependia do contnuo e da manipu lao do
poder pelas o ligarquias trad iciona is.
Para o histo riador coreano Eul Soo Pang, a Bahia, devido ao seu
tamanho fsico e demogrfico e sua importncia econmica, era o maior e
28Id. Ibid., p. 45- 48. 29 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos libertos na Bahia (1870-1910). Campinas/SP. UNICAMP, 2006. p. 34. 30 RISRIO, Antonio. Uma histria da cidade da Bahia. 2 ed. Versal, 2004. p. 103. Segundo, Josivaldo Pires de Oliveira, Salvador, capital da Bahia, , historicamente, conhecida como uma cidade de muitos nomes. Cidade da Bahia, So Salvador, Cidade do Salvador ou Bahia de Todos os Santos, principalmente quando se trata da cidade da primeira metade do sculo XX. 31 RISRIO, Antonio. op. cit., p. 404-405.
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mais poderoso estado do Nordeste do Brasil e os seus coronis chegaram a
participar de campanhas militares ao lado de determinados grupos polt icos
estaduais e naciona is. 32 Ainda com Eul Soo Pang, o co ronelismo tem como
base patriarca l, soc ial e econmica os engenhos de acar do sculo XVI, e a
sua principal funo era a hbil u tilizao do poder privado acumulado pelo
patriarca de um cl ou uma famlia mais extensa. 33 Josivaldo Oliveira entende
o coronelismo como fruto de situaes histricas especficas em uma
sociedade, inclusive em soc iedades urbanas, a exemplo de Salvador na
Primeira Repblica.34
Destaque-se que o poder senhor ia l do interior do Brasil a inda
manteve a sua fora at a segunda metade do sculo XX, como afirmam
Vilaa e Albuquerque, tendo, portanto, sobrevivido por mais de meio sculo
a seus precursores, o s coronis do acar. 35 Nesse contexto, muitos
capoeiras, assim tambm conhecidos, homens fortes e destemidos, aptos a
todo tipo de servio, vo trabalhar como capangas ou homens de confiana
dos coronis uma espcie de seus protetores particulares e de suas terras e
vo ter os coronis como seus protetores.
Segu ndo Muniz Sodr, desde pouco antes da Abolio e durante a
Primeira Repblica,
os capoei ris tas passaram a ser usados, sob retudo no Rio de Janeiro como capangas (s vezes contra os prprios negros, ou contra os republicanos ) por pol t i cos e pessoas de influncia. No sendo esse o caso, o capoeiris ta era freqentement e
32 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira Repblica Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. p. 9. No perodo em que viveu Besouro Mangang, a diviso geopoltica do Brasil estava demarcada por duas regies: Norte e Sul. O termo nordeste usado inicialmente para designar a rea de atuao da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criado em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita s estiagens e, por essa razo merecedora de especial ateno do poder pblico federal. [...] Em 1920, a separao Norte e Nordeste ainda est se processando; s neste momento comea a surgir nos discursos a separao entre a rea amaznica e a rea ocidental do norte, provocada principalmente pela preocupao com a migrao de nordestinos para a extrao de borracha e o perigo que isto acarreta para o suprimento de trabalhadores para as lavouras tradicionais do Nordeste. ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. A inveno do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 2001. p. 68-69. 33 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira Repblica Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. p. 9. 34 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p. 90. 35 VILAA, Marcos Vinicius; ALBURQUEQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronis. Apogeu e declnio do Coronelismo no Nordeste. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 23.
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apontado como autor de t rop eli as e desordens, suscit ando mais uma vez medidas l egislat ivas espec fi cas. 36
Ainda com Sodr, a crnica da capoeira at quase o f im do Imprio
reve la d isposies permanentes de resistnc ia marc ia l aos dispositivos
repressivos de ordem escravagista. Assim, no final do sculo XIX, o jogo da
capoeira comea a so frer forte represso socia l e polic ia l, tanto na capital da
Repb lica, o Rio de Janeiro, quanto na Bahia e seu Recncavo, decorrente da
insurgncia dos negros ao sistema poltico vigente. Nos primeiros anos ps-
monrquicos e de Repb lica Velha (1889-1930), a capoeira vem a ser
considerada crime, com o Cdigo Penal de 1890.
De acordo com Manuel Querino, no Rio de Jane iro o capoeira
const itua um elemento perigoso, tornando-se necessrio que o governo , pela
portaria de 31 de outubro de 1821, estabelecesse cast igos corporais e
providncias ou tras, relat ivas ao caso . 37 Os t ipos, ento descr itos nas
narrat ivas, podem bem representar caricaturas do sistema soc ial da
poca.Desse modo, dominantes e dominados lideravam um conflito freqente.
Afirma Edil Costa : Prati cada pelos a fro-brasil eiros como um jogo, uma forma de divert imento que dis farava uma luta perigosa, a capoei ra parece no t er deixado de ser p rati cada em momento algum de sua histria, apesar da represso policial violenta que sofreu. Ao cont rrio, ganhou fora enquanto s inal de resis tncia e de descoberta da negritude. Em um momento seguinte, fi rmou-s e como luta e, mesmo prati cada ent re os negros, no havendo combate direto entre o oprimido socia lmente e o seu opressor, o combate s imblico estava estabelecido: jogar capoei ra s igni fi cava a fi rmar-se como negro, herdeiro da tradio a fri cana e fazer frente e resis tncia aos valores sociais do branco. 38
A represso ao jogo da capoeira no se estendia s e lites, que
faziam uso da fo ra e da valent ia dos capoeiristas. Segundo Almir das Areias,
o Cdigo Penal de 1890 confere capoeiragem um tratamento especfico:
36 SODR, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 3 ed. DPA editora. Rio de Janeiro, 2005. p. 155. 37 QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. Salvador. Progresso, 1955. p. 80. 38 COSTA, Edil Silva. Comunicao sem reservas. Ensaios de malandragem e preguia. 2005 (236 p) Tese (Doutorado em Comunicao e Semitica) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo 2005. p.88.
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Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agil idade e destreza corporal conhecidos p ela denominao capoeiragem; ser o autuado punido com dois meses de priso. considerada ci rcunstncia agravante pertencer o capoei ra a alguma banda ou malta. Aos chefes e cabeas se impor a pena em dob ro. No caso de reincidncia ser apli cada ao capoeira, no grau mximo, a pena do art igo 400. Se for estrangeiro, s er deportado depois de cumprir pena. Se nesses exerccios de capoeiragem perpetra r homicdio, prati car alguma leso corporal , ul traja r o poder pblico e part i cular, e perturbar a ordem, a tranqil idade ou a segurana pblica ou for encontrado com armas, incorrer cumulativamente nas penas cominadas para t ais crimes. 39
Tal cdigo destitudo em 1937, na Repblica Nova, com o ento
presidente Getlio Vargas, e a capoeira torna-se um esporte, inst itucionaliza-
se, como um modo de contro lar a atuao dos capoeiristas, atravs da
organizao de academias para o seu ensino. 40 De acordo com Walde loir
Rego, a capoei ra foi inventada com a finalidade de divert imento, mas na realidade funcionava como faca de dois gumes. Ao lado do normal e do quotidiano, que era divert ir, era luta tambm no momento oportuno. No havia Academias de Capoeira, nem ambiente fechado, premeditadamente para jogar capoeira. Antigamente havia capoei ra, onde havia uma quitan da ou uma venda de cachaa, com um largo bem em frente, propcio ao jogo. A, aos domingos, feri ados e dias s antos, ou aps o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos a tagarelarem, beberem e jogarem capoei ra. 41
Com a ass inatura da Lei urea, muitos negros libertos cont inuaram
a trabalhar em troca de salrios ou arrendando terras dos seus ex-senhores,
segundo Walter Fraga Filho :
preciso lembrar que a populao que emergiu da escravido era bastante di ferenciada internamente. A posse de alguns bens, o direi to de acesso t er ra, o domnio de uma profisso especializada, a posio de fei tor de servio, estabelecera m
39 AREIAS, Almir das. O que capoeira. 3 ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983. p. 43. Em A verdade seduzida, Muniz Sodr, em nota de rodap, afirma o seguinte: O Cdigo Penal de 1890 previa desterro e castigos corporais para quem praticasse a capoeira. Exemplos clebres de desterro: Manduca da Praia, Juca Reis, mandados para a Ilha de Fernando de Noronha, durante o primeiro governo republicano; de castigos corporais: as chicotadas aplicadas pelo famoso Major Vidigal, chefe de polcia do Rio de Janeiro, no incio do sculo XIX Cf. SODR, Muniz. Op. cit.; p. 155. 40 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit., p. 31. 41 RGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio scio-etnogrfico. Salvador: Itapo, 1968, p. 35-36.
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algumas di ferenas dentro do contingente escravo, definira m escolhas e poder de barganha frente aos ex-senhores. 42
Antes escravos, agora os negros passam a const itu ir um expressivo
segmento de exc ludos, deixados prpria sorte. Como a grande maio ria no
teve acesso cultu ra letrada, restava- lhes fazer parte do grande cont ingente
de-mo-de obra barata e desqualificada que povoava as c idades do Recncavo
Baiano e do Brasil.
Para a historiadora Adriana Dias, muitos negros eram
trabalhadores braais, como carregadores, estivadores, engraxates, capangas,
polic iais, 43 e a rua era o p rincipa l cenrio de conflito s constantes, pois
muitos trabalhavam esporad icamente, e lugar do jogo da capoeira. Nesse
contexto, negros e mest ios so c lassif icados de vadios, valentes,
desordeiros ou ainda pobres viciosos. 44
Ainda segundo Adriana Dias,
[. . . ] no final do sculo XIX, muitos viviam de ocupaes espordicas t endo um ri tmo de vida bastante ir regular, o que lhes proporcionava freqentes perodos de ociosidade ent remeados por momentos de diverso quase sempr e acompanhados de muitos goles de cachaa e, lgico, muitas brigas e provocaes. 45
Assim, como afirma Walter Fraga, justamente por suas hab ilidades
ou p ro fisso especia lizada, os negros do ps-abolio usam seu poder de
barganha junto s e lites, e os capoeiristas tambm vm a negociar suas
hab ilidades, ao serem usados como capangas por polt icos e pessoas de
influncia, como tambm analisa Muniz Sodr.
A capoeira, misto de arte e lu ta, compe o repertrio cultural do
negro , uma estratgia cr iada em sua defesa e estabelec imento de poder entre
outros negros. No Rio de Jane iro , aps a abolio, um enorme cont ingente de
ex-escravos tambm vagueava pelas ruas, resid indo nos morros e na s
42 FILHO, Walter Fraga. Op. cit., p. 232. 43 DIAS, Adriana Albert. Mandinga, manha & malcia; uma histria sobre os capoeiras na capital da Bahia (1910-1925). Salvador: EDUFBA, 2006. p. 70. 44 Ibid., p. 26. 45Ibid., p. 17
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periferias, circu lando normalmente nos locais de maior movimento da cidade
[ . .. ], mal conseguiam um trabalho que lhes garant isse a sobrevivncia. 46
Entregues prpria sorte, por conta de um passado que no
esco lheram, envolviam-se em assa ltos, cr imes e emboscadas. Por isso,
vad iavam pe la cidade dividindo-se e o rganizando-se em grupos, os negros
caminhavam cada vez mais para a marginalidade. Surgem as famosas maltas
de capoeira. 47 Em relao a essas maltas, Edson Carneiro afirma o segu inte:
As maltas da Bahia foram desorganizadas por ocasio da guerra do Paraguai: o governo da provncia recrutou fora os capoeiras , que fez seguir para o Sul como voluntrios da Ptria. Manuel Querino conta que muitos de les s e dist inguia m por atos de bravura no campo de batalha. 48
Ao reconst ituir um percurso hist rico da capoeiragem, Lbano
Soares destaca que, antes de ser descoberta pelos historiadores, h poucas dcadas, a capoeira j t inha vivido suas aventuras nas pginas da l i teratura, dos cronistas , dos memoriali s tas do passado imperial do Rio de Janeiro. E antes mesmo destes e de forma muito mais freqente -, num passado remoto, a capoei ra s era testemunhada pelos escrives de Polcia. 49
Alus io de Azevedo, em O cortio , (1890) e Manoel Antnio de
Almeida, em Memrias de um sargento de milcias , (1854) registram nas
pginas desses romances episdios envo lvendo personagens capoeir istas, os
quais contr ibuem para entender a dinmica socia l do Rio de Janeiro, no sculo
XIX, perodo que marca a passagem da o rdem imperial para a o rdem
repub licana.
Cont inua Lbano Soares:
[. . . ] junto com ramei ras, prosti tutas , vagabundos, est ivadores, malandros, bomios, poli ciais , os capoei ras faziam parte da buliosa fauna das ruas da Corte, que assustava as camadas mdias e tambm a elit e dirigente. Persegu idos pelo aparat o
46 Cf. AREIAS, op. cit., p. 29 47 Id., p. 29. 48 CARNEIRO, Edson. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 2 ed. Cadernos de Folclore. V. 1. 49 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies no Rio de Janeiro. (1808-1850). 2 ed. Campinas, So Paulo: Unicamp, 2004. p. 35-36.
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policial os capoei ras foram p resena freqente nas pginas do crime do sculo XIX. 50
Concomitante aos ep isdios da Corte Imperial no Rio de Janeiro,
envolvendo indivduos desses segmentos sociais, a Bahia e seu Recncavo
tambm possuem os seus vadios, valentes, desordeiros ou ainda
pobres e vic iosos. Segundo Josiva ldo Olive ira, na cidade de Salvador das
primeiras dcadas republicanas a capoeiragem assim era vista : Configurou-se de forma aproximada ao Par republicano. Os capoeiras eram associados vagabundagem e a outros t ipos sociais do universo das ruas, a exemplo do capanga pol t i co e do soldado de polcia, mas t ambm ao trabalhador nas principais ocupaes das camadas populares: pedrei ro, carregador, car roceiro, mart imo, peixeiro, etc. 51
Para Muniz Sodr, a capoeira implicava, como toda estratgia
cultu ral dos negros no Brasil, um jogo d e res istncia e acomodao .
Luta com aparncia de dana, dana que aparenta combate, fantasia de luta, vadiao, mandinga, a capoeira sobreviveu por ser um jogo cultural . Um jogo de destreza e malcia em que se finge lutar, e finge-se t o bem que o concei to de verdade da luta se dissolve aos olhos do espectador e ai del e do adversrio desavisado. 52
Sodr traz uma descrio p rimorosa dessa arte :
Vadiao e brincadeira so outros nomes com que os negros designavam na Bahia o jogo da capoeira. Capoeir a se luta, joga, brinca, algo que se faz entre amigos ou companheiros. Como? Primei ro, forma-se uma roda composta por um ou mais tocadores de berimbau (a rco retesado por um fio de ao, percutido por uma vareta e ao qual s e prende uma cabaa capaz de funcionar como caixa de ressonncia), pandeiros, caxixis ou reco-recos. Em seguida, dois homens entram no c rculo, abaixando-se na frente dos msicos, ao som dos instrumentos e de canes (chulas) espec fi cas. 53
50 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A negregada instituio. Os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999. p. 3. Segundo o autor, os feitos dos capoeiras no Rio de Janeiro capital da Repblica Bahia e seu Recncavo vinham desde o perodo monrquico, o que validava a sua coibio. Por conta disso, o Cdigo Penal de 1890 passa a ser o principal recurso de punio para esse tipo de luta. 51 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit.; p. 33. 52 SODR, Muniz. Capoeira, um jogo de corpo. op. cit.; p. 155. Grifos do autor. 53 Id. p. 153. Grifos do autor.
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Ento, mobilizam-se totalmente os corpos dos jogadores. Mos, ps, joelhos, braos, calcanhares, cotovelos, dedos, cabeas combinam-se dinamicamente em esquivas e golpes, de nomes variados: a, rasteira, meia -lua, meia -lua de compasso, martelo, rabo-de-ar raia, beno, chapa-de-p, chibata, t esoura e muitos outros. 54
Em sua cartografia da capoeiragem baiana, Josivaldo Oliveira
mapeia os princ ipais loca is de conflitos dos capoeiristas, ruas, logradouros, e
a moradia de muitos dos indivduos ident ificados como capoeiras. 55 As e lites
so teropolitanas consideravam esses locais espaos suscet veis
crimina lidade.
O cotid iano da rua na Cidade do Salvador, inclusive nas obscuras
e embriagadas noites, urgia ateno especial por parte das autoridades e os
edito ria is dos principa is jorna is da poca cobravam das auto ridades polic iais
melhor segurana e ordenao pblica. 56 Contudo, a despeito da forte
represso, os capoeir istas mant iveram clandest inamente o jogo, praticando -o
nos quinta is, nas praias, nos terre iros e nos arredores da cidade, ao tempo em
que transmit iam seus ensinamentos s geraes fu turas. 57
A ginga e malcia da capoeira estavam nas ruas, fert ilizando a
imaginao de segmentos sociais e lit izados, amedrontados com as possveis
agresses, endossando a mxima de que o capoeir ista malandro, um
detentor de artimanhas, aprimoradas a cada luta e, princ ipalmente, na roda da
capoeira.
Nesse contexto histrico, comea a saga de Besouro Mangang, cuja
fama alcanada ass im compreend ida por Pedro Abib: No imaginrio da capoeiragem e dos capoei ras no exi s t e figura mais representativa do que Besouro Mangang. [. . . ] na memria dos mais antigos moradores do Recncavo, a figura de Besouro, vive e protagoniza um sem-nmero de histrias e causos envolvendo suas peripcias e astcias no enfrentamento com a pol cia, sua valentia ao brigar e bater em vrios oponentes ao mesmo tempo [. . . ] . 58
54 Id. p. 153-154. 55 Id. p. 41. O autor destaca a importncia das crnicas e da literatura urbana para os estudos africanistas e a etnografia, vigorando at os anos 1930, por contriburem com a reconstituio do cotidiano dos capoeiras baianos que viveram em Salvador nas primeiras dcadas do sculo XX. Cf. OLIVEIRA, Josivaldo. p. 39-40. 56 Id. p. 45. 57 Cf. AREIAS, p. 61. 58 ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP. Unicamp/ CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. p. 160.
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Ao sair de casa com 13 anos de idade, Besouro vai para a sede do
distr ito em que morava, Santo Amaro da Purif icao, vindo a res idir no ba irro
do Trapiche de Baixo , zona suburbana da cidade que passa a ser a sua escola.
Aprende a jogar capoeira com o tio Alpio e trabalha em diversos o fc ios:
vaqueiro, amansador de burros, save irista, num tempo de conflito entre
maltas, disputas a nava lha, capangas ele itorais e represso do Estado
repub licano ao jogo da capoeira.
nesse perodo conturbado do pas, em espec ial a Bahia e o seu
Rec ncavo, cu ja at ividade econmica, em seus modos e relao de produo,
no abriu mo da fo ra de trabalho dos negros, mesmo com a abolio da
escravatura, que passam a compor predominantemente os segmentos populares
que Besouro ganha evidncia com seus feitos que desafiam a ordem vigente.
Naquele universo da capoeiragem baiana, muitos capoeiristas se
tornaram notveis. Contudo, Besouro Cordo de Ouro lidera o perodo, com
maestria, sncopa, qualif icada por Muniz Sodr como um espao a ser
preenchido com o corpo 59 e, nesse caso, o corpo do negro : em movimentos
r tmicos, envolvido pela msica e a ginga da capoeir a, quase um bailado que
hipno tiza o adversr io. Edson Carne iro o destaca : o mais famoso dos
capoeiras nacionais era natura l de Santo Amaro, na zona canavieira, e tinha o
apelido de Besouro Venenoso. Era invencvel e inigualvel. Ainda agora as
chu las de capoeira cantam as suas proezas lendr ias. 60
Besouro Mangang ensinou a outros o que aprendeu com o seu
velho mestre, a inda garoto . Nesse ap rendizado comea a conhecer o corpo
como elemento agregador para fortalecer a arte da ento capoeira escrava, 61
um instrumento para defesa e ataque, uma das estratgias dos escravos para 59 SODR, Muniz, Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 11. De acordo com Walnice Nogueira Galvo, a sncopa uma espcie de padro rtmico em que um som articulado na parte fraca do tempo ou compasso, prolongando-se pela parte forte seguinte. Um corpo sincopado valoriza mais intensa e expressivamente o tempo fraco da msica. E isso se reflete de diversas maneiras. Porque rompendo com a hegemonia do tempo forte, esse corpo se fraseia de um outro jeito: como se ele tomasse a liberdade de brincar se expressando. Conectado com o esprito da msica esse corpo tanto ginga por dentro como por fora; saracoteia, deixa-se tomar por trejeitos, por negaas, remelexos, balanos, meneios, volteios, sungues.... A sncopa se traduz no corpo e o corpo traduziria o ritmo caso ele fosse dessincompado. como se no tempo fraco o corpo pudesse exprimir certas sutilezas para as quais o tempo forte no dispe de durao suficiente. Pois o tempo forte nos prende ao cho enquanto o fraco nos liberta dele: o tempo forte peso, o tempo fraco leveza. Cf. GALVO, Walnice Nogueira. Grandeza e encanto de Naturalmente, de Antnio Nbrega. Disponvel em http://www.conectedance.com.br/matria.php?id=9 60 CARNEIRO, Edson. op. cit., loc., cit. 61 Denominao usada por Carlos Lbano Soares para a capoeira jogada no sculo XIX. In: A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2004.
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lidar com a brutalidade do poder escravista. Segundo Almir das Areias, a
capoeira surge no Brasil como arma, em funo da necessidade do escravo de
se defender dos maltratos e cast igos dos seus opressores e, ao mesmo tempo,
como folguedo, para expresso e manifestao dos seus sent imentos. 62
Assim, a capoeira era uma prtica necessria a um segmento da
populao afro -baiana, cada vez mais oprimida e marginalizada. s
escondidas, os capoeiras, nos qu intais, nas pra ias, nos terreiros e nos
arredores da c idade, exerc itavam a sua prtica e transmit iam os seus
ensinamentos s geraes futuras. 63 Nessa p rtica, tem-se um jogo de corpo
que marca um movimento de res istncia, o scilando entre a revolta e o embate
direto s foras da ordem.
Besouro Cordo de Ouro, um her i da cultura afro -brasileira
Ona preta foi l em casa/ t um tum tu m bateu na porta/ M e chamou pra conver sar/ Tem u m n ego que u m touro/ Viaj ando para c/Usa cord o d e ouro/ Cal a chapu e abadar/ Usa brinco e patu/ Ona pret a foi l em casa/ Zu m zu m zum boat o corr e/ Besouro Mangang64 Zum, zu m, zu m, Besouro M an gang Batendo nos soldad os da pol cia mil i tar Zum, zu m, zu m, Besouro M an gang Quem no pode com mandinga no carr ega patu65.
Quem o heri Besouro? Que narrat iva protagoniza? Em sua
trajetria, no abraou uma nobre misso, como os heris das epopias
clss icas: r epresentar grand iosamente a sua ptria ou nao ou a humanidade.
Besouro va i compor a galer ia de ou tra tradio, a do her i popu lar, erguido na
contramo dos valo res de uma cultura hegemnica. Por esse entendimento,
so tidos como ant i-heris, marginais ou picarescos.
No Ocidente, as narrat ivas sobre os feitos extraordinr ios dos
heris comeam na Grcia, as quais registram histrias de personagens que
62 AREIAS, Almir. O que capoeira. 1 ed. Brasiliense, So Paulo: 1983, p. 22 63 Id. p.60-61. 64 Cantiga de capoeira identificada por Areias, de autoria de Dado. In. O que capoeira. p. 55. 65 Cantiga de domnio pblico.
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enfrentaram situaes desafiadoras de sua condio humana. O heri dessas
narrat ivas jovem, corajoso e destemido, que vivencia incrveis faanhas.
Assim os her is so figuras imorta lizadas como semideuses, p ersonagens de
narrat ivas mt icas povoando o imaginrio dos ind ivduos em diferentes
cultu ras. De acordo com Massaud Moiss, at o sculo XVIII, [ . . . ] grosso modo a pica caracteri zou-se por um tom majestoso e mesmo religioso, e por conter as sublimes faanhas dum heri que simbolizava as grandezas de sua pt ri a e mesmo de toda a Humanidade: num mundo estrat i fi cado, havia lugar certo para o heri . Com o advento do Romantismo e a conseqente derrubada das carcomidas e tradicionai s estruturas, desaparece o heri e nasce o no-heri ou o anti -heri , pois no mundo novo deixou de haver espao para as concepes mti cas segundo o antigo figurino. 66
O heri das narrat ivas ocidentais uma espc ie de super -homem,
um semi-deus, da a ambigidade, o que mantm sua co nd io humana. Nas
epopias gregas, o heri ap resenta uma faceta blica, protagonizando uma
histria de conflitos, que tem o seguinte enredo : a preparao (apresentao
do heri e descrio das armas); o combate (peripcias, espectadores,
proezas); o desenlace vito rioso (despojos, injria aos cadveres inimigos,
jogos fnebres). 67
Besouro, heri de extrao popular, protagonista da epopia
dolorosa dos negros no Brasil, tornando-se um personagem da histria que va i
alimentar, ainda hoje, muitas narrativas sobre suas aventuras. O capoeirista
rasura a noo de heri como a elaborada por uma conceituao tradicional do
gnero pico, vindo simbolizar a rebeldia dos negros, como resposta ao
sistema escravocrata no pas.
O enfrentamento dos negros escravizados ao s istema dominante
sempre foi vigiado, controlado, objeto de punies severas, se ja atravs de
cd igos criados pelos senhores escravistas, seja atravs de leis elaboradas
pelo campo ju rdico, que inc lusive d respaldo queles cdigos. Em seu
estudo acerca do papel dos negros na desagregao da ordem escravista no
66 MASSAUD, Moiss. A criao literria. 4 ed. So Paulo: Melhoramentos, 1971, p. 70. 67 Cf. E-Dicionrio de Termos Literrios. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl//verbetes/H/heroi.htm. Acesso em 01/05/2010.
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Brasil, a historiadora Lane Lage Lima ana lisa a aliana entre a campanha
abo licionista e a rebeldia negra. 68
Para a auto ra, a insurreio const itui a resposta do escravo
violncia do s istema de dominao imposto pelo branco. Vio lnc ia traduzida
por precrias condies de subsistnc ia, aliadas compulso a um trabalho
extenuante e a lienador, atravs de mecanismos de coero particularmente
violentos e legitimados, legal e ideologicamente, na consc inc ia do senhor. 69
A autora constata os limites dessa rebeldia, como suas
possib ilidades. Limitada, porque no se abrem para o escravo perspectivas
de atuao poltica dentro do sistema, que condena o negro rebelde
marginalidade e vio lncia sem expresso social, como se apresentam
dificuldades mater iais de mobilizao de uma classe constantemente
vigiada e, sobretudo, impossib ilidade de o escravo at ingir uma
consc ient izao mais ampla de s i mesmo e do sistema que o oprime. 70
Porm, dois fatores vo possibil i tar ao negro ultrapassar os l imites dessa rebeldia fechada em si mesma. Em primeir o lugar, a preservao da rel igio e cultura a fr icanas; na medida em que no s aglutinam e organizam os negros pela reproduo de hierarquias transplantadas da frica, mas, principalmente, permitem-lhes autoconceberem-se como pessoas, dotadas de individualidade prpria , fora do sis t ema escravista, que passa a s er vis to, de forma globalizante, como um todo cultural que lhe hosti l . E , em segundo lugar, o aproveitamento das conturbaes sociais surgidas nos momentos de crise do s is tema, quando os negros canalizam sua revolta para os movimentos revolucionrios que agitam esses perodos, como forma,
68 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra & abolicionismo. Rio de Janeiro: s/d. A pesquisadora elenca os movimentos de insurreio no pas, principalmente os ocorridos no sculo XIX, momento em que o sistema escravocrata apresenta sinais de crise, isto , quando o trabalho escravo inviabiliza a expanso do capitalismo. A autora destaca a rebeldia do negro em movimentos de cunho poltico, como a Conspirao dos Alfaiates, na Bahia, em 1798, a Cabanagem, no Par, a Balaiada, no Maranho, a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, a Sabinada, na Bahia, no sculo XIX, e de cunho religioso, como as insurreies dos Mals, na Bahia, tambm no sculo XIX. 69 Idem, p. 153. 70 Id. p. 154. Segundo a autora, esses limites, por sua vez, so determinados pela estrutura de produo brasileira, que, ao integrar a produo para mercado de subsistncia, alia num s ncleo o lar e a empresa, permeando com relaes pessoais as relaes de produo. De acordo com Lana Lima, nas relaes pessoais, senhor e escravo, de base patriarcal, no mbito da esfera privada, o negro se percebe em sua condio humana, enquanto pelas relaes econmicas, patro e empregado, colocado como instrumento de produo, portanto, coisificado, o que conduz o escravo a auto-representar-se como no pessoa, destitudo de vontade prpria, posto que submetido ao arbtrio do senhor. Isso limita no escravo a capacidade de identificar o sentido real das relaes de produo do sistema escravista, percebido apenas do ngulo particular, vivenciado no cotidiano da fazenda. Assim, a atuao divergente do negro restringe-se revolta parcial e imediatista contra as situaes de opresso que povoam o seu dia-a-dia. Cf. LIMA, loc. cit.
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consciente ou no, de ampliar suas possibil idades de expresso social . 71
A preservao da religio e cu ltu ra africanas possib ilita aos negros
uma integrao entre s i. A p rtica da religio do candombl, trazido ao Brasil
pelos sacerdotes afr icanos escravizados, assegura a permanncia do idioma e
da cultura dos negros. No candombl, so cultuados os deuses orixs,
voduns, inqu ices , preservados em rituais sagrados, com vestimentas
prprias, danas, cnt icos, o ferendas, homenagens, integrando -se vida
cotid iana, a despeito da proib io estabelecida pela Igreja Cat lica ou
governantes. 72
Para Lana Lima, no sculo XIX que a ampliao das
possib ilidades de expresso social dos negros alcana seu limite mximo, com
o movimento abo lic ionis ta, que absorve, funcionando como agente
catalizador, uma rebeldia sempre manifesta, com a promessa de um mundo
diferente da marginalidade em que viviam.
Mas, ao alia r-se rebeldia negra, uti l izando-a para pressionar e desgastar o s is t ema [escravocrata], o abolicionismo impe-l he seus prprios l imites , enquanto ideologia nascida de int eresses espec fi cos, que depois da abolio o negro percebe no coincidirem exatamente com os seus. Trans formadas as relaes de produo, no se modi fi ca o lugar ocupado pelo negro no processo produtivo, e desfeitas as al i anas, seu comportament o divergente vai s er novamente relegado a mera questo policial . 73
Nasc ido no contexto de ps-abolio, tempo de alianas desfe itas,
portanto, o capoeir ista Besouro const itui-se, enquanto su jeito, num ambiente
quilombola, de negros rebeldes dominao, preservando a religio do
candombl, que se expande com a abolio da escravatura, bem como a
cultu ra africana. Ainda menino, conhece o mestre Alp io, que lhe transmite,
na prtica, os ensinamentos da capoeira, uma arte, um fazer que se aprimora
incorporando a religiosidade de religare, ou seja, l igar de novo , de
integrao ao mundo de seus ancestrais . Para tanto, crenas e va lores da
71 Id. p. 154-155. 72 Informaes disponveis em: http://www.turismoreligioso.org.br/system=news&action=read&id=88. 73 Id. p. 155.
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religio do candombl vo const itu ir o ethos dos capoeiristas, com rituais
prprios e princpios t icos.
Os capoeiras no presc indiam de suas crenas, da proteo e
orientao de seus orixs, do atendimento a suas qu izilas, pois aprenderam,
com o so frimento, os limites da co ndio humana. O capoeirista Besouro,
protegido de Ogum, deve atender as suas quizilas como no passar po r
baixo de cerca de arame farpado , no ter relaes sexuais em dia de jogo ,
respeitar as proibies de seu santo e cumprir suas obrigaes (o brigaes
dizem respeito s cer imnias internas, a serem cumpridas pelo iniciado,
preparadas para o seu orix) . Caso contrr io, so frer punies. 74
Assim, Besouro encontra foras e alt ivez para quest ionar uma
estrutura socia l perversa, jogando capoeira, lu tando , zombando, como um
heri pcaro, do mundo da ordem senhoria l, const itudo de mentalidade
escravocrata, mesmo com a Abolio. Em sua rebeldia, valent ia e ginga
aprimorada, ele vai se to rnando conhecido e reconhecido, principalmente no
universo da capoeira.
Segu ndo Abib, no imaginr io da capoeiragem e dos capoeiras no
existe f igura mais expressiva e representat iva do que Besouro Mangang. 75
Ainda com o autor, a fama e a admirao nu tridas pela memria co let iva
sobre as faanhas e p roezas de mitos como Besouro Mangang, de certa
forma, explicam a insistnc ia de alguns mestres em marcar sua ligao com
esses mito s, a exemplo de Cobrinha Verde, que diz ter comeado a capoeira
com Besouro aos quatro anos de idade.
Segu ndo Cobrinha, Besouro ensinava capoeira aos alunos
escondido da polcia, porque a polcia persegu ia muito . No dia que estava
aperriado quando a polcia vinha para acabar, e le se revoltava, mandava os
alunos fugirem e dava testa a po lcia sozinho. 76 Ainda, quando Besouro
74 Quizilas so proibies rituais, referentes a alimentao, mas no se restringem a ela; dizem respeito tambm a aes cotidianas. A desobedincia quizila de um santo provocar sanes. Cada um deles tem suas preferncias e repulsas e desobedec-las significa tornar-se suscetvel a sanes. So as chamadas quizilas de santo, que tudo aquilo que o orix rejeita, causando uma reao negativa que atinge as pessoas. De acordo com o antroplogo Vilson Caetano, toda iniciao ao candombl passa por tabus alimentares. As quizilas so proibies rituais que tm uma nica funo: lembrar ao iniciado a sua relao com aquele ancestral. Seguir essas restries uma forma de reforar a identidade com o seu orix, explica o antroplogo. Disponvel em http://www.iroin.org.br/onl/clip.php?sec=clip&id=326. Acesso em 22/05/2010. 75 ABIB, Pedro. Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. p. 160. 76ABIB. op.cit. p. 163. apud SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991.
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ensinava aos seus discpulos e via que o aluno estava preparado, testava o
aprendiz, fechando-se em uma sala com o d iscpulo, para o qual diz ia : vamos
trocar facas com uma toalha amarrada na c intura dos dois, p ra um no fugir
do outro .77
Tambm o mestre Joo Pequeno de Past inha afirma que, desde
menino, queria aprender capoeira para ser valento como Besouro. 78 Esse
capoeirista endossa uma viso mit ificada de Mangang, dotado de poderes
sobrenaturais, ao afirmar que seu pai, primo do capoeirista santoamarense
Cordo de Ouro, lhe contava histrias sobre ele, que tinha o poder de se
esconder de algum, to rnar- se invisve l, em qualquer lugar, a a lgumas
pessoas.
Abib menciona que Joo Pequeno diz ia ser o seu pai, assim como
Besouro, preparado de orao e revest ido do poder de se tornar invisve l:
Ele andando assim, num caminho e quando avistava uma pessoa que ele no
queria que visse e le, a pessoa no via mesmo no. 79 Segundo o estudioso, tal
fenmeno revela muito do ethos dos capoeiras de ant igamente e mesmo
dos capoeiras de ho je - por mais que se evitem ta is comparaes, quando se
busca associar a capoeira com valores mais ace itos socia lmente. 80
Para Josef Campbell, o heri o homem ou mulher que conseguiu
vencer as suas limitaes histricas pessoais e locais e alcanou formas
verdadeiramente vlidas, humanas. 81 Nesse sent ido, os fe itos e atr ibutos de
Besouro Mangang, guardados na memria dos mais velhos e renovados por
uma tradio oral, vo construir a f igura do heri, assim como o seu apelido,
Besouro Mangang, que s imboliza a sua histria de luta e res istncia. Jos
Raimundo Cnd ido apresenta uma explicao para essa a lcun ha:
Quanto ao apelido Besouro Mangang, conta -se que surgi u quando, aps arrumar mais uma encrenca com a polcia, desapareceu misteriosamente. Atordoado, um policial perguntou para um dos que assis t iram cena: Voc viu pr onde foi aquele negro? Vi, sim senhor. Ele virou besouro e
77 Cf. SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991. apud ABIB. op. cit. p. 163. 78 .Id. p. 163-164. 79 Id. p. 164. 80 Id. p. 164-165. 81 CAMPBELL, Josef. O heri de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. 11 reimp. da 1 ed. de 1989. So Paulo: Pensamento, 2007. p. 28.
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saiu voando. Mangang um tipo de besouro cuja picada muito perigosa e s vezes fatal . 82
As tess ituras que compem a biografia de Besouro, da o rigem do
seu epteto s suas faanhas, constituem-se por uma aliana entre real e
imaginr io num texto f icciona l, num processo de seleo e combinao
dos elementos textua is, reais e imaginrios. No processo de heroic izao
destacam-se os feitos de Besouro Mangang, com suas fugas espetacu lares,
sem deixar vestgios. Adr